Este artigo aborda as alterações no funcionamento de uma unidade de internação psiquiátrica localizada em hospital geral e a experiência de trabalho da equipe em função da pandemia da Covid-19.
No Brasil, as discussões sobre a necessidade de desinstitucionalização da atenção às pessoas em sofrimento psíquico e a implementação de serviços que permitam contato mais próximo com a família e comunidade remontam à década de 1970 (Buriola et al., 2021). Com a Reforma Psiquiátrica e a Lei 10216/2001, a internação em instituições asilares tornou-se proibida (art. 4 § 3), sendo crescente o número de serviços para o cuidado em território, como os Centros de Atenção Psicossocial, e a implementação de leitos para internação breve em hospitais gerais (Oliveira, 2013), ambos equipamentos integrados/integrantes à/da Rede de Atenção Psicossocial e formados por equipe multiprofissional. A unidade de internação psiquiátrica localizada em hospital geral atua de modo complementar a outros dispositivos da rede de saúde e realiza “o atendimento da crise, quando casos graves esgotam as demais alternativas, quando há risco ao próprio paciente ou a terceiros” (Oliveira, 2013, p. 193), tendo capacidade para o máximo de 30 leitos (Ministério da Saúde, 2012).
O cuidado à pessoa em crise, durante internação breve, requer da equipe atenção quanto à segurança (Oliveira & Toledo, 2021), à família (Duarte et al., 2018) e à construção de projetos terapêuticos singulares (Andrade et al., 2017) para atenção diuturna. Essa forma de atenção, que precisa estar em articulação com outros serviços da Rede de Atenção Psicossocial, continuou em funcionamento durante a Pandemia da Covid-19 no município em que o presente estudo foi desenvolvido, adotando-se estratégias frente ao contexto pandêmico e de acordo com as orientações do Ministério da Saúde liberadas durante o ano de 2020 (Ministério da Saúde, 2020b).
Os primeiros casos de infecção causada pelo novo Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2) apareceram ao final de 2019 e rapidamente se espalharam para as diferentes regiões do mundo, ocasionando uma pandemia. No Brasil, os primeiros casos surgiram em março de 2020 e, desde então, o país enfrentou dificuldades para lidar com a situação, sendo registradas mais de 600 mil mortes por Covid-19 até setembro de 2021. Segundo o Ministério da Saúde (2020a), os sinais e sintomas clínicos relatados são principalmente respiratórios, podendo a pessoa infectada apresentar febre, tosse e dificuldades para respirar. Houve ainda relatos de outros sintomas, como dor muscular, confusão, dor de cabeça, dor de garganta, rinorreia, dor no peito, diarreia, náusea e vômitos.
De acordo com Humerez et al. (2020), essa doença se diferencia de outras síndromes respiratórias devido ao seu alto potencial de transmissibilidade entre indivíduos que podem ou não apresentar sintomas. No ano de 2021, em função do surgimento de variáveis do SARS-Cov-2, mudanças nos sintomas apresentados vêm sendo reportados, bem como ampliação de casos em faixas etárias inferiores. Em função do início da vacinação, faixas ainda sem cobertura, que incluem os mais jovens, tem sido mais atingida frente aos registros efetuados no início da pandemia (Fiocruz, 2021).
Prado et al. (2020) apontam que os profissionais de saúde têm lidado com difíceis situações no contexto da pandemia, as quais podem gerar sofrimento psicológico, como a frequente exposição ao risco de contaminação, longas jornadas de trabalho, falta de equipamentos de proteção individual, ampla cobertura da imprensa, baixo estoque de medicamentos, além do risco constante de perda de amigos e familiares. Complementarmente a isso, Teixeira et al. (2020a) pontuam que os profissionais de saúde estão expostos a uma carga enorme de estresse, tanto pela exposição ao vírus quanto pelas condições de trabalho e cansaço.
Diferentes revisões de literatura abordaram os impactos que a pandemia tem ocasionado no contexto das ações desenvolvidas por profissionais de saúde, tais como afastamento do trabalho e intenso sofrimento psíquico ocasionados pela atuação profissional,que englobam transtorno de ansiedade generalizada, distúrbios do sono, estresse pós-traumático, medo de adoecer e de contaminar colegas e familiares (Moreira et al., 2020; Teixeira et al., 2020a). Ainda assim, após pesquisa nas bases de dados Scielo e Google Schoolar, não foram encontrados estudos que discutissem as influências da pandemia para profissionais de saúde que não estão na linha de frente no enfrentamento da covid-19 dentro de hospitais gerais, mas ainda assim encontram-se diante dos desafios impostos pela pandemia. Muitas vezes as unidades de internação em saúde mental - mesmo integradas em hospitais gerais - permanecem à margem do serviço, funcionando a partir de uma lógica própria e particular (Teixeira, et al., 2020b; Andrade, et al., 2017). Assim, é importante discutir a forma como esses serviços têm respondido às questões colocadas pela situação instaurada no país desde março de 2020.
