Mesmo com as mudanças e avanços conquistados no campo dos direitos e da luta feminista, assiste-se ainda a situações de disparidades e iniquidades não apenas entre homens e mulheres, mas especialmente entre as próprias mulheres. Deste modo, as diferenças de gênero, classe, raça, entre outros marcadores, há tempos moldam de maneira imbricada as relações e estruturas sociais, demarcando posições e hierarquização na sociedade. Em outras palavras, compreende-se gênero, raça e classe enquanto categorias interseccionais (Kilomba, 2019; hooks, 2019; Collins, 2015, 2019), enovelados em um nó (Saffioti, 2011), consubstanciadas (Kergoat, 2010).
Tanto Angela Davis (2016), bell hooks (2019), Grada Kilomba (2019) e teóricas brasileiras, por exemplo, Sueli Carneiro (2003a, 2003b) e Lélia Gonzales (2020), enfatizam que a opressão/dominação vivida pelas mulheres não se limita ao gênero, visto que muitas são oprimidas/discriminadas e exploradas por questões étnico-raciais e de classe. Contudo, é preciso nos atentarmos para não cairmos na cilada de hierarquizar esses sistemas de dominação. Assim, nossas experiências enquanto mulheres são atravessadas e estruturadas por todos esses marcadores, em especial, gênero, raça e classe (Collins, 2015).
Sardenberg (2015) citando Crenshaw (2002), sinaliza que sistemas de opressão são como avenidas, e, a depender do contexto: o tráfego pode ter uma intensidade maior em algumas avenidas e, em outras, menor; ou ser intenso em todas as avenidas como acontece em alguns grupos, principalmente, o das mulheres racializadas que se encontram na encruzilhada dessas opressões. Vale frisar que os paradigmas interseccionais contribuem não só para explicar e fazer-nos entender as experiências das mulheres negras, visto que as opressões interseccionais contornam também as experiências de outros grupos (Collins, 2019).
Diante disso, essa visão lança luz não apenas para um sistema de opressão, ilustra também as diferentes posições sociais como relacionais e como assumimos diferentes posicionalidades na vida cotidiana e as relações de poder que as permeiam, considerando nossas variadas identidades e as discriminações que lhes são referentes (Sardenberg, 2015). É, pois, a heterogeneidade de histórias e experiências de lutas e resistências que nos interessa.
Onde há relações de poder, há contrapoder e insurgências que criam fissuras e rompem estruturas de dominação e exploração, tecendo estratégias de resistência coletiva e individualmente. E são as mulheres, figuras importantíssimas, “atrizes principais” (Gohn, 2007, p. 45), que têm alcançado protagonismo à frente de diferentes organizações e movimentos sociais em muitas lutas, seja pelo direito à terra, seja para reduzir as desigualdades, seja para fortalecer a participação política, seja ainda na luta para diminuir a opressão feminina.
Portanto, enquanto mulheres, sempre fomos objetificadas ao longo dos tempos e continuam a nos querer enquadrar em determinados comportamentos, modos de agir, falar e impor quais espaços podemos ocupar. Concordamos com hooks (2019) quando ressalta que mesmo experienciando a exploração e opressão diariamente, as mulheres não devem ignorar o fato de que são capazes de ter algum poder sobre suas próprias vidas, mesmo que relativamente. Desde há muito tempo, elas criam possibilidades outras, envolvidas em lutas, produzem suas resistências individuais e coletivas, a partir de suas diferentes vivências na estrutura de poder.
Nessa direção, Gohn (2007) exprime que categorias sociais como “mulher” com um histórico de exclusão e subjugação social, econômica, política e que ocupam lugares sociais desprivilegiados têm se unido e organizado movimentos sociais aspirando por liberdade, democracia e justiça social. Evidenciando que o percurso de lutas das mulheres é marcado por um combinado de lutas mais gerais e específicas. Suas trajetórias em lutas são anteriores ao surgimento do feminismo, muito embora ele tenha propiciado maior visibilidade às mulheres enquanto coletivos de movimentos sociais, sindicais e de direitos.
No Brasil, as mulheres têm uma trajetória de luta e de deslocamentos das designações de gênero a que são submetidas, contribuindo com suas ações para muitas conquistas como o direito ao voto, a inserção no mercado de trabalho, em instituições da educação e espaços políticos e sindicatos, fomentando debates que favorecessem as mulheres no exercício de sua cidadania e vida digna. E como atrizes imprescindíveis que fazem parte dessa história, estão as mulheres vindas das periferias que desde a década de 1970 são atuantes, seja a frente ou enquanto colaboradoras de movimentos insurgentes de luta por direitos, organizações sociais de base comunitária e de manifestações culturais nesses territórios (Gohn, 2007).
