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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2023  Epub 03-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.75318 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

A Liderança Fundamentalista: Uma Abordagem a partir de Freud

Fundamentalist Leadership: An Approach from Freud

Liderazgo Fundamentalista: Un Abordaje desde Freud

Thiago Araújo Oliveira* 

Graduado em Filosofia, formado em Teologia, mestre e doutorando em Psicologia pela PUC Minas. Psicanalista em Formação na Ato Escola de Psicanálise.


http://orcid.org/0000-0002-6105-7516

Jacqueline de Oliveira Moreira** 

Professora da Pós-Graduação Psicologia PUC Minas. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Mestre em Filosofia pela UFMG. Psicanalista. Bolsista Produtividade CNPq PQ1D


http://orcid.org/0000-0003-0901-4217

*Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas, Belo Horizonte, MG, Brasil

**Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas, Belo Horizonte, MG, Brasil


RESUMO

Trabalhado a partir de revisão de literatura, este artigo visa a uma abordagem do fundamentalismo religioso sob a perspectiva da teoria freudiana. Justifica-se abordar esse fenômeno complexo e, atualmente, alardeador sob diversas perspectivas epistemológicas - dentre as quais, a psicanalítica -, objetivando uma compreensão interdisciplinar. A psicanálise, desde seus inícios, manifestou interesse pelo fenômeno religioso, que se tornou tema recorrente ao longo da obra de Freud. Diante da expressividade do atual fundamentalismo religioso na sociedade pós-moderna, faz-se oportuno buscar, no pensamento freudiano, aportes teóricos que possam contribuir para pensar esse fenômeno. A pesquisa desenvolvida busca destacar uma característica relevante nos segmentos religiosos fundamentalistas: o poderio dos líderes que, como a figura do grande homem abordado por Freud, são capazes de atrair, influenciar e mobilizar as massas, levando-as, inclusive, a posturas de intolerância e ataque contra a diversidade que constitui a sociedade. Conclui-se que o fundamentalismo religioso tende a persistir e suas variadas ressurgências demonstram como a religião não é imune a portar, em si, um potencial para o desencadeamento da pulsão agressiva e destrutiva inerente a todos os seres humanos e a suas diversas formas de associarem.

Palavras-chave: fundamentalismo religioso; psicanálise; líder.

ABSTRACT

Based on a literature review, this article aims to approach religious fundamentalism from the perspective of Freudian theory. It is justified to approach this complex and currently boasting phenomenon from different epistemological perspectives - among which, the psychoanalytic one -, aiming at an interdisciplinary understanding. Psychoanalysis, from its beginnings, showed an interest in the religious phenomenon, which became a recurring theme throughout Freud's work. Given the expressiveness of current religious fundamentalism in postmodern society, it is opportune to seek, in Freudian thought, theoretical contributions that can help thinking about this phenomenon. The research developed seeks to highlight a relevant characteristic in fundamentalist religious segments: the power of leaders who, like the figure of the great man approached by Freud, are capable of attracting, influencing and mobilizing the masses, even leading them to postures of intolerance and attack against the diversity that constitutes society. It is concluded that religious fundamentalism tends to persist and its various resurgences demonstrate how religion is not immune to carrying, in itself, a potential for triggering the aggressive and destructive drive inherent to all human beings and to their various ways of associating.

Keywords: religious fundamentalism; psychoanalysis; leader.

RESUMEN

A partir de una revisión de la literatura, este artículo tiene como objetivo abordar el fundamentalismo religioso desde la perspectiva de la teoría freudiana. Se justifica abordar este fenómeno complejo y, actualmente, prestigiado desde diferentes perspectivas epistemológicas -entre las cuales, la psicoanalítica-, visando una comprensión interdisciplinar. El psicoanálisis, desde sus inicios, mostró un interés por el fenómeno religioso, que se convirtió en un tema recurrente a lo largo de la obra de Freud. Dada la expresividad del fundamentalismo religioso actual en la sociedad posmoderna, es oportuno buscar en el pensamiento freudiano aportes teóricos que puedan contribuir a pensar este fenómeno. La investigación desarrollada busca resaltar una característica relevante en los segmentos religiosos fundamentalistas: el poder de los líderes que, como la figura del gran hombre abordada por Freud, son capaces de atraer, influir y movilizar a las masas, incluso llevándolas a posturas de intolerancia y atentado contra la diversidad que constituye la sociedad. Se concluye que el fundamentalismo religioso tiende a persistir y sus diversos resurgimientos demuestran cómo la religión no es inmune a portar, en sí misma, un potencial para desencadenar la pulsión agresiva y destructiva inherente a todo ser humano y a sus diversas formas de asociación.

Palabras clave: fundamentalismo religioso; psicoanálisis; líder.

Insurgências Contra a Modernidade

O período histórico denominado Idade Moderna esteve intimamente vinculado - mesmo que retrospectivamente - à Revolução Científica do século XVII. Os modernos hauriram dessa revolução a confiança de que poderiam não apenas se igualar aos antigos, como também, ultrapassá-los em realizações e descobertas. Essa confiança foi fundamental para a modernidade dar azo a grandes temas e teorias de progresso, racionalidade, revolução e emancipação. Inúmeros fatores, no entanto, - com destaque para as grandes guerras no século XX - levaram a realçar os limites históricos da modernidade e a insustentabilidade e declínio de seus ideais. Delineou-se então a pós-modernidade como movimento cultural que expressava a crise da modernidade (Kumar, 1997).