Frente a essas considerações, esse artigo teve como objetivo compreender os impactos da pandemia da Covid-19 na atuação de profissionais de saúde que atuam em uma unidade de internação em saúde mental dentro de um hospital geral do triângulo mineiro.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa desenvolvida a partir de entrevistas com roteiro semiestruturado como técnica para produção dos dados. Este estudo consiste em um recorte de uma pesquisa mais ampla desenvolvida pelas autoras e apoiada na busca de significados e sentidos presentes na dinâmica do trabalho em saúde (Franco & Merhy, 2012). Para este artigo foram analisadas entrevistas com quatro profissionais de saúde atuantes em unidade de internação em saúde mental de um hospital geral público universitário do Triângulo Mineiro, a partir da resposta a uma das questões geradoras do roteiro construido para o estudo: “A pandemia da Covid-19 provocou alterações na sua atuação profissional?”.
A unidade em questão tem 25 leitos destinados à internação breve para pessoas com 12 anos de idade ou mais, em sofrimento psíquico com ou sem uso prejudicial de álcool e outras drogas. A equipe responsável pelos atendimentos era composta por médicos (dois psiquiatras para assistência diária e um plantonista para intercorrências), enfermeiros (ao menos um por turno), técnicos de enfermagem, um assistente social, um psicólogo e um profissional de educação física, além de médicos residentes em psiquiatria e residentes multiprofissionais em saúde mental.
Foram efetuadas entrevistas com quatro trabalhadores da unidade de internação, entre agosto e dezembro de 2020. Em decorrência da pandemia, esse processo foi realizado de modo remoto, através de ligações de vídeo pelo whatsapp ou ligações normais quando houve instabilidade na internet. As entrevistas foram gravadas por um segundo aparelho celular com consentimento dos participantes e transcritas na íntegra. Para análise dos achados da pesquisa, optou-se pela análise temática, conforme explicitada por Souza (2019), a partir de cinco passos propostos: (1) Familiarização com dados; (2) Geração de códigos iniciais; (3) A busca por temas (4) Revisão dos temas; e (5) Definição e nomeação dos temas. Esses passos permitiram a identificação de duas temáticas: (a) Mudanças nas ações de cuidado em função da pandemia e (b) Vivências da equipe no cuidado.
O protocolo de pesquisa foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CAAE: 30978720.9.0000.5152) e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi disponibilizado aos participantes por formulário desenvolvido no Google Forms e, posteriormente ao aceite, foi enviada uma cópia ao e-mail do participante, ressaltando a importância de guardar aquele documento. Nos resultados, os participantes foram designados como E1 a E4, indicando a ordem em que a entrevista ocorreu.
Resultados
Participaram três mulheres e um homem, entre 30 e 60 anos, todos com pós-graduação concluída. A maior presença de mulheres na pesquisa está de acordo com a feminilização da força de trabalho em saúde, o que implica em pensar em acúmulo de jornadas de trabalho (Teixeira et al., 2020b). Em relação às profissões, foram entrevistados médico psiquiatra, psicólogo e técnico de enfermagem, os quais atuavam de dois a aproximadamente 20 anos no setor, com carga horária semanal de 24 horas a mais de 40 horas semanais.
Tema 1 - Mudanças nas Ações de Cuidado em Função da Pandemia
Alterações na Rotina de Atividades para Proteger os Usuários
Os participantes apontaram uma série de desafios na unidade de internação em saúde mental que emergiram com o surgimento e o aumento do número de casos de covid-19 no Brasil, incluindo mudanças ocorridas frente aos protocolos de segurança que precisaram ser adotados, a própria dinâmica imposta pela pandemia e o clima que se instalou na unidade com o aumento dos casos dentro do hospital.
Com o início da pandemia de Covid-19, foi recomendado pela administração do hospital o isolamento das pessoas internadas que apresentavam sintomas respiratórios, a fim de impedir que o vírus circulasse no serviço: “E toda vez que tem um sintoma respiratório ele precisa ficar isolado”. (E4). Houve, ainda, a suspensão da oferta das diversas atividades grupais oferecidas na unidade “por causa de aglomeração, contaminação” (E2). Tais medidas surgiram frente às recomendações das autoridades de saúde pública para impedir a contaminação com o isolamento daqueles que apresentam sintomas (Ministério da Saúde, 2020a) e evitar aglomerações nos serviços de saúde, suspendendo, quando possível, as atividades que levariam a isso (Mato Grosso do Sul, 2020).
