O aumento da expectativa de vida exigiu a reforma dos sistemas previdenciários em diversos países do mundo, tendo como uma das medidas adotadas o aumento do número de anos de contribuição previdenciária, impondo maior reflexão sobre o planejamento para a aposentadoria e a elaboração de projetos de vida para esta fase. Esta reflexão deve incluir o que foi realizado no passado e as expectativas de projetos para o futuro. Entretanto, tais reflexões podem levar a uma dúbia sensação nos futuros aposentados, positiva para uns, negativas para outros.
As investigações sobre as atitudes dos trabalhadores frente à aposentadoria têm destacado que os futuros aposentados, de forma geral, apresentam atitudes mais positivas do que negativas diante da transição (França & Vaughan, 2008). A ênfase na dualidade na percepção de perdas (por exemplo, de identidade) e de ganhos (por exemplo, a liberdade do trabalho), pode estar relacionada à natureza da profissão ou mesmo modalidade de contrato de trabalho; no caso dos servidores públicos, talvez tais percepções, enquanto atitudes positivas ou negativas, poderiam ser explicadas pela estabilidade (vínculo duradouro). Dado que é corroborado pelos estudos de Hyde et al. (2018) ao relacionarem o trabalho à identidade do indivíduo e a aposentadoria como geradora de ansiedade.
No sentido a apoiar os trabalhadores no processo e planejamento para aposentadoria, os programas de preparação para aposentadoria (PPA) têm sido oferecidos pelas organizações públicas (França et al, 2019), de modo que o servidor se prepare e possa decidir sobre a melhor opção quando adquirir o direito à aposentadoria. Os servidores públicos têm ao menos três opções: (a) romper com o mundo do trabalho, (b) continuar trabalhando na instituição, recebendo um complemento referente ao abono permanência, verbas indenizatórias e, se for o caso, a gratificação de cargo em comissão e (c) continuar trabalhando de uma forma distinta, inclusive com redução da carga horária, ou aposentadoria parcial, com alguma remuneração, também denominado emprego ou trabalho de ponte - bridge employment (França et al, 2013).
O bridge employment é o período entre o final de carreira e a aposentadoria completa. Consiste em trabalhar em horário reduzido, mas, caso o indivíduo esteja aposentado, continuar recebendo os valores do benefício previdenciário. Hyde et al. (2018) indicam que o brigde employment melhora a satisfação com a vida antes e durante a aposentadoria.
O fato de continuar trabalhando quando o indivíduo já adquiriu o direito a se aposentar, ainda que em intensidade menor, proporciona o indivíduo manter-se ativo, realizar sonhos (Santana & Matos, 2019). A despeito disso, estudo realizado com servidores públicos de uma universidade apontou que o retorno ao trabalho após se aposentar foi motivado mais pela satisfação pessoal do que pela necessidade financeira, corroborando a ideia de manter-se ativo e dos aspectos positivos de continuar trabalhando (Debetir, 2011).
Uma das possibilidades para os servidores públicos que optam por permanecer no mercado de trabalho tem sido o empreendedorismo. Empreender na aposentadoria é uma alternativa de prolongar a atividade laboral com possibilidade de flexibilidade de horário, autonomia no trabalho (Orellana & Vian, 2017) efetuando atividades em prol de algum objetivo social e/ou econômico.
O empreendedor, sob o ponto de vista psicológico, é aquele que empreende, possui características pessoais singulares que possibilitam identificá-lo e delimitar o seu perfil por se destacar dos demais quando aliadas ao comportamento. São percebidos como inconformados que percebem as oportunidades e agem para transformá-las, administrando os riscos decorrentes de suas ações (Feger et al, 2009).
Dentre as características individuais associadas positivamente ao comportamento empreendedor, destacam-se a capacidade de realização, de planejamento, de poder (Santos, 2008). Santos (2008) enfatizou como dimensões do potencial empreendedor, a identificação de oportunidade, o senso de persistência, a busca pela eficiência, a capacidade de obter informações, a capacidade de organização com planejamento, metas, controle, capacidade de persuasão e a rede de relações. Feger et al. (2009) acrescentaram que as características de comprometimento, exigência de qualidade, enfrentamento de riscos calculados, monitoramento sistemático, independência e autoconfiança.