Contudo, de acordo com Kumar (1997), o pós-modernismo não significou total ruptura com a modernidade ou com o modernismo (termo usado preferencialmente para fazer referência ao aspecto cultural e estético da modernidade). Há, inclusive, entre autores, quem veja a pós-modernidade como radicalização e quem a veja como pleno desenvolvimento da modernidade. O que teria caído na obsolescência foram as proposições modernas baseadas em uma visão teleológica do progresso e da modernização. As grandes narrativas construídas a partir de alegações científicas e baseadas em universais homológicos deram lugar a narrativas modestas. Estas são construídas com base em conhecimentos consuetudinários ou locais. São contextuais, impermanentes, limitadas, privadas de pretensões científicas, autolegitimadoras, sensíveis às diferenças, tolerantes com o incomensurável e abertas para aceitar o falso raciocínio e os argumentos ilógicos. Por outro lado, “o estado de espírito pós-moderno constitui ... a vitória radical da cultura moderna (isto é, inerentemente crítica, inquieta, insatisfeita, insaciável) sobre a sociedade que queria melhorar, escancarando-a a seu próprio potencial” (Bauman como citado em Kumar, 1997, p. 151).

Na década de 1960, houve grande entusiasmo pelas proposições do pós-modernismo. A contracultura que se estabeleceu agregava aguerridos opositores de tudo o que o modernismo representava, tanto em âmbito político quanto cultural. Buscavam-se e defendiam-se alternativas para o que era considerado o mundo elitista, esotérico e autocrático do modernismo. A intensa contestação do etos moderno, nesse período, também ajudou a preparar o terreno para o ressurgimento e revigoramento de ideologias religiosas avessas à modernidade, pelo que ela representava de exaltação do racionalismo, do secularismo e dos avanços científicos.

A Efervescência Religiosa na Década de 1960 e suas Atuais Repercussões

Em meio à atmosfera revolucionária instaurada nos anos 1960 e na esteira dos ideais de contracultura da época, desencadeou-se uma busca por novas formas de espiritualidade que, naquele momento, expressou-se pelo surgimento de novos cultos e seitas, pela redescoberta de antigos grupos religiosos minoritários e também por significativas mudanças nas grandes igrejas já existentes. Uma expressiva ebulição religiosa eclodiu em quatro direções. Primeiramente, despertou-se, especialmente no meio juvenil, um forte interesse por religiões de origem oriental: hinduísmo, budismo, sufismo etc. Técnicas meditativas ou místicas do Oriente começaram a ser amplamente difundidas e praticadas no mundo ocidental. Um segundo aspecto da efervescência religiosa pode ser descrito pela procura de transcendência através das drogas e pela busca de transformação pessoal, com base em técnicas de autoajuda. Surgiram variados grupos e movimentos dedicados a proporcionar, às pessoas, a maximização do potencial humano, lançando mão de métodos que levariam à maior conscientização de si mesmo e ao desbloqueio de inibições pessoais. Numa terceira linha, evidenciou-se um acelerado crescimento de segmentos evangélicos, fundamentalistas e pentecostais, através do surgimento de inúmeras seitas, mas também através de novas ramificações religiosas no contexto de igrejas protestantes tradicionais, bem como nos ambientes da Igreja Católica. Por fim, destaca-se o pulular de seitas ou cultos autoritários, geralmente organizados em torno de líderes carismáticos com significativo poder de influência sobre seus seguidores (Hervieu-Léger como citado em Libanio, 2001).

Conforme Libanio (2001) ressalta, esperava-se que a modernidade do final do século XX se mostrasse definitivamente a-religiosa, secular e governada, em princípio, pela razão científica e técnica. Contudo, uma nebulosa de crenças se espalhou e se instalou no mundo ocidental e a religião, fortalecida, retornou à cena social. A cultura e a política, paulatinamente, tornaram-se alvo da mobilização, investida e ingerência de movimentos religiosos, que anseiam cada vez mais por espaço, poder e influência. Com esse afã, destacaram-se os grupos fundamentalistas, que passaram a organizar e aprimorar sua militância em fins dos anos 1960 e no decorrer da década de 1970.

Armstrong (2001) salienta que religiosos radicais viam a modernidade como um ataque agressivo às suas crenças. O etos moderno preconizava a liberdade em relação a modos antiquados de pensar; seu ideal de progresso levava a minar crenças, práticas e instituições consideradas irracionais e, portanto, propiciadoras de atrasos. Indignados, muitos religiosos decidiram combater os liberais e secularistas que, em sua percepção, oprimiam-nos e marginalizavam. Num contexto de reação, diversos setores religiosos, com tendências fundamentalistas, passaram a travar ofensivas contra a secularização e o racionalismo legados pela modernidade.

Origem do Termo Fundamentalismo e sua Atual Abrangência

A origem do termo fundamentalismo remonta aos finais do século XIX e inícios do século XX e se vincula a um fenômeno religioso que, convencionalmente, é chamado de fundamentalismo histórico. Rocha (2020) o descreve como “... um movimento religioso, protestante e norte-americano, que surgiu em oposição ao liberalismo/modernismo teológico e defendia uma concepção de inerrância do texto bíblico” (p. 465). Suas principais características são o conservadorismo teológico, moral e político, um espírito de exacerbado patriotismo, uma perspectiva escatológica que advoga a redenção da humanidade após uma segunda vinda de Cristo e uma postura pessimista diante de determinados aspectos do mundo moderno, que teria relegado as verdades divinamente reveladas.

Naquele contexto de virada de século, vários setores do protestantismo norte-americano começaram a ter uma visão mais crítica em relação aos dados bíblicos e à moral religiosa e também passaram a ter mais abertura para as aquisições da modernidade, no campo da cultura e da ciência. Isso provocou a reação de membros conservadores de várias denominações protestantes que passaram a defender, de modo intransigente, os conteúdos tradicionais de sua religião. Com isso, delineou-se um movimento protestante ultraconservador e autoritário que, no conflito com cristãos liberais, tinha o objetivo de contestar o modernismo teológico e religioso que se disseminava pelas igrejas norte-americanas.

