Este artigo tem o objetivo de compartilhar os resultados do atendimento psicológico emergencial, de curta duração, na modalidade a distância, dirigido a pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA) no contexto da pandemia da covid-19. Assim como, refletir sobre a importância do atendimento psicológico, no âmbito do cuidado da saúde mental, no sentido de colaborar com a tessitura de elaborações teóricas e técnicas sobre a escuta clínica, especialmente na sua forma remota, no contexto emergencial da pandemia da Covid-19 1.
Essa experiência foi realizada por uma equipe voluntária de psicólogas e psicólogos 2 no âmbito da ‘Campanha Voluntariado pelas Américas (VpA) covid-19 e HIV/AIDS - Uma campanha de solidariedade e amor’ 3. A Campanha Voluntariado pelas Américas no Brasil foi uma iniciativa da Coordenação do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas (MNCP/Brasil), a partir da proposição do Movimento Latino-Americano e do Caribe de Mulheres Posithivas (MLCM+). Contou com o apoio do Programa das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO Brasil) e o Centro de Referência e Treinamento de São Paulo (CRT IST/HIV/AIDS). O plano foi traçado como iniciativa de solidariedade para pessoas vivendo com HIV/AIDS, na perspectiva de garantir ações concretas e urgentes no âmbito da ajuda social, humanitária e psicológica durante a pandemia da covid-19.
A Campanha VpA no Brasil foi uma resposta rápida do MLCM+ e do MNCP/Brasil, visto que iniciou suas atividades em abril de 2020. Em 11 de março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que a epidemia da covid-19, doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, era uma pandemia, após reconhecer como uma emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) em 30 de janeiro de 2020. Em seguida, a OMS recomendou o protocolo de isolamento físico para todos os países como forma de contenção do vírus e de minimizar a transmissão comunitária. (World Health Organization [WHO], 2020).
Após o término da Campanha, a equipe de psicólogas refletiu sobre a escuta, as demandas, o enquadre, os processos, os resultados e os desafios e elaborou um relatório técnico que compôs o relatório final 4 da Campanha VpA, o qual subsidiou este artigo.
O apoio psicológico foi realizado em interface com outros dois eixos de ajuda humanitária: a) falta de medicamentos e adesão ao tratamento e b) carência de alimentos. Configurou-se como uma experiência de clínica ampliada, no sentido de que o olhar clínico foi pautado na compreensão de que as vulnerabilidades socioeconômicas e civis produzem subjetividades e agravam o sofrimento psíquico (Souza et al., 2013).
A iniciativa foi motivada pelo impacto da pandemia da covid-19 nas PVHA, considerando as medidas de contenção da transmissão do coronavírus, como a quarentena, o isolamento social e as demais medidas sanitárias. Essas questões se somaram com as demandas sociais, de saúde física e mental, que permeiam a vivência de PVHA e que ficaram, em geral, mais desassistidas com o direcionamento da rede pública de saúde para a emergencialidade das premências atreladas a covid-19.
Foram encontrados estudos que buscaram realizar uma análise para além do campo biomédico a partir de espelhamentos possíveis entre a pandemia da covid-19 e a epidemia da AIDS, (Ferreira & Neves, 2021, p. 2), no sentido de levantar pistas e caminhos para a compreensão e o enfrentamento da pandemia covid-19, mediante a necessidade de respostas rápidas, na tentativa de minimizar custos assistenciais, emocionais, culturais e sociais.
Revisão integrativa realizada em bases de dados (Santana et al., 2020) apontou que o isolamento social favoreceu alterações psicológicas na população mundial durante a pandemia de covid-19, identificando ansiedade, depressão e estresse. Em 2020, a OMS alertou para a necessidade de se considerar os efeitos da pandemia para saúde mental. Em 2022, emitiu boletim cientifico sobre o surgimento de transtornos mentais associados a pandemia e o impacto desta sobre os serviços de saúde mental. (WHO, 2022a). A necessidade de atenção à saúde mental no público assistido foi premente mediante os sintomas de medo, ansiedade e estresse decorrentes da pandemia, em quesitos como a exigência de adaptação, o excesso de informação sobre a pandemia no país e no mundo, da falta de medicação e de assistência para controlar o HIV/AIDS, assim como a escassez de alimento e de trabalho e os processos de adoecimento, desamparo e outras tantas perdas materiais, subjetivas e simbólicas.