Posto isso, chamamos atenção, a partir do cenário brasileiro, para as mulheres de contextos periféricos de periferias, favelas ou bairros populares que há tempos têm se constituído enquanto sujeitas políticas, ativas em suas comunidades, pensando e criando caminhos possíveis para mudar suas realidades. Frente aos desafios que é a vida em comunidades periféricas, as mulheres já por muito tempo têm sido peça fundamental na luta pela sobrevivência nesses contextos e cenários de desigualdades, precarização da vida, violência, violação de direitos e opressão. Assim sendo, viver em localidades periféricas é um ato político de lutas cotidianas em que as mulheres nas suas experiências, enquanto mãe-esposa-vizinha-amiga-eleitora-cidadã, atuam politicamente no dia-a-dia (Novaes, 2001).
Geralmente, os bairros populares são vistos apenas como lugares de carências o que leva a crer que seus moradores são meramente sobreviventes, resignados à situação de precariedade e sem poder de ação. No que diz respeito às mulheres desses bairros, especificamente, reduzidas a beneficiárias dos programas sociais como bolsa-família e não como sujeitas engajadas e a frente de processos de ação política e transformação social emancipatórios (Gohn, 2007). É, pois, a partir da cotidianidade dos bairros, entendidos como campos de vivência e experiências em que as mulheres participam de ações políticas e sociais à medida que constroem sua experiência e redes de solidariedade e sociabilidade (Novaes, 2001).
Além das condições sociais que atravessam a vida e o cotidiano dessas mulheres, elas ainda lidam com situações outras que dizem respeito ao gênero, como a violência doméstica, o feminicídio, a responsabilidade pelos cuidados dos filhos e da casa, isso sem mencionar o aumento do crescimento de homicídios de mulheres e o fato de serem as maiores vítimas de agressões não letais (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA] & Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019). Portanto, nos lugares marcados por desigualdades que expressam múltiplas vulnerabilidades sociais, temos como sujeitas políticas atuantes, as mulheres com estratégias, disponibilidade, ousadia e coragem (Nunes, 2018).
De todo modo, motivadas pelo cenário de desigualdade e exclusão social é que desde as décadas de 1970 e 80, período da redemocratização do país, muitas mulheres começaram a se organizar para lutar e reivindicar pelos seus direitos a moradia, saúde, educação, saneamento básico e uma vida de qualidade. Os bairros populares de periferia passam a ser territórios de resistência, afervorados principalmente, pelas mulheres, consideradas a própria vida desses bairros, com lutas e desafios que se estendem para o tempo presente (Teixeira, 2019).
Diante o exposto, este trabalho é resultado de uma pesquisa de mestrado realizada entre os anos de 2019 e 2021, que teve como perguntas de partida: Quais as condições de sobrevivência e resistência foram criadas pelas mulheres para (re)existirem diante o histórico de opressão vivenciado em seus cotidianos? Para respondê-las tomamos como objetivo de pesquisa investigar modos de vida das mulheres que vivem em bairros populares de Caxias do Maranhão e as formas de resistência produzidas cotidianamente por elas em suas vivências diárias.
Método
Trata-se de uma pesquisa de campo de abordagem qualitativa e caráter descritivo-analítico, com base na proposta teórico-metodológica de produção de sentido no cotidiano, à luz do Construcionismo, a partir da Psicologia Social. Partindo das práticas discursivas produzidas pelas mulheres acerca de seus modos de vida e resistências construídas na cotidianidade de seus bairros a partir de suas vivências, maternidade, inserções na igreja católica e relações sociais estabelecidas em seus bairros.
Participantes
O presente trabalho realizou-se do contato e participação de cinco mulheres de quatro bairros populares da cidade de Caxias-MA, bairro Fazendinha (2), Campo de Belém (1), Cangalheiro (1) e Volta Redonda (1). São bairros que possuem um grande contingente de pessoas da classe trabalhadora, formados a partir da vinda de pessoas da zona rural. As interlocutoras possuem entre 50 e 66 anos de idade, são mulheres negras, que se autodenominam preta (1) e pardas (4). Quanto a escolaridade, variam entre ensino médio completo (1) com o magistério (1), ensino superior completo (2) e ensino fundamental incompleto (1). São predominantemente, católicas (4), apenas uma é evangélica.
Instrumentos
Para a produção de informações foram utilizados a observação e conversas no cotidiano, entrevistas semiestruturadas sobre dados sociodemográficos e histórias de vida. Para isso, foi elaborado um roteiro de entrevista semiestruturada para auxiliar na condução da entrevista, com pontos norteadores sobre a história de vida, ser mulher, a relação com o bairro e as lutas cotidianas.
Procedimentos
A pesquisa foi realizada entre julho de 2020 a janeiro de 2021, assim diante do atual contexto pandêmico devido ao Covid-19 ou “corona vírus” em que estamos vivendo, para a realização da pesquisa foram necessárias algumas readequações. É válido ressaltar que a ida ao campo só aconteceu depois que as restrições da quarentena foram flexibilizadas, seguindo todas as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) quanto ao uso de máscaras, distanciamento social e higienização das mãos. As entrevistas foram previamente agendadas via telefone, realizadas individualmente com cada participante em locais arejados, sendo indispensável o uso de máscaras por ambas as partes, álcool em gel para higienização das mãos e dos materiais a serem utilizados.