A intenção de empreender representa o desejo de criar ou abrir um empreendimento (Vasconcelos et al., 2020). Tal desejo explica o quanto um indivíduo está disposto a utilizar seu potencial empreendedor nas condições favoráveis ao empreendedorismo (Cortez et al, 2019).
A despeito da possibilidade de empreender ser uma opção concreta e viável de estender a atividade laboral, o empreendedorismo entre trabalhadores maduros ainda é pouco explorado pela literatura. A escassez de estudos no campo se contrapõe ainda ao fato de que a taxa de crescimento de empreendedores maduros é a que mais cresce em diferentes países (Halvorsen & Chen, 2019), além de este público possuir características propícias a tal e não tão frequentes entre pessoas mais jovens.
Um estudo realizado pela Global Entrepreneurship Monitor (Bosma et al., 2020), que segue nesta direção, apontou justamente os idosos como possuindo características propícias ao empreendedorismo por oportunidade, tais como: a possibilidade de uma reserva financeira, maior rede de relacionamentos, melhor capacidade de avaliar as oportunidades, maior experiência de vida e laboral para decidir pelo início ou não das atividades empreendedoras. Destaca-se aqui que o empreendedorismo por oportunidade, diferente de outros tipos de ação empreendedora, tais como o empreender por necessidade, está voltado para realização de um sonho, sem a obrigatoriedade de buscar o seu sustento ou de sua família (Reis & Leite, 2020), o qual, por sua vez, pode ser empresarial ou filantrópico, ou seja, com ou sem fim lucrativo. Logo, empreender por oportunidade representa um conjunto de possibilidades relacionadas à realização pessoal e satisfação com a vida, podendo representar uma via relevante para a promoção do envelhecimento ativo e saudável.
Apesar do exposto acima, existe uma lacuna na literatura quanto aos fatores atitudinais frente à aposentadoria e à intenção de empreender, bem como os mecanismos envolvidos nesta relação. Diante dessa lacuna, uma questão deste trabalho foi investigar até que ponto as atitudes associadas aos ganhos e de perdas percebidas frente à aposentadoria e ao potencial empreendedor influenciariam a intenção empreendedora na aposentadoria? No sentido de explorar um pouco mais este tema, surgiram outras questões específicas: (a) quais dimensões relativas aos ganhos e de perdas percebidas poderiam ser consideradas como antecedentes da intenção empreendedora?; (b) o potencial empreendedor, em especial a sua dimensão relativa à oportunidade de empreender exerceria algum efeito no desfecho?- Para responder a tais questões, foram formuladas quatro hipóteses, baseadas nas pesquisas anteriores e no cenário brasileiro, como demonstrado a seguir.
As crises econômicas e sociais que o Brasil atravessou no final do século XX e no início do século XXI, podem ter influenciado os trabalhadores a optar pelo serviço público em busca da segurança, proporcionada pela estabilidade do emprego, ganhos salariais acima da média da população e a aposentadoria com valores próximos da ativa. Ainda que, por vezes, estes trabalhadores tenham deixado de lado suas intenções puramente vocacionais, a aposentadoria pode ser percebida como um novo começo, ou seja, a possibilidade de realizar outras atividades, o retorno às profissões que foram abandonadas, recomeçar e colocar em prática o sonho que ficou para trás em prol do cargo público. Esse novo começo pode representar a realização de trabalhos voluntários, iniciar ou continuar uma prática distinta na qual trabalhou a “vida inteira” (França & Vaughan, 2008).
Como tendência mundial observada em países como os EUA e o Canadá, o novo começo pode ser um prolongamento da atividade laboral (Mazumdar et al, 2018) e ocorrer por meio da abertura de empresas após o rompimento do vínculo com a organização pública. Portanto, é possível que haja uma relação positiva entre um novo começo e a intenção empreendedora.
H1 - O ganho percebido quanto ao novo começo na aposentadoria exerceria uma influência positiva na intenção empreendedora.
Os aspectos tangíveis do trabalho correspondem à concretude do trabalho (Silva, Turra & Chariglione, 2018). Para os indivíduos que pautam a sua vida na centralidade do trabalho, a aposentadoria pode trazer sentimentos saudosistas em relação ao mesmo e, com isso, a sensação de inutilidade e vazio (Nascimento, 2019). A perda de suas referências pode atingir sua própria identidade (Silva et al., 2018), e, portanto, impulsioná-lo a voltar a trabalhar.