Importante destacar o contexto de vulnerabilização a que determinados grupos populacionais estão expostos e de como este impactou sobre a forma como a pandemia covid-19 se manifestou em termos de intensidade, formas de agravo, assistência, entre outros. Segata (2020) aponta a premência de respostas imediatas e a necessidade de se considerar as particularidades da manifestação da doença em diferentes contextos sociais. Nesse sentido alerta:
[...] colocar o novo coronavírus um pouco de lado e atentar para outros dispositivos que compõem com ele as múltiplas pandemias é um exercício de descolonização que precisa ser protagonizado pela pesquisa social. Conhecer um agente patógeno é fundamental e o novo coronavírus é um informante privilegiado. Mas, a sua superexposição costuma desviar a atenção dos agravantes locais, constituídos de profundas estruturas de desigualdade e injustiça social. (Segata, 2020, p. 275)
O cenário da covid-19 repercutiu nos âmbitos econômico e emocional da população brasileira, emersa em disparidades de distribuição de renda e poder econômico em um cenário histórico de desigualdades sociais. Estudos demonstram que as questões de gênero, raça e classe e outros marcadores sociais são condicionantes dos processos de determinação social de saúde (Couto et al., 2019). Marcadores que se interseccionam e produzem discriminações e violências tanto individuais quanto coletivas. Dados anteriores a pandemia Covid-19 já demonstravam que grande parte da população brasileira vivia em situação de maior vulnerabilidade e risco de violação de direitos humanos em decorrência dos marcadores de raça, etnia, gênero, sexualidade, classe e geração. (Nardi et al., 2018).
Ademais, a pandemia covid-19 surgiu em um momento político do país marcado pela negligência, pelo descaso e pelo negacionismo do Governo Federal em relação às medidas sanitárias para conter a epidemia, às definições sobre a compra de vacinas, à falta de apoio à pesquisa e à produção nacional de vacinas e investigações dos processos licitatórios para comprá-las (Lopes, 2021). Somou-se à ausência de ação coordenada junto aos estados na adoção de medidas de proteção e contenção do vírus e no processo de vacinação, desconsiderando a expertise nacional de vacinação em massa. O somatório de negligências originou a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado Federal da República, em abril de 2021, quando o país apresentou 523 mil mortes por covid-19 5.
Nesse contexto, convém ressaltar o desinvestimento governamental e o sucateamento das políticas públicas, com destaque para o setor da saúde, com o congelamento do investimento público no SUS, durante 20 anos (PEC 241) 6, e a diminuição de recursos nas áreas de educação e de assistência social, com a desvitalização do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Assim como a falta de investimento para a consolidar as políticas públicas de promoção da igualdade e equidade de raça e etnia, gênero, diversidade sexual, garantia de direitos às crianças e idosos, às pessoas com deficiência, à população de rua, às pessoas com HIV/AIDS, dentre outras populações que estão na zona de morte (Mbembe, 2018).
Esse quadro denota a adoção da necropolítica (Mbembe) como o poder de definir os corpos que podem viver, justificado por aspectos biológicos, e os inimigos da nação, desumanizados e caracterizados como abjetos. Para o autor, a eliminação se dá através de modos de existência social com condições restritas de vida, em que o Estado cria zonas de morte baseado no controle das populações, ao invés de estratégias de proteção aos direitos e à vida.
Nesse contexto, a Campanha VpA acionou uma rede de solidariedade com ações de (psicólogas) voluntárias e de organizações sociais, que, com responsabilidade social e ética, na situação de emergência e de calamidade pública, adensou a rede de cuidados.