Os critérios estabelecidos para a colaboração na pesquisa foram: a) ter idade igual ou superior a 18 anos; b) residir há pelo menos 5 anos no bairro; c) participar ou já ter participado de alguma organização ou ação comunitária; e d) concordar em participar da pesquisa e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Ressaltamos que todos os procedimentos éticos das Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde foram cumpridos. A pesquisa foi submetida à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Delta do Parnaíba, tendo aprovação sob o parecer nº 4.639.762 e CAAE nº 45100021.6.0000.5669. Vale destacar que as participantes que concordaram em contribuir, autorizaram a gravação das entrevistas, além disso como uma forma de preservar a identidade das interlocutoras utilizamos nomes de algumas mulheres importantes para a história de Caxias-MA.
Análise de Dados
Para a análise das entrevistas de histórias de vida foi utilizado o Mapa Dialógico, também conhecido como mapa de associações de ideias que preserva o contexto interativo, bem como auxilia o pesquisador/a na organização dos discursos e estruturação da discussão (Nascimento, Tavanti, & Pereira, 2014). Desse modo, a elaboração dos mapas começa pela delimitação de categorias gerais, de natureza temática que correspondem aos objetivos da pesquisa.
A construção dos mapas dialógicos se deu em duas etapas fundamentais que auxiliaram na definição das categorias e análise do material: 1) transcrição sequencial e 2) transcrição integral (Nascimento, Tavanti, & Pereira, 2014). A transcrição sequencial foi realizada no momento de escuta das gravações, antes mesmo da transcrição propriamente dita. Esse primeiro contato com o material contribuiu para a definição das categorias, ajudou na identificação de quem fala, quando fala e sobre o que fala, é também uma forma de reduzir a complexidade do corpus a ser analisado, quando vasto e complexo (Nascimento, Tavanti & Pereira, 2014). Já a transcrição integral consistiu na transcrição de todas as falas, expressões, preservando o discurso original do contexto da pesquisa (Nascimento, Tavanti, & Pereira, 2014) que ajudou a identificar as possíveis categorias temáticas e analíticas do estudo.
Dessa forma, o mapa dialógico é um importante recurso que possibilita uma visualização de como nossas práticas discursivas resultam de nossas experiências de vida, sendo o conhecimento construído social e culturalmente, levando em consideração também os marcadores sociais que nos atravessam.
Resultados
Visando conhecer a realidade das mulheres de alguns bairros populares de Caxias-MA e as formas de resistência produzidas no cotidiano de seus contextos sociais, voltamo-nos para as práticas discursivas concernentes as perguntas que buscavam explorar sobre a realidade e a relação das mulheres com seus bairros, a cotidianidade, as dificuldades, as lutas e ações empreendidas. Assim, a partir dos discursos das entrevistadas, foi possível identificar a categoria “Ser mulher de bairro popular” e seus elementos de análise: realidade social, o início da participação/ações e contribuições/conquistas que evidenciam as lutas empreendidas pelas mulheres em busca de melhorias para seus bairros, a criação de redes de apoio, explanando o percurso individual e coletivo das mulheres e suas estratégias de resistência.
Em alguns estudos, as mulheres, sobretudo de periferias e favelas de grandes cidades como São Paulo, ao falarem sobre como se deu o início de suas trajetórias de luta, engajamento e resistência em suas comunidades, apresentam como motivações a insatisfação com os serviços públicos de saúde, educação, infraestrutura que atingiam seus filhos, suas famílias; outra forma foi a participação em projeto sociais e Organizações Não Governamentais (ONG). A Igreja Católica, principalmente na década de 1980, também exerceu um papel muito importante na trajetória de muitas mulheres, uma vez que promovia capacitação e formação política, por meio das CEB’s e movimentos sociais. (Barbosa, 2018; Nunes, 2018; Teixeira, 2019).
Nessa direção, muitas mulheres tiveram em suas trajetórias pessoais, oportunidade de participarem de formações e capacitações por ONGs, Igreja Católica, organizações políticas que foram basilares para que pudessem se tornar uma pessoa de referência, até mesmo, liderança em seus bairros (Barbosa, 2018; Correia, 2015; Nunes, 2018). No entanto, o percurso de vida constituído pelas diversas relações e encontros que atravessam nossas vidas tanto no âmbito pessoal quanto fora dele, caracterizam também o processo de formação, como visto nos relatos de nossas interlocutoras. Assim, o percurso formativo para uma atuação comunitária é contínuo a partir das trajetórias individuais e coletivas, processos formais, sistematizados ou não, levando em conta as capacidades inventivas, as mobilizações e desejos, propulsores das ações e compromissos para com a comunidade (Teixeira, 2019).
De acordo com os relatos das entrevistadas, foi possível perceber algumas das condições que atravessam a realidade de seus bairros e como as mulheres vão galgando importância, tornando-se referência e contribuindo não só com a melhoria dos seus bairros, mas para o fortalecimento das demais mulheres que deles fazem parte. Lançando luz sobre esses relatos que serão apresentados a seguir, evidencia-se os diferentes caminhos percorridos por cada uma delas.
