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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2023   03--2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.77708 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

A Produção do Cuidado em um Contexto Formativo com Visitadoras do Programa Primeira Infância Melhor

The Production of Care in a Training Course Context with Visitors of the Programa Primeira Infância Melhor

La Producción de Cuidado en un Contexto de Formación con Visitadoras del Primeira Infância Melhor

Alíssia Gressler Dornelles* 

Psicóloga, Mestra pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora da Universidade de Santa Cruz do Sul.


http://orcid.org/0000-0002-9182-6945

Andrea Gabriela Ferrari** 

Professora do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura e do Instituto de Psicologia da UFRGS. Co-coordenadora do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Infâncias.


http://orcid.org/0000-0002-4262-3033

Kellen Evaldt Arrosi*** 

Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos em Psicanálise e Infâncias.


http://orcid.org/0000-0001-9889-5807

*Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Santa Cruz do Sul, RS, Brasil

**Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil

***Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil


RESUMO

A partir de uma experiência de encontros de formação com visitadoras do Programa Primeira Infância Melhor, este trabalho se propõe a refletir sobre a inserção da psicanálise nas políticas públicas. Foram utilizadas vinhetas dos encontros e de entrevistas individuais com as visitadoras para pensar na importância de espaços onde a circulação da palavra e, com ela, ressignificações sobre o trabalho realizado nos territórios, seja possível. Ganham destaque três elementos que se articulam e produzem reverberações no contexto de trabalho com o Primeira Infância Melhor: as bases legais e normativas da política pública, as famílias e crianças visitadas e o sujeito-visitador. Pensa-se que esses três aspectos, quando trazidos à tona pelo processo de enunciação em um espaço de formação, geram a circulação de lugares e posições discursivas. Tais movimentações, por sua vez, contribuem para a sustentação de uma prática pautada na produção de cuidado no contexto das políticas públicas de saúde.

Palavras-chave: psicanálise; políticas públicas; dispositivos clínicos; formação continuada; cuidado.

ABSTRACT

Based on the experience of training meetings with visitors of the Programa Primeira Infância Melhor (Better Early Childhood Program), this work aims to discuss the presence of psychoanalysis on public policies. Small excerpts from the meetings and personal interviews with the visitors have been taken to think about the importance of spaces where the circulation of the word take place, as well as to reframe the work done in the territories. We highlight here three elements that articulate and echo the context of work at Programa Primeira Infância Melhor: the legal and normative basis of public policy, the families and children visited, and the subject-visitor. We believe that these three aspects when brought to light by the process of enunciation in a training space build up the circulation of places and discursive positions. Therefore, such movements lead towards keeping a practice guided by the production of care in the context of public health policies.

Keywords: psychoanalysis; public policy; clinical apparatus; continuous training; care.

RESUMEN

Este trabajo se propone pensar a respecto de la inserción del psicoanálisis en las políticas públicas a partir de una experiencia de encuentros de formación con visitadoras del Programa Primeira Infância Melhor. Utilizamos fragmentos de reuniones y entrevistas individuales con las visitadoras para pensar sobre la importancia de espacios de circulación de palabras y, a partir de ella, posibilidades de resignificar el trabajo realizado en los territorios. Se destaca la articulación de tres elementos que producen reverberaciones en el contexto de trabajo en el Primeira Infância Melhor: las bases legales y normativas de las políticas públicas, las familias y los niños visitados, y el sujeto-visitador. Pensamos que los tres aspectos, cuando son planteados por el proceso de enunciación en un espacio de formación, generan una circulación de lugares y posiciones discursivas. Estos movimientos, por su turno, contribuyen para sostener una práctica pautada en la producción de cuidado en el contexto de las políticas públicas de salud.

Palabras clave: psicoanálisis; políticas públicas; dispositivos clínicos; formación continua; cuidado.

O mundo

Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou.

Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.

- O mundo é isso - revelou - Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.

Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo. (Galeano, 2002, p. 11)

Galeano (2002) ajuda-nos na missão de anunciar as questões que permeiam este escrito. O mundo é esse “mar de fogueirinhas”, descobre o homem da aldeia de Neguá. Interessante que, através do jogo de palavras, água e fogo achegam-se, engenham uma relação - um mar de fogueirinhas. Coexistindo no plano da linguagem, vão juntos - e junto com muitos outros elementos - compondo o mundo. Um não anula o outro, um não dissolve o outro. O que poderia ser dicotomia devastadora, arma-se numa composição feita de diferenças. Afinal, “não existem duas fogueiras iguais”, tampouco um mar que se nivele a outro, ainda que suas fronteiras sejam, por vezes, imprecisas.

Neste trabalho, pretendemos refletir sobre a inserção da psicanálise nas políticas públicas de saúde a partir de uma experiência de trabalho na 13ª Coordenadoria Regional de Saúde, órgão descentralizado da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (SES/RS), responsável pela coordenação técnica do Programa Primeira Infância Melhor (PIM). Pensaremos nos entrelaçamentos dessas fogueirinhas especificamente no que concerne aos processos formativos com as visitadoras do programa. Fogueirinhas que são gente; e também fogueirinhas cuja materialidade não se constitui de carne e osso mas, como boas construções humanas, forjam sua existência no campo da linguagem, enquanto realidade discursiva. Elementos que ganharam luminosidade e aqueceram nosso caminho investigativo.