O relato das psicólogas evidenciou o quanto a escuta terapêutica foi importante para colaborar com o equilíbrio emocional de PVHA, sem deixar de conectar e articular diferentes iniciativas e pontos da rede pública de saúde 7. Foi primordial a inclusão da escuta psicológica nos eixos da campanha, devido à necessidade de cuidar do sofrimento psíquico, decorrente do contexto da pandemia que se adensaram devido a existência de demandas reprimidas. Outrossim, aponta o compromisso social da Psicologia de ocupar seu lugar como eixo indispensável na linha dos cuidados com a saúde, em reforço a importância da atenção à saúde mental.
Atendimento Psicológico: Enquadre, Manejo e Virtualidade do Atendimento
Os atendimentos foram realizados por 13 psicólogas, sendo uma mulher transexual e 12 mulheres cisgêneras, e um psicólogo. As profissionais eram provenientes das cinco regiões do país, com experiência de atuação na área clínica, de diferentes abordagens psicoterapêuticas 8. Os atendimentos aconteceram a distância, de abril a agosto de 2020, e contaram com o suporte logístico de assessoras regionais. Um guia de apoio com serviços de saúde e social, em âmbito local, estadual e nacional, desenvolvido pela coordenação da Campanha, assessoras e voluntários subsidiou o encaminhamento das pessoas para o atendimento de outras necessidades.
Foram recebidas 571 solicitações de ajuda de modo geral, no total de 77 pedidos para apoio psicológico, sendo que três na Região Norte; 19 na Região Nordeste; três na Região Centro-Oeste; 35 na Região Sudeste e sete na Região Sul. Sobre as características das pessoas assistidas, foi traçado o perfil de todas as pessoas que enviaram solicitação para qualquer um dos eixos da campanha, o que traduz o retrato daquelas que procuraram o atendimento psicológico. Foram solicitações de um público com perfil variado: majoritariamente de camadas populares; quanto a escolarização, 28% tinha concluído o ensino médio, cerca de 20% não tinha concluído o ensino fundamental, tinham o ensino fundamental completo ou não tinha concluído o ensino médio; apenas 6% tinha ensino superior completo, eram proveniente da cidade e do campo. Em relação ao gênero, 33,6% do gênero feminino, 33,3% gênero masculino e 04% intersexo; sobre a orientação sexual, 36,5% heterossexuais, 25,3% homossexuais, 2,7% bissexuais. Tinham de 13 anos até mais de 70 anos, sendo que 44% das pessoas assistidas estavam na faixa de 30 a 50 anos; quanto a cor, 44, 6% eram negras (preta e parda), 17,9% se definiram como brancas e 0,8 indígena. Houve também variações de tempo de diagnóstico do HIV - alguns recém diagnosticados - e de uso das terapias antirretrovirais (TARV). A diversidade conferiu uma riqueza de experiências, modos de vida, singularidades de sofrimentos e de resiliência frente às contingências da vida.
As pessoas solicitaram o apoio da campanha VpA por meio de um link, de forma anônima. Depois de fazer a triagem, foram encaminhadas para as psicólogas, que as contactaram por meio de telefone e por mensagem de WhatsApp até que se encerrasse a tentativa de atendimento, em caso de não resposta.
No primeiro contato, foi firmado o acordo sobre o tipo de chamada - por áudio ou chamada de vídeo - o dia, o horário e a frequência dos atendimentos. Em geral, foram sessões semanais, que variaram entre 50 minutos e uma hora. A duração foi variável entre atendimentos pontuais e os que duraram de um a quatro meses, com a possibilidade de as pessoas assistidas solicitarem chamadas de urgência. Foram feitos registros em ficha de atendimento com informações sobre o perfil das pessoas assistidas e uma breve narrativa, preservando o anonimato e o sigilo. Esta teve como finalidade subsidiar a avaliação dos resultados da campanha e desenhar ações futuras com base nas demandas encontrada.