A reação contra o etos moderno, contudo, não foi um fenômeno exclusivo no âmbito das igrejas protestantes norte-americanas. Entre os católicos, houve semelhante levante contra a modernidade, praticamente no mesmo período em que despontou o chamado fundamentalismo histórico entre os protestantes. E a reação católica, a princípio, também aconteceu por parte de setores tradicionalistas e conservadores contra católicos considerados liberais.

Há dois fatos emblemáticos ocorridos no contexto católico, em fins do século XIX, que expressam o espírito de combate religioso ao etos moderno: a publicação da encíclica Quanta cura e do Syllabus Errorum, pelo Papa Pio IX, e a convocação do Concílio Vaticano I. Os dois documentos papais, pelo estilo e pelo tom, “... davam impressão de se tratar de uma declaração formal de guerra à modernidade” (Matos, 1997, p. 236). O Syllabus é constituído por oitenta condenações referentes a correntes político-sociais e filosóficas de cunho liberal. Quanto ao Concílio Vaticano I, iniciado em 1869, Matos (1997) salienta que foi uma iniciativa que dificultou ainda mais a aproximação da Igreja Católica com o campo moderno.

Na mesma época, também despontou uma corrente católica conservadora e intransigente, com posturas bastante semelhantes ao fundamentalismo protestante: o integrismo. Recebendo essa denominação tardiamente, já nos inícios do século XX, esse movimento se pautava pela mesma atitude de oposição à modernidade (Bonome, 2009). Analogicamente, pode-se dizer que o integrismo foi uma forma de fundamentalismo católico, pois ambos possuem fortes semelhanças, ao lado de significativas diferenças. Pierucci (1992) acentua as diferenças entre os dois que, no entanto, podem ser compreendidas como características específicas do contexto religioso em que cada um desses fenômenos religiosos despontou.

Há, por outro lado, fortes semelhanças que os aproximam. A militância política que o fundamentalismo protestante assumiu a partir da década de 1970, por exemplo, já era uma característica do integrismo católico desde sua origem, pois, conforme Pierucci (1992, p. 150) mesmo alega, esse setor do catolicismo tinha como ideal a “... restauração de uma sociedade integralmente cristã, ou seja, confessional em seu conjunto” e, para esse fim, era-lhe “indispensável a manipulação ou o exercício do poder político”. Por esse motivo, os integristas defendiam o ativismo político dos católicos, desde que aliados à direita. Ademais, do mesmo modo que o fundamentalismo protestante, o integrismo também nasceu como luta interna entre correligionários: católicos conservadores combatendo católicos liberais e simpatizantes de alguns ideais da modernidade. Os integristas, ademais, consideravam-se os defensores da fé tradicional - como os fundamentalistas protestantes também se viam - e se posicionavam como representantes do verdadeiro catolicismo ou do catolicismo integral, daí a denominação do movimento.

Quanto ao termo fundamentalismo, atualmente, ganhou maior abrangência, embora haja quem divirja de sua ampla aplicação e defenda seu uso para se referir, exclusivamente, ao chamado fundamentalismo histórico, protestante e norte-americano, situado no final do século XIX e início do século XX (Rocha, 2020). Armstrong (2001) adverte que a ampla aplicação do termo não é satisfatória, pois parece indicar que o fundamentalismo seja monolítico em suas manifestações. Ressalta ainda que “... cada fundamentalismo constitui uma lei em si mesmo e possui uma dinâmica própria”, por isso, o amplo uso do vocábulo pode ser considerado equívoco (Armstrong, 2001, p. 10). Essa autora considera, no entanto, que o termo, mesmo imperfeito, serve para rotular movimentos religiosos que guardam forte semelhança, apesar de suas diferenças. Enfatiza, ademais, que “... todos os ‘fundamentalismos’ obedecem a determinado padrão. São formas de espiritualidades combativas que surgiram como reação a alguma crise. Enfrentam inimigos cujas políticas e crenças secularistas parecem contrárias à religião” (Armstrong, 2001, p. 11). Oro (1996) chama a atenção para o fato de que esse vocábulo diz respeito a uma “... categoria sociológica de análise, é um conceito nominal que ajuda a agrupar certas experiências de expressão e vivência social de uma fé religiosa” (p. 165). Designa um fenômeno complexo que se apresenta no comportamento e nas atitudes de diversos grupos religiosos e pessoas. Para esse autor, embora os variados grupos considerados fundamentalistas possuam características parecidas, que possibilitam nomeá-los dessa forma, suas diferenças podem ser encontradas em sua cosmovisão, em suas ações e, principalmente, em relação ao que cada qual considera como fundamentos pétreos e indiscutíveis para sua crença.

Normalmente, o fundamentalismo se apresenta como uma explicação do mundo, elaborada e sustentada por um grupo a partir do seu sistema de crenças. Essas explicações são acompanhadas por ações afirmativas na sociedade, pelas quais o grupo tende a difundir e fazer valer suas convicções. Doutro lado, há também ações de negação, pelas quais o grupo rejeita o que, na sociedade, não se coaduna com aquilo em que crê ou que, em sua visão, representa uma ameaça para a fé. Há, portanto, um movimento de afirmação do mundo e outro de negação dele, dependendo da conformidade ou não das realidades sociais com os conteúdos fundamentais da crença (Oro, 1996). Dentre as atitudes de afirmação do fundamentalismo, a mais expressiva é a intenção de diluir a separação entre o sagrado e o profano. O objetivo, nesse sentido, é fazer com que o ambiente secular e laico da sociedade seja invadido pela religião.