Um dos pilares que sustentaram o desejo por contemplar o horizonte dos processos de formação de trabalhadores de saúde, atravessado pela ótica psicanalítica, foi o entendimento de que todo ato de cuidado pode ser compreendido enquanto um ato clínico. Isto quer dizer que a forma como nos colocamos a escutar e desde onde nos posicionamos para tal faz toda a diferença na lógica de cuidado que buscamos efetuar, inclusive e principalmente no contexto das políticas públicas. Nesta direção, Ribeiro (2009) aponta para o desafio que temos ao articular o plano mais restrito da clínica com a ordem das relações políticas no laço social. O fazer da clínica comporta, assim, uma dimensão ético-política na medida em que pretende a constituição e a reinvenção de modos singulares de subjetivação.

No trabalho com instituições, encontramos diversos impasses. Talvez o mais inquietante deles possa ser descrito como o desencontro entre as letras das políticas públicas - através das bases legais, normativas e diretrizes - e sua efetivação no cotidiano dos serviços, isto é, o modo como elas são atualizadas no estalar da vida no território. Porém, tais impasses podem igualmente remeter àquilo que é possível, em um contraponto ao ideal. E podem, ainda, apontar para a dimensão da potência - de criação, (re)invenção - da força e vigor capazes de inscrever outra perspectiva na tela já rabiscada. Sendo assim, um dos desafios que se coloca insistentemente no cotidiano de trabalho diz respeito à necessidade de instaurar uma perspectiva de produção de cuidado no espaço por vezes enrijecido da gestão das políticas públicas.

Em meio a tantos papéis - legislações, processos, relatórios, pareceres técnicos - o trabalho que pretendemos esmiuçar neste escrito lançou-se em um campo de experimentação, buscando tramar um lugar desde onde operar no trabalho de gestão em saúde e pautado no compromisso ético de inventar, com esses sujeitos-trabalhadores, planos de encontro nos desencontros. Para isso, foram sistematizados encontros de formação com as visitadoras do Programa Primeira Infância Melhor (PIM), sustentando uma perspectiva de apoio e cuidado. Teve-se como intuito abrir brechas para a escuta, a circulação da palavra, a possibilidade de construir sentidos ao fazer cotidiano e, enfim, para o reconhecimento da potência de seus dizeres. Afinal, o que podem os/as visitadores/as do PIM dizer sobre o seu trabalho, sobre o encontro com as famílias?

Os elementos-fogueirinhas de Galeano (2002) serviram-nos de metáfora para pensar em três aspectos que reluziam na cena dos processos formativos das visitadoras do PIM. Um primeiro elemento refere-se às bases legais e normativas que embasam a formulação do PIM, ou seja, à dimensão da política pública no patamar da letra da lei, cujas prescrições orientam sobre os modos de operacionalizar o projeto da política na realidade dos serviços. Vislumbramos também a dimensão das famílias, população a quem se endereça o fazer do PIM e as ações/intervenções não só do/a visitador/a, mas do Estado, das políticas públicas como um todo. Estes sujeitos-usuários refletem diversos modos de existir no mundo e de produzir sentidos ao que lhes acontece, apresentando-nos a vida que transborda dos limites do papel e que não segue os passos previstos pelas normativas. E, por fim, a dimensão do sujeito-visitador 1, este que atualiza na prática do cotidiano o trabalho proposto pela lei, que conduz as ações no território de forma singular, mas buscando guiar-se pelas diretrizes da política pública. Descortinamos estes elementos como compondo, cada um a seu modo, com suas cores e intensidades, o mar de fogueirinhas alumiado no nosso campo de experiência.

O Programa Primeira Infância Melhor (PIM)

O Primeira Infância Melhor (PIM) é um programa formulado pelo Governo Estadual do Rio Grande do Sul em 2003, que foi regulamentado como política pública através da Lei Estadual n. 12.544 (2006). Trata-se de uma política de promoção integral do desenvolvimento infantil, de caráter intersetorial, na medida em que se compõe da articulação entre saúde, educação e assistência social, tanto na esfera estadual como municipal.

O programa nasce como uma ação estratégica com expectativas voltadas à redução da mortalidade infantil no Estado, partindo também do pressuposto de que, se mais crianças sobrevivem neste momento inicial decisivo da vida, é preciso cuidar do seu desenvolvimento por vir (Schneider & Ramires, 2007). O principal objetivo do PIM consiste em orientar as famílias em situações de risco e vulnerabilidade social, a partir de sua cultura e de suas experiências, para que promovam o desenvolvimento integral de suas crianças, desde a gestação até os seis anos de idade.

Os profissionais que realizam diretamente o atendimento das famílias no território são os/as visitadores/as, dos/as quais se exige a formação de ensino médio completo, acrescida de capacitação específica sobre desenvolvimento infantil e metodologia do programa (Lei n. 12.544, 2006). O acompanhamento é feito através de visitas domiciliares semanais, visando ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, especialmente do laço entre a criança e seus cuidadores, com o intuito de potencializar os recursos existentes na esfera familiar para que esta seja protagonista em cuidar e educar suas crianças (Schneider & Ramires, 2007).