A diminuição da oferta das atividades em grupo implicou em aumento da ociosidade, ansiedade, inquietações e irritabilidade entre as pessoas internadas: “Há um aumento da ansiedade, os pacientes ficam mais inquietos e às vezes até dormem menos” (E3); “Então a gente percebe que, com essa falta de atividades, os pacientes vão ficando mais ociosos, às vezes mais irritados.” (E2). Esse resultado corrobora com outros estudos que observaram a existência de ociosidade e sentimentos negativos de pessoas internadas em leitos psiquiátricos de hospital geral frente ao não oferecimento de atividades que os estimulem (Teixeira et al., 2020b).
Diante dessas questões, os participantes informaram que a equipe “foi percebendo que era importante oferecer alguma outra atividade, porque às vezes eles vão ficando muito ociosos naquele espaço”. (E2). Assim, foram relatadas diferentes tentativas de oferta de oficinas - envolvendo pinturas, desenhos, atividades com bolas - com a preocupação de serem tomados cuidados que permitissem a realização destas, como: (a) o desenvolvimento das atividades em um pátio ao ar livre acessado por uma escada e anexo às instalações hospitalares, por se tratar de um espaço aberto com mesas, bancos e algumas árvores e (b) o distanciamento entre os participantes da atividade: “Eu tenho tentado sempre fazer lá no pátio externo onde tem uma mesa maior, onde dá para as pessoas sentarem um pouco mais distanciadas lá nos bancos”. (E2).Benevides et al. (2010) ressaltaram a importância das atividades grupais para pessoas em sofrimento psíquico, visto que promovem trocas dialógicas, compartilhamento de experiências e melhorias na adaptação individual e coletiva dos indivíduos. Ibiapina et al. (2017) complementa que as oficinas terapêuticas em serviços de saúde mental são instrumentos de ressocialização e inserção que promovem interações com o meio social e permitem o agir e pensar de forma coletiva, mantendo abordagem no respeito à diversidade e à individualidade de cada usuário.
Outras práticas grupais foram também interrompidas frente à orientação de diminuir o fluxo de pessoas nos serviços de saúde (Mato Grosso do Sul, 2020): os grupos de orientação e acolhimento para as famílias e as reuniões de discussão de caso realizadas presencialmente entre a equipe hospitalar e representantes dos Centros de Atenção Psicossocial do município. A interrupção dos grupos para familiares foi total, mas as discussões de caso passaram a ocorrer em outros formatos, envolvendo mensagens por aplicativo ou ligações telefônicas para a discussão de casos considerados urgentes: “[...] quando a gente tem alguma coisa mais urgente assim, a gente liga para discutir alguma coisa.” (E2). Mesmo diante da suspensão das reuniões presenciais, os profissionais buscaram manter o contato com a rede municipal de saúde, garantindo assim a articulação e integração com a rede de atenção psicossocial, conforme previsto na portaria MS 148/2012. Assim, o contato ocorria com representantes dos centros de atenção psicossocial (CAPS).
A construção e implementação do projeto terapêutico singular (PTS) foi outra atividade suspensa em função da pandemia, mas não apenas por este motivo. A ele somaram-se dois fatores. O primeiro deles foi a saída dos residentes multiprofissionais, que concluíram sua carga horária no setor desenvolvida no segundo ano da residência, desligando-se do serviço sem a inserção de novos residentes. Sua participação na implementação do PTS foi decisiva. O PTS é construído pela equipe multiprofissional e pauta-se na avaliação ampliada dos casos, em que se estabelecem os objetivos terapêuticos e as propostas de intervenção pensadas para cada pessoa (Buriola et al., 2021). O segundo fator foi a diminuição da equipe de saúde com o início da pandemia juntamente com o alto número de pessoas que chegavam para internação no serviço. Segundo a participante E2, essa dinâmica tornou inviável o preenchimento das fichas que compõe o PTS, resultando em formas de atenção que demandavam uma maior agilidade: “O número de internação dos pacientes continua alta e preencher essa ficha demanda tempo, são cinco folhas com várias questões que envolviam avaliar também os familiares.” (E2). Essa fala reflete compreensão sobre o PTS como atividade meramente burocrática, desconsiderando o olhar ampliado para a pessoa internada, sua família e seu contexto social, que podem ser alcançados com essa ferramenta (Andrade et al., 2017).