A ampla aplicação do vocábulo fundamentalismo alcança, atualmente, inclusive movimentos radicais islâmicos. Pierucci (1992) discorre sobre essa aplicabilidade ressaltando que o termo começou a ser empregado para se referir àqueles movimentos a partir de 1979. Naquele ano, houve uma guinada no cenário político das terras levantinas, quando um clero islâmico intransigente conseguiu tomar o poder central no Irã, derrubando o anterior regime político laico e instaurando um governo clerical, alicerçado nas leis do Alcorão. Para noticiar aquela reviravolta político-religiosa, a mídia recorreu ao repertório de expressões usadas para igrejas ocidentais, tentando nomear o ainda inominável e incompreensível - e até mesmo para tentar entendê-lo e se fazer entendida. Dentre os vários vocábulos utilizados, lançou-se mão do termo fundamentalismo. Conforme a crítica de Pierucci (1992), fundamentalismo - que se tornou uma das palavras mais usadas -, inevitavelmente, comporta um sentido pejorativo, remetendo a fanatismo, obscurantismo, rejeição à ciência, à história, ao esclarecimento e à modernidade, sendo esta última sinônima de ocidentalização para os países de cultura islâmica. Em todo caso, segundo o autor, se fundamentalista é quem erige suas convicções religiosas a partir do exacerbado apego à letra da palavra supostamente revelada e, ainda, quem defende a inerrância de um texto sagrado, sua rigorosa observância, sua interpretação literal e sua centralidade como escritura divinamente inspirada, o termo fundamentalismo pode então ser aplicado - mesmo que com ressalvas - aos diferentes grupos mulçumanos que se configuram conforme esses padrões de comportamento.

Cabem ressalvas, outrossim, quanto ao uso de outros termos utilizados para designar os ativismos político-religiosos no islã, bem como em outros cenários religiosos. Pierucci (1992) salienta que não há perfeito encaixe entre os nomes e a coisa. Cada nomenclatura revela determinados aspectos, mas pode deixar escapar outros. Há, na verdade, um necessário jogo com as palavras, com o qual se tenta dizer algo de uma realidade que continua indomável diante dos discursos modernos dos especialistas ou dos simples comentaristas.

Para além da querela acerca do amplo emprego do termo, o que interessa, neste artigo, é abordar um aspecto, não raro, marcante entre movimentos religiosos abarcados sob a convencional denominação de fundamentalistas: o poderio de suas lideranças. Outras semelhanças podem ser encontradas entre esses diversos segmentos religiosos. Há, até mesmo, autores que se referem a um fundamentalismo global, “... que não estaria mais restrito ao protestantismo e nem aos Estados Unidos, mas que se manifestaria como uma tendência mundial em diversos locais e dentro de diferentes tradições religiosas” (Rocha, 2020, p. 458). Seria um fenômeno de dimensões mundiais caracterizado pelo despertar de uma religiosidade politicamente engajada, hostil ao crescente processo de secularização da sociedade, conservador e intransigente na defesa de valores que, na mentalidade moderna, seriam considerados obsoletos.

Entre os anos 1987 e 1995, Martin E. Marty e R. Scott Appleby organizaram um trabalho conjunto de pesquisa intitulado The Fundamentalism Project. Esses autores são importantes representantes da ideia de um fundamentalismo global. O trabalho deles contou com a participação de diversos pesquisadores de diferentes áreas, a fim de discutirem o aumento de movimentos religiosos conservadores de variadas tradições e engajados na política em vários países (Rocha 2020). Segundo Marranci (2009), as conclusões do trabalho sugerem, que “... todos os ‘fundamentalismos’ são consequências de grupos e líderes religiosos conservadores que rejeitam o modernismo e o secularismo”. Com esse objetivo, empenham-se por “preservar as formas tradicionais de vida e crenças religiosas através do escrituralismo” (p. 2).

Fato é que, chegado o século XXI, segmentos com tendências fundamentalistas se mostram potentes e bastante afinados com determinados projetos políticos de poder em alguns países, inclusive no Brasil. Líderes políticos se servem de discursos de cunho moral e religioso em vista de objetivos eleitoreiros. Líderes religiosos também se lançam em busca de alianças e articulações políticas para promoverem candidatos que representam ou defendem seus interesses. Nessa busca conjunta por poder, disseminam-se, na sociedade, disputas permeadas por fanatismos políticos e religiosos.

Tendo alcançado um significativo poder, discursos fundamentalistas seguem suas agendas, buscando propagar suas cosmovisões religiosas. Isso não acontece sem danos para a sociedade e para as minorias que a compõem, pois a diversidade cultural, de crenças e de estilos de vida se vê ameaçada e afrontada por ideologias religiosas que pretendem ser hegemônicas. Como resultado dessa pretensão, suscitam-se discursos de ódio, discriminação e rejeição contra segmentos sociais dissonantes.

Algumas lideranças religiosas radicais têm ganhado espaço no campo da política, outras se servem, prioritariamente, dos meios de comunicação social - com destaque para as redes sociais na internet -, a fim de difundirem seus ideais e projetos, agregando sectários e mobilizando-os para uma militância religiosa, às vezes, bastante agressiva.

Aportes Psicanalíticos para a Compreensão do Atual Fundamentalismo Religioso

O fenômeno fundamentalista é complexo. Compreendê-lo exige diálogo interdisciplinar. Por isso, variados campos do saber e do conhecimento, que se dedicam ao assunto, podem contar também com um diálogo com a psicanálise, na busca de uma compreensão maior do fenômeno a ser considerado. Dentre as várias abordagens possíveis, certamente, a psicanálise tem algo a dizer sobre a religião (Maciel & Rocha, 2008b). Basta lembrar que o fundador da psicanálise manifestou grande interesse pelo fato religioso, tanto que, em sua obra, encontramos vários textos abordando esse tema, que se estendem desde Atos obsessivos e práticas religiosas, de 1907, até Moisés e o monoteísmo, de 1939 (Mellor, 2004). Jones (1989) sublinha que Freud tinha, por exemplo, um grande conhecimento da Bíblia, tendo ampla capacidade para citar textos do Antigo e do Novo Testamento. Mas não só, possuía também um grande conhecimento de outras crenças religiosas.