Cada uma com suas motivações particulares, algumas iniciaram pelas manifestações culturais, pela educação, outras, pelas necessidades da comunidade, do bairro. São experiências distintas, mas que contribuem com a movimentação e deslocamentos dessas mulheres, para além dos lugares instituídos, bem como para a criação de redes de sociabilidade e solidariedade. Cada uma dessas mulheres com suas histórias de vida e seus percursos particulares e que encontraram no trabalho comunitário razão pela qual lutar como Debora Pereira e Aliete Lobo na fundação da União de Moradores do bairro Fazendinha; Filomena Teixeira, presidente do Clube de Mães do bairro Volta Redonda; e Tia Miroca, fundadora do Clube de Mães Marly Sarney do bairro Cangalheiro.
Incentivado pela minha avó né, aquela coisa toda. Aí eu pensei um dia...ah não, vamos... vamos realizar, vou realizar uma festa aqui no bairro, uma festa diferente. Aí convidei algumas amigas, perguntei se elas topava [sic] né, participar. E aí a gente formou o grupo de dança, e aí eu aquela coisa [...] Começou, eu resolvi chamar só mulheres né, só mulheres e aí para ser um evento só de mulheres eu pensei: não, porque não ser só no Dia das Mães?!! (Laura Rosa)
Em sua narrativa acerca de como idealizou o evento cultural que realiza em seu bairro, Laura Rosa faz referência a sua avó, ainda que não tivesse uma finalidade política, no sentido instituído do termo, no tocante a mobilização política de forma organizada com certa finalidade reivindicatória na comunidade, o evento possibilita o fortalecimento dos laços comunitários entre os moradores, promovendo um momento de lazer e socialização, elementos de base para produção de encontros, cuidado de si, dos outros e da própria comunidade: outra forma de habitar a política (Ávila, 2006).
Ademais, é possível reconhecer a realização de um evento cultural, principalmente a formação de um grupo de dança de mulheres como uma estratégia de resistência e enfrentamento. Haja vista que é nos ensaios e encontros que os laços de amizade e os vínculos de solidariedade, cumplicidade são fortalecidos com conversas, compartilhamento das situações vividas com os maridos, filhos e sobre seus cotidianos, oportunizando momentos de apoio e orientação.
Aqui era muito [sua rua no bairro Fazendinha] ... não tinha nem estrada, não tinha nem rua era só o caminhozinho e eu lutando, toda vida eu pagava para as pessoas passar o... o... Eu ia atrás, ia atrás de patrol pra raspar, porque não subia trator mesmo grande, era patrol. E aí fazia, raspava, fazia o acesso pra gente andar e daí a gente começou nessa luta de bairro, sempre lutando pelo melhor, pelos meus filhos que desde desse tempo que eu moro aqui e lutando sempre pelo bem-estar de todos, que aqui todos é família. Aqui só tem só dois, três vizinhos que não é da família, mas os outros tudo é família. Então todo...toda coisa que eu faço pra cá é pra família que tudo é família. (Debora Pereira)
A preocupação com os filhos e a família é muitas vezes, combustível para as lutas e enfrentamentos, evidenciando a potência da maternidade que algumas autoras vão chamar de “politização da maternidade” (Alvarez, 1988 citado em Bonetti, 2007) ou maternagem ativista (Collins, 2019). Concordamos com Collins (2019) quando, com base nas experiências de mulheres negras, reconhece a maternidade como símbolo de poder, pois é a maternidade que politiza muitas mulheres, fazendo-as agir, especificamente mulheres negras e mulheres da classe trabalhadora.
De acordo com Debora Pereira, sua trajetória começa a partir de suas lutas pessoais e individuais que posteriormente, passam a ser coletivas, impelida pelas necessidades mais urgentes que atingiam a ela e sua família, visando um bem estar comum. Já para Aliete Lobo sua atuação no bairro Fazendinha foi motivada pelo seu trabalho no campo religioso, especificamente, pela Igreja Católica. Quando ela e o marido chegaram ao bairro, há 13 anos, depararam-se com o habitual uso de drogas. Mas os trabalhos que desenvolviam pelos grupos da igreja, os auxiliaram na aproximação com as pessoas do bairro, como ela pontua: “[...] O conhecimento que nós tínhamos de grupos que nos ajudou a enfrentar esse medo esse... essa insegurança”. Iniciaram, pois, pela evangelização através do trabalho missionário e com esse trabalho pelo campo religioso, ela foi convocada para atuar no bairro pela própria comunidade.
Nessa mesma linha, Filomena Teixeira relata que o início de seu percurso de trabalho e ações comunitárias despontou quando da sua participação em grupos da igreja católica, pois desde essa época, era vista como uma pessoa proativa, uma liderança. Desde então, passou a atuar seja nas escolas que trabalhava enquanto professora, como uma das fundadoras do Sindicato dos professores da cidade e como presidenta do Clube de Mães do bairro Volta Redonda.