Frente à diminuição da oferta de cuidados, os profissionais relataram a existência um clima de tensão e angústia na unidade devido ao fortalecimento do cuidado centrado na figura do médico: “Ficou muito centrado nisso [cuidados biomédicos]. Então ficou tudo muito tenso para eles, muito angustiante também.” (E4). Sobre isso, Foucault (2007) discute a centralização do profissional médico nos hospitais quando o cuidado passa a ser pautado em uma relação individual entre médico e doente, na qual busca-se, através da observação de sinais, eliminar tudo aquilo que contraria a “natureza sadia” do paciente. Nas entrevistas, percebe-se que a suspensão das atividades grupais dirigidas aos internos e seus familiares, bem como as reuniões para discussão de caso, implicam em abrir mão de parte importante das tecnologias relacionais ou leves no cuidado à saúde (Franco & Merhy, 2012). A ausência/diminuição das práticas grupais, do cuidado à família e a suspensão da construção do PTS apontam uma atenção distante da ideia de um cuidado que garanta a integralidade (Sampaio, & Bispo Junior, 2021).
Alterações no Acompanhamento de Internos e Visitas
Com o aumento dos números de pessoas infectadas pelo vírus da covid-19 admitidas no hospital, a unidade de internação em saúde mental precisou adotar como medidas a suspensão das visitas e a diminuição do número de acompanhantes para garantir menor fluxo de pessoas em circulação. Assim, a presença de acompanhantes passou a ser recomendada somente em situações extremas, privilegiando a presença do acompanhante para idosos e casos mais complexos. O controle da circulação de visitantes nos hospitais é recomendação presente nos manuais de combate ao covid-19, a fim de controlar a propagação do vírus (Almeida, 2020; Mato Grosso do Sul, 2020; Ministério da Saúde, 2020a).
Segundo os profissionais entrevistados, a ausência das visitas provocou sentimentos de angústia e ansiedade entre as pessoas internadas. Buriola (2021) destaca a importância da família durante a internação em saúde mental, já que, com a presença de pessoas com as quais convive, a pessoa internada pode se sentir melhor acolhida e amparada. A falta de notícias dos familiares foi um aspecto que afetou os participantes: “Então ficou ruim por que nem família eles tinham, então ficaram muito ansiosos por conta de saber notícia dos familiares né, a gente dava notícias, mas não era a mesma coisa de estar ali com o pai com a mãe.” (E4).
Frente a isso, a equipe precisou se organizar para manejar a presença desses sentimentos ligados às sensações de estarem longe dos familiares, através da mediação de contatos por telefone, conforme indicado em manuais que versam sobre a atuação de profissionais frente ao coronavírus (Fiocruz & Ministério da Saúde, 2020): “[...] eles levantam o sentimento de estar se sentindo abandonados pelo familiar e a gente tem que mediar um pouco isso, mediar alguns contatos por telefone”. (E2).
De acordo com os profissionais, a compreensão das pessoas internadas referente à suspensão das visitas foi classificada como razoável diante do momento vivenciado, em que as pessoas possuíam demandas para além das visitas, como a entrega de itens pessoais e de interesse. Nessas situações, os familiares podiam entregar os itens na recepção: “Mas aí é permitido, eles entregam na recepção e a gente busca e entrega para o paciente depois de higienizado [risos].” (E3). Para além disso, Buriola et al. (2021) pontuam a imprescindibilidade da família para o tratamento durante a internação, sendo fundamental reconhecê-la enquanto aliada da equipe de saúde e recurso na promoção de conforto e confiança ao paciente (Duarte et al., 2018).
Orientações às Pessoas Internadas
Uma das demandas observadas pelos participantes foi a necessidade de informar e conscientizar as pessoas internadas sobre a necessidade de aderirem aos cuidados e a importância do uso da máscara, sendo este considerado um desafio. Frente a isso, os profissionais de saúde sentiram a necessidade de orientar as pessoas internadas em relação aos protocolos de segurança como forma de cuidado. A participante E1 destaca que, em alguns casos, sentiu a necessidade de explicar sobre o uso de máscara e pedia para as pessoas colocarem: “Quando eu estou lá e eu percebo que o paciente vai entender sobre a máscara eu peço para colocar, mas eu vejo que a maioria não usa o tempo inteiro.” (E1).
Outro profissional relatou que sugeriu à equipe que incentivasse o uso das máscaras junto às pessoas internadas, identificando profissionais que não acreditaram que tal medida pudesse ser efetiva. Segundo ele, muitas pessoas que estavam em internação compreenderam e utilizaram as máscaras: “Eu, no início da pandemia, peguei e sugeri incentivar os pacientes a usarem máscara. Teve até profissional que disse que eles não iriam usar e, surpreendentemente, uma grande maioria usa máscara, sim, pede máscara.” (E3).