Para suprir essa falta do trabalho, alguns servidores podem apresentar a intenção de empreender na aposentadoria como uma forma de prolongar a vida laboral e, assim, continuar a perceber a concretude do seu trabalho e manutenção de sua identidade em relação ao mesmo. Portanto, supõe-se que exista uma relação positiva entre a perda do aspecto tangível e a intenção empreendedora.
H2 - A perda percebida quanto aos aspectos tangíveis do trabalho ao se aposentar exerceria uma influência positiva na intenção empreendedora.
O potencial de empreender, considerado como um aspecto intrínseco e distintivo entre indivíduos, pode ser caracterizado por uma perspectiva multidimensional, sendo a oportunidade para empreender uma dimensão que merece destaque. Pessoas com níveis altos de potencial empreendedor enxergam de modo ágil lacunas referentes à oferta de produtos e serviços que representam oportunidades para negócios. É possível que uma ideia empreendedora surja da identificação destas oportunidades e que a avaliação da sua viabilidade e sustentabilidade econômica permita também mapear processos relacionados para colocá-la em prática (Shepherd et al, 2018). Ao identificar a oportunidade, o indivíduo poderá, por sua vez, ter maiores chances de intentar a empreender.
H3 - Maiores níveis de oportunidade para empreender predizem maiores níveis de intenção empreendedora.
Além disso, a oportunidade de empreender também pode contribuir para promover esforço e persistência em prol do empreendimento, criando um plano para empreender o que aumenta as chances de colocar a intenção em prática. A antecipação de tais oportunidades, assim como o aproveitamento das mesmas, relaciona-se positivamente com a atividade empreendedora em si, dando suporte à exposição e destacando a relevância de tal construto como elo entre a intenção de empreender e outros antecedentes (Bohlmann et al, 2017). Assim, articulando de forma lógica as hipóteses anteriores, supõe-se que a oportunidade para empreender faz a mediação por meio da relação positiva entre o novo começo e a intenção empreendedora e a mediação por meio da uma relação positiva entre o aspecto tangível do trabalho e a intenção empreendedora. Desta forma, espera-se que os servidores públicos que conseguem vislumbrar a oportunidade de empreender, seja pelo novo começo na aposentadoria, ou para atenuar às perdas dos aspectos concretos do trabalho, apresentariam maior intenção empreendedora.
H4 - A oportunidade para empreender funcionaria como variável mediadora entre os ganhos percebidos frente ao novo começo e as perdas percebidas frente aos aspectos tangíveis do trabalho sobre a intenção empreendedora.
O objetivo deste estudo foi analisar os possíveis efeitos dos ganhos e das perdas percebidas na aposentadoria e o potencial empreendedor na intenção empreendedora dos servidores públicos do judiciário trabalhista.
Método
Trata-se de uma pesquisa do tipo ex-post-facto de abordagem quantitativa. O projeto e seus instrumentos foram submetidos ao Comitê de Ética de Pesquisa (CEP) da Universidade Salgado de Oliveira, via Plataforma Brasil, aprovado em 15/08/2019, conforme parecer 12723019.1.00005289 e respeitou todos os princípios éticos, sendo concedido aos participantes o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE com informações sobre a participação voluntária e sendo garantido o sigilo absoluto e o anonimato dos dados.
Participantes
A amostra foi obtida por conveniência, sendo convidados a participar os servidores públicos maduros da organização, que atendiam aos seguintes critérios de inclusão: a) possuir 50 anos ou mais; ou b) ter no mínimo 20 anos de tempo de contribuição independentemente da idade. Cerca de 1.600 servidores atenderam aos critérios de inclusão e 10% destes servidores aceitaram participar do estudo (N=162). A maior parte da amostra foi do sexo feminino (66%), composta por pessoas com algum tipo de relação marital (69%). A maioria possuía mais de 20 anos de serviço público (77%) e tinha entre 50 e 60 anos (62%). Um pouco mais da metade exercia cargo de técnico judiciário (53%).
