A adolescência se configura como uma fase singular do desenvolvimento humano na qual ocorrem drásticas mudanças físicas, cognitivas, emocionais e sociais (Papalia et al., 2013). Durante esse período da vida, há modificações significativas nas estruturas cerebrais envolvidas na regulação emocional, no julgamento das situações, na organização do comportamento e no autocontrole que podem favorecer comportamentos de risco e a instalação de sintomas psicopatológicos (Coutinho et al., 2016; Grolli et al., 2017; Guerreiro et al., 2014; Moreira et al., 2020).
Esses fatores remetem ao entendimento de que apesar de ser uma fase abundante em aprendizados, a adolescência também é um período propenso a condutas arriscadas e ao desenvolvimento de padrões comportamentais disfuncionais. Dentre eles, a autolesão se destaca devido ao seu impacto negativo na saúde mental dos jovens. Moreira et al. (2020) definem a autolesão como um comportamento no qual o indivíduo intencionalmente provoca lesões não fatais em si mesmo. As condutas de autolesão são diversas: cortes, arranhões, queimaduras, ingestão de fármacos em doses exageradas, uso de substâncias psicoativas com o propósito de autoagressão, dentre outras. Os autores explicitam ser um fenômeno cuja frequência é maior na adolescência, operando como um obstáculo para o desenvolvimento e a maturação saudável.
A prevalência da autolesão em adolescentes possui grandes variações a depender do tipo de amostra (comunitária ou clínica), aspectos geográficos, culturais e do próprio conceito dos estudos, com porcentagens entre 10% a 75,9% reportadas (Moreira et al., 2020). Ademais, pertencer ao sexo feminino é um fator de risco para a prática (Andrews et al., 2014; Moreira et al., 2020). Do ponto de vista explicativo, os comportamentos autolesivos, em adolescentes, parecem estar associados tanto a um reforço positivo (e.g., ganhar atenção dos pares, sentir alguma coisa), quanto a um reforço negativo (e.g., regular emoções negativas, como medo, raiva, angústia, dentre outras) (Moreira et al., 2020). Entretanto, a maioria dos estudos favorecem a concepção da autolesão como uma função automática predominantemente negativa, desqualificando argumentos do senso comum que associam esses comportamentos a práticas manipuladoras (Oliveira et al., 2020; Zetterqvist et al., 2013).
Alguns autores relacionam os comportamentos autolesivos à desregulação emocional. Uma pesquisa realizada por Zetterqvist et al. (2013), com 816 adolescentes suecos entre 15 e 17 anos de idade, indicou que sintomas depressivos e experiências de abuso emocional estavam correlacionadas positivamente à necessidade de se autolesionar para regular emoções ou gerar alívio. Nesta direção, Linehan (2018) defende que a autolesão decorre da incapacidade dos indivíduos de lidar com emoções fortes, fazendo com que apelem para comportamentos desadaptativos enquanto estratégia compensatória. Logo, a autolesão é uma forma de amenizar a angústia e aliviar a tensão causada por um fluxo intenso de pensamentos perturbadores (Moreira et al., 2020).
A literatura científica aponta que o Transtorno Depressivo Maior (TDM) está relacionado positivamente aos comportamentos autolesivos (Glenn, 2013; Grolli et al., 2017). O TDM é identificado primariamente pela presença de humor deprimido durante, no mínimo, duas semanas. Especificamente, caracteriza-se pela perda de interesse e prazer nas atividades, fadiga recorrente, baixa autoestima, alterações no peso, no apetite e no sono; e, em casos graves, pensamentos de morte e até mesmo tentativas de suicídio (American Psychiatric Association [APA], 2014). Uma pesquisa realizada por Barata (2016), com 237 adolescentes portugueses de 12 a 20 anos de idade, verificou correlações positivas entre sintomas depressivos e comportamentos autolesivos. O autor identificou ainda que o intervalo etário com maior ocorrência do fenômeno é entre 12 e 15 anos de idade.