Apesar do/a visitador/a não precisar residir na área que atua, não deixa de possuir um vínculo estreito com as famílias e com o território, sendo conhecedor/a das sutilezas e especificidades que perpassam os arranjos de vida daquela comunidade. As situações difíceis enfrentadas pelas famílias abarcam uma complexidade que ultrapassa os arranjos individuais e/ou familiares, porquanto estejam relacionadas a um contexto histórico, econômico, político e social mais amplo. Logo, essas pessoas merecem um espaço de escuta e de acolhimento que leve em conta as suas particularidades, suas histórias e experiências, dificuldades e, sobretudo, suas potencialidades.

Não nos passa despercebido que ao/à profissional que atua diretamente no acompanhamento das famílias seja conferido o nome de visitador/a. Visitar implica adentrar o espaço do outro, seja a residência ou a comunidade. A visita domiciliar, enquanto estratégia de intervenção, busca promover a aproximação dos serviços com as pessoas atendidas, e nesse sentido pode favorecer - ou não - o reconhecimento das características peculiares de cada contexto, levando-as em consideração na elaboração de propostas de intervenção singulares, pertinentes a cada realidade. Assim, tomar a visita domiciliar como norte de trabalho parece-nos uma escolha que implica responsabilidade. Por isso, é essencial que as ações no PIM estejam pautadas no vínculo que o/a visitador/a constrói com a família, na acolhida, operando numa perspectiva de cuidado que dê lugar de sujeito a estas pessoas, as quais são frequentemente julgadas ou esquecidas e vivem às margens da conformação social hegemônica. Nesse ponto, entendemos que o protagonismo da família na organização de seus modos de viver e cuidar de suas crianças torna-se possível se esses sujeitos puderem construir um saber singular a partir de suas histórias de vida, vivências e relações constituídas no laço coletivo.

A partir destas considerações acerca da atuação dos/as visitadores/as do PIM, entendemos ser fundamental atentar às nuances de seus processos de formação, os quais têm o desafio de levar em conta justamente a complexidade das questões em jogo na prática de atendimento de famílias e crianças no território. A troca de experiências, a discussão de casos em equipe, os espaços de fala, questionamento e reflexão se fazem essenciais no cotidiano de trabalho do/a visitador/a e precisam ser construídos pela própria equipe e também na articulação intersetorial com os demais serviços da rede.

Metodologia

A Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde destaca a inseparabilidade entre os modos de gerir e os modos de cuidar, de forma que ambos se imbricam mutuamente. Isto quer dizer que as decisões da gestão interferem diretamente na atenção à saúde, e que as práticas de cuidado produzidas no território nos relançam à alçada da gestão das políticas de saúde (Ministério da Saúde [MS], 2013). A forma como organizamos o trabalho incide, portanto, sobre a forma como o desempenhamos na prática diária, pois gerir o cuidado é também produzir cuidado.

Delgado (2010) sublinha que toda norma tende a engessar os acontecimentos, tornando-se limitante de alguma maneira. Com isso, nossa tarefa na gestão da política pública “é trafegar entre a necessária generalização e normatização e a escuta sensível das peculiaridades das experiências subjetivas” (p. 35). Nesse passo, Onocko-Campos (2012) propõe não dissociarmos a dimensão clínica da forma como organizamos o trabalho, pois a gestão está sempre entrelaçada às questões subjetivas, configurando-se como importante “produtora de passagens, para dar cabida a tanta intensidade como há no trabalho em saúde” (p. 89). A autora atenta-nos, ainda, para o plano comum em que estão envolvidos igualmente os usuários dos serviços e também os trabalhadores, todos estes que, de formas diversas, são sujeitos tentando diariamente inventar, experimentar novas estratégias de viver. É nesse sentido que a tessitura produzida na interface saúde coletiva e psicanálise permite-nos enlaçar o Sistema Único de Saúde (SUS) com o que é único em cada sujeito: sua subjetividade tramada no laço com os outros, nos seus percursos singulares pelo território, no inusitado do cotidiano.

No contexto de nossa experiência com os processos de gestão do PIM na 13ª Coordenadoria Regional de Saúde, órgão descentralizado da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (SES/RS), e refletindo sobre as principais dificuldades e demandas trazidas pelas equipes, buscamos circunscrever aquela que parecia ocupar lugar central nas inquietações dos/as visitadores/as, mais especialmente nas ponderações de uma equipe de visitadoras que vínhamos acompanhando em um dos municípios da região. Poderíamos formulá-la através da interrogação sobre como trabalhar com os bebês no PIM. Diante disso, dedicamo-nos a pensar em uma proposta de formação com estas visitadoras 2, algo que levasse em conta a especificidade do objeto em questão: o acompanhamento dos bebês, esses pequenos que se encontram em um tempo primordial de constituição psíquica, e suas famílias que, não raras vezes, vivem em condições de desigualdade social e chegam a experienciar situações e contextos de vulnerabilidade.

Compomos uma proposta de encontros, ainda que não conseguíssemos dimensionar em palavras, ao mesmo tempo, a simplicidade e a potência que entrevíamos nesse termo. Segundo Onocko-Campos (2012), o encontro é um movimento de pôr-se em contato, mas sempre com resultado incerto. Nele estão em cena corpos e afetividades que produzem afetações. Propositalmente, mantemos a categoria de encontro ampla e pouco definida para que os arranjos por vir pudessem nos surpreender.

Lançamo-nos à experimentação de um percurso de formação, apostando na potência dos espaços de escuta destas profissionais para que elas, por sua vez, pudessem sustentar um olhar e uma escuta às famílias e crianças de que se ocupam no seu trabalho. Em suma, uma formação ancorada nos enlaces de uma intervenção clínica, ética e política.