Quanto ao trabalho na aposentadoria, a maioria (cerca de 73,5%) gostaria de continuar trabalhando e apenas pouco mais de um quarto (26,5%) dos participantes desejava parar de trabalhar. Destes, aproximadamente metade manifestou (49%) o desejo de continuar trabalhando na própria instituição recebendo o abono permanência e a outra quase metade (48%), desejava abrir um negócio ou trabalhar em consultoria. Apenas um pequeno percentual (3%) pretendia trabalhar em outra organização.
É importante assinalar que estes servidores do judiciário trabalhista, em tese, estarão cobertos pelos valores dos benefícios previdenciários que podem variar, a depender do cargo, entre R$ 11.000,00 e R$39.200,00. Tais valores os colocam na classe econômica A, ou seja, entre os 5% mais ricos do país (IBGE, 2020).
Instrumentos
Além do questionário com as características sociodemográficas acrescido de pergunta sobre a possibilidade de trabalhar na aposentadoria, foram aplicadas, conjuntamente, a Escala da importância dos ganhos percebidos (EPGR) e da Escala da importância das perdas percebidas (EPLR) na aposentadoria (França & Vaughan, 2008), bem como a Escala de Intenção Empreendedora (IE) e Escala de Potencial Empreendedor (PE) (Santos, 2008). Ambas as escalas foram adaptadas para o uso entre servidores públicos, sendo que elas apresentaram propriedades psicométricas satisfatórias com relação à sua estrutura e confiabilidade na amostra aqui estudada.
A EPGR e a EPLR são do tipo Likert e variam de 1 a 4, onde 1 = muito importante e 4 = pouco importante. A EPGR possui 19 itens agrupados em cinco dimensões: (1) maior liberdade do trabalho, (2) ter mais tempo para os relacionamentos, (3) novo começo, (4) ter mais tempo para as atividades culturais e de lazer e (5) ter mais tempo para realizar investimentos. A EPLR possui 19 itens agrupados em quatro dimensões: (1) aspectos emocionais do trabalho; (2) aspectos tangíveis do trabalho (3) dos relacionamentos no trabalho e (4) salários e benefícios.
Os dois instrumentos EPGR e EPLR foram adaptados para a realidade dos servidores públicos, uma vez que, originalmente, foram idealizados e validados por França e Vaughan (2008) para avaliar as atitudes dos tops executivos frente à aposentadoria. Assim, foram retirados quatro itens exclusivos para executivos. Cada escala utilizada foi formada por 15 itens, avaliados numa escala tipo Likert de 1 = nenhuma importância a 4 = muito importância. Considerando as especificidades da amostra do presente estudo, a EPGR apresentou KMO de 0,78 e esferacidade de Bartlett χ2=713, df=6, p<0,001. A análise fatorial exploratória resultou em 12 itens (M=3,1, DP=0,5), agrupados em três dimensões: mais tempo para relacionamentos, maior liberdade do trabalho e novo começo, cujas cargas fatoriais variaram de 0,51 a 0,82. A variância explicada desta solução fatorial foi de 52% com Alfa Cronbach de 0,76. A EPLR apresentou KMO de 0,87 e esferacidade de Bartlett χ2=1073, df= 66, p<0,001. A análise fatorial resultou também é 12 itens (M=2,2, DP=0,7), agrupados em três dimensões: aspectos emocionais do trabalho, aspectos tangíveis do trabalho e salários e benefícios, cujas cargas fatoriais variaram de 0,50 a 0,99, com variância explicada de 63% e Alfa Cronbach de 0,89.
A IE e a PE são do tipo Likert, variando de 0 a 10, na qual zero equivale a discordo totalmente (sem chance) a dez equivale a concordo totalmente (certeza). Os instrumentos são compostos por vinhetas introdutórias com 49 itens ao total: (1) a escala de intenção em empreender (IE), unidimensional medida por 4 itens e (2) a escala de potencial empreendedor propriamente dita (PE) com 45 itens divididos em nove dimensões, a saber: (a) oportunidade para empreender, com cinco itens; (b) persistência, com seis itens; (c) eficiência, com três itens; (d) buscar informações, com cinco itens; (e) planejamento, com quatro itens; (f) estabelecer e cumprir metas, com sete itens; (g) controle, com cinco itens; (h) persuasão, com seis itens e (i) rede de relações, com quatro itens. A IE apresentou KMO de 0,82 e esferacidade de Bartlett com χ2=698, df=6, p<0,001. Foi composta por quatro itens (M = 4.14, DP=3.0), apresentando uma variância explicada de 87%, Alfa de Cronbach de 0,95. A PE apresentou KMO de 0,92, esferacidade de Bartlett χ2= 533, df=595, p<0,01. A análise fatorial resultou em 35 itens (M=7,6; DP=1,3) agrupados em seis dimensões: poder, autorrealização, meta, informação, controle e oportunidade, cujas cargas fatoriais variaram de 0,51 a 0,89, variância total de 71% e Alfa de Cronbach de 0,96.