Outra condição psicopatológica associada à autolesão é o Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG). O TAG é caracterizado, principalmente, pela preocupação contínua, excessiva, angustiante e incontrolável a respeito de vários eventos cotidianos. Para o diagnóstico, tal preocupação precisa ser recorrente por, no mínimo, seis meses (APA, 2014). Ainda, sintomas físicos como inquietação, dificuldade de concentração, irritabilidade, tensão muscular e perturbação no sono são comuns. O TAG apresenta alta correlação com comportamentos autolesivos e com o Transtorno Depressivo Maior (Glenn, 2013).
Um fator relevante para o desenvolvimento e manutenção de transtornos mentais e comportamentos desadaptativos são as estratégias de coping, ou seja, estratégias de enfrentamento em situações de estresse e de mal-estar (Guerreiro et al., 2014; Linehan, 2018). Nesse sentido, um ambiente familiar pode funcionar como um importante fator de proteção à medida que aumenta a capacidade de coping do adolescente e incentiva trocas saudáveis entre pares, se baseado em segurança, carinho, validação e estímulo ao desenvolvimento (Claes et al., 2015).
Em contrapartida, as relações familiares invalidantes, marcadas por vínculos inseguros, podem deixar os adolescentes emocionalmente vulneráveis, resultando em problemas de saúde e comportamentos problemáticos. Nessa direção, a baixa percepção de apoio familiar aparece em vários estudos como um fator de risco relevante para os comportamentos autolesivos e para a instalação de sintomas ansiosos e depressivos (Baetens et al., 2015; Moreira et al., 2020).
Apesar do comportamento autolesivo em adolescentes ter se tornado uma preocupação de saúde pública em diversos países (Coutinho et al., 2016), há escassez de publicações científicas acerca da temática, principalmente no que concerne a adolescentes latino-americanos (Moreira et al., 2020). Considerando essa lacuna de pesquisa, o presente estudo investiga a relação entre comportamentos autolesivos, percepção de suporte familiar e sintomas ansiosos e depressivos em adolescentes da rede estadual de ensino do Recife, assim como estimar a prevalência do fenômeno. Desse modo, buscamos contribuir com problematizações científicas que possam embasar políticas públicas de prevenção e protocolos de intervenção direcionados aos comportamentos autolesivos em adolescentes.
As hipóteses investigadas foram de que adolescentes do sexo feminino apresentariam índices mais elevados de autolesão; que os adolescentes de 15 anos teriam índices maiores de autolesão; que há uma relação negativa e significativa entre sintomas de ansiedade, depressão e percepção de suporte familiar; e que há uma diferença significativa nos níveis de suporte familiar, sintomas depressivos e sintomas ansiosos entre adolescentes que praticam e que não praticam a autolesão.
Método
Este artigo é um desdobramento de uma pesquisa multicêntrica denominada "Levantamentos de Ambiente Social e Comportamento Relacionadas à Saúde e Bem-estar de Adolescentes", coordenada pela professora Carmem Beatriz Neufeld do Laboratório de Pesquisa e Intervenção (LaPICC) da Universidade de São Paulo), cujo objetivo é mapear indicadores e comportamentos de saúde e bem-estar e sintomas de ansiedade e depressão em adolescentes de 13 e 15 anos. O projeto opera como International Linked Project do estudo internacional Health Behaviour in School-Aged Children (HBSC), força tarefa desenvolvida em colaboração com a Organização Mundial da Saúde (OMS) (http://www.hbsc.org - Inchley et al., 2020) há mais de 30 anos com o protocolo HBSC com adolescentes de 43 países da Europa e América do Norte.
O presente estudo foi realizado na cidade do Recife-PE com um delineamento quantitativo, correlacional e de corte transversal. A cidade de Recife situa-se na região Nordeste do Brasil e é a capital do Estado de Pernambuco. Possui aproximadamente 1,5 milhão de habitantes e tem o maior índice de desenvolvimento humano (0,772) dentro do Estado (IBGE, 2010).
