Introdução: Embananou-se. A Chegada da Psicanálise Lacaniana ao Brasil
Em 1975, ocorreu a fundação da primeira associação lacaniana brasileira, o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, instituído por Magno Dias Machado - mais conhecido como MD Magno - e Betty Milan (Milan, 1994). Em contestação à posição dos analistas vinculados à International Psychoanalytical Association (IPA), os psicanalistas lacanianos criticavam a primazia formal do contrato analítico e a assepsia moral do tratamento. A universalidade do método psicanalítico, expressão da dinâmica entre o consciente e o inconsciente, não poderia desconsiderar o contexto local de enunciação e a sua própria economia de poder e de autoridade no interior da transferência. Com o golpe militar na Argentina, em 1976, muitos psicanalistas daquele país migraram para o Brasil, ajudando a consolidar o movimento no país.
Os argentinos mantinham uma relação crítica com as sociedades de psicanálise ligadas à IPA, defendendo a possibilidade de se instituir uma formação fora das balizas exigidas por essas instituições e apoiando uma gama de experiências clínicas e institucionais implicadas em projetos sociais e políticos coletivos e de esquerda. Nesse contexto, no final de 1978, com a realização do I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições, foi possível a vinda para o Brasil dos principais mentores da Rede de Alternativas à Psiquiatria, do movimento Psiquiatria Democrática Italiana e da antipsiquiatria.
Contemporâneo da Tropicália e do Cinema Novo, o lacanismo propagou-se com a renovação da reflexão sobre a cultura brasileira e sua crise. Milan descreve assim a fundação da primeira associação lacaniana brasileira:
Sem saber exatamente por que, nós sabíamos que Lacan havia dito não à Internacional, e isso foi certamente decisivo. O Brasil institucional, o Brasil dos golpistas, nos predispunha a aceitar o que chegasse do exterior e tivesse a marca do antiautoritarismo. (Milan, 1994, para. 2).
Em que pesem os esforços institucionais dos analistas lacanianos, majoritariamente egressos de cursos de Psicologia, durante muito tempo eles se depararam com uma completa desqualificação herdada da própria exclusão de Lacan pela IPA. Isso compunha mais um desafio ao caminho formativo, que se tornou então politizado, baseando-se na narrativa revolucionária e na contracultura (Dunker & Kyrillos Neto, 2014). Um exemplo da politização da formação do analista foi o II Congresso d’A Causa Freudiana no Brasil, realizado em 1985, no Rio de Janeiro. O país presenciava, naqueles tempos, uma maciça presença de psicanalistas franceses que traziam os textos de Lacan.
Diante da impactante presença francesa, MD Magno, acompanhado por Betty Milan, decidiu organizar um congresso descontraído (Milan, 1994). Ficou nítido, durante o evento, o sentimento de colonização e superioridade nutrido pelos franceses que nele estiveram presentes. Representavam o croissant (Ferreira Neto, 2015).
O evento que ficou conhecido como Congresso de Psicanálise da Banana valorizou a cultura brasileira, tendo contado com a participação de uma escola de samba e com a presença de grandes intelectuais nacionais, como Gilberto Freyre, Newton da Costa, Joãozinho Trinta, José Celso Martinez, entre outros. Ferreira Neto, que participou ativamente desse congresso, faz uma observação fulcral para a problemática abordada neste artigo: “O rico simbolismo fálico das bananas (para nós ‘falo’ é substantivo e verbo) incluía o gesto de ‘dar uma banana’ para os franceses. Vingança?” (Ferreira Neto, 2015, para. 4).
Essa indagação nos sugere uma rivalidade cujas razões são indicadas no editorial do primeiro número do periódico Falo, assinado por Jacques-Alain Miller. Ele lembra que veio ao Brasil pela primeira vez em outubro de 1981 a convite de Jorge Forbes e cita nominalmente vários amigos brasileiros. Notemos que Lacan faleceu em setembro desse mesmo ano. Após anunciar que é diretor da coleção O Campo Freudiano no Brasil, da Editora Jorge Zahar, e que continuará a publicação de O Seminário por ela, comunica que “esse mesmo campo freudiano no Brasil encontra Falo, sua revista” (Miller, 1987, p. 5). Além da criação da revista, ele informa que seminários do campo freudiano foram realizados em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Ora, parece-nos que outro viés do pensamento lacaniano chegava ao Brasil orientado por Miller.