... quando eu morava na outra cidade [Parnarama-MA] eu participava de movimentos da igreja, movimento estudantil. Aí a gente tinha o movimento, grupo de jovens da igreja e a gente lá na igreja, a gente tinha também o grupo que o padre fazia para participar das missas, organizava os alunos, aula de religião era aquele grupo de alunos a gente organizava, organizava cântico. Eu sempre, o pessoal me achava assim, capacidade me elegiam sempre liderança dessas coisas, não sabe?! (Filomena Teixeira).
É no bairro eu sou, como é?! É vista como Líder Comunitário. Eu sou representante da Pastoral da Criança né, pela igreja católica, é...coordenadora do Apostolado da Oração e agora nessa última eleição fui candidata a vereadora né [...] E a questão do ajudar... a comunidade, ela veio por acaso, veio pela necessidade que lá existia [bairro Fazendinha], então quando a comunidade viram que eu tinha esse prazer de ajudar, tinha esse prazer de viver em conjunto, em um grupo, aí uniu-se o útil ao agradável e deu certo, atribuo muito que deu certo [...] E eu atribuo assim, que aquele bairro estava clamando pela [sic] uma liderança forte, uma pessoa corajosa e nós chegamos [ela e o marido] com essa coragem no campo religioso e no campo social. O social foi porque a comunidade nos abraçou e nos unirmos nessa conquista de formar a União de moradores que isso nos trouxe grandes resultados. (Aliete Lobo)
Desse modo, como evidenciado nos trechos acima, a implicação e os trabalhos desenvolvidos nas comunidades e bairros para algumas, só foi possível devido ao envolvimento e estímulo a partir das experiências adquiridas com os grupos de pastorais da Igreja Católica. É interessante como suas trajetórias contribuem para que essas mulheres construam uma percepção positiva sobre si mesmas, ao relacionarem-se a força, coragem e como uma pessoa vista pelas demais, capaz de estar à frente na realização de alguma ação ou trabalho comunitário.
No entanto, nas narrativas de algumas de nossas protagonistas, observa-se que suas entradas nos Clubes de Mães ocorreram por outros motivos, não relacionados a Igreja Católica.
...Então essa questão de chegar aqui e não ter acesso à escola me motivou a criar o Clube de Mãe e também por elas não terem nenhum... nenhuma orientação em relação a profissões, isso aí me motivou a criar esse clube de mães para poder dar um espaço para elas também [...] Pela grande quantidade de mães é... sem o conhecimento, e aí eu me senti com esse desejo de criar o Clube de Mãe para abrigar essas mães, no sentido de dar uma orientação e uma conotação melhor na vida delas, para que elas tivessem também vez, voz e espaço na sociedade. (Tia Miroca)
A partir das narrativas de nossas interlocutoras, é possível observar que é com base em suas realidades e das problemáticas cotidianas que as mulheres buscam se movimentar, se mobilizam, organizam pessoas para a ação em seus territórios sociais: é “[...] a partir de sua trajetória que se dar também seu percurso formativo para o exercício da liderança feminina nos espaços dos organismos sociais” (Teixeira, 2019, p.99. Grifo nosso). Sendo assim, muitas vezes, é uma atuação em que, a princípio, não há necessariamente uma intencionalidade, todavia, é da espontaneidade que se desenvolve, faz surgir e visibiliza essa mulher que lidera e conduz outras pessoas, outras mulheres (Teixeira, 2019).
Para Azeredo (2010), “Longe dos benefícios e vantagens que seu lugar social não pode proporcionar, essas mulheres acabam tecendo redes sociais e alternativas peculiares a partir do vivido. Apropriam-se do seu lugar e da sua condição, dos saberes e fazeres compartilhados, em busca de proteção” (p. 584). Nesse sentido, algumas mulheres têm como marco em suas trajetórias a fundação e a inserção em organizações sociais de base comunitária, que contribuíram para a construção de liderança local e referência assumidas por essas mulheres nos bairros que moram (Barbosa, 2018; Nunes, 2018).
Algumas delas trazem em suas narrativas a importância de suas lutas por melhorias para a comunidade, manifestando sentimentos de pertencimento territorial, realização pessoal, revelados pela preocupação e cuidado com as pessoas pertencentes de seus bairros. Nos atentando a essas narrativas, concordamos com Souza (1989) quando o autor ressalta que o bairro desperta sentimentos variados em seus diferentes moradores. Isto é, o bairro é um lugar que não é visto da mesma maneira por todos, considerando ser um território em que há a interseção de subjetividades. Essas diferenças, evidentemente, têm relação com fatores como classe, ocupação, faixa etária, raça, gênero, valores e o tempo que reside nesse lugar.
Com efeito, os movimentos de participação, de ação e luta ou a omissão, indiferença dependerão do modo como o bairro é visto, vivido e sentido, já que para alguns é um lugar que simboliza bem mais que apenas uma área que contém imóveis, pelo contrário é um território que remete a amizade, história de vida, memórias afetivas, solidariedade e sociabilidade (Souza, 1989). E é o comprometimento, o apego, as relações sociais e o sentimento de pertencimento que faz com que a moradora/morador participe de diferentes experiências dentro do bairro que desembocam no desenvolvimento de fortes laços de identidade (Souza, 1989).