Participantes
A amostra do estudo foi estratificada e aleatória. Utilizamos a tipificação municipal que divide a cidade em seis Regiões Político-Administrativas (RPA’s). No primeiro momento, realizamos um levantamento das escolas estaduais da cidade com a ajuda da Secretaria de Educação da Cidade do Recife. Após autorização, as escolas e as respectivas turmas foram selecionadas aleatoriamente, seguindo a faixa etária do estudo. Participaram do estudo 501 adolescentes de 13 e 15 anos de idade matriculados na rede estadual de ensino da cidade de Recife, sendo a maioria (62,3%) do sexo feminino.
Instrumentos
Protocolo Health Behaviour in School-Aged Children (HBSC) - O questionário (Inchley et al., 2020) abarca 16 eixos temáticos com 80 questões, aproximadamente, sobre indicadores de saúde e comportamentos relacionados à saúde de adolescentes de 11, 13 e 15 anos de idade. Os eixos temáticos das perguntas pautam-se em: fatores demográficos; origem social; contexto social; problemas de saúde; comportamentos de saúde e comportamentos de risco. O questionário padrão possui três dimensões que são usadas para confeccionar instrumentos de pesquisa nacional: questões fundamentais que cada país é obrigado a incluir para a criação de um banco de dados internacional; questões opcionais sobre tópicos específicos que cada país pode escolher; e questões de importância nacional. A adaptação linguística para a realidade brasileira foi realizada por Maltoni et al. (2019), a partir da versão portuguesa de 2014 deste protocolo (Matos et al., 2015). O protocolo brasileiro possui perguntas adicionais sobre cor autodeclarada, supervisão parental e autolesão. O protocolo HBSC é autoaplicável e leva aproximadamente 45 minutos para ser completado.
No que tange à autolesão, o protocolo indaga se “Nos últimos 12 meses, você já se feriu de propósito, como se cortar, por exemplo?” e as alternativas de resposta: Sim (2) ou Não (1). No que se refere à percepção de suporte familiar, o HBSC pergunta: “A minha família realmente tenta me ajudar”, “Eu tenho o apoio emocional que preciso da minha família”, “Eu posso falar com a minha família sobre os meus problemas” e “A minha família está disponível para me ajudar a tomar decisões”, as alternativas de resposta foram apresentadas em uma escala Likert de 1 a 7 pontos que varia entre discordar muito fortemente a concordar muito fortemente.
Inventário de Depressão Infantil (CDI) - Esse instrumento foi adaptado para o Brasil por Gouveia et al. (1995), a partir do instrumento original Children’s Depression Inventory (CDI, Kovacs, 2015). O CDI detecta a presença e gravidade de sintomas da depressão na infância e adolescência sendo utilizado em indivíduos dos sete aos dezessete anos. Possui 27 itens com 3 opções de resposta e ponto de corte em 19, podendo ser aplicado coletivamente. Seguindo as recomendações de Wathier et al. (2008) com o instrumento de 27 itens e três fatores (Alfa de Cronbach de 0,85), sintomas clínicos de depressão foram considerados se a pontuação fosse maior ou igual 14 para meninos e 18 para meninas.
Spence Children's Anxiety Scale (SCAS) - A SCAS (Spence, 1998) contém 44 itens dispostos em seis subescalas, referentes à ansiedade de separação, fobia social, obsessão-compulsiva, pânico e agorafobia, ansiedade generalizada e medo de agressões físicas. Possui questões positivas, a fim de reduzir o viés de resposta negativa. Cada pergunta possui uma resposta possível, que pode variar entre: nunca, às vezes, muitas vezes, sempre. Ao final, um espaço é destinado para que a criança indique sentimentos ou comportamentos que não estão listados no instrumento. Utilizamos a versão adaptada para o Brasil por DeSousa et al. (2014) (Alfa de Cronbach de 0,92) com os escores de Muris et al. (2000), em que sintomas clínicos de ansiedade foram considerados, se a pontuação fosse maior ou igual a 25 para meninos e 36 para meninas.