Realizamos, inicialmente, uma entrevista individual com cada uma das cinco visitadoras e com a monitora do PIM 3. Logo após as entrevistas iniciais, realizamos dois dias de visitas nas localidades atendidas pelas visitadoras, onde conhecemos sete famílias com bebês de zero a 18 meses. A partir do encontro com cada família, foi possível perceber as maneiras como cada uma se organiza e compõe o cuidado com as crianças, carregando os traços característicos da cultura daquela comunidade.

Os encontros de formação aconteceram ao longo de sete meses, porém sem periodicidade fixada de antemão, já que tínhamos de ir organizando os dias e horários a cada novo encontro. Os seis encontros de formação foram realizados nas dependências da Secretaria Municipal de Saúde, na sala de reuniões e na sala do PIM, e puderam ser gravados em áudio, conforme autorização das participantes.

Buscando seguir as recomendações freudianas, a atenção flutuante foi tomada como ferramenta essencial de trabalho, sendo possível recolher os elementos que, a partir dela, produziam ecos. Foram priorizados os registros de escuta, sem se deter em fazer anotações, deixando-se fisgar pelo convite à escuta das narrativas que iam sendo compostas pelas visitadoras. Para registrar as vivências e afetações ocasionadas por tantos encontros e desencontros, construiu-se um diário de campo.

Pensamos que o escrever opera também como testemunho de uma experiência e possibilita-nos uma reflexão acerca do que pode estar ali implicado como enigma. Assim, como catadores de minúcias (Gurski & Pereira) 4, fizemos nosso corte e costura procurando encontrar o tom da enunciação para transmitir ao leitor o dizer das visitadoras, sem tentar ajustá-lo aos ditos científicos. Buscamos deslocar tais narrativas do campo de saber instituído, considerando-as, assim, em sua potência de abertura.

A partir dessa experiência, entendemos que no cenário do cuidado em saúde as dimensões da política pública no patamar da letra da lei, das famílias visitadas e do sujeito-visitador se encontram e se imbricam mutuamente. E de uma esfera a outra operam-se passagens, movimentos que retiram os elementos de posições estáticas, provocando certa desacomodação, o que os reposicionam no jogo da produção do cuidado.

Das Normativas da Política ao Fazer no Território: O/a Visitador/a

Em Totem e tabu, Freud (1913/1996) lança seu olhar aos dilemas do campo social, desafiando-se na produção de uma leitura sobre as origens do processo cultural da humanidade. Do mito de origem a respeito do assassinato do pai da horda primitiva derivam algumas consequências. Uma delas refere-se à inscrição do desamparo fundamental na vida em sociedade, pois, para viver sem o pai tirânico, todos precisam abdicar juntos do amparo total que ele oferecia com sua posição absoluta. Com isso, tem-se a necessária construção de um laço com o outro e de um trabalho continuado entre os irmãos, na medida em que precisam sustentar-se entre si, aceitando as restrições que se impõem e contando com a soma de suas potências individuais - ainda que esta soma seja não-toda, incompleta - em prol do coletivo.

Em suma, esse mito alude à origem mítica de uma Lei primordial que engendra o advento do universo humano, bem como sua conformação a partir de laços sociais, conforme Lacan (1953/1998) nos indica: “A Lei primordial, portanto, é aquela que, ao reger a aliança, superpõe o reino da cultura ao reino da natureza, entregue à lei do acasalamento. [...] Essa lei, portanto, faz-se conhecer suficientemente como idêntica a uma ordem de linguagem” (p. 278-279).

Hoyer (2010) traça um percurso detalhado a partir das obras de Freud e Lacan, articulando a noção de sujeito e de instituição. Segundo a autora, a Lei, então, como suporte dessa ordem simbólica - de linguagem - funda, a um só tempo, campo do sujeito e campo da cultura, o que nos leva a compreender que os arranjos pulsionais que operam ao nível do sujeito forjam-se também na organização dos coletivos.

As tramas institucionais - enquanto suporte do imperioso mandato de ordenamento do viver em comunidade - carregam a função de mediar as relações do sujeito com o Outro da linguagem e os outros semelhantes, interpondo balizadores para a pulsação da vida na ordem da cultura. Conforme Betts (2011), a instituição contempla uma rede simbólica articulada socialmente que circunscreve as bordas do real, produzindo um conjunto de significados compartilhados, os quais buscam recobrir esse real impossível de simbolizar. As instituições, assim, são concebidas como estruturas discursivas coletivas arranjadas no laço social sob distintas formas e finalidades, as quais produzem efeitos sobre o plano das ações e dos discursos engendrados nas práticas do cotidiano.