Interessa-nos, neste manuscrito, por intermédio de um estudo sobre o Congresso de Psicanálise da Banana, abordar o caráter discriminatório que marcou a controversa chegada do pensamento de Lacan ao Brasil e suas ressonâncias nas instituições psicanalíticas. A abordagem desse problema tem um caráter histórico. Nesses termos, é imprescindível considerarmos a crítica de Certeau (2011) a uma historiografia “desencarnada” do discurso, que não coloca em questão suas condições de produção. Para ele, o outro passado e o outro presente são condições de possibilidade do discurso historiográfico. O outro passado como objeto tomado pelo historiador; o outro presente como o lugar social no qual o historiador articula seu discurso. Abordaremos um passado que insiste em ecoar no presente, isto é, como a história dos psicanalistas em sua institucionalização traz a marca da repetição das cisões e da discriminação entre colegas. A pesquisa histórica ajuda a explicitar tais ecos. Nossa perspectiva de trabalho adotará basicamente dois planos: o meta-histórico como lugar de reflexões sobre a história enquanto historiografia; e o historiográfico, que se dedica à análise de uma questão histórica em direção êmica. Esse prisma nos possibilita compreender determinado campo a partir dos conceitos utilizados pelos próprios atores da história, em nosso caso, psicanalistas.
Método: Saber e Poder no Diálogo com a Psicanálise e a História
Este manuscrito corresponde a uma comunicação preliminar dos resultados da pesquisa intitulada Rupturas na história do lacanismo brasileiro: método e ensaios. Nossas análises se apoiam em uma busca realizada no sítio da hemeroteca digital da Fundação Biblioteca Nacional, utilizando como descritores o nome do evento e/ou o nome de seus organizadores. Entre fevereiro de 1980 e dezembro de 1989 foram encontradas 20 matérias em jornais e revistas de circulação nacional com alusões ao evento e seus organizadores 1. São reportagens e entrevistas que revelam as querelas entre os psicanalistas e suas instituições. Para nós, esse fato, entre outras coisas, sinaliza o interesse de uma representativa parcela da sociedade brasileira pela psicanálise. Consideramos o Congresso de Psicanálise da Banana o marco inaugural no qual se encontra uma expressão brasileira da reprodução dos impasses político-institucionais nas escolas lacanianas. Esses impasses repercutem nessas instituições ainda hoje, principalmente no que concerne à mediação de conflitos decorrentes do contato com as alteridades.
Nossa forma de trabalho nos aproxima da posição tomada pela Escola dos Annales, que considera que a escrita histórica deve se orientar por problemas específicos, concebendo a história como “uma ciência dos homens no tempo e que incessantemente tem necessidade de unir o estudo dos mortos ao dos vivos” (Bloch, 2002, p. 67).
A pesquisa histórica, nessa tradição, abre-se como um recorte necessário construído pelo pesquisador a partir das ferramentas das quais ele próprio dispõe. Assim, as ideias de construção e análise são valorizadas em detrimento das concepções de desvelamento ou descoberta.
Nesses termos, as questões relacionadas aos caminhos de investigação, bem como as hipóteses levantadas e as ferramentas da psicanálise utilizadas para análise e discussão, são frutos da experiência e da transferência do sujeito analista-pesquisador. Assim, afirmamos que só se pode fazer pesquisa em psicanálise sob transferência. Neste ponto abordamos a extensão do conceito de transferência entendido como amor ao saber, ou seja, como a gramática do amor dirigida à suposição de um sujeito suposto saber (Lacan, 1967/2003; 1964/2008). Em psicanálise, a transferência é condição para a pesquisa, mas seu lugar deve ser cuidado para que assujeitamentos ou alienações a supostos mestres não façam com que o imaginário invada a cena impossibilitando a pesquisa (Elia, 1999).
A psicanálise se aproxima da história pela sua terapêutica, que recorre claramente a um método histórico. Presumimos que a pesquisa historiográfica encontra um ponto de similitude com a psicanálise na medida em que o historiador e o psicanalista têm em comum a relação com a memória, ainda que, para um, a fundação esteja no coletivo, enquanto para o outro a aproximação se dê pelo individual.
Ao refletir acerca da função da memória de representar o passado, Ricoeur (2007) propõe um diálogo entre as dimensões coletiva e individual de arraigamento. Na polaridade entre elas, o autor considera que:
o ponto de partida de toda análise não pode ser abolido por sua conclusão: é no ato pessoal da recordação que foi inicialmente procurada e encontrada a marca do social. Ora, esse ato de recordação é cada vez mais nosso. Acreditá-lo, atestá-lo não pode ser denunciado como uma ilusão radical (p. 133).