O apoio psicológico durante o isolamento social foi amparado pelo Código de Ética do Conselho Federal de Psicologia (CFP), no artigo que fala de ações em situação de calamidade pública. (CFP, 2005). Os serviços de caráter psicológico por meio de tecnologias da informação e comunicação foram regulamentados pela Resolução nº 011 do CPF (CFP, 2018). Todavia, em função das necessidades de biossegurança, o CFP emitiu uma nova resolução - a de nº 04/2020 (CFP, 2020) - que flexibiliza a atuação de forma remota. Sobre o atendimento psicológico em período de calamidade pública, como a pandemia, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) recomendou:
A atuação do psicólogo, nesse momento, visa, prioritariamente, à promoção do bem-estar psicossocial e à redução do estresse agudo. Oferecer primeiros cuidados psicológicos inclui possibilitar apoio e cuidado pragmático, não invasivo, que permita avaliar as necessidades e preocupações, escutar sem pressionar a falar, oferecer conforto, mitigar os efeitos do estresse, orientar para a busca de informações confiáveis trazendo informações claras e oficiais, orientar sobre os serviços disponíveis de atenção psicossocial mais próximos e proteger as pessoas de danos adicionais. (Fiocruz, 2020, p. 4)
Recomenda ainda que profissionais de Psicologia forneçam informações corretas sobre a covid-19, baseadas em dados científicos e em fontes oficiais, na perspectiva de reduzir o estresse e a ansiedade e de ocupar o lugar de apoio, com a legitimação dos sentimentos das pessoas (Fiocruz, 2020).
O enquadre foi baseado na construção de vínculo entre a terapeuta e as pessoas assistidas. O vínculo foi se dando no holding ou sustentação que protege contra o sentimento de ameaça e funciona como as bordas do cuidado no processo terapêutico, propiciando o acolhimento (Winnicott, 1983). Na maioria dos casos, as escutas foram amparadas pela abordagem psicanalítica, na perspectiva da psicoterapia breve e teve como orientação a avaliação da angústia central a partir da identificação da queixa-sintoma, avaliando os riscos, os fatores estressantes e os apoios possíveis.
Foi identificada uma dificuldade para iniciar o atendimento previamente combinado, com o esquecimento dos horários marcados ou agendamentos de outros compromissos por parte de quem demandou atendimento. Pode-se supor o mecanismo da resistência ao atendimento, entendendo-o como uma defesa do ego, que se opõe, por meio de atos ou de palavras, ao acesso ao material inconsciente, uma manifestação que funciona como entrave para o tratamento psicanalítico (Freud, 1926/1996). Em alguns casos, pode-se identificar a ambivalência de entrar em contato com esferas conflitantes da vida emocional. Todavia, faz-se necessário cotejar com outros fatores pertinentes a realidade das pessoas que procuraram o atendimento, como o fato de que a grande maioria não tinha a experiência de um atendimento psicológico (online ou presencial) no seu repertório.
Outrossim, observou-se o desafio de estabelecer o vínculo e a confiança à distância, mediado por aparelhos eletrônicos e plataformas de serviços online num contexto de isolamento social. Desafio posto para as pessoas atendidas e para as profissionais em relação ao manejo clínico, cuja conexão se dava via internet e não pelo setting tradicional (Carvalho & Mendes, 2023; Figueiredo, 2020). A introdução do remoto no contexto da emergencialidade reflete sobre a virtualidade como uma dimensão intrínseca ao dispositivo psicanalítico, o que envolve o encontro das várias camadas dos inconscientes com os horizontes e os filtros das consciências de todos os envolvidos - a pessoa assistida (o) e a terapeuta; uma dimensão presente no atendimento presencial ou a distância.
Foi relevante a falta de privacidade em alguns atendimentos, que até aconteceram com a circulação de outras pessoas na casa, por causa da limitação de espaço físico ou da falta de compreensão sobre preservar a individualidade no atendimento psicológico ou em função dos códigos da vida comunitária em populações rurais e tradicionais, como indígenas, quilombolas e ciganos. A omissão de palavras, como HIV e AIDS, ou o uso de códigos pôde revelar uma estratégia para lidar com a falta de privacidade, como também a negação e a dificuldade de lidar com o diagnóstico. Dessa forma, cada pessoa atendida desenvolveu arranjos próprios para receber o atendimento psicológico.