Um meio utilizado para incentivar o uso das máscaras pelas pessoas internadas foi a confecção desse item utilizando pano TNT e filtro de café, em oficinas de autocuidado quinzenais, para orientá-las sobre a situação da pandemia e abordando temas como as formas de prevenção frente à covid-19: “No pátio, num espaço mais aberto, conversava com eles um pouco sobre prevenção ao coronavírus, sobre as formas de cuidados e os cuidados gerais de si e de saúde mental.” (E2).
A partir da confecção das máscaras, os profissionais de saúde tentaram reforçar o uso entre aqueles que estavam internados na unidade, ressaltando a importância principalmente nos momentos de proximidade com outras pessoas: “E aí a gente tem tentado reforçar com os pacientes para que eles usem máscaras, ainda quando estiverem nesses momentos mais próximos. Nem sempre eles aderem, mas a gente tem tentado orientar isso, reforçar.” (E2).
Os profissionais buscaram também informar sobre a importância dos hábitos de higiene daqueles que estavam em período de internação na unidade pesquisada. Algumas medidas simples foram orientadas, como lavar as mãos frequentemente com água e sabão e manter o distanciamento durante as conversas: “Em geral, eu tenho tentado lembrar de pedir para eles lavarem as mãos sempre antes de começar e sempre depois de terminar, não conversar muito perto um do outro.” (E2).
A unidade enfrentou ainda algumas limitações, tais como a impossibilidade de oferecer álcool em gel para a higienização, já que há pessoas com histórico de dependência dentro do serviço: “Alguns pacientes que se internam por causa da dependência de substância, ingestão de álcool e aí acontece de ter álcool em gel e eles tomarem.” (E2).
De acordo com La Regina et al. (2020), os profissionais de saúde podem orientar as pessoas internadas com relação a proteção individual e coletiva através da psicoeducação de aspectos que vão desde a higiene básica e lavagem das mãos até recomendações médicas para prevenção, diagnóstico e tratamento. Assim, faz-se essencial que tais profissionais orientem as pessoas internadas, os familiares e colaboradores do serviço sobre todas as medidas preventivas (Mato Grosso, 2020).
Por outro lado, é necessário considerar as especificidades das enfermarias psiquiátricas no momento de se pensar tais ações, já que o serviço recebe pessoas com diferentes perfis (Silva et al., 2015), tanto em relação à idade e ao diagnóstico, como também com diferentes percursos pela rede de cuidados - histórico de internações; primeira internação; com ou sem vínculo com o CAPS. Assim, cabe refletir que a simples realização de orientações pode se tornar mais complexa com pessoas que estão no serviço após uma tentativa de suicídio ou que apresentam quadros delirantes, alucinações e outras questões que impliquem na compreensão do motivo da orientação.
Tema 2 - Experiências e Vivências da Equipe no Cuidado
Medo, Ansiedade e Insegurança no Cotidiano de Trabalho
Os participantes sinalizaram vivência de ansiedade e medo no seu cotidiano de trabalho em função da pandemia da Covid-19, especialmente aqueles que apresentavam comorbidades: “Teve muita ansiedade, principalmente os mais velhos, os que têm alguma comorbidade, foi um clima bem tenso para uma grande maioria, principalmente as internações quando chegaram pacientes com suspeitas.” (E3). O contexto de pandemia tem impactado de diferentes formas e níveis a saúde mental dos profissionais de saúde, estejam eles atuando na linha de frente ou não (Moreira et al., 2020). Tem sido observado o aumento de sintomas de ansiedade, depressão, perda da qualidade do sono, aumento do uso de drogas lícitas ou ilícitas, sintomas psicossomáticos e medo de se infectarem ou transmitirem a infecção aos membros da família entre os profissionais de saúde (Fiocruz, 2020).
Ansiedade e medo eram intensificados quando as pessoas internadas apresentavam sintomas da covid-19 e fazia-se necessário adotar medidas de isolamento, ocupando para isso um quarto na própria unidade: “E a própria equipe começou a ficar ansiosa com esse paciente sintomático.” (E1); “Nada era ideal porque dentro da saúde mental acabava que gerava uma ansiedade nos servidores, no caso de ter que separar um paciente com sinais de covid.” (E4).Humerez et al. (2020) e Teixeira et al. (2020a) identificaram que uma das dificuldades vivenciadas pelos profissionais é o medo de contágio pela Covid-19 e a possibilidade de contaminar familiares, o que gera sofrimento psíquico.
A situação vivenciada na unidade de internação fez com que alguns profissionais precisassem se afastar do trabalho, ocasionando perdas na equipe. Uma das profissionais, em tom de brincadeira, disse que, por terem se assustados, alguns profissionais “fugiram” da unidade naquele momento: “É, muito assustados... Assustados né, ficaram assustados e...e... fugiram.” (E4). Obviamente, os profissionais não fugiram, mas a escolha do termo pode apontar a sensação de abandono por parte da equipe que permaneceu na assistência frente a tantas incertezas, num momento em que, ao ceder entrevista, não havia perspectiva de início da vacinação no Brasil.