Assim, suas reflexões convergem para “uma tríplice atribuição da memória: a si, aos próximos, aos outros” (p. 142).
Ciente da possiblidade da manipulação da memória e do esquecimento pelos detentores do poder, Ricoeur foca a construção do conhecimento historiográfico e propõe três momentos para ela: (I) o estádio que privilegia os arquivos e testemunhos e que tem a memória como matriz (plano histórico); (II) a fase em que o historiador produz uma explicação sobre o objeto estudado e, consequentemente, alguma representação do passado (plano histórico em sua dimensão ética); (III) a etapa em que essa representação é levada ao conhecimento dos interessados, o que possibilita alguma influência sobre a compreensão, no presente, do passado histórico (plano meta-histórico).
Em nossa proposta de conhecimento historiográfico, os momentos elencados por Ricouer são entrelaçados com uma perspectiva crítica, tal como define Foucault (1978/2017): “olhar sobre um domínio que quer policiar e onde não é capaz de fazer a lei.” (p. 32). Ao considerar a crítica como uma virtude, ele a aproxima das maneiras de governar e indaga “como não ser governado assim, por esses e em nome desses princípios”? (p. 34). Em termos gerais, nossa proposta nos deixa atentos às estruturas de racionalidade que compõem o discurso verdadeiro e aos mecanismos de sujeição subjacentes a ele. Para tanto, seguimos a indicação foucaultiana de buscar um nexo entre saber e poder que permite a aceitabilidade de determinado sistema.
Encontramos em Ginzburg (1989) subsídios para reconduzir ao conhecimento histórico “fenômenos aparentemente negligenciáveis” (p. 10). Com essa finalidade, o historiador propõe recorrer a elementos de observação e escala diferentes dos usuais. A vinculação da morfologia com a história permeia seus trabalhos e permite conexões com outras áreas do conhecimento, como a psicanálise. O interesse pelos indícios e a observação dos componentes diminutos no interior das relações sociais possibilitam uma aproximação com a práxis do analista, definida por Freud (1937/1996) como ato de completar o que foi esquecido.
Nos arquivos da imprensa sobre o Congresso de Psicanálise da Banana e seus participantes, encontramos elementos, alguns deles diminutos, que nos permitem refletir sobre os impasses da política institucional lacaniana.
Resultados: O Congresso e os Congressistas na Imprensa
Durante uma década (precisamente entre 1980 e 1989, fazendo jus ao corpus de notícias de jornal que exploramos neste estudo), a psicanálise esteve na moda - ou, se não isso, esteve pelo menos na mídia. Por uma década, as controvérsias psicanalíticas, até mesmo aquelas mais paroquiais, estiveram no debate público em quatro dos maiores veículos de imprensa escrita do país, a saber: o Jornal do Brasil, a Tribuna da Imprensa, a Revista Manchete e a Folha de São Paulo 2. Desse modo, ainda que por um intervalo relativamente curto, o Congresso de Psicanálise da Banana alcançou seus objetivos. Nessa situação, não só a psicanálise tinha o que dizer sobre o Brasil, como o Brasil (ou, pelo menos, os brasileiros que liam jornal) tinha condições mínimas para ter algo a dizer sobre a psicanálise.
Mas tal sucesso não foi mérito exclusivo dos membros do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. A psicanálise não ganharia os “holofotes” por mera disposição subjetiva de um grupo de psicanalistas engajados. As condições sociais objetivas engendradas pelo contexto de abertura democrática viriam a convergir com o esforço (e suposta vocação) dos lacanianos para a “abertura institucional”. Não sem motivos, o paralelo entre os processos macroinstitucional brasileiro (declínio do regime militar) e microinstitucional psicanalítico (dissolução da École Freudienne de Paris - EFP) foi um dos objetos privilegiados da narrativa jornalística da época.