Na esteira desse raciocínio, é possível compreender a relação dessas mulheres com seus bairros, entendidos para além de sua dimensão física, enquanto uma área demarcada. O bairro representa uma porção territorial da cidade, que devido a veemência das relações sociais cultivadas, constitui para as pessoas um espaço vivido e sentido o que contribui para a construção da identidade do bairro. É, portanto, um fragmento urbano em que a empatia é basilar. Essa empatia, afeição e relação refletem na preocupação, ativismo e lutas que sobressaem nas falas de nossas depoentes (Souza, 1989).
Então ela se relaciona com a gente, porque a gente se sente na verdade e vamos dizer como se fosse quase um dever cumprido e eu posso não estar participando daquela escola, mas os meus netos estão participando... uma coisa que houve uma luta que eu fiz, tá entendendo? E que melhorou muito para as pessoas que estavam aqui que eu participei e as pessoas estão bem e eu também me sinto bem. (Filomena Teixeira)
Levando em consideração que estamos tratando de mulheres racializadas, vindas de contextos periféricos, lugares em que o compartilhamento, a solidariedade, a união, fazem parte do cotidiano e com base em suas narrativas, é evidenciado como as mulheres na figura de mãe nas comunidades, bairros, territórios periféricos estão no cerne das dinâmicas sociais. Isto posto, como Moraes, Brito e Costa (2020, p. 306) sugerem “a base de sentido de vida comunitária está amalgamada no cerne comunitário preto que é materno-centrado”.
No bairro Fazendinha, Debora Pereira e Aliete Lobo, em conjunto com alguns moradores, fundaram a União de moradores do bairro, em 2007. A fundação dessa organização no bairro, significou uma grande conquista e teve muita importância para o bairro, principalmente, para as mulheres, pois promovia diferentes cursos dentre eles, de produção de pufes, bordado e costura. Além da idealização e criação de uma Brinquedoteca, de maneira independente, sem qualquer apoio político que funcionou durante dois anos, com apoio da comunidade. Mas que durante a realização desse estudo estava inativa com planos para voltar a funcionar.
Alguns dos feitos protagonizados por Debora Pereira, beneficiou muitas pessoas, propiciando a aquisição de recursos básicos e necessários para uma vida digna como moradia, ruas que facilitem a mobilidade, abastecimento de água e energia elétrica. Como veremos nos trechos a seguir:
Aqui era muito... não tinha nem estrada, não tinha nem rua era só o caminhozinho e eu lutando, toda vida eu pagava para as pessoas passar o... o... Eu ia atrás, ia atrás de patrol [Máquina de grande porte para nivelamento] pra raspar, porque não subia trator mesmo grande, era patrol e aí fazia, raspava, fazia o acesso pra gente andar e daí a gente começou nessa luta de bairro. (Debora Pereira)
[...] Aqui não tinha água, aqui não tinha luz, não tinha! Foi 2 anos e 6 meses que eu vim conseguir... eu, eu, que consegui essa luz pra cá [...] todo dia eu ia atrás, de manhã eu ia trabalhar quando eu chegava eu ia lá [Na empresa responsável pela distribuição de energia elétrica]. “E aí que hora que vai? Que eu vou ver onde é, que vai ir [sic] os postes para lá e tal? Porque eu preciso, preciso e preciso”. Consegui e foi botado a luz aqui, foi dois anos e seis meses lutando por isso [...] A outra foi... a outra foi... a água, foi muito tempo, nós mulher [sic] foi quem cavemo [sic] essa vala para botar água lá da Cabana da Serra até ali, naquele poste ali. Era cinco mulher [sic]. (Debora Pereira)
[...] É lutei...é, mas assim até onde eu... como eu já lhe falei... Não tem essa coisa de... das construções das casas, sim foi eu. Como bem... as casas de projeto... era 44 casas, foi 44 casas que veio pra fazerem e foi feito 42 duas. Então foi feito 42 casas, aí eu fui, fui eu que fui atrás... (Debora Pereira)
Ao longo de sua narrativa, Tia Miroca enfatiza a contribuição de seu engajamento, como a fundação do Clube de Mães Marly Sarney e, posteriormente, da Escola Comunitária Lourdes Feitosa. Professora de formação, Tia Miroca já foi também diretora de uma escola, assim a sua força motriz, o seu compromisso sempre foi a educação e isso é materializado com a Escola comunitária Lourdes Feitosa: “a propósito eu criei a Escola Comunitária para poder dar a oportunidade para as famílias, as mães que não tinham... não eram alfabetizadas”. A escola comunitária foi iniciada no seio do Clube de Mães Marly Sarney, começou com a alfabetização de jovens e adultos e com o passar dos anos foi ampliando para a educação infantil. Nos anos 2000, então, já com um número considerável de alunos, Tia Miroca propôs ao secretário de educação da época para que o município assumisse a escola, que passou a ser a Unidade Escolar Municipal Lourdes Feitosa.