De mesmo modo, uma profissional relatou a diminuição de plantões que ela assumia na unidade, devido à insegurança em realizar o atendimento de pessoas com sintomas da covid-19 e por não receber suporte de médicos clínicos para desempenhar tal função: “Eu estou me sentindo insegura e diminui o ritmo de plantões lá [...] o paciente fica isolado e se ele tiver alguma complicação eu não vou saber como proteger ele” (E1). Consoante a isso, Ayanian (2020) observou o aumento da ansiedade entre os profissionais de saúde quando estes precisam assumir funções clínicas novas ou desconhecidas.
De acordo com os relatos, todos os profissionais entrevistados foram afetados por atuarem no serviço de saúde durante o contexto de pandemia. Um dos participantes informou que, mesmo sempre tendo desenvolvido suas atividades dentro do setor, em determinada semana na qual havia um número maior de suspeitas de covid-19 entre as pessoas que estavam internadas, optou por não se deslocar até a unidade de internação para desenvolver atividades ligadas ao suporte dos residentes, preservando-se: “Nessa semana eu falei ‘Ah, não vou subir [risos], vou ficar aqui e você avalia e vem discutir os casos comigo’ [...] Aí eu falei ‘você avalia e eu fico aqui’.” (E4).
Esses dois últimos exemplos destacam a diminuição do número de plantões e a ausência do profissional na enfermaria, realizando a supervisão dos residentes que mantiveram a atenção presencial às pessoas internadas. Além disso, os profissionais sinalizaram que a situação de pandemia dificultou a realização de ações de cuidado da forma como gostariam de oferecer e houve a necessidade de se adotarem medidas para se protegerem do contágio, tais como o distanciamento físico, o uso do jaleco e da máscara. A adoção dessas medidas foi apontada como uma situação difícil para a participante E4, que se viu diante da necessidade de realizar um cuidado mais distanciado, estando em um lugar enquanto profissional de saúde em que não se via há vários anos e de reconhecer um ambiente mais hospitalar/biomédico frente a essas mudanças. Sobre essas percepções, a entrevistada destacou a dificuldade para manter sempre o distanciamento em função do perfil da clientela: “na saúde mental eu acho que tem muito disso né, você manter os distanciamentos não é tão possível assim.” (E4.).
Vale ressaltar que, pouco tempo depois da realização das entrevistas, um serviço de apoio psicológico em modalidade remota foi inaugurado pela universidade à qual o hospital encontra-se vinculado, sendo aberto inicialmente a discentes, docentes e funcionários da universidade e do hospital, e posteriormente ampliado para a comunidade externa. Teixeira et al. (2020a) ressaltaram a necessidade de atenção à saúde mental dos profissionais de saúde no contexto da pandemia. De acordo com Organização Mundial da Saúde (2020), é preciso garantir que funcionários dos serviços de saúde tenham acesso e saibam onde buscar serviços de saúde mental e apoio psicossocial para lidar com os sentimentos e sensações provocadas pelo contexto atual.
Percebe-se, pela fala dos participantes, que a adoção das medidas de proteção pelos profissionais da unidade de internação em saúde mental não ocorreu de imediato. De acordo com os participantes, demorou alguns dias para a equipe do setor entender o que realmente estava acontecendo em relação à pandemia e começar a aplicar mudanças na organização do serviço com a finalidade de diminuir as chances de contaminação pelo vírus: “eram tantas as faltas para todos nós servidores, que talvez a gente tenha demorado um mês e meio aí para gente falar [...] ‘vamos ter que parar com essas questões de visitas diárias, reduzir o número de acompanhantes né". (E4).
Sobrecarga Ampliada por Afastamentos e Redução da Equipe
O contexto provocado pela covid-19 levou ao afastamento de vários profissionais de saúde na unidade de internação, seja por comporem os grupos de risco, se aposentarem ou terem se contaminado com o vírus da covid-19, resultando em vários desafios no trabalho desenvolvido. Um dos entrevistados descreveu o processo de afastamento dos profissionais e relatou que a unidade de internação buscou suprir as faltas na equipe a partir do aumento do número de plantões: “Alguns se afastaram [...] umas duas [...]aproveitaram para se aposentar. E depois tiveram outros que prorrogaram atestados e outros não, e a gente teve sim, perdas na equipe teve e compensou com plantões, tentou compensar com plantões.” (E3).