De fato, não chega a cinco meses o tempo que separa a Lei de Anistia (assinada ao final de agosto de 1979) 3 e a famosa Carta de Dissolução (datada do início de janeiro de 1980). 4 Não é sem razão, portanto, que a presença dos psicanalistas e do Congresso de Psicanálise da Banana na imprensa tenha sido marcada pelo interesse pelos conflitos entre os analistas e suas instituições. Os títulos das reportagens, que procuravam atrair os leitores, ressaltavam as contendas. A matéria Lacanianos brasileiros bendizem a dissolução (Couri, 1980), por exemplo, trouxe entrevista com MD Magno e Betty Milan, que discorreram tanto sobre a dissolução quanto sobre os anos de autoritarismo pretoriano na Ditadura - o que ficou especialmente evidente em sua crítica, em forma de chiste, ao “integralismo” 5 das sociedades de psicanálise. Claro estava que os entrevistados apoiavam a dissolução. Afirmavam que “o psicanalista o é pelo discurso, não pelo título. Não há formação de analista, há formações do inconsciente” (p. 1), que a “Escola Freudiana foi o retorno a Freud, e sua dissolução o retorno a Lacan” (p. 1).
Quando indagados sobre quem eram os outros lacanianos, ou se existiam, Magno e Milan não encontraram dificuldade em apontar quem se afastou do discurso freudiano, citando o Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições (IBRAPSI) e a Sociedade de Psicanálise Integral. Mas, logo em seguida, enfatizaram que o colégio que fundaram no Brasil não estava se apropriando do discurso de Freud, afinal: “Não há posse, porque não há como ocupar o lugar do Outro. Tomar-se pelo Outro é canalhice” (p. 1). Paralelamente a isso, via-se claramente a preocupação desses psicanalistas com a realidade brasileira. Eles se mostravam apreensivos com a apropriação da psicanálise por outros discursos (psicológico, pedagógico, behaviorista) e nomeavam o desvio da psicanálise no Brasil como desvio do país caudilho, desvio populista. Ao serem confrontados sobre a práxis psicanalítica no período autoritário, eles afirmaram que “a psicanálise servia de esgoto, de falta de lugar para o desvio.” (p. 1). Com relação à presença da psicanálise nas favelas, eles questionaram o que chamaram de invasão de psicanalistas no morro em busca de clientes e afirmaram que “a favela não precisa da psicanálise, mas a psicanálise precisa da favela.” (p. 1).
Em outubro de 1985, foi publicada uma matéria de página inteira intitulada A psicanálise se abre (Bonfim, 1985). A reportagem destacava dois congressos de psicanálise que ocorriam no Rio de Janeiro: o Congresso de Psicanálise da Banana e o 10º Congresso Brasileiro de Psicanálise. Sobre o primeiro, foram salientadas as alegorias de Joãozinho Trinta, a participação de Gilberto Freyre e o hino de Braguinha Yes, nós temos bananas. Esse congresso discutiu “um assunto muito sério para as sociedades filiadas à causa freudiana no Brasil: saber que país é este, qual é o seu sintoma” (p. 2). Já a respeito do segundo, organizado pelas sociedades filiadas à IPA, ressaltou-se a presença de filósofos, antropólogos, juristas e cientistas políticos como forma de romper o isolamento dessas instituições “que se mantiveram afastadas do ambiente cultural e científico, assim como da sociedade e do Estado.” (p. 2). Ambos os eventos “abrem seus debates contaminados pelos fluídos novos e arejados da Nova República.” (p. 2).
Destaca-se que os lacanianos faziam provocações, considerando que seu evento incomodaria os ortodoxos. Olandina M. C. de Assis Pacheco, uma das organizadoras, afirmou que “o que era verdade há muitos anos, hoje é folclore. Passou o tempo em que os psicanalistas recebiam seus pacientes com cobertor sobre o divã, empedernidos ou fantasiados com terno e gravata” (p. 2). Chama-nos atenção, ainda, a defesa de Lacan assumida pela psicanalista, para quem a leitura da psicanálise feita por ele seria capaz de “restaurar a verdade freudiana” (p. 2). Ao se referir aos ortodoxos, ela dizia: “A abertura ameaça os ortodoxos, mas se não lutarmos por nosso mestre, seguindo os caminhos que Lacan apontou, quem o fará?” (p. 2). Um paradoxo curioso: ortodoxia contra ortodoxia?
As provocações entre os lacanianos e os ortodoxos prosseguiram pela imprensa. Em junho de 1986, uma coluna de um jornal de circulação nacional apresentou uma nota intitulada “Revirão 6 e pleroma” 7 (1986) com o seguinte conteúdo: “bomba” no meio psicanalítico, com a nova tentativa de reformulação da linguagem do divã. Luiz Alberto Py 8 afirmou, com acidez, que os neologismos lembravam o cardápio de uma lanchonete. “Revirão, por exemplo, tem a maior pinta de sanduíche de repolho com carne moída. Já pleroma leva um jeitão de carne assada com maionese” (p. 6).