Maciel e Rocha (2008a) destacam que Freud, em suas pesquisas e em sua obra, procurou esclarecer as motivações psíquicas da experiência religiosa. Buscou analisar o significado dos ritos e do comportamento religioso, além de elaborar uma interpretação psicanalítica da psicogênese e da natureza do fenômeno religioso. Para esses autores, toda a obra de Freud traz a marca do interesse dele pelo estudo da religião e pelo estudo das motivações psíquicas que estão na base das opções religiosas. Dessa forma, o próprio Freud demonstrou que a teoria psicanalítica pode oferecer subsídios úteis para interpretar o sentido inconsciente dos rituais religiosos, para elucidar a natureza das crenças e a origem do fenômeno religioso em suas variadas formas.

Os trabalhos de Freud acerca dos fatos religiosos são resultantes da sua conduta de pesquisador que lançou - para além da clínica do um-a-um - seu olhar interessado e investigativo sobre a realidade sociocultural e o contexto histórico no qual viveu, que também afetavam a ele aos sujeitos que recebia para tratamento psicanalítico. Conforme Rosa (2004) enfatiza, “Freud incluiu na construção da psicanálise a investigação dos fenômenos socioculturais e políticos” (p. 335). Lacan (1953/2011), inclusive, ressalta a importância da função que cabe ao analista como crítico da cultura, advertindo que deve renunciar o exercício da psicanálise todo aquele que “... não pode unir a seu horizonte a subjetividade de sua época” (p. 185).

O legado de Freud aos analistas de cada época incumbe-lhes também a tarefa de “agregar à prática clínica do um-a-um a função de críticos da cultura que testemunham” (Fuks, 2011, p. 356). E como a religião, em suas variadas vertentes e expressões, constitui um elemento inerente a cada época e a cada contexto cultural, “encontramos nele [em Freud], o respaldo necessário para acreditar que aqueles que se ocupam da clínica precisam conhecer o universo religioso em suas mais diversificadas manifestações” (Maciel & Rocha, 2008b, p. 746). Por essa razão, as reflexões que seguem se apoiam no pensamento freudiano, para abordar os atuais movimentos fundamentalistas, focando um de seus elementos mais relevantes: a liderança religiosa e seu modo de agregar e influenciar sectários.

O Líder Fundamentalista e sua Rede de Fiéis

Em Psicologia de grupo e análise do ego, Freud (1921/2006) trata do mecanismo da identificação como fator que agrega indivíduos e forma grupos. As pessoas percebem uma qualidade comum partilhada por outras, identificam-se e se unem. Quanto mais importante for a qualidade comum, mais intensos são os laços que vinculam os membros da formação grupal. Trata-se de uma identificação parcial com um traço partilhado por todos. Os laços entre os membros se formam através da “... substituição dos impulsos diretamente sexuais por aqueles que são inibidos em seus objetivos...” (Freud, 1921/2006, p. 153).

No caso dos grupos onde há a presença de um líder, a qualidade comum, partilhada pelos membros, seria o laço de todos com o mesmo líder. Cada membro o toma como seu ideal, colocando-o no lugar do ideal do ego. O ego então projeta nesse líder seu ideal de perfeição, superestimando-o e supervalorizando-o. Dessa forma, os membros do grupo passam a reverenciá-lo e se submetem a ele, como objeto investido por suas idealizações. E, ainda, “... permanecem na necessidade da ilusão de serem igual e justamente amados por seu líder; ele próprio, porém, não necessita amar ninguém mais, pode ser de natureza dominadora, absolutamente narcisista, autoconfiante e independente.” (Freud, 1921/2006, p. 134). Isso acontece de modo análogo na paixão amorosa, na qual o apaixonado projeta, no seu objeto, o ideal de perfeição do seu ego e, dessa maneira, submete-se a esse objeto como o mais precioso bem.

Numa abordagem parecida com a de Freud, Oro (1996) afirma que, nos grupos fundamentalistas, os fiéis se entregam totalmente à vontade de seus líderes, reconhecendo como que encarnados neles seus anseios, seus desejos e suas esperanças. A relação de afeição entre os líderes religiosos e a rede de fiéis se sustenta através dos importantes vínculos estabelecidos por meio de uma comunidade calorosa ou pela “tele afeição” (p. 134) suscitada pelos meios de comunicação social.

Para ter legitimidade, os líderes fundamentalistas apelam para as verdades que, conforme sustentam, estão contidas e comprovadas num texto sagrado. A autoridade deles se fundamenta nas verdades divinas que teriam sido reveladas no passado, mas que, agora, são proclamadas para confirmar e atender as esperanças e os anseios dos fiéis. E se a mensagem que anunciam é sagrada e infalível, o próprio líder que a anuncia é também considerado infalível. Desse modo, o fundamentalismo se apresenta como um sistema religioso autoritário, pois, no jogo das relações entre o líder e os fiéis, estes acabam se submetendo à autoridade arbitrária daquele, já que ele é o detentor da suposta verdade que responde às necessidades dos seus seguidores e que orienta suas decisões (Oro, 1996).