A coordenação da Campanha VpA fez uma firme recomendação quanto ao zelo com a linguagem utilizada nos atendimentos psicológicos, considerando que a prática não deveria reiterar preconceitos, no campo do simbólico, devendo atuar livre de julgamentos e de exclusões com a garantia da expressão da diferença e dos direitos humanos. Nesse sentido, foi reforçado o uso da expressão ‘pessoa vivendo com HIV AIDS’ e o não uso de termos como ‘aidético’, ‘portador’, ‘transmissor’, ‘contágio’ e ‘contaminação’ pelo seu caráter estigmatizante, no sentido de que produzem um efeito em que a pessoa se sente um vetor. A terminologia “Pessoa vivendo com HIV AIDS” também busca dar conta das especificidades de quem convive com o vírus e das pessoas que desenvolveram a doença da AIDS em algum momento da sua vida. Mediante as associações entre HIV e Covid, foi reforçada a diferença entre o HIV, que é transmissível, e o Sars-CoV-2 (vírus causador da covid-19), contagioso.
Em relação aos sentimentos e às reações das psicólogas na relação com as pessoas assistidas, foram relatados sentimentos de desamparo, isolamento e medo. Estas emoções apontam a contratransferência da terapeuta/analista, aspecto descrito por Freud (1910/1996) como manifestações inconscientes que são vivenciadas nos processos por quem se empresta a escuta e ao cuidado do outro. O grupo refletiu junto e elaborou no sentido das suas próprias vivências de isolamento social, luto e angústia advinda da pandemia, apontando um movimento em que a dor do outro foi espelho das suas e puderam ser ressignificadas na escuta do outro, ativando a sensação de resistência. Todavia, existiu o sentimento de sobrecarga e de pressão para oferecer o cuidado à distância.
Foi avaliada a necessidade de continuidade de alguns atendimentos psicológicos no pós-campanha. Para isso, foram articulados serviços da rede de atenção psicossocial. Algumas pessoas foram encaminhadas para grupos de apoio e ajuda mútua 9, com encontros online que propiciavam espaços de fala e de escuta coletiva, nos quais as narrativas de angústia, conflitos familiares, solidão, preconceitos, alegrias e conquistas foram acolhidas no grupo, em um movimento de ajuda mútua. A possibilidade de identificar semelhanças, nas vivências das adversidades das histórias individuais, forneceu suporte emocional umas às outras a partir do que cada pessoa já tinha no seu repertório subjetivo.
Do ponto de vista da psicanálise, o trabalho demonstrou a elasticidade da técnica psicanalítica (Ferenzci, 1928/1992) e suas possibilidades de transpor o enquadre padrão. Situações como o isolamento social, trabalhos com grupos socialmente vulneráveis e determinados sofrimentos psíquicos não encontram respostas no modelo clássico poltrona-divã, razão por que foi admitida a prática da clínica modificada (Winnicott, 1983). Para Figueiredo (2020), a elasticidade da técnica vem atender às necessidades das pessoas atendidas e de determinadas condições de trabalho.
Resultados: Fatos Relevantes Advindos da Escuta
De modo geral, as pessoas atendidas se implicaram no processo de escuta e partilharam sua rotina, as dificuldades cotidianas e existenciais, os sentimentos, as dores e as demandas subjetivas durante a pandemia. Os relatos apontaram sofrimento psíquico com queixas de ansiedade, angústia, depressão, estresse, medo, insegurança.
Estudo realizado por Colao et al. (2020) sobre as repercussões no trabalho psicanalítico do impacto da Covid-19 na saúde mental apontou o sofrimento emocional com a presença aguda de sintomas melancólicos, crises de ansiedade, desintegração do eu como resultante do momento, onde “Perdas e privações das mais diversas naturezas têm sido o fio condutor da existência desde março de 2020. A escuta dessas formações inconscientes tem escancarado um profundo sentimento de desamparo e uma enorme dificuldade na elaboração de tantos lutos” (Colao et al., 2020, p. 43).