Os profissionais relataram a sobrecarga de trabalho (Teixeira et. al, 2020a) tornando difícil a dinâmica no serviço, uma vez que foi necessário ampliar a carga de trabalho individual para que a equipe atendesse todas as demandas, tanto em ações no contexto da unidade como nas situações em que são chamados a atuarem em outros setores, respondendo pareceres ou realizando coberturas.
De acordo com E4, a situação vivida no primeiro mês de pandemia foi complicada, visto que a equipe da UISM não havia sido preparada para lidar com tal situação e havia profissionais no período de férias que poderiam auxiliar a controlar e organizar o serviço, porém as férias não foram suspensas: “Nos primeiros 20 dias da pandemia foi terrível [...] e mesmo iniciando aquela coisa terrível da pandemia não foi cortada as férias de ninguém e a equipe não tinha sido preparada para aquilo.” (E4)
Assim, com o aumento da carga de serviço frente ao número reduzido de profissionais, as ações oferecidas tornaram-se limitadas, sendo focada nas demandas individuais de cada pessoa internada. Além das perdas na equipe, os profissionais apontaram a ausência de alunos extensionistas que desenvolviam atividades com as pessoas internadas, diminuindo o número de atividades oferecidas na unidade, o que foi percebido como: “um prejuízo para gente porque eles faziam alguns vínculos importantes com os pacientes, tinha um leque maior de ofertas também porque era um maior número de pessoas também.” (E2).
Uma das profissionais relatou que com o afastamento de diversos profissionais da unidade de internação, a atuação ficou voltada para aspectos biomédicos centrada nas figuras do médico e da equipe de enfermagem, levando a um clima desagradável que caracteriza um serviço manicomial: “Nessa fase da pandemia é que todo mundo sumiu [risos], então voltou a ficar aquela ruindade, aquela coisa ruim que caracteriza até também um manicômio. Então eu acho que ficou bem manicomial também esses últimos meses lá.” (E4). Foi feita a associação do cuidado realizado pela entrevistada com o modelo manicomial, caracterizado pelo tratamento em lugares fechados, isolados e cujo atendimento voltava-se apenas para a supressão dos sintomas (Souza & Lobosque, 2006). Assim, Oliveira (2013) discute que os leitos psiquiátricos em hospitais gerais implicam na facilidade de acesso a outras especialidades que não só a psiquiatria e ao modelo multiprofissional de atuação. A presença dos extensionistas antes da pandemia pode ser tomado como um indicativo de maior valorização da história das pessoas ali internadas que poderiam emergir na diversidade das propostas de atenção e na construção de vínculo, tão cara para a construção do cuidado centrado na experiência do sujeito, e não apenas na lista de sintomas por ele relatada.
Ausência de Equipamentos de Segurança
Os profissionais entrevistados apontaram diferentes situações de risco aos quais eram expostos, como a ausência de protocolos de segurança para a entrada na instituição: “Era terrível você chegar e ter que colocar sua biometria lá sabendo que mil e tantos funcionários fariam a mesma coisa e não tinha um álcool em gel do lado.” (E4).
Outro desafio enfrentado pelos profissionais foi a falta de equipamentos de segurança oferecidos pela instituição durante os primeiros meses da pandemia, já que o hospital estava com recursos limitados diante da quantidade de pessoas com covid-19 que recebia diariamente. Assim, de acordo com os profissionais entrevistados, as unidades que não atuavam diretamente com esse perfil não era o foco das preocupações da instituição: “Dentro do hospital a gente não estava tendo muito recurso porque o hospital estava tomado com os outros pacientes.” (E4).
A escassez de equipamentos de proteção individual (EPI) para profissionais de saúde no contexto da pandemia de covid-19 foi observada em outros estudos (Ayanian, 2020; Teixeira et al., 2020a). Almeida (2020) discute o papel fundamental dos EPI para garantir a proteção à saúde dos trabalhadores que estão atuando durante a pandemia, uma vez que esses equipamentos funcionam como barreiras que impendem a transmissão do vírus. Além da oferta dos equipamentos de segurança, o autor destaca a necessidade de orientações sobre como agir no novo contexto de trabalho.
Segundo relatos, os profissionais precisaram providenciar os próprios equipamentos de segurança no início da pandemia: “Alguns questionam não ter equipamento de segurança, tem que se virar para arrumar a máscara.” (E1); “No começo, algumas unidades tiveram que providenciar as suas próprias máscaras, estava um pouco limitado para conseguir.” (E2); “É, assim né, no início foi bem complicado porque não tinha [materiais de proteção] e o que tinha era racionado.” (E3); “Então assim, não tinha máscara para ninguém, não tinha nada para ninguém, nada... E lá para aquele serviço, para aquele pedacinho muito menos.” (E4).