Ademais, o fundamentalismo possui tendências radicais que apontam para uma forma totalitária de gerência da vida dos fiéis. No campo da política, o totalitarismo se apresenta como uma forma de governo nas mãos de um líder, que pretende exercer um poder absoluto e infalível. Nesse tipo de sistema governamental, busca-se organizar e mobilizar as massas, induzindo as pessoas ao fanatismo através de sua entrega fiel, incondicional e ilimitada aos interesses da liderança. Ainda se pretende um controle sobre os indivíduos e sobre todos os aspectos da vida deles. Essa forma de governo se sustenta numa ideologia totalizante que, como afirma Enriquez (2001), “... tende a dar uma boa forma aos indivíduos, a boa forma da obediência aos que detêm o saber, quer sejam os pais, os mestres, os chefes de guerra ou os chefes de Estado ...” (p. 78). Através dos meios de comunicação controlados pelo governo, promove-se uma propaganda para difundir a fé na ideologia de um partido único e para fomentar o culto de uma personalidade política. Não faltam também o terrorismo de Estado e a criação de um inimigo objetivo, no qual se condensam todas as posições contrárias ao regime estabelecido. Neste sentido, a ideologia totalizante, “... como as religiões, têm por função fundar uma comunidade de crentes, que produzem uma cultura própria, cheia de calor para com seus adeptos e cheia de ódio contra os indivíduos livres-pensadores, heréticos ou descrentes” (Enriquez, 2001, p. 79). Ao se transportar essa concepção do totalitarismo para o âmbito da religião, percebe-se que essas características são marcantes na estruturação dos movimentos fundamentalistas.

No fundamentalismo, as pretensas verdades não são propostas, mas impostas (Oro, 1996). O líder estabelece o que é certo e o que é errado e os fiéis tendem a obedecer. Por essa razão, nos ambientes fundamentalistas, não há apreço por princípios democráticos, não são bem vindas discussões para se chegar a consensos, não se preconizam votações igualitárias para se buscar a opinião da maioria, nem se dá lugar a alternativas. O que a voz da autoridade sagrada diz está dito. Tanto as normas de comportamento e de engajamento quanto o conteúdo da mensagem proclamada devem, simplesmente, ser acatados e assumidos. Nesse contexto de rigidez e de imposição, não se tolera qualquer imprecisão. O líder prega e julga conforme valores e critérios de interpretação bem definidos para o grupo que o segue. Aqueles que não se adaptam totalmente ao modo de pensar coletivo, ou se mostram críticos e abertos em relação aos modelos do grupo, são rechaçados de alguma forma. Armstrong (2001) explica que, devido ao fato dos fundamentalistas sentirem a modernidade como um ataque que ameaça seus valores mais sagrados, eles não veem como positivos os valores modernos da democracia, liberdade e tolerância.

O fundamentalismo se desenvolve, sobretudo, em épocas de crise, quando a falta de referências claras torna a vida pessoal e social insustentável. Surge então a necessidade de novas identificações e de novos símbolos distintivos. Um mundo em total reestruturação tem, como efeito, a perda da identidade e do reconhecimento das pessoas na vida social. Os fiéis, nessa situação, sentem a necessidade de algo ou alguém que os ajude a tornar a vida mais viável em meio à confusão social. É nessa situação que a figura do líder ganha força, como aquele que vai dar uma direção e um caminho para que seus seguidores possam se orientar. Ele se apresenta como alguém que tem poder para colocar as pessoas em contato com o transcendente. Conduze-as a uma experiência religiosa, que lhes devolve a confiança na vida e a sensação de que estão amparadas por Deus (Oro, 1996).

Sob esse aspecto, é oportuno recordar que Freud (1933/2006) considera a situação de desamparo sentida pelo homem, nos primórdios da infância, como a origem da religião. “O reconhecimento de que esse desamparo perdura através da vida tornou necessário aferrar-se à existência de um pai, dessa vez, porém, um pai mais poderoso” (Freud, 1927/2006, p. 39). É esse ser divino e onipotente que o líder fundamentalista apresenta para seus seguidores, fazendo-se porta-voz e representante dele e proclamando suas claras regras de conduta que devem ser observadas por todos. O séquito geralmente acata de modo fervoroso e alienante as regras ditadas pelo líder. O que demonstra que, como Enriquez (2001) afirma, há indivíduos que necessitam de “referências duras” (p. 85) para viver, isto é, de parâmetros fixos e bem definidos que direcionem a vida, ludibriando-se, desse modo, diante da angústia de ter que criar ou reinventar a própria história. Destarte, o discurso da liderança pode alcançar o objetivo que Lacan (1974/2005) diz ser o da religião: “... curar os homens, ... para que não percebam o que não funciona” (p. 72).

Há, portanto, uma contrapartida dos fiéis com relação ao que o líder lhes oferece: em troca, eles abrem mão da própria liberdade, da responsabilidade e da autonomia. O líder, de algum modo, apodera-se da consciência de seus adeptos, direciona-os segundo a presumida vontade divina. Aponta o caminho a ser seguido pelos indivíduos e pelo grupo. Apresenta-se como quem tem entendimento para todas as questões da vida e, por isso, tem competência para dar todas as explicações de que o crente necessita. Além da posse da verdade, alega ter também o poder que vem de Deus e, portanto, deve ser ouvido e obedecido.

Em suas considerações sobre os grandes homens que exercem influência e liderança sobre os outros, Freud (1939/2006) afirma que “... na massa humana existe uma poderosa necessidade de uma autoridade que possa ser admirada, perante quem nos curvemos, por quem sejamos dirigidos e, talvez, até maltratados” (p. 123). Para Freud, trata-se de um anseio pelo pai, que é sentido por todos desde a infância. Por isso, as características que são admiradas nos líderes são, em última análise, características paternas: a decisão de pensamento, a força de vontade, a energia da ação, a autonomia, a independência e a indiferença divina, que pode transformar-se em crueldade. Enquanto retrato do pai, o grande homem, ou o líder, é alguém que inspira confiança e admiração, mas também suscita o temor por ele. A essência dos grandes homens consiste na conformidade deles com o pai (Freud, 1939/2006).