Coleta de Dados
Os servidores foram convidados a participar da pesquisa, pelo e-mail funcional, preenchendo um questionário online, por meio da plataforma Google Forms. A coleta foi operacionalizada no mês de julho e agosto de 2019, tendo sido efetuados diversos lembretes utilizando o aplicativo WhatsApp e e-mails aos responsáveis pelos setores de trabalho.
Análise dos Dados
Foi utilizado o software estatístico R versão 3.6 (R Core Team, 2019) por meio da interface gráfica do Jamovi versão 1.22 e Jasp versão 0.13.1. Considerando a solução das análises fatoriais exploratórias com rotação oblíqua de cada instrumento referida anteriormente, optou-se por calcular os escores fatoriais para cada dimensão que foi utilizada para operacionalizar os construtos aqui investigados. Estatísticas descritivas foram calculadas, sendo que em um primeiro momento a associação entre as principais variáveis do estudo foi investigada através da correlação de Spearman. Para testar as hipóteses enunciadas às relações de predição foram modeladas utilizando equações estruturais por meio de regressões utilizando como indicadores os escores fatoriais (Hox & Bechger, 1998).
Utilizando o pacote Lavaan (Rossell, 2012) por meio da análise de trajetórias, foram testadas as hipóteses H1, H2 e H3. Considerando a hipótese de mediação H4, seguiu-se com a análise de processos condicionais seguindo a recomendações de Hayes (2013). O primeiro passo constituiu em analisar o efeito total entre as variáveis antecedentes referentes às dimensões de Ganhos e Perdas e a variável consequente Intenção de Empreender por meio de uma regressão múltipla. Em seguida, foi acrescentada ao modelo, além das variáveis antecedentes, a variável mediadora oportunidade para empreender. No último passo, o modelo final proposto reteve as variáveis mediadoras que, junto com as variáveis antecedentes, eram responsáveis por algum efeito indireto. Para a avaliação da significância deste efeito indireto, o seu intervalo de confiança foi estimado por meio do procedimento bias corrected percentile bootstrap, com 1.000 reamostragens.
Resultados
As correlações de Spearman observadas entre os constructos apontaram para uma correlação de magnitude baixa e positiva entre intenção empreendedora e novo começo (r=0,19; p<0,05), oportunidade e novo começo (r=0,23, p<0,01), entre intenção empreendedora e aspectos tangíveis trabalho (r=0,23, p <0,01), entre oportunidade e aspectos tangíveis do trabalho (r=0,17, p< 0,05).
No modelo proposto que integra as duas primeiras hipóteses do estudo, a intenção de empreender foi predita pelas variáveis novo começo, com efeito total de β=0,24 (IC95% 0,01 - 0,47; p=0,043); - e aspectos tangíveis do trabalho, com efeito total de β=0,22 (IC95% 0,02 - 0,40; p=0,022). Destaca-se que, no passo seguinte, quando acrescida no modelo a variável mediadora oportunidade, esta prediz positivamente a intenção (β=0,48; p<0,05). Na sua presença, o efeito direto destes antecedentes decai em relação aos valores dos efeitos totais observados inicialmente a ponto de se tornarem estatisticamente nulos. Tais valores podem ser observados na Tabela 1.