Nunes (2018) em seu estudo sobre o ativismo da “mulher de favela” demonstra como a educação é uma importante frente de luta para as mulheres de contextos periféricos, pois acreditam no poder de transformação da realidade pelo acesso ao conhecimento. O apoio a educação é uma dimensão importante do ativismo político de mulheres negras racializadas, pois carrega a esperança entre indivíduos, mudanças e empoderamento nas comunidades afro-americanas. Esta educação não diz respeito somente as habilidades técnicas aprendidas, para as mulheres negras é muito mais do que isso, a educação é a base para o desenvolvimento da comunidade, uma arma poderosa para a libertação. Logo, “a luta pela educação politiza as mulheres negras” (Collins, 2019, p. 344).
Na trama cotidiana do bairro Volta Redonda, o Clube de Mães, tendo à frente Filomena Teixeira foi uma conquista, responsável por contribuir para a vida de muitas mulheres que dele fizeram parte, bem como para o bairro de modo geral. É uma organização que continua ativa e segue desenvolvendo atividades no território como aulas de zumba, a quarta cultural em que acontece apresentações musicais e venda de comidas, comemorações em alusão a páscoa para as crianças do bairro e a festa do dia das mães.
Nessa direção, Filomena Teixeira, mobilizada pelo momento de dificuldade enfrentada por muitas famílias no contexto da pandemia do Covid-19, idealizou uma ação comunitária de entrega de cestas básicas ao fim de cada mês, apoiada pelas mulheres participantes do Clube de mães. As mulheres sócias do clube reuniram-se para angariar alimentos e a entrega acontecia a cada dois meses. Cada sócia deveria levar uma convidada para receber a cesta básica no dia do evento e na oportunidade, eram convidadas também a participarem do clube.
Ainda que historicamente, e ainda hoje, os clubes de mães desenvolvam suas ações numa perspectiva assistencialista, centralizado no papel de mãe das mulheres, é indiscutível que a participação e envolvimento das mulheres nessa organização provoca deslocamentos, mesmo que sutilmente. Esse espaço de encontro, de trocas, ações e sociabilidade produz novas subjetividades e políticas de gênero, oportunizando as mulheres a saída da esfera doméstica e até mesmo transformando as relações de poder no seio familiar e na própria comunidade. Estarem inseridas nessa organização, para muitas também possibilitou uma atuação social, na esfera pública tornando-se pessoa de referência em seus territórios, bairros e comunidades (Nunes, 2018; Correia, 2015; Teixeira, 2019).
Salientamos, pois, o quanto as mulheres são agentes dinâmicas e ativas, aptas e dispostas a transformar o cotidiano vivido, desenvolvendo ações sociais criativas, exercendo uma terceira linha de ação política que é comunitária e que é estabelecida pela ação cotidiana, pessoal, bem como cultural, social e política (Novaes, 2001). Ainda conforme a autora citada, “no cotidiano dos bairros as mulheres encontram um campo de vivências e de conquistas de experiências. Seu envolvimento político baseia-se em trocas recíprocas, comunhão de valores e sentimentos, numa forma de ação voltada muito mais para relações horizontais e não verticalmente hierarquizadas” (p. 66).
São modos de enfrentamento que vão se consolidando nos vínculos de amizade, solidariedade, cuidado e preocupação com a comunidade que se concretizam em ações que são também políticas, resultando por exemplo na conquista de casas em projetos habitacionais, escola, postos de saúde e realização de eventos culturais, dentre outros equipamentos urbanos e sociais para a comunidade onde moram. De todo modo, as histórias dos bairros e comunidades encontram-se com as histórias de vida dessas mulheres racializadas que protagonizaram ações que tencionaram e contribuíram para o bem comum.
Dessa maneira, a partir de suas atuações em seus territórios, as mulheres vão construindo e fortalecendo os laços de sociabilidade, solidariedade, de amizades, isto é, vínculos amorosos de comunidade (hooks, 2021) que podem se constituir potência de ação. Assim, segundo hooks (2021) defende, viver segundo uma ética amorosa, é entender o amor para além do sentimento romantizado relacionado às relações, mas enquanto ética de vida. Isto é, expressando e cultivando no nosso cotidiano o cuidado, o respeito, compromisso, conhecimento, confiança e o desejo de cooperar - “Então assim o nosso foco é aquele povo, então é a nossa família” (Aliete Lobo).
Conforme Gomes e Silva Júnior (2010), o apoio e os laços criados nas relações de amizade são necessários, pois produzem fissuras e resistência nas relações de dominação. Assim, as relações de amizade podem ensejar uma experimentação política através das trocas de experiências, conhecimentos, fomentando um espaço de aprendizagens de fortalecimento de ações, bem como potencializando movimentos de resistência e de cidadania (Gomes & Silva Júnior, 2010). Como os laços de amizade, companheirismo e solidariedade estabelecidos no cotidiano, no sentar na porta de casa, nos encontros da igreja, nos ensaios, nas conversas do grupo de dança idealizado por dona Telma, por exemplo, que podem propiciar fissuras na lógica dominante vivida por muitas mulheres em seus casamentos engendrados pelo patriarcado ou mesmo provocando mobilizações em benefício da comunidade.