Procedimentos
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto, sendo aprovada sob o nº CAAE Nº 45947415.5.1001.5407 e parecer nº 069/2020), e seguiu rigorosamente os preceitos éticos estabelecidos na Resolução 466/2012 do CNS, assim como respeitou as instruções contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. O estudo também foi submetido e aprovado pelo Comitê Científico de Pesquisa da Universidade Católica de Pernambuco sob o mesmo CAAE.
As escolas foram selecionadas randomicamente a partir de um levantamento realizado em contato com a Secretaria de Educação do Estado. Em seguida, convidamos as escolas selecionadas e, a partir do aceite, realizamos a seleção aleatória das turmas a serem convidadas para participarem do estudo. Caso algum estudante menor de idade tenha expressado interesse em participar voluntariamente da pesquisa, solicitamos a autorização dos pais ou responsáveis, por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE, bem como a assinatura do Termo de Assentimento.
A coleta de dados foi realizada de modo coletivo, numa sala apropriada que foi disponibilizada no colégio para tal finalidade. Foram formados pequenos grupos de alunos (5-7 participantes), para os quais foram distribuídos os instrumentos em uma determinada ordem. Ressaltamos que as respostas fornecidas foram escritas a lápis, a partir do preenchimento anônimo dos inventários e da escala. Instruções pertinentes foram dadas aos estudantes e os pesquisadores principais acompanharam todo o processo.
Análise de Dados
Os dados coletados foram armazenados em um banco de dados no SPSS e no Excel, e analisados no SPSS (v.24). Inicialmente, realizamos análises descritivas (frequências, porcentagens, médias e desvios-padrão) nas variáveis sociodemográficas do HBSC, nas variáveis relacionadas aos comportamentos autolesivos e nos escores do CDI, SCAS. Posteriormente, para testar as hipóteses, realizamos análises dos percentuais, qui-quadrado, consistência interna, diferença de médias (teste t de Student) e correlação de Pearson. Foi adotado um nível de significância de <0.05.
Resultados
A Tabela 1 apresenta a caracterização da amostra, por meio da análise descritiva dos dados sociodemográficos. A maioria dos estudantes são do sexo feminino (62,3%) (n=312), tem 15 anos de idade (61,9%) (n=310), matriculados no 1º ano do Ensino Médio (48,8%) (n=238), autodeclarados de cor parda (51,3%) (n=257), e residem em sua maioria com mãe, pai e irmãos.
Variáveis | F | % | |
---|---|---|---|
Idade | F | % | |
13 anos | 191 | 38,1 | |
15 anos | 310 | 61,9 | |
Sexo | F | % | |
Masculino | 189 | 37,7 | |
Feminino | 312 | 62,3 | |
Escolaridade | F | % | |
7o ano | 79 | 16,2 | |
Ensino Fundamental | 8o ano | 101 | 20,7 |
9° ano | 70 | 14,3 | |
Ensino Médio | 1° ano | 238 | 48,8 |
Cor ou Raça | F | θ/ο | |
Parda | 257 | 51,3 | |
Branca | 108 | 21,6 | |
Preta | 81 | 16,2 | |
Indígena | 23 | 4,6 | |
Amarela | 28 | 5,6 | |
Mora com | F | % | |
Mãe | 443 | 88,4 | |
Pai | 256 | 51,1 | |
Madrasta | 20 | 4 | |
Padrasto | 69 | 13,8 | |
Avó | 125 | 25 | |
Avô | 59 | 11,8 | |
Abrigo/Acolhimento | 1 | 0,2 | |
Outros | 44 | 8,8 | |
Irmãos | 272 | 54,5 | |
Irmãs | 255 | 51,1 |
Dos 501 participantes da pesquisa, um total de 155 (31,3%) relataram comportamentos autolesivos nos últimos doze meses. A Tabela 2 apresenta a frequência de sentimentos relatados ao praticar a autolesão. Tristeza, desespero, inquietação e nervosismo foram os sentimentos mais associados à prática de comportamentos autolesivos.