Desconfiança, desesperança e sentimento de desamparo e de solidão estavam presentes nos relatos das pessoas assistidas, relacionados ao contexto da pandemia que envolveu elementos estressores como: o isolamento social, a quarentena prolongada, a apreensão pela vacina, o fechamento de espaços de sociabilidade coletiva, o distanciamento afetivo de pessoas queridas, a impossibilidade de celebrar ritos culturais coletivos, como rituais de casamento, velórios, formaturas, assim como a escassez de recursos financeiros, o desemprego, entre outros.
Algumas demandas relativas ao sofrimento psíquico estavam atravessadas por questões associadas à saúde física de uma PVHA na pandemia Covid-19, pela dificuldade de acessar os serviços de saúde, exames e medicações e pelas dúvidas quanto aos antirretrovirais (ARV), que foram trabalhadas na articulação com os outros eixos da campanha ou encaminhadas para serviços da rede de atenção, como o tratamento de sífilis e o acesso ao ARV em serviço público específico.
A noção da clínica ampliada se adequou ao trabalho no sentido de acolher a complexidade das demandas dos sujeitos na interface da subjetividade com as demandas de saúde física e questões sociais que permearam a existência dos sujeitos. Colao et al. (2020) refere a clínica ampliada em psicanálise como um modelo em interação com a concepção de saúde integral que engloba a atenção psicossocial em sintonia com a saúde física. A clínica ampliada “É uma ferramenta teórica e prática diante do sofrimento e do adoecimento humano, com um olhar ampliado para a singularidade do sujeito e a complexidade de seu contexto”. (Coalo et al., 2020, p. 38). No sentido de atender as necessidades das pessoas assistidas, exigiu a articulação das psicólogas, sobretudo com outros eixos da campanha, mediada pelas assessoras da Campanha, assim como a articulação com outros serviços da rede de atenção e os devidos encaminhamentos, como garantia de acompanhamento psiquiátrico no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).
Na experiência em tela, o atendimento a distância favoreceu o acesso ao atendimento psicológico, pelo aumento da oferta, e foi reconhecido em sua fase facilitadora do acesso à subjetividade por representar a proteção ao anonimato, fundamental para pessoas com dificuldade de se apresentar como uma PVHA em seu meio social. Estudo realizado por Carvalho e Mendes (2023), a despeito de apontar o caráter diferencial do atendimento a distância e suas dificuldades relativas a formação de vínculos, manutenção do sigilo e a estabilidade da internet, considerou a mudança de paradigma no tocante a permanência do atendimento psicológico online por oferece maior flexibilidade quanto a questão financeira e ao uso do tempo e ao deslocamento.
Um aspecto relevante consistiu em ofertar o acesso ao cuidado em saúde mental às pessoas de classe sociais menos favorecidas, pois que o atendimento psicológico é inacessível para a grande parcela da população brasileira, num país com baixo investimento no setor público, por meio da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Soma-se isso a um repertório social ainda empobrecido de valorização do cuidado em saúde mental e reinvindicação de políticas públicas. Grande parte dos atendimentos psicológicos se dão através de profissionais autônomos, que oferecem os serviços em clínicas privadas, seguidos daqueles credenciados aos convênios de saúde. O modo de operar da campanha trouxe uma dinâmica ativa de profissional que, a partir de um pedido de apoio psicológico, fez o contato e tornou real sua presença como cuidadora da saúde mental.
A constituição de um campo de escuta fortaleceu o vínculo entre psicólogas e pessoas assistidas e a escuta pode ser aprofundada, propiciando a implicação com questões subjetivas para além da emergencialidade da situação, vindo à tona afetos relacionados a traumas de infância, conflitos familiares, abandonos, dentre outros.