Beta | Std. Error | z-value | P | 95% Confidence Interval |
||
---|---|---|---|---|---|---|
Lower | Upper | |||||
Direct effects nc → IE |
0.099 | 0.108 | 0.909 | 0.363 | -0.112 | 0.330 |
att → IE | 0.113 | 0.084 | 1.348 | 0.178 | -0.055 | 0.275 |
Indirect effects nc → oportunidade → IE |
0.145 | 0.060 | 2.407 | 0.016 | 0.032 | 0.274 |
att → oportunidade → IE | 0.101 | 0.046 | 2.172 | 0.030 | 0.019 | 0.194 |
Total effects nc → IE |
0.244 | 0.120 | 2.026 | 0.043 | 0.014 | 0.475 |
att → IE | 0.214 | 0.094 | 2.283 | 0.022 | 0.024 | 0.397 |
Jamovi versão 1.22 e Jasp versão 0.13.1.
Nota. IE=intençao empreendedora, nc=novo começo; att=aspectos tangíveis do trabalho
Assim, os resultados do teste das hipóteses respondem as questões teóricas apresentadas e parcialmente a lacuna apresentada anteriormente.
H1 - O ganho percebido quanto ao novo começo na aposentadoria exerce uma influência positiva na intenção empreendedora (β=0,19; p<0,05);
H2 - A perda percebida quanto aos aspectos tangíveis do trabalho exerce uma influência positiva na intenção empreendedora (β=0,24; p<0,05)
H3 - A oportunidade para empreender prediz positivamente a intenção empreendedora (β=0,48; p<0,05);
H4 - A oportunidade para empreender funciona como variável mediadora entre os ganhos percebidos frente ao novo começo (efeito total de β=0,24, p <0,05) e as perdas percebidas frente aos aspectos tangíveis do trabalho sobre a intenção empreendedora (efeito total de β=0,21, p <0,05), apoiando o modelo mediacional proposto.
Dessa forma, é possível sustentar a inferência de que todo efeito das variáveis novo começo e aspectos tangíveis do trabalho atua na intenção de empreender de forma indireta, ou seja, por meio de uma mediação total dos efeitos via oportunidade de empreender, assumindo esta última o papel de mecanismo através do qual os efeitos das variáveis antecedentes influenciam indiretamente a intenção. Nesse sentido, os efeitos indiretos podem ser estimados como estatisticamente significativos, tanto para novo começo β=0,14 (IC95% 0,03 - 0,27; p=0,016), quanto para aspectos tangíveis β=0,10 (IC95% 0,02 - 0,19; p=0,046). O desenho final é apresentado na Figura 1.
Discussão
Este estudo teve como objetivo geral analisar possíveis efeitos dos ganhos e perdas percebidos, respectivamente às atitudes positivas e negativas frente à aposentadoria na intenção empreendedora, assim como o papel do potencial empreendedor nesta relação entre os servidores públicos maduros do judiciário trabalhista. Para tanto, adotou-se aqui o rigor em adaptar as escalas utilizadas para a população aqui estudada. Em posse das evidências de validade de construto e consistência interna das escalas aqui empregadas, as análises inferenciais subsequentes permitiram corroborar as três hipóteses que foram derivadas a partir do objetivo geral em consonância com as reflexões teóricas anteriores e que respondem parcialmente a lacuna apresentada anteriormente:
A realização pessoal (novo começo), a satisfação por continuar em atividade e o apego ao trabalho (aspecto tangível do trabalho) são fatores que levariam os aposentados a permanecer ou continuar trabalhando na aposentadoria através do bridge employment (Machado & Gimenez, 2000; Hyde et al, 2018; Mazumdar et al., 2018). O empreendedorismo, como emprego de ponte (ou bridge employment), pode trazer vários benefícios ao aposentado do serviço público do poder judiciário trabalhista, na transição entre o trabalho no setor público e a retirada total do mercado de trabalho, proporcionando melhor ajuste a essa nova fase.
A dimensão novo começo da EPGR, ao se correlacionar com a intenção empreendedora e com a dimensão oportunidade, acaba por corroborar estudos anteriores que apontam as perspectivas positivas sobre o que fazer na aposentadoria como variável de influência, tanto para a saída da organização, quanto especialmente em relação à promoção de um processo de desligamento agradável (Hyde et al, 2018). Seguindo uma direção semelhante, a dimensão aspectos tangíveis do trabalho da EPLR, ao se correlacionar com a intenção empreendedora e com a dimensão oportunidade para empreender acaba por destacar os aspectos relacionados à concretude do próprio trabalho e sua perda podem associar-se com a intenção de empreender.