Pudemos vislumbrar este arranjo institucional em algumas de nossas primeiras conversas com as visitadoras, que pareciam “encarnar” em suas falas a voz e o tom dos preceitos desenhados pela metodologia do PIM. Na entrevista inicial, quando Fernanda explica o que faz um/a visitador/a, refere:

Ah, a gente vai lá orientar eles. Não é a gente que vai fazer, a gente orienta, a partir da cultura deles, né. Não pode mudar, né... A gente vai lá, leva as orientações pra mãe fazer, essas coisas assim... (Fernanda, Entrevista Inicial)

No mesmo passo, ao discorrer sobre as ações que costuma realizar com as famílias que têm bebês, a visitadora aponta na direção das atividades indicadas pelo Guia do PIM:

Ah, a gente faz atividades de colocar objetos coloridos na frente deles, porque tem umas mães que dizem que eles nem enxergam, né. Mas é claro que eles enxergam; a gente sempre tem o Guia junto pra mostrar ali, né... que tem que estar se movimentando, que tem conversar com o bebê... Esses dias, tinha um menininho que estava com cólica e não passava. Daí eu disse pra mãe “já pensou em fazer a massagem aquela, das perninhas?” Então, a gente mostra no livro ali pra elas, né. Daí essa mãe fez e disse que agora faz em casa, que ele não tá chorando mais tanto de cólica. Colocar de barriga pra baixo, fazer massagem... Todas essas coisas aí, a gente estimula eles a fazer, orienta eles (Fernanda, Entrevista Inicial).

Narrativas como essa, não raras na realidade do PIM, ressoam-nos certa colagem ao discurso institucional do programa, de forma que as visitadoras parecem por vezes reproduzir uma fala “pronta” que lhes foi ensinada, sem questioná-la ou mesmo estranhá-la. Este dito parece-lhes tão familiar que costumeiramente tropeçamos na repetição das mesmas palavras: orientar, orientações, estimular, atividade são palavras capturadas na dimensão do significado.

Contudo, também fomos encontrando uma movimentação no jogo das palavras que, aliadas ao posicionamento das visitadoras, desvelou-nos pequenos mas importantes deslocamentos discursivos, sinalizando certo descolamento do discurso institucional em direção à construção de um pensar que comporte também as suas marcas, sua experiência, seu saber. Uma cena figura-nos emblemática. Carolina conta sobre o início do acompanhamento de uma família do interior, em cuja primeira conversa irrompe o inusitado, bagunçando a conformação das normativas da política e persuadindo-a ao desviar da rota:

Todos sempre me recebem bem. Mas teve uma família, que fui fazer a primeira visita. Foram a monitora e a agente de saúde junto. O pai veio me conhecer, aí ele olhou e disse “tá, tudo bem, pode vir fazer a visita, só que na época do plantio do fumo, minha filha vai ir junto”. Nessa época, ela tinha uns sete meses, eu acho. “Minha filha vai ir junto pra lavoura porque não tem com quem deixar”. Aí eu disse pra ele “tudo bem, é a tua realidade, a tua situação, né. Eu não posso dizer que tu tem que deixar ela em casa...” Ele disse “eu sei que é errado”. Então, ela só não vai junto na época do veneno, porque daí vai só ele, e a mulher fica em casa. Mas na época do plantio, a guriazinha ia e ficava num canto, numa sombra, brincando. Naquele dia, ele me olhou bem firme assim e disse: “E se eu souber de denúncia, eu sei que foi vocês”. Aí eu disse pra ele: “eu sei que é a tua realidade, da minha parte não vai ter denúncia nenhuma”. Daí foi isso... Eu atendo eles ainda. Ela está com quatro anos agora. Agora, nesta época do plantio, a mãe pede pra eu ir no horário da tarde. Da uma até às duas horas da tarde é quando ela me espera. Depois ela vai fazer as coisas de galpão... Esse é um caso que marcou mais assim... (Carolina, Encontro 3).

Esses desvios nos permitem evidenciar um ponto de ruptura, uma lacuna entre a proposta ideal de generalização da política pública, do discurso institucional, e os desdobramentos do seu efetivo acontecer no território, o que indica de certa forma os desencontros próprios das relações e construções humanas, efeitos da linguagem. Logo, da proposição legal à implantação das diretrizes desenhadas pelas políticas tem-se um caminho a ser percorrido. Não há possibilidade de transposição direta de uma à outra, pois os processos de cuidado são engendrados pelo que se produz na peculiaridade do encontro entre os sujeitos-trabalhadores (aqui, as visitadoras do PIM) e os sujeitos-usuários (as pessoas e famílias atendidas).

Arma-se, então, uma operação de passagem - da letra da lei para o enredo vivo das relações - que provoca um rasgo e faz operar algo de uma perda, mostrando-nos o dilema intrínseco da política pública do qual nos fala Delgado (2010): a impossibilidade de abreviar o universo humano à norma padronizada. Se a passagem de uma esfera à outra não é retilínea, a psicanálise ajuda-nos a reconhecer as tramas institucionais na sua condição não-toda, porquanto já não comportam em si o absoluto da lei. Assim, ao conferir lugar ao sujeito do inconsciente e ao desejo nas cenas das políticas públicas, podemos recolocar em movimento o não-idêntico, o não-integrado, o não-dominado (Fernandes, 2013) que perpassa e integra toda ação e intervenção.

Das Práticas de Cuidado aos Modos de Viver: As Famílias

Se, como vimos, parece ser impossível a transposição direta das bases legais para o trabalho vivo no fazer da política pública, também observamos que as falas das visitadoras são capazes de desvelar os modos plurais e singulares de viver dos sujeitos. Elas narram os hábitos, os costumes, os modos de se organizar das famílias nos seus laços com a comunidade:

Tem uma família que eu visito, que a mulher cuida de crianças por dia. Se tem uma mãe, por exemplo, que vai pro fumo [lavoura] hoje, então ela fica com o filho e cuida. Ela cobra dez reais por dia para cuidar de cada criança, mas também aceita o pagamento em leite, ovos, o que tiver. Então vão várias crianças; vai criança de um aninho, de três aninhos, vai criança já de onze anos... Às vezes, eu chego lá e tem sete crianças na casa dela. E elas ficam bem, não choram. Porque são acostumadas assim, qualquer um pega, dá comida, tudo... Aí, passa a carroça pra pegar os pais dos pequenininhos, meu deus... Eles todos faceiros, não choram, dão “tchau, tchau”, e os pais vão de carroça. E os pequenos ficam, ficam bem (Juliana, Encontro 3).