Os efeitos colaterais adversos e indesejáveis das medicações provocaram sofrimento emocional associado à pandemia, com a queixa de angústia, medo e insegurança, sobretudo quando se tinha pouco tempo de diagnóstico e de uso dos ARV. Nesse caso, o atendimento psicológico acolheu o sofrimento, e os sentimentos de insegurança, impotência e raiva puderam ser trabalhados no âmbito da escuta psicológica, todavia articulados com o acesso a serviços de referência no tratamento do HIV/AIDS, que tinha a expertise acumulada na área de administração medicamentosa. Entendeu-se que a adesão ao tratamento estava relacionada à confiança no profissional de saúde e ao sentimento de segurança sobre o uso correto da medicação.
Havia sofrimento emocional provocado pelo contexto da pandemia, como o luto pela morte de um familiar, a confirmação de covid-19 em familiares e as suspeitas do contágio em pessoas em atendimento, sendo que algumas pessoas solicitaram apoio psicológico quando estavam com a covid-19.
Assim, foi identificada uma correlação entre a pandemia da covid-19 e a epidemia do HIV/AIDS. A pandemia atualizou questões relativas ao impacto do diagnóstico do HIV e às vivências da PVHA, como a não aceitação e/ou negação, o luto não elaborado, a culpabilização, o medo, o abandono e a solidão. A dificuldade de lidar com a perda e o medo da morte, que já eram advindos da vivência com o HIV/AIDS, foram intensificados com a pandemia. As situações adversas na pandemia associadas ao HIV geraram sensação de fraqueza, despreparo e exaustão emocional.
No tocante ao isolamento social, é importante lembrar que este, em alguns casos, faz parte da vida de PVHA, devido ao fato da pessoa não aceitar viver com o HIV ou não ser aceita por familiares. A pandemia intensificou o comportamento de isolar-se do mundo e, como reflexo desse isolamento, alimentou e intensificou o sentimento de culpa, em detrimento da possibilidade de criar outros sentidos e significados para a experiência de viver com HIV/AIDS. Também fez ressurgirem estigmas e preconceitos contra as PVHA, o que demonstrou sua presença persistente no país. Parker e Aggleton (2021) republicaram o livro “Estigma, Discriminação e AIDS”, 20 anos após o lançamento da primeira edição, analisando a persistência do estigma e da discriminação que aflige as PVHA a despeito de todos os esforços envidados para enfrentá-los em 40 anos da epidemia, através de campanhas educativas, publicitárias e ações afirmativas.
Percorremos um longo caminho na resposta ao HIV e à AIDS - no Brasil e no mundo. Temos feito avanços notáveis em relação à eficácia do tratamento e do cuidado, bem como ao acesso a medicamentos. Desenvolvemos melhores abordagens para a prevenção e aprendemos a combinar diferentes métodos de prevenção. Mas, fizemos menos progressos na superação do estigma e da discriminação. De fato, a persistência do estigma e da discriminação tem impedido o progresso em outras áreas, bloqueando muitas outras realizações. (Parker & Aggleton, 2021, p. 19)
Situações de abandono familiar e perda de emprego, ocasionados pelo conhecimento do diagnóstico do HIV, foram relatados pelas pessoas assistidas, assim como casos de mulheres positivas que não conseguiram trabalho e contaram com o suporte de uma rede de apoio para garantir seu sustento e o de seus filhos.
Considerações Finais
Os resultados do estudo indicaram que o sofrimento psíquico foi atravessado por uma série de fatores, como o adoecimento físico, as questões relativas à covid-19 e a necessidade de cuidar dos aspectos relacionados ao HIV e à AIDS. Também se identificou certo paralelo entre os aspectos envoltos na pandemia causada pela covid- 19 e os sentimentos vivenciados com o HIV, como a não aceitação do diagnóstico, o medo da morte, o isolamento, a solidão e os estigmas.
Os atendimentos psicológicos, no âmbito da Campanha VpA, contribuíram para o pensar e o agir da Psicologia, em um movimento vivo, norteado por seu Código de Ética, e apontaram uma experiência rica e desbravadora de escuta psicológica na modalidade a distância e emergencial, durante o período mais crítico da pandemia da covid-19. Isso reforçou o lugar da Psicologia como eixo indispensável na linha dos cuidados com a saúde e a participação voluntária das psicólogas expressou o compromisso ético-político da profissão com a população, especialmente com as PVHA.