Como você estava se sentindo quando se cortou? | F | % |
---|---|---|
Triste | 108 | 21,6 |
Cansado | 48 | 9,6 |
Desiludido | 37 | 7,4 |
Bravo | 53 | 10,6 |
Nervoso | 61 | 12,2 |
Desesperado | 57 | 11,4 |
Inquieto | 54 | 10 |
Para as escalas utilizadas no estudo, foi verificada a consistência interna por meio do Alfa de Cronbach. Tanto o CDI (α = 0,912) quanto a SCAS (α = 0,883) apresentaram alto índice de confiabilidade. Esses resultados indicam boa precisão dos instrumentos para avaliação dos construtos nesta amostra.
A Tabela 3 apresenta o teste qui-quadrado que foi empregado para averiguar a existência de associação entre comportamentos autolesivos e idade, e comportamentos autolesivos e sexo. O total de adolescentes que reportaram ter se lesionado nos últimos doze meses foi de 31,3% (155). O resultado indica diferença estatisticamente significativa para comportamentos autolesivos entre meninos e meninas (X2 = 12,1; p < 0,01) e ausência de diferença significativa para comportamentos autolesivos entre 13 anos e 15 anos de idade (X2 = 3,65; p > 0,05). Análises de razão de chance demonstraram que adolescentes do sexo feminino possuem 2,26 vezes mais chance de engajar em práticas autolesivas quando comparadas aos do sexo masculino (Allen, 2017).
Comport amentos autolesivos | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Não | Sim | Total | X2 | gl | ||||
N | % | N | % | N | ||||
Sexo | Masculino | 147 | 29,7 | 42 | 8,5 | 189 | 12,1 | 1 |
Feminino | 193 | 39 | 113 | 22,8 | 306 | |||
Idade | 13 anos | 120 | 24,2 | 67 | 13,5 | 187 | 3,65 | 1 |
15 anos | 220 | 44,4 | 88 | 17,8 | 308 |
A Tabela 4 apresenta os resultados das análises de correlação de Pearson entre comportamento autolesivo, os escores obtidos no CDI, os escores obtidos no SCAS e os escores de itens de percepção de suporte familiar. Devido ao fato da variável de comportamento autolesivo ser dicotômica, foi utilizada a correlação ponto-bisserial ajustada a partir do coeficiente de correlação de Pearson. Todas as variáveis se correlacionaram significativamente (p < 0,05 e p < 0,01).
O teste r-to-z de transformação de Fisher demonstrou que o comportamento autolesivo se associa mais fortemente aos escores do CDI (r = 0, 246, p < 0,01) do que aos escores do SCAS (r = 0,134, p < 0,01) (z = - 2.495, p < 0,01). Igualmente, a percepção de suporte familiar se associa mais fortemente aos escores do CDI (r = - 0,400, p < 0,01) do que aos escores do SCAS (r = - 0,132, p < 0,01) (z = 6.157, p < 0,01).
Percepção Suporte Familiar | CDI | SCAS | Comportamento Autolesivo |
|
---|---|---|---|---|
Percepção | - | |||
Suporte Familiar CDI |
- 0,400** | - | ||
SCAS | - 0,132** | 0,473** | - | |
Comportamento Autolesivo |
- 0,113“ | 0,246** | 0,134** | - |
Nota:
* = p < 0,05;