Através de cenas como essa, as visitadoras nos permitem compreender que o encontro de cada sujeito-trabalhador com cada sujeito-usuário é balizado também por estilos diversos de ser e estar no mundo. Reconhecer a via de mão dupla que se estabelece na relação entre trabalhador e usuário se faz essencial na medida em que nos permite vislumbrar, para além da ação/intervenção finalística direcionada a um sujeito ou coletivo, as outras faces envolvidas na construção do cuidado no território.

Deparar-se com a singularidade das famílias inevitavelmente convoca as visitadoras a considerarem que os seus próprios modos de viver compõem as cenas de seu fazer no PIM, produzindo ressonâncias no encontro com os sujeitos que atendem. Nas formações, surgiram alguns questionamentos sustentados em concepções que tendem a normatizar as formas de existência e de relação no laço social. As visitadoras se perguntavam por que as famílias que se encontram em situação de pobreza comumente têm vários filhos, configuração que as leva a enfrentar maiores dificuldades para garantir o sustento de tantas crianças. Questionavam-se sobre o motivo pelo qual algumas mães, que passam por dificuldades financeiras, não querem levar as crianças para a creche, o que lhes possibilitaria arrumar um trabalho remunerado para melhorar a renda da família.

Entramos numa seara já conhecida, onde os modos de vida são regulados pelos preceitos de uma sociedade ocidental capitalista, conjuntura que gera, entre tantas outras consequências, uma série incalculável de desigualdades. O que foge a este padrão acaba por ser subjugado ao estatuto do erro, do equívoco, restando-lhe a condição de marginalidade em relação à norma. Buscou-se fomentar, em nossas conversas, outros elementos que tivessem potência para rasurar o alinhamento diminuto deste panorama de discursos instituídos que não raro fazem morada no terreno das políticas públicas.

Adotando esta perspectiva na condução do trabalho de formação, fomos percebendo que as visitadoras se surpreendem também com as mães que, por coragem ou por costume com a falta de opção, embarcam seus pequenos (de três, quatro anos) sozinhos no transporte escolar, onde viajam cerca de uma hora de ida e uma hora de volta, para bem de poderem frequentar a escola. Segundo elas, as mães “sabem” que eles vão bem, sabem quem pode repará-los no trajeto. Eles, os pequenos, também parecem “saber”, pois sentam tranquilos no ônibus e percorrem longas distâncias de estrada de chão, distraídos a olhar pela janela. Admiram-se também com o fato de as famílias da mesma comunidade ajudarem-se, compartilharem entre si tudo o que têm, ou melhor, “o pouco que têm” (sic), construindo, assim, uma rede de apoio onde dão espessura ao seu estilo de vida:

Às vezes eles têm, daqui a pouco eles não têm... É uma função [risos]. Mas eles são bem felizes da maneira deles. Apesar de ter tudo faltando, às vezes... A gente, seguidamente, reclama de alguma coisa da nossa vida, mas eles têm tudo faltando e são tão felizes... Eu cheguei lá na Amélia de tarde e vi todos eles comendo peixe; tinham ido pescar. Aí, era todo mundo da vila comendo peixe [risos]. Isso que é o legal deles, sabe. Eles dividem, eles compartilham. Não são assim, que nem a gente, que só quer as coisas pra si. Lá não... Pode ser que amanhã não tenha, mas se hoje tem, todo mundo come. Eles pensam assim: “Se nós não temos, nós vamos dar um jeito, mas hoje todo mundo come junto” (Thalita, Encontro 5).

O tom afável deste testemunho soa-nos como abertura a uma outra maneira de referir-se aos modos de viver das famílias. O mesmo ocorre quando abordam a questão da desorganização que encontram nas casas, buscando entender o porquê de tanta “bagunça” sem ser arrumada, organizada.

Eu lembro que na vez que eu entrei na casa, uma coisa que era muito caprichada eram umas prateleiras que ela tinha, onde ficavam todas as roupas empilhadinhas, dobradinhas... Isso era muito bonito de ver, sabe. Mas as outras coisas eram uma bagunça, uma sujeira. Uma coisa era organizada e as outras coisas, totalmente diferentes (Thalita, Encontro 3).

Mas não tem aquela situação de a gente mesmo dizer: “Não mexe no meu roupeiro que na minha bagunça, eu me entendo!” Não tem isso? [risos] Ainda que seja diferente, mas é nessa lógica, né... Às vezes, minha mãe vai lá em casa me ajudar, e ela tem a mania de arrumar as coisas do jeito que ela faz na casa dela. Aí, quando meu marido chega, ele pergunta se minha mãe foi lá. Eu digo que sim e ele diz “pois é, eu já vi!” E daí ele já coloca tudo no lugar de novo! [todas riem] (Juliana, Encontro 3).