Essa experiência fomentou, junto com tantas outras, a elaboração clínica e teórica a respeito do atendimento online. Considerou-se que é algo novo e desafiador no campo profissional, com sua potencialidade e seus desafios, e que deverá estimular reflexões e debates nos espaços de formação clínica e acadêmicos, na perspectiva de subsidiar a regulamentação pelo CPF, a partir dos aprendizados no período de pandemia. Como referiu Saddi (2020), o atendimento remoto era um território desconhecido, que precisava ser validado com base na necessidade imposta pelo isolamento social prolongado, o que resultou em transformações no campo do manejo clínico, em meio a inquietações, inseguranças e reflexões por parte dos profissionais da área.
Convém lembrar que o trabalho da Psicologia e da Psicanálise está diretamente relacionado à capacidade de escutar e de acolher as subjetividades localizadas em contextos sociais e históricos diversos. Sendo assim, é importante refletir que a técnica e o enquadre devem ser modificados, sempre que possível, para contemplar as características da demanda e alimentar a perspectiva da elasticidade da técnica, com o intuito de encontrar o que está além da superfície e do dito (Ferenzci, 1928/1992).
A experiência da Campanha VpA integrou redes de resistência à necropolítica, ao oferecer ajuda humanitária com alimentos, medicamentos e atenção às demandas de saúde mental. Pressupôs o fortalecimento e a ampliação da atenção à saúde mental para PVHA, por meio de políticas públicas, para garantir a escuta às diferentes questões que afligem as PVHA na perspectiva de subverter a lógica da ideia de que os serviços especializados para o tratamento da PVHA só escutem as demandas relacionadas ao HIV AIDS.
Uma das limitações do trabalho foi a temporalidade do atendimento psicológico que estava restrito ao período seis meses, tempo de execução da Campanha VpA, sem projeção de continuidade no que se refere aos três eixos: acesso ao tratamento, distribuição de alimentos e apoio psicológico e emocional. Assim sendo, a despeito do desejo de continuidade de algumas pessoas assistidas, o atendimento foi interrompido. Em apenas um estado foi identificado um projeto de extensão universitária que deu continuidade através de atendimento em grupo. Outra dificuldade foi o encaminhamento para consulta psiquiátrica, quando identificada a necessidade pelas psicólogas, devido a suspensão dos atendimentos presenciais nos equipamentos de saúde da região das pessoas assistidas e a ausência da teleconsulta. O reconhecimento do sofrimento psíquico de maior gravidade e a impossibilidade de contar com o recurso da psiquiatria gerou o sentimento de impotência nas psicólogas e na Coordenação da Campanha.
A iniciativa da Campanha VpA reforçou que é importante manter viva a pauta das políticas públicas no âmbito da saúde, da educação e da assistência social, na perspectiva de promover a igualdade e a equidade de raça, gênero, orientação sexual, idade, localidade, etc., das PVHA e sua visibilidade, e revigorou a importância da participação da sociedade civil, por meio do MNCP Brasil e do MLCM+, a fim de valorizar o ativismo social e os espaços de controle social, com vistas a garantir os direitos das PVHA e de fortalecê-las emocionalmente.
Ressaltou, ainda, as possibilidades de fortalecer o coletivo por meio de estratégias de redes de solidariedade e de cuidado, com a dinâmica das trocas entre pares, que dão suporte às pessoas para que tomem suas decisões e favorecem o processo de aceitação e de entendimento de si mesmas como pessoas com a experiência de viver com HIV/AIDS.
A disponibilidade, a empatia, o afeto, o amor, a ternura e a solidariedade podem fazer diferença em um momento tão difícil e ser teias de resistência à necropolítica, em meio a uma história de violência estrutural e de ameaça à democracia, que se somam à crise sanitária.