** = p < 0,01.
Foram realizados três testes t de student para amostras independentes com o objetivo de investigar em que medida os níveis de percepção de suporte familiar, sintomas depressivos e sintomas ansiosos eram diferentes entre aqueles que se autolesionavam e aqueles que não se autolesionavam. A Tabela 5 apresenta um resumo destas análises. Os resultados apontam que os jovens que se autolesionavam apresentam maiores índices de depressão (M = 17,7; DP = 10,5; EP = 0,84) (t(490) = -6,1, p < 0,01) com tamanho de efeito médio (d de Cohen = 0,59); maiores índices de ansiedade (M = 52,1; DP = 16,5; EP = 1,35) (t(487) = -2,64, p < 0,01) com tamanho de efeito pequeno (d de Cohen = 0,26); e percepção de suporte familiar menor (M = 17,5; DP = 8; EP = 0,64) (t(485) = 2,37, p < 0,05) com tamanho de efeito pequeno (d de Cohen = 0,23) (Cohen, 1992).
Escores | Estatísticas do teste t | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Autolesão | M | DP | t | GL | Valor-p | Diferença de Média | IC da Diferença de Média (95%) |
||
Limite inferior |
Limite Superior |
||||||||
Sim | 17,7 | 10,5 | |||||||
Escore total CDI | Não | 12,1 | 8,7 | -6,1 | 490 | 0,008 | -5,52 | -7,3 | -3,74 |
Escore total | 5im | 52,1 | 16,5 | ||||||
SCAS | Não | 47,5 | 18 | -2,64 | 487 | 0,001 | -4,55 | -7,9 | -1,17 |
Percepção | Sim | 17,5 | 8 | 2,37 | 485 | 0,018 | 1,84 | 0,31 | 3,36 |
Suporte Familiar | Não | 19,3 | 7,9 |
Discussão
A maneira como aprendemos a lidar com as nossas emoções possui ampla relação com a maneira como nos comportamos. Assim como comportamentos de busca por refúgio ou comida perante situações difíceis podem ser uma forma de regular as emoções, a autolesão observada em adolescentes também pode ser uma estratégia aprendida para diminuir alguma emoção desconfortável (Linehan, 2018). No entanto, é uma estratégia disfuncional associada com variáveis negativas de saúde mental adolescente. Neste estudo buscamos averiguar a relação entre sintomas ansiosos e depressivos, a percepção de suporte familiar e a frequência dos comportamentos autolesivos em adolescentes de 13 e 15 anos da cidade do Recife-PE.
Os resultados indicaram que 31,3% (n=155) dos adolescentes relataram ter se autolesionado nos últimos doze meses. Esses resultados corroboram a revisão sistemática internacional realizada por Moreira et al. (2020) que indicou a prevalência do fenômeno variando entre 10% e 50%. Em relação a dados brasileiros, um dos estudos deste projeto multicêntrico realizado em Rondônia acusou que 23% dos adolescentes relataram ter se autolesionado pelo menos uma vez nos últimos 12 meses (Oliveira et al., 2020). Comparativamente, há uma diferença de 8,1% entre os resultados, contudo, ambos expõem porcentagens expressivas de comportamentos autolesivos na população adolescente.
Em relação às variáveis sociodemográficas de sexo e idade, as hipóteses propostas foram parcialmente confirmadas. Adolescentes de 15 anos de idade não possuíram maior ou menor probabilidade de se autolesionar do que adolescentes de 13 anos. A ausência desta diferença em relação à idade pode ter ocorrido devido ao tamanho da amostra. Para que a relação entre comportamentos autolesivos e idade seja mais bem analisada, futuramente, uma amostra maior e talvez proveniente de outros locais pudesse trazer resultados mais elucidativos.
Em contrapartida, as meninas confirmaram engajamento a práticas autolesivas mais frequentemente do que os meninos, apresentando 2,26 vezes mais chance de ter se autolesionado nos últimos 12 meses. Esse resultado é convergente com alguns estudos ao apontar o sexo feminino como fator de risco para a autolesão (Andrews et al., 2014; Moreira et al., 2020), mas diverge de outros estudos (Oliveira et al., 2020). A diferença em relação a associação com o sexo e comportamentos autolesivos ainda não é clara. Os resultados do sexo masculino podem significar menor sofrimento psicológico em relação aos sintomas avaliados, e podem indicar diferenças culturais, relativas a papéis de gênero e mesmo questões em relação ao tamanho amostral.