Quando Juliana fala sobre a forma de organizar as coisas na sua própria casa, lança-nos para a dimensão do conflito de referenciais. Nesse sentido, os arranjos singulares engendrados pelas famílias para constituir modos de viver podem ser lidos a partir do mesmo prisma que os arranjos tecidos pelas visitadoras na composição de suas vidas, a saber, sob a ótica conflitiva e repleta de impasses que organiza o (con)viver entre os humanos.

É na passagem do encontro ideal para o possível que conseguimos legitimar as manifestações pulsantes do ex-sistir, as quais indicam o lugar do sujeito e também da fratura, do desconhecimento, do enigma que põe em marcha o trabalho do desejo. O pulsar da vida não se concilia com o imperativo da padronização e da generalização, não pode ser protocolado, pois diz do encontro de cada sujeito e comunidade com os meandros de sua história. Nesse sentido, pode realizar-se pela via da singularização (Fernandes, 2013).

Assim, conforme sublinha Merhy (2002), as tensões entre autonomia versus controle estão imbricadas no agir em saúde; é em meio a elas que se constroem as ações humanas nos espaços de produção de cuidado. A subjetividade, portanto, é tecida no laço social e experienciada pelos sujeitos em suas existências particulares. Compartilhando deste ponto de vista, pensamos que os fundamentos do campo psicanalítico vão ao encontro dessa leitura proposta pela saúde coletiva, uma vez que o sujeito do inconsciente, subvertendo a ordem da consciência, coloca em interrogação os paradigmas científicos e políticos defensores de uma suposta adequação dos sujeitos às normas. Nesse sentido, psicanálise e saúde coletiva confluem esforços para reanimar a necessidade de inventarmos outros caminhos possíveis aos trajetos errantes e sinuosos do viver.

O que Retorna como Efeito do Encontro: O Sujeito-visitador

Almeida e Aguiar (2017) apontam para a necessidade de articulação entre os âmbitos pessoal e profissional no contexto da formação, compreendendo-se aí a realidade do mundo do trabalho e a subjetividade do trabalhador. Em todo trabalho há uma determinada mobilização psíquica que nos convoca a “pensar os efeitos da implicação dos registros consciente e inconsciente na prática profissional, já que esta é afetada pela realidade psíquica singular do sujeito” (p. 92-93). Assim, entendemos que essas dimensões enlaçadas à cena do trabalho reverberam no cotidiano das instituições e dos profissionais que atuam na produção do cuidado em saúde.

Por entre tantas narrativas, nas brechas do discurso, irrompem as marcas do sujeito-visitador que se produz no entrelaçar de vários encontros: encontro com sua própria história, com as famílias, com o território, nos encontros de formação, nas entrevistas. Emergem, nesses diversos momentos, traços de sujeito que parecem nos projetar para a direção de questões basilares como, por exemplo, o significado da infância, reconhecendo não se tratar de algo dado, mas sim de uma construção social e cultural:

Ah, eu acho que a criança é uma caixinha de segredos... Todo dia ela aparece com uma coisinha diferente, sabe. A infância vai depender muito da realidade delas [crianças], né. Assim... Pra mim, infância pode ser brincar, de se esconder, de pintar; mas pra eles não, sabe... Então eu não sei o que é infância pra eles... Pra mim, infância é todo o tempo que tu tem de descobrir, de brincar, essas coisas de criança, sabe. Eu entendo a infância como aquela fase que tu descobre tudo. Agora não sei pra eles o que pode ser, o que eles vão dizer... A gente brinca ao falar “ah, minha infância era muito boa, a gente brincava de carrinho”. Mas será que os filhos da gente vão falar isso? Então, é muito relativo falar de infância, sabe... (Vera, Entrevista Inicial).

Em outros momentos, foi o (re)encontro com as dores da vida que produziu efeitos nas visitadoras. Através do seu dizer, algo retorna do campo do outro ao sujeito-visitador e lhe faz questão, mobilizando-o ao enlace com as questões trazidas em diversas situações sobre as quais, todos os dias, é convocado a se posicionar nas cenas de seu trabalho:

É... quando a gente vê uma pessoa que não está bem, que está ali chorando, na nossa frente, a gente também fica mal, porque tu acaba te envolvendo com aquelas famílias. Então, aquilo ali é uma cena pra ti também, né... E tem dias que tu também não está bem, né. Então, às vezes, quando eu não estou muito bem, naquele dia eu visito, de repente, quatro famílias, em vez de cinco ou seis. No outro dia, que eu estou melhor, eu recupero e atendo duas a mais. Porque daí vou estar com uma “bagagem” melhor, né... É a mesma coisa, se eu não estiver bem, ou se eu quiser sair, imagina! Vai chegar uma pessoa na tua casa, às vezes quando tu não está bem, tu pensa assim “ah, hoje eu não tô legal”, mas tu vai atender a pessoa, que nem eles fazem. Só que daqui a pouco tu não quer aquilo naquele dia, tu quer ter paz, ficar sozinho; naquele dia tu não está bem para aquilo. E a gente tem que entender a outra pessoa. De repente, ela não está sempre disponível para toda semana me receber, porque é uma abertura muito grande. (Thalita, Entrevista Final).