Nossa pesquisa na imprensa revela ainda a preocupação dos lacanianos quanto à forma com que o grupo foi apresentado ao grande público. A celeuma se deu em torno do significante banana. O cartaz da 20ª Bienal de São Paulo, de autoria de Rodolfo Vanni, retratava uma banana. Na seção Cartas do Jornal do Brasil, Silveira Júnior (1989) contestou a reportagem que abordava o símbolo da Bienal. Ele repudiou a expressão “um bando de psicanalistas lacanianos” (p. 2) e a redução do símbolo da banana ao sentido fálico. Sua resposta, no entanto, foi tipicamente fálica, ressaltando a “desinformação quanto a elementos básicos da teoria psicanalítica” (p. 2). O presidente do Colégio Freudiano rechaçou, ainda, o termo “lacaniano” e recorreu ao “Dr. Lacan” para designar o grupo como freudiano. A carta demonstrava indignação com o editor, que a intitulou ironicamente como A banana é nossa. O texto terminou com um apelo para que o jornalismo contribuísse para mitigar as desinformações geradas pelo folclore em torno da teoria psicanalítica.
Mas não foi só a celeuma entre os psicanalistas que interessou à imprensa nesses quase dez anos. Tudo levava a crer que, mais uma vez, a psicanálise, isto é, os psicanalistas, interviriam no debate público na posição de intérpretes privilegiados. Dizemos “mais uma vez”, pois isso já se fazia presente pelo menos desde os primórdios da modernização brasileira, ainda nos anos 1930. Não à toa, um convidado de honra do Congresso da Banana, repercutido com a devida atenção em entrevista intitulada Psicanálise da Casa Grande (Mello, 1985), foi o sociólogo Gilberto Freyre, autoproclamado “veterano da aplicação da psicanálise à reinterpretação da formação social brasileira” (p. 2). Freyre propunha uma psicanálise dos homens públicos brasileiros, ressaltando que o “andar nu do índio” (p. 2) que nestas terras já vivia quando da chegada dos europeus denotava a nossa afinidade de origem com a psicanálise, que por aqui fora “instintiva, intuitiva” (p. 2). Nada mais justo, portanto, que um resgate da psicanálise, que se fazia necessária justamente por não encontrar espaço nesse momento de constituição da Nova República.
O tom de retomada da psicanálise e do modernismo foi bem retratado em A psicanálise se diverte (Mello & Benevides, 1985), em que o Congresso foi apresentado como veiculando uma proposta de “heterofagia” para a criação do Brasil maneiro, um país que deveria valorizar suas próprias coisas e abandonar a “neurose do europeu desterrado” (p. 9). Numa fórmula feliz: “um congresso-reprise das descobertas de 22 e curtições de 68” (p. 9). Os organizadores do irreverente evento, orientados por duas “estrelas” (p. 9) - MD Magno e Betty Milan -, foram mais uma vez descritos por sua distância para com os psicanalistas da linha inglesa. Os primeiros: “dissidentes” (p. 9), “animada gente lacaniana” (p. 9). Os segundos: “ortodoxos filiados à International Psychoanalytical Association” (p. 9), “mais freudianos que o Analista de Bagé” (p. 9).
A preocupação com uma psicanálise envolvida com as questões nacionais prosseguiu em Maneiras do divã brasileiro (Trindade, 1988). A matéria trazia declarações de analistas como Marco Antonio Coutinho Jorge, Theodor Lowenkron, Potiguara Mendes da Silveira Júnior e MD Magno. Afirmava que os psicanalistas intervinham, por meio do divã jornalístico, no debate público. Notamos que os lacanianos atuavam como precursores da discussão sobre os rumos da psicanálise no Brasil. A questão colocada era sobre a indústria psicanalítica brasileira: know-how estrangeiro ou tecnologia nacional? Ela vinha acompanhada de reflexões acerca de qual sintoma a psicanálise brasileira expressava, sendo a abordagem de Lacan definida por sua vocação para a ruptura com as hierarquias institucionais. A perspectiva lacaniana representava uma renovação da leitura freudiana na visão dos entrevistados, que voltaram a criticar o autoritarismo da IPA. MD Magno propunha que a psicanálise fosse extensiva, que interviesse “analiticamente na cultura, no social” (p. 1). Essa concepção ressoou em O país e seus problemas (1985), um grande debate entre dois lacanianos (Betty Milan e Octavio de Souza), dois kleinianos (Waldemar Zusman e Sérvulo Figueira) e um junguiano (Marcos Gebara) em torno de “uma psicanálise desse sujeito chamado Brasil” (p. 4).