Apesar da literatura não conseguir definir as causas do maior sofrimento feminino observado para algumas demandas psicológicas, em geral, os homens estão menos dispostos a demonstrar vulnerabilidade no que tange à sua saúde mental ou física (Goubet & Chrysikou, 2019). As mulheres, no entanto, são estimuladas desde cedo a procurar ajuda e a agir preventivamente (Kendler & Gardner, 2014). Entretanto, não está claro se essa diferença é influenciada por disparidades biológicas entre os sexos ou derivada exclusivamente dos históricos de aprendizado. Mesmo assim, perante essa assimetria de casos reportados entre os sexos, os profissionais de saúde podem desenvolver procedimentos de atendimento específicos.
Os resultados também apontaram que se sentir triste, desesperado, inquieto e nervoso foram os sentimentos mais associados à prática de comportamentos autolesivos. Esse dado está de acordo com a revisão integrativa realizada por Moreira et al. (2020), uma vez que salienta como a autolesão em adolescentes está majoritariamente associada à função de reforço negativo. Todavia, o HBSC não indaga sobre possíveis sentimentos associados ao reforço positivo, como por exemplo ganhar atenção dos pares. Desta maneira, comparações estatísticas mais aprofundadas entre os dois tipos de reforços e sua relação com o comportamento autolesivo não foram possíveis, mas estudos futuros poderiam explorar esta função e sua relação com a sintomatologia depressiva e ansiosa.
Esse resultado também corrobora a ideia de que o comportamento autolesivo decorre da incapacidade do indivíduo de lidar com fortes emoções, recorrendo a comportamentos desadaptativos (Linehan, 2018). Nesse sentido, os profissionais de saúde devem estar atentos e capacitados para ajudar os adolescentes que se autolesionam, facilitando o desenvolvimento de habilidades de regulação emocional e propiciando um maior repertório adaptativo de coping.
Nossos dados evidenciam que a prática de comportamentos autolesivos se correlacionou positivamente com a percepção de sintomas depressivos e ansiosos. A comparação de médias entre percepção de sintomas depressivos e ansiosos para a prática da autolesão reforçou os achados da correlação, indicando que os adolescentes que se autolesionaram tiveram escores médios significativamente maiores de ansiedade e depressão do que os que não se autolesionaram. Tal constatação é congruente com o corpo científico atual (Glenn, 2013; Grolli et al., 2017).
Devemos ressaltar que a magnitude da correlação da prática de comportamento autolesivo com sintomas depressivos foi mais forte do que a magnitude da correlação da prática de comportamento autolesivo com sintomas ansiosos. Concomitantemente, o maior tamanho de efeito encontrado nas análises de diferença de média foi nos níveis de depressão entre os adolescentes que haviam se autolesionado nos últimos 12 meses e aqueles que não haviam se autolesionado nos últimos 12 meses. Tais achados explicitam uma relação mais forte dos comportamentos autolesivos com a depressão do que com a ansiedade.
No que tange à percepção de suporte familiar, as análises apontaram correlações significativas com a prática de comportamentos autolesivos e com a percepção de sintomas ansiosos/depressivos. Todas as correlações foram negativas, ou seja, quanto maior a percepção de suporte familiar, menor os escores da percepção de sintomas de ansiedade/ depressão e menor a prática de comportamentos autolesivos. As análises da comparação de médias entre a prática de autolesão e percepção de suporte familiar, acresce aos resultados da correlação ao indicar que adolescentes que não se autolesionam têm escores médios significativamente maiores de percepção de suporte familiar do que os que se autolesionam.