No pensamento freudiano, o homem é caracterizado como “... um animal de horda, uma criatura individual conduzida por um chefe” (Freud, 1921/2006, p. 131), que remete ao pai da antiga horda (Freud, 1913/2006). Essa linha de raciocínio de Freud (1921/2006) fornece elementos que ajudam a pensar como, nos meios fundamentalistas, “... o grupo nos aparece como uma revivescência da horda primeva” (p. 134), uma vez que são estruturados em torno de líderes religiosos investidos por um poder de origem supostamente divina e aos quais os fiéis devotam admiração e subserviência. Se, conforme Freud (1921/2006) assevera, “... o homem primitivo sobrevive potencialmente em cada indivíduo e a horda primeva pode mais uma vez surgir de qualquer reunião fortuita ...” (p. 134), consequentemente, o fundamentalismo tem à sua disposição uma tendência pulsional do ser humano, da qual pode se servir para conquistar e agregar sectários (Oliveira, 2019). Freud (1921/2006) propõe ainda que, “... na medida em que os homens se acham habitualmente sob a influência da formação de grupo, reconhecemos nela a sobrevivência da horda primeva” (p. 134).

Essa perspectiva freudiana possibilita compreender por que, nos movimentos fundamentalistas, a forma como se estrutura a relação entre o líder e os fiéis leva estes últimos a se estagnarem e a se tornarem imaturos no sentido de uma autonomia pessoal na sua experiência de fé. A atitude de dependência em relação ao líder se reproduz e se perpetua, pois ele não leva seu seguidor a uma reflexão pessoal, nem seu grupo de adeptos. É comum que o fundamentalismo crie dependência, pois o líder tende a reproduzir, em seus sectários, a mesma dependência e submissão que ele mesmo tem em relação ao que considera os fundamentos de sua crença (Oro, 1996). O processo pelo qual o alcance do poder da liderança se amplia e se solidifica sobre a vida dos liderados frequentemente acontece sem muitos escrúpulos.

Martins (1994) afirma que, “no Brasil, o atraso é instrumento de poder e os que estão no poder se sustentam mediante o atraso - em todas as áreas - da sociedade brasileira” (p. 9). Isso pode se aplicar, com clareza, na atitude do líder fundamentalista para com seus seguidores. Quanto mais estes são levados a não refletirem por si sós, mais facilmente se colocam sob a influência e manipulação ideológica daqueles que pretendem ser seus guias. Com isso, as relações de poder estabelecidas se perpetuam e se cristalizam.

Segundo Freud (1939/2006), um grande homem pode exercer influência sobre os demais por duas formas: “... por sua personalidade e pela ideia que apresenta. Essa ideia pode acentuar alguma antiga imagem de desejo das massas, ou apontar um novo objetivo de desejo para elas, ou lançar de algum outro modo seu encantamento sobre as mesmas” (p. 123). De fato, alguns líderes religiosos são considerados carismáticos por causa de seu forte poder de influenciar. Esse caráter carismático se dá por causa de suas qualidades pessoais, pelas quais eles conseguem impor sua vontade sobre seus seguidores. Geralmente, esse tipo de liderança não precisa de nenhuma estrutura externa que o legitime. O próprio líder se legitima como tal, apresentando-se como portador de uma missão especial e divina.

Essa forte capacidade de influenciar os membros do séquito religioso pode ser relacionada com o mecanismo da sugestão. Freud (1921/2006) considera a sugestionabilidade como uma característica distintiva de grupos, um fenômeno irredutível, primitivo e fundamental na vida mental do homem. Para ele, uma “... influência sem fundamento lógico e adequado se realiza” quando se forma um grupo (Freud, 1921/2006, p. 101). Essa influência ocasiona a partilha de emoções suscitadas entre a formação grupal. Segundo Freud (1921/2006), o fundamento desse fenômeno está num poder que mantem o grupo unido, qual seja a pulsão de vida - igualmente chamada de Eros ou pulsão do amor. É por essa força unificadora que os membros de um grupo buscam estar em harmonia entre si, ao invés de se hostilizarem. Por isso, cada indivíduo permite que os demais o influenciem por sugestão, mantendo, dessa forma, laços por identificações recíprocas. De modo análogo, é também o laço estabelecido, por Eros, entre o líder e seus seguidores que possibilita àquele a influência sobre estes.

Por outro lado, nem todo líder fundamentalista precisa ser carismático para se legitimar diante de seus seguidores e atraí-los. O que lhe dá a legitimidade, por vezes, é o fato de pregar supostas verdades fundamentais e não o fato de ser carismático (Oro, 1996). As crenças do passado, contidas nos livros sagrados, são anunciadas, por ele, como verdades imutáveis e absolutas. Basta-lhe, portanto, ter a capacidade de resgatar algumas dessas convicções antigas e propô-las como resposta cabal para a demanda dos fiéis. Estes então identificam e reconhecem, na proposta do líder, aquilo que desejam e esperam. Ele parece conseguir expressar o que todo o grupo sente, sofre e quer. Esse modo tão convincente de agregar as pessoas e persuadi-las normalmente obtém maior êxito nos momentos em que a vida se torna mais insuportável e penosa, por causa das crises sociais e pessoais.

O reconhecimento que é dado a esses líderes não está, portanto, necessariamente ligado a suas qualidades pessoais, mas, eventualmente, ao poder institucional e burocrático de sua instituição religiosa. São seguidos porque são pastores, ou seja, pregam uma mensagem sagrada, na qual são apresentadas crenças antigas e imutáveis que despertam, na consciência das pessoas, a certeza de serem participantes de um povo eleito por Deus. São ouvidos porque têm o poder que, em hipótese, foi-lhes dado por Deus. Por isso, têm a última palavra, que fornece às pessoas critérios supostamente infalíveis para trilhar os caminhos da vida sem medo e, principalmente, sem a angústia de ter que fazer escolhas. O líder já aponta os caminhos para elas e isso lhes poupa das dúvidas e incertezas que a existência impõe a todos. Por isso, na comunidade fervorosa e dócil à voz da autoridade religiosa, os fiéis encontram amizade, acolhida e segurança (Oro, 1996).