A visitadora consegue reconhecer o que lhe afeta no encontro com as famílias. Esse reconhecimento de que algo do outro a convoca parece-nos fundamental, pois evidencia uma fala do sujeito implicado subjetivamente com sua verdade (Almeida, 2012). Nessa medida, Thalita coloca-se na cena, pondera e reflete sobre o atravessamento de sua subjetividade e de suas questões na condução do trabalho. Aponta, de forma modesta e autêntica, suas fragilidades e, com isso, consegue dar lugar no discurso àquilo que se interpõe como limite. No mesmo passo, desdobra um viés de potência, dando mostras de sua capacidade de se reinventar, de engendrar artimanhas que lhe ajudem a, singularmente, produzir bordas para a condição de desamparo e mal-estar.

Considerações Finais

Esse percurso demonstrou como as experiências de vida, as relações, as produções do sujeito se enlaçam ao fazer do trabalhador. Ao tecer suas narrativas, o sujeito-visitador emerge entre as linhas do seu dizer, mais como efeito do que como origem (Fröhlich, 2009; Fröhlich & Moschen, 2012). Assim, engendra as condições de uma enunciação tramada pela cena inconsciente que guia seu desejo em relação ao seu ofício (Almeida, 2012).

Pensamos os elementos que se articulam no cenário de nossa experiência - normativas, sujeitos, fazeres, territórios - como cartas de baralho em um jogo, onde cada jogador tem a sua vez de jogar. A cada jogada, a carta lançada ressignifica, a posteriori, o valor e a posição das cartas já postas na mesa. Assim, cada rodada - cada novo encontro de elementos - movimenta o jogo e recoloca em questão a relação entre cartas, podendo inclusive mudar os rumos da partida a qualquer momento. Agora, nossos elementos-fogueirinhas, referenciados no início deste escrito, são as cartas do baralho que entram em jogo na cena da produção do cuidado.

Nessa analogia, interessa-nos não o valor de jogo de cada carta, nem o resultado final da partida, menos ainda o jogador vencedor. Mas precisamente, desde a psicanálise, atentamos ao movimento que faz a roda do jogo girar, dando passagem a cada um dos jogadores, dando brilho ao faiscar de cada carta-elemento-fogueirinha. Referimo-nos ao movimento que torna potente justamente a circulação dos lugares, das posições. Somos fisgados pelo que se produz ali, no centro da mesa, no encontro das cartas, buscando analisar como elas vão sendo dispostas. Atentamos principalmente ao jogo significante que permite a cada carta reconstruir seu valor, sua posição e sua relação com as demais; e que permite a elas, sobretudo, se recolocarem em jogo incessantemente, podendo desenhar sempre novas e diferentes partidas.

Com o auxílio da teoria psicanalítica, ressaltamos o movimento turbulento produzido por esse encontro de variáveis tão diversas no horizonte das políticas públicas, mais especificamente no contexto da saúde e do Primeira Infância Melhor. Buscamos demarcar, ao longo deste escrito, alguns dos vestígios deixados por esses encontros que denunciam o mal-estar inerente à condição humana. Esse mal-estar comparece também no cotidiano de trabalho do PIM. Diante da demanda reguladora e prescritiva da lei, a vida responde com a tensão do território, com a rebeldia da pulsão do sujeito, com a força do arranjo transferencial nas relações.

E como as visitadoras respondem a isso que a vida lhes apresenta? Elas só podem ter outra via de resposta que não seja prescritiva e normativa se houver um espaço onde possam se haver com essas questões, a fim de que os impasses ganhem lugar discursivo. Nesse sentido, os encontros de formação permitiram um outro olhar para o trabalho desempenhado pelas visitadoras: uma atividade que era tomada como prescritiva (com diretrizes, normas e ações específicas a serem realizadas) para um fazer perpassado por uma perspectiva de cuidado, guiado pela escuta das especificidades e da história de cada família. Na medida em que essas questões produziam ecos, longe de encontrar uma via de resolução, elas puderam contribuir justamente para a sustentação de uma práxis.

A psicanálise reconhece a potência do exercício de circulação da palavra. Dessa forma, nos encontros de formação com as visitadoras do PIM, amparadas pela ótica psicanalítica, buscamos potencializar a abertura de discussões e reflexões, sustentando um espaço de escuta e cuidado com a singularidade dos sujeitos na particularidade dos (des)encontros que marcam sua ex-sistência. Mantivemos, assim, uma aposta nos efeitos de deslizamento dos significantes, favorecendo a passagem do instituído para algo novo, em busca da instauração da diferença (Fernandes, 2013) que põe em marcha a possibilidade de invenção de outras rodadas de encontros.

Notas

1 Mantivemos o substantivo visitador com a flexão de gênero no masculino apenas nesta expressão composta criada pelas próprias autoras, concordando com o substantivo sujeito, com o intuito de aludir à noção de sujeito tal como sustentada pela Psicanálise, enquanto sujeito do inconsciente, sustentado no campo da linguagem, que faz emergir, por entre os significados da fala, algo do significante do desejo (Elia, 2004).

2 Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob parecer nº 1.820.239.

3 A gravação das entrevistas, bem como dos encontros de formação, foi autorizada pelas participantes, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

4 Expressão extraída do artigo de Gurski e Pereira (2016), onde os autores referem-se a Walter Benjamin que, “ao voltar-se para as radicais mudanças da estrutura da experiência na Modernidade [...] recolheu, como um verdadeiro catador de minúcias, a poesia lírica de Baudelaire” (p. 434).

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Recebido: 03 de Novembro de 2021; Aceito: 30 de Janeiro de 2023

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