A relação entre suporte familiar, ansiedade, depressão e comportamentos autolesivos já é bem documentada na literatura científica (Baetens et al., 2015; Moreira et al., 2020). Assim, nossos achados enfatizam a importância de um vínculo familiar validante, na medida em que as relações familiares saudáveis funcionam como fator de proteção para o surgimento de psicopatologias, pois estimulam um aumento na capacidade de coping do adolescente, oferecem modelos de troca baseados na confiança e instauram uma rede de apoio que pode ser acionada perante os desafios inerentes à adolescência, como nas condições aqui avaliadas (Claes et al., 2015; Linehan, 2018; Moreira et al., 2020).
Considerações Finais
O objetivo principal deste estudo foi investigar a relação entre comportamentos autolesivos, percepção de suporte familiar e sintomas ansiosos e depressivos em adolescentes da rede estadual de ensino do Recife, assim como estimar a prevalência do fenômeno. Também foram investigadas variáveis sociodemográficas que perpassam o fenômeno, analisando possíveis interações entre o sexo e idade na prática dos comportamentos autolesivos.
A partir dos resultados apresentados, foi possível confirmar algumas hipóteses, dado que foi encontrada uma associação significativa entre as variáveis estudadas e uma diferença nos níveis de depressão, ansiedade e suporte familiar da amostra, que parecem reverberar na prática de autolesão. O sentimento mais frequentemente associado à prática de autolesão foi a tristeza, que parece concordar com a associação entre sintomas depressivos e esse tipo de comportamentos de risco. Dentre as condições sociodemográficas, pertencer ao sexo feminino foi uma variável significativa de risco para a prática de autolesão, já a idade não demonstrou interação significativa com os comportamentos autolesivos.
Perante o exposto, é plausível a construção de diretrizes que favoreçam estratégias de prevenção aos comportamentos autolesivos, à ansiedade e à depressão. Essas estratégias devem possibilitar o aprofundamento dos vínculos e relações familiares, além de considerar o contexto estressor, ansiogênico e depressivo ao qual esses adolescentes podem estar expostos.
Uma vez que o suporte social e familiar é indispensável para a promoção da saúde mental e na redução de comportamentos de riscos, sugerimos o desenvolvimento de intervenções em grupo com o objetivo de melhorar as relações interpessoais como medidas preventivas. A escola também pode ser um espaço propício para práticas psicoeducativas sobre comportamentos de risco, ocupando o papel de mediadora da relação aluno-familiares ao sanar dúvidas e orientar quanto a possíveis caminhos na hora de lidar com adolescentes que se autolesionam.
Em suma, os resultados foram convergentes com a literatura, corroborando as propostas interventivas sugeridas. Entretanto, o estudo possui algumas limitações, principalmente no que diz respeito às variáveis coletadas. Por se tratar de um protocolo quantitativo fechado, o HBSC deixa de indagar sobre possíveis nuances do comportamento autolesivo, como sentimentos associados ao reforço positivo, diferentes tipos de autolesão, e a frequência dos comportamentos autolesivos dentro de determinado período. No tocante às análises sociodemográficas, a amostra ser delimitada unicamente em duas faixas etárias também é um fator limitante.
Apesar disso, as contribuições teóricas e práticas que podem surgir desse estudo são relevantes. De conhecimento dos autores, este é o primeiro estudo quantitativo, com uma amostra representativa estratificada, que busca investigar a prevalência dos comportamentos autolesivos e sua relação com depressão, ansiedade e suporte familiar em adolescentes pernambucanos. Por este estudo estar inserido em uma pesquisa nacional, também evidenciamos o potencial do HBSC enquanto instrumento de rastreio dos comportamentos de saúde em adolescentes. Conclui-se que estes resultados apontam para recomendações para os profissionais tanto na área da intervenção clínica como na prevenção, que podem ser levadas em consideração a nível das políticas públicas com foco na juventude.