Para os fiéis seguidores, o líder e a pretensa verdade que ele anuncia se confundem. A verdade é uma só, como uma só também é a autoridade que a transmite. Destarte, duvidar do líder seria questionar a própria verdade e fazer eco ao relativismo presente no mundo. É como tirar o chão seguro sobre o qual se caminha pela vida. É como perder a identidade do grupo que foi construída e alicerçada em torno do líder e da verdade que ele transmite. Esses dois elementos figuram como princípio de unidade e de autoridade. Estão intimamente relacionados de tal modo que, quanto maior a capacidade de persuasão do pregador, mais ele está em continuidade com a autoridade da verdade que ele mesmo anuncia e defende.

Tal posicionamento de um líder religioso pode ser elucidado, de certa forma, pela perspectiva de Freud (1933/2006), quando ele discorre sobre o que a religião se propõe a fazer pelos seres humanos, a partir da natureza grandiosa que é atribuída a ela. Para Freud (1933/2006), essa pretendida grandiosidade se expressa pelas três funções das quais a religião se incumbe: ensinar as pessoas, consolá-las e lhes fazer exigências éticas. A primeira dessas funções diz respeito ao fato de que a religião fornece, aos homens, informações acerca da origem e da existência do universo, pretendendo, com isso, satisfazer-lhes o desejo de conhecimento. A tarefa de consolar, por sua vez, consiste na atividade pela qual a religião exerce sua maior influência entre as pessoas. Ao assegurar-lhes um final feliz em outra vida e confortá-las em meio aos infortúnios da vida presente, a religião ameniza o medo causado pelos perigos e pelos reveses da existência. A terceira incumbência do programa religioso se realiza mediante o estabelecimento de preceitos, proibições e restrições. Ao definir suas exigências éticas, a religião estabelece que a observação delas garante proteção e felicidade como recompensa para os seres-humanos. Garante-lhes, ainda, o amor e a benevolência de Deus, que os homens adultos amam como substituto da figura paterna do período da infância e cujo amor paternal eles precisam assegurar, uma vez que continuam em situação de desamparo por toda a vida.

Considerações Finais

O extraordinário surto religioso na contemporaneidade não parece ser fogo de palha e coloca em questão a hipótese, levantada pela modernidade, de que a religião tenderia a decrescer sob a influência do processo de modernização (Hervieu-Léger como citado em Libanio, 2001). A religião, contudo, não desapareceu e, além disso, tornou-se intensamente militante e intransigente em alguns grupos e na pregação de determinados líderes que têm grande poder de persuasão e de mobilização de massas. Sua força e influência se impõem, corroborando tanto a assertiva freudiana segundo a qual “... a religião é um poder imenso que tem a seu serviço as mais fortes emoções dos seres humanos” (Freud, 1933/2006, p. 158), quanto a assertiva lacaniana segundo a qual é “impossível imaginar quão poderosa é a religião” (Lacan, 1974/2005, p. 65).

Líderes fundamentalistas de diversas vertentes religiosas reagem, com fúria, diante da hipótese de privatização da religião e de sua supressão nos ambientes laicos. Buscam dar a suas crenças reconhecimento, poder e espaço. Mas suas lutas, frequentemente, levam a uma distorção da fé, o que pode propiciar uma degradação da própria religião. A despeito disso, o fundamentalismo faz parte do mundo contemporâneo. Conforme Armstrong (2001) assevera, “representa uma decepção, uma alienação, uma ansiedade, uma raiva generalizada, que nenhum governo pode ignorar sem correr risco” (pp. 401-402). Lidar com esse fenômeno exige esforços que ainda não obtiveram muito êxito.

O fundamentalismo persiste e, possivelmente, não vai desaparecer. Atualmente, parece estar numa fase mais radical. Sua ascensão se evidencia por acontecimentos recentes, como as alianças entre interesses políticos e pretensões de grupos e de líderes fundamentalistas, tanto em âmbito nacional quanto mundial.

Ressacralizar a sociedade é um dos objetivos mais contundentes dos fundamentalistas. Sua militância, porém, por ser combativa, muitas vezes se torna agressiva e, até mesmo, violenta. Os ideais da compaixão e do respeito ao próximo, não raro, cedem lugar a uma conduta de exclusão, de discriminação, de preconceito e de ódio.

Sob uma perspectiva psicanalítica, percebe-se que a fé fundamentalista, uma vez que se torna uma “teologia da fúria e do ódio” (Armstrong, 2001, p. 358), configura-se como meio para a satisfação de uma inclinação para a agressão, que Freud (1930/2006) qualifica como “disposição instintiva original e autossubsistente” no humano, constituindo “o maior impedimento à civilização” (p. 125). Nesse contexto, fica manifesto que, mesmo que as religiões se apresentem como portadoras do bem para o homem e para o mundo, elas não estão totalmente imunes a trazer também, em si, potencial para gerar formas extremistas em sua prática. Formas que podem desencadear o “natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um” (Freud, 1930/2006, p. 126).

A ânsia de poder em atuais segmentos fundamentalistas - através de suas investidas políticas - expressa a atuação da pulsão de morte nesses meios. Aquela mesma pulsão que, pertinentemente, Freud (1924) descreveu como “... instinto destrutivo, instinto de domínio ou vontade de poder” (p. 181). E os efeitos dessa pulsão agressiva, associada a ideais religiosos, podem ser devastadores para a comunidade humana.

Notas

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de doutorado (Capes) do primeiro autor.

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Recebido: 21 de Junho de 2022; Revisado: 28 de Setembro de 2022; Aceito: 07 de Outubro de 2022

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