Os profissionais improvisaram para conseguir equipamentos de segurança, em alguns casos, com materiais que não eram de confiança e, aqueles que buscaram comprar, ainda lidaram com a falta de materiais disponíveis no mercado: “Cada um se virou, ou usava o material que não dava muita confiança e mantinha distanciamento, às vezes comprou, muita gente comprou, inclusive eu comprei material também, até as coisas irem equilibrando, quando achava para comprar também né.” (E3). Complementando essa ideia, a participante E4 relatou que, em um momento de desespero, comprou vários equipamentos de segurança e sentiu a necessidade de dividir com a equipe da unidade: “No início eu comprei um monte de coisa, comprei pela internet, e cheguei ao hospital, na equipe da enfermagem e fui dando luva, máscara, avental porque era o que a gente podia ter.” (E4).
A situação descrita denuncia que, para além dos medos, ansiedades e angústias vivenciadas pelos profissionais, eles precisaram ainda se preocupar em providenciar os materiais que poderiam garantir segurança pessoal de cada um. Em consonância a isso, Ayanian (2020) observa que a ausência de equipamentos de segurança intensifica os temores de exposição ao coronavírus no trabalho e a possibilidade de sofrimento psíquico. Além de oferecer os adequados equipamentos de segurança, os serviços de saúde devem fornecer para os profissionais de saúde capacitações (Teixeira et al., 2020a) e treinamento para o reconhecimento das situações de riscos presentes na realização do trabalho durante a pandemia (Almeida, 2020).
Por fim, os profissionais sinalizaram que, à época das entrevistas, o hospital havia criado um setor que disponibilizava materiais de segurança: “Agora tem uma unidade específica e sempre que a gente precisa de algo a gente corre lá e consegue pegar.” (E2). Assim, esteve em conformidade com a legislação trabalhista brasileira - Norma Regulamentadora de Segurança e Saúde no Trabalho em Serviços de Saúde (NR32) - que estabelece a obrigatoriedade do fornecimento de equipamentos de segurança (EPI) em número suficiente nos locais de trabalho e a garantia do imediato fornecimento ou reposição.
Considerações Finais
A pandemia tem influenciado de várias formas a vida cotidiana e as práticas de cuidado em saúde. Em relação aos profissionais de saúde, os impactos dizem respeito à necessidade de alterações na dinâmica do trabalho. Os trabalhadores entrevistados destacaram a necessidade diferentes adaptações para o desenvolvimento das ações sob sua responsabilidade na unidade de internação no contexto da pandemia, frente à equipe reduzida em virtude de férias trabalhistas e afastamentos por saúde, ao clima de tensão instalado no serviço e falta de EPI´s nos meses iniciais da pandemia. Além disso, as entrevistas apontaram que as alterações no oferecimento das atividades para as pessoas internadas (menos atividades grupais e reorganização dos espaços onde essas aconteciam) ocasionou um aumento da ociosidade, ansiedade e inquietação entre as pessoas internadas.
As limitações desse trabalho dizem respeito à ausência de observações sobre as práticas de atenção in loco, inicialmente planejadas, mas impossibilitadas pelo início e agravamento da pandemia, e ao número de profissionais entrevistados frente ao número total da equipe. Ainda assim, entende-se que as entrevistas realizadas ajudaram a levantar reflexões a respeito dos atravessamentos da pandemia para o desenvolvimento do trabalho no serviço pesquisado e as implicações para a assistência às pessoas internadas segundo os trabalhadores.
Em um tempo de muitas incertezas que a Covid-19 trouxe, ainda sem vacina, a atenção às pessoas internadas em leito de saúde mental foi marcada pela distância entre trabalhadores e usuários para evitar contaminação ou diminuir seu risco, oferta de grupos com menos participantes e em espaços abertos para garantir melhor ventilação, e a ausência das famílias nos horários antes presentes na enfermaria. Vínculo e corresponsabilização, pilares do cuidado na perspectiva psicossocial, tornam-se desafios ainda maiores no hospital geral; a singularidade que se busca garantir com o PTS não avança. Ressalta-se, ainda, a necessidade de oferecimento de suporte psicossocial aos profissionais, uma vez que a pandemia intensificou a vivência de situações difíceis na unidade, como aumento da carga de trabalho e sensações de medo e ansiedade.
O estudo em tela nos permite refletir sobre os objetivos da internação psiquiátrica em hospital geral, dado que, sem o suporte ou com a redução de atividades grupais oferecidas pelos trabalhadores ou extensionistas, a construção do vínculo com as pessoas internadas pode ser prejudicada e o tratamento torna-se sustentado por práticas que focam nos sintomas e deixam o sujeito e sua história em suspenso.