A realização pessoal (novo começo), a satisfação por continuar em atividade e o apego ao trabalho (aspecto tangível do trabalho) são fatores que levariam os aposentados a permanecer ou continuar trabalhando na aposentadoria através do emprego ponte ou do bridge employment (Machado & Gimenez, 2000; Hyde et al, 2018; Mazumdar et al., 2018). O empreendedorismo, como emprego de ponte, pode trazer vários benefícios ao aposentado do serviço público do poder judiciário trabalhista, na transição entre o trabalho no setor público e a retirada total do mercado de trabalho, proporcionando melhor ajuste a essa nova fase.
Os demais resultados oriundos do modelo testado, ao apoiarem as hipóteses de trabalho aqui descritas, corroboraram o efeito positivo entre o ganho percebido - novo começo - e a perda percebida - aspectos tangíveis do trabalho - como preditores intenção empreendedora, dando suporte às duas primeiras hipóteses, bem como a oportunidade por empreender prediz a intenção empreendedora. Contudo, este efeito direto tornou-se nulo na presença da oportunidade por empreender, conhecido como mediação pura ou completa, apoiando a quarta hipótese proposta. O reconhecimento da oportunidade é tão importante para o empreendedorismo que alguns chegam a conceituar o empreendedor como aquele que identifica as oportunidades, aspecto que neste modelo é relevante para que ganhos e perdas percebidos possam exercer efeito sobre a intenção de empreender (Loiola et al, 2016).
Estes resultados indicam um caminho para novas investigações sobre os efeitos das percepções de ganhos e das perdas percebidas frente à aposentadoria e a intenção de empreender, quando do planejamento para a aposentadoria, especialmente em um público diferenciado por suas peculiaridades. Esta é uma contribuição relevante desta pesquisa, uma vez que a maioria dos trabalhos prévios consideram fatores sociodemográficos como determinantes do empreendedorismo na aposentadoria (Orellana & Vian, 2017).
O vínculo de trabalho duradouro devido à estabilidade poderá se reverter nestes servidores o primeiro ócio laboral após muitos anos de serviço público. Isto pode contribuir para o ganho percebido de um novo começo, uma chance para colocar em prática projetos independentes que ficaram adormecidos no passado. Destaca-se que mais da metade da amostra exerce cargo de técnico, com exigência de ensino médio, mas possuem pós-graduação, ou seja, eles poderiam retornar ao seu potencial vocacional ou mesmo tonarem-se empreendedores na aposentadoria. Por outro lado, poderá significar que a perda percebida dos aspectos tangíveis do trabalho, isto é, sentir falta do que é mensurável no trabalho anterior, seja capaz de fazer com que o servidor decida por continuar trabalhando após adquirir o direito à aposentadoria.
Empreender na idade madura, após receber o benefício previdenciário, é uma realidade crescente com possibilidade de ampla expansão especialmente através do empreendedorismo por oportunidade (Bosma et al., 2020). Pode indicar o exercício das atividades de formação, busca do retorno do que investiu em educação, treinamento e na experiência acumulada ao longo da carreira, isto é, a valorização do próprio capital humano (Anxo et al, 2019). Empreender nesta fase, pode atender ao objetivo de continuar integrado à sociedade ou se sentir útil (Machado & Gimenez, 2000), o retorno aos laços com o trabalho para suprir a falta do trabalho (Mazumdar et al, 2018). Ou seja, um novo começo para o servidor aposentado, em um setor distinto a sua prática anterior.
Os resultados apresentados parecem corroborar os achados de Mazumdar et al. (2018) que afirmam que o trabalho ponte representa um desafio, uma possibilidade de crescimento e agrega um valor ao trabalho. Como observado na revisão de literatura, o empreendedorismo por oportunidade está sendo cada vez mais buscado por idosos que possuem posição socioeconômica elevada e almejam colocar em garantia o próprio patrimônio/capital na abertura de novos negócios (Weller et al, 2015).