As mulheres, juntas, são força e resistência dentro de seus bairros, favelas e periferias (Correia, 2015; Nunes, 2018), comunidades rurais, quilombolas (Carvalho, 2019). É possível observar, pois, que o movimento de insurgência em muitas mulheres, como as mulheres negras como indica Collins (2019), é instigado pela sobrevivência do grupo, pelas experiências tecidas cotidianamente. E essa atuação em seus territórios de pertença, favorece a autonomia dessas mulheres, “[...] eleva suas capacidades individuais e sentem-se pessoas capazes de promover mudanças e enriquecer mais o seu cotidiano” (Marques, 1996, p. 82).
Vimos, então, que para cada uma de nossas protagonistas foram os seus caminhos diferenciados, o encontro com outras pessoas, a inspiração em alguém que de certa forma incitaram seus desejos internos, o sentimento de pertencimento territorial, de classe e gênero, convergindo para uma atuação, desenvolvimento de trabalhos e criação de espaços em suas comunidades. São mulheres que a partir do cotidiano de suas vidas e de seus bairros, foram provocadas a criar e ocupar outros espaços, para além de suas residências, rompendo com os papeis estigmatizantes que cerceiam as mulheres a vida privada e assumindo o protagonismo em seus bairros.
Considerações Finais
Buscamos com esse trabalho dar ênfase às resistências produzidas cotidianamente por essas mulheres em seus bairros. Elas que frente suas realidades criam possibilidades, indo na contramão de concepções que as limitam dentro de qualquer definição, ocupando espaços para além das paredes da casa. Diferentemente de outros estudos (Barbosa, 2018; Correia, 2015; Nunes, 2018) em que as mulheres ativistas em seus bairros tiveram além das disposições individuais, mediadores como a Igreja Católica com as CEB’s, ONG’s e organizações políticas que as auxiliaram no despertar político, revolucionário de luta e resistência, com a oferta de formações e capacitações.
Nossas interlocutoras, embora, algumas delas com forte inserção na igreja, cada uma em seus caminhos diferenciados foram provocadas a deslocarem-se, a assumir o protagonismo em seus bairros e isso se deu a partir do encontro com outras pessoas que as inspiraram e motivaram, suas aspirações individuais, mas, que se tornaram coletivas, bem como o sentimento de pertencimento territorial incidiram numa atuação, desenvolvimento de trabalhos e criação de espaços comunitários. Como vimos, algumas iniciaram suas lutas e resistências pelas manifestações culturais, que contribui para a identificação dos moradores com seu bairro; pela educação que tem muita importância para as mulheres racializadas da classe trabalhadora, como uma possibilidade de libertação, e outras, pelo contexto de vulnerabilidade e precarização de seu bairro.
Em suma, como observamos, diante da sociedade capitalista, neoliberal que vivemos em que o individualismo e a competição são valorizados, essas mulheres racializadas, da classe trabalhadora, vindas de realidades periféricas, por vezes, esquecidas em que a iniquidade, a vulnerabilidade e precarização batem à porta, buscam se movimentar, criar caminhos e resistir. Essas mulheres são interpeladas pelo amor, por uma ética amorosa (hooks, 2021), entendido aqui como potência de ação, expressado na preocupação, cuidado, compromisso e pelo sentimento de pertencimento territorial que as fazem ter esse desejo de cooperar, de agir pela coletividade.
São, pois, mulheres de bairros populares da cidade de Caxias, no interior do Maranhão, que tem suas experiências constituídas pelos atravessamentos de gênero, raça, classe e pertença territorial. Mas, que no cotidiano de suas vidas vão criando suas próprias formas de resistir e existir, ainda que não modifiquem ou mesmo rompam com as relações e estruturas de opressão/dominação/exploração, essas mulheres passam a ocupar lugares de referência e até mesmo liderança dentro de suas comunidades, dissolvendo os limites entre público e privado.
Reconhecemos, indiscutivelmente, que as questões levantadas não se encerram aqui. Há um leque de possibilidades, assuntos e temáticas a serem aprofundas e problematizadas, já que estamos tratando de realidades complexas que não se encerram em um único trabalho. Isto quer dizer que outros trabalhos possam vir a ser desenvolvido, partindo de outras perspectivas, arcabouço teórico, podendo abordar outros bairros da cidade, o processo de subjetivação de mulheres a frente de organizações comunitárias, a formação da identidade a partir dos bairros, entre uma diversidade de possibilidades. Não deixamos aqui, de reconhecer os limites da própria pesquisadora que se propôs a esse desafio, ainda mais durante um período de medos, incertezas e riscos devido ao vírus da Covid-19, e esperamos, portanto, que esse estudo possa auxiliar produzindo afetações e ressonâncias.