Apesar de este estudo não ter avaliado a motivação para empreender na aposentadoria, acredita-se que os servidores apresentem uma intenção empreendedora com fins altruístas e não apenas de lucro, vez que já possuem renda suficiente para viver na aposentadoria. O empreendedorismo filantrópico ou no terceiro setor é de grande relevância social. Assim, o retorno ao mercado de trabalho pode ser movido pela satisfação pessoal/projeto de vida aliando ganhos materiais e benefícios sociais (Cualheta et al., 2020). Isso remete à possibilidade de que o PPA, para este público, explore uma vertente de formação de grupos de ação social ou filantrópica junto à comunidade.
Os participantes apresentaram alto nível de escolaridade (com pós-graduação) e com bom poder aquisitivo ao longo da vida laboral, pertencentes à classe econômica A (IBGE, 2020). Os fatores bom nível de escolaridade, boas condições de trabalho, maior renda e habilidade para trabalhar por conta própria podem acarretar uma vida profissional mais longa, isto é, continuar trabalhando na aposentadoria, postergando a aposentadoria definitiva (Anxo et al., 2019). Macêdo et al. (2019), em um estudo com servidores públicos de uma universidade federal, identificaram que a flexibilidade no trabalho, os interesses fora do trabalho e a possibilidade de autonomia no trabalho reduzem o desejo de parar de trabalhar ao adquirir o direito à aposentadoria. Destaca-se que autonomia e flexibilidade são características do empreendedorismo na aposentadoria, elementos que apoiam a explicação adotada aqui.
Por fim, acrescenta-se que dois terços da amostra, em proporção semelhante, se manifestaram pela manutenção do vínculo com a organização e opção por abrir um próprio negócio. No estudo de Macêdo et al. (2019), cerca de dois terços também pretendiam continuar trabalhando na aposentadoria em proporção diferente, dois terços na própria organização e um terço em outras atividades. Os resultados deste estudo alertam às organizações públicas para incorporar o tema empreendedorismo nos seus PPA, bem como orientar os servidores em final de carreira a elaborar um projeto de vida pós-carreira no setor público (Antunes et al., 2015). A partir dos dados aqui levantados, percebe-se que um dos aspectos que podem ser relevantes neste contexto de preparação para aposentadoria poderia ser justamente considerar o tema empreender a partir da identificação de oportunidades, percebendo que esta habilidade pode ser promotora da intenção, cumprindo papel importante para uma parcela de pessoas que poderão optar a partir disso em continuar trabalhando e em busca de realizações pessoais após a aposentadoria.
Considerações Finais
Este estudo tentou traçar um paralelo sobre os ganhos e as perdas percebidas na aposentadoria, o potencial empreendedor e as suas relações com a intenção empreendedora em especial quanto aos servidores públicos maduros do judiciário trabalhista. Os resultados, ao corroborarem as quatro hipóteses do estudo, indicam a importância da oportunidade para empreender, mecanismo que propicia que tanto o ganho de um novo começo, quanto a perda dos aspectos tangíveis do trabalho propicia o aumento da intenção empreendedora. A consideração do desenvolvimento da habilidade de identificar as oportunidades para empreender é discutida como elemento relevante no escopo do empreendedorismo entre trabalhadores maduros e aposentados, assim como propicia considerar o desenvolvimento de oportunidades empreendedora em PPA específico para esse público.
Este estudo se limitou a investigar servidores públicos do judiciário trabalhista em apenas um estado da Federação - Rio de Janeiro. Uma segunda limitação foi que as hipóteses que não incluíram questões sociodemográficas, como por exemplo, idade e gênero que possam influenciar as atitudes frente à aposentadoria, o potencial e a intenção empreendedora.
Recomenda-se, assim, que este estudo seja realizado em outras organizações do Poder Judiciário em outros Estados. Sugere-se ainda, um estudo longitudinal que acompanhe os servidores desde os programas de aposentadoria até colocarem em prática as suas ideias empreendedoras, bem como estudos com servidores aposentados que empreenderam na aposentadoria a fim de verificar a satisfação com a aposentadoria e o comportamento empreendedor.
Como implicação prática, os resultados deste estudo poderão ser encaminhados ao setor de gestão de pessoas da organização para embasar o PPA quanto às questões sobre as atitudes positivas (ganhos percebidos) e as atitudes negativas (perdas percebidas) frente à aposentadoria e a possibilidade de empreender na aposentadoria, a fim de orientar estes servidores a criar seu projeto de vida pós-carreira no setor público.