Em A polética da psicanálise,Mello (1986b) abordou a ética da psicanálise a partir das afirmações que Magno fez sobre o “caso Amílcar Lobo”. A discussão coincidiu com o lançamento do seminário 7 - A ética da psicanálise - na França. O Colégio Freudiano realizou um mutirão que abordou o tema, o que já estava combinado havia um ano, desde o Congresso de Psicanálise da Banana, como “projeto de intervenção dos analistas na cultura” (p. 2). A reportagem enfatizou a novidade do conceito de “polética” e o apresentou. Chama-nos atenção a escolha de tratar sobre a questão política da psicanálise pelo viés da tortura e as afirmações peremptórias e provocativas de Magno com relação à instituição ipeísta: “A psicanálise é incompatível com a tortura. Se naquela instituição houvesse vergonha na cara os dois teriam sido expulsos” (p. 2), referindo-se a Amílcar Lobo e a Leão Cabernite.
As divergências e provocações em relação às instituições ipeístas continuaram em outras reportagens. Em Lacanianos dão uma banana para a psicanálise (Alvarez, 1985, 12 de outubro), a diretora do Congresso de Psicanálise da Banana, Olandina M. C. de Assis Pacheco, enfatizou as diferenças e os conflitos dos lacanianos com as correntes freudiana e inglesa da psicanálise.
Mas não era somente dos psicanalistas filiados à IPA que MD Magno se esforçava para se afastar. Em Um sotaque brasileiro pós-Lacan (Mello, 1986a), a ousadia de seu projeto foi ressaltada e descrita como um “avanço da teoria psicanalítica, para além da repetição” (p. 9). Uma psicanálise brasileira, pós-lacaniana, sem sotaque alemão, inglês ou francês. Uma psicanálise que não partia da clínica, mas da cultura. Uma psicanálise que parecia não temer propor novos conceitos: pleroma, maneiro, falanjo, revirão, carnavalhação, neurose do mazombo, primo do angélico e Améfrica Ladina são alguns dos exemplares que apareceram na notícia.
Foi quando outra divergência se explicitou, desta vez entre lacanianos. Em janeiro de 1989, Jacques-Alain Miller concedeu uma entrevista a um jornal, tecendo críticas a MD Magno. Genro de Jacques Lacan enfrenta a ética da psicanálise (Costa, 1989) trouxe o conteúdo da entrevista realizada em Paris. A introdução da matéria começou com a frase: “Mais uma vez, a psicanálise é polêmica” (p. E8). A oposição era a de sempre: freudianos ortodoxos versus seguidores da “revolução” lacaniana. Acompanhado de Jorge Forbes, coordenador da Causa Freudiana no Brasil, Miller difundiu o 2º Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, ocorrido em São Paulo, cujo tema foi A ética da psicanálise: suas incidências clínicas. Ainda na apresentação do material, o jornalista utilizou o significante “ferino” para se referir a Miller no momento em que ele afirmou que “seu pessoal, ligado ao Campo Freudiano do Brasil, não tem nada a ver com Magno Machado Dias, do Rio, porque os verdadeiros lacanianos se distinguem pela ‘seriedade’ e ‘aplicação’, entre outras qualidades”. (p. E8, grifo nosso). Difícil não deduzir a mensagem implícita de que Forbes era o verdadeiro exemplo brasileiro de seriedade e aplicação, uma espécie de representante milleriano em ultramar.
Interessante notar a manobra que Miller realizou para enunciar suas críticas a Magno. O entrevistador o indagou sobre as mudanças na ética da psicanálise desde o seminário de Lacan de 1960. Ele não respondeu e se ofereceu para precisar o colóquio de São Paulo que ocorreria em julho, afirmando em sequência que o congresso seria o “segundo turno” do Campo Freudiano no Brasil. “O ensino de Lacan interessa ao Brasil há quase 20 anos, mas não havia encontrado até o presente uma forma de expressão potente, combinada e sistemática.” (p. E8). Essa artimanha o permitiu abordar o que ele considerava os tempos do ensino de Lacan no Brasil e atacar frontalmente o grupo vinculado a MD Magno: celebridade de Paris (1º tempo); nome conhecido com certo brilho e reputação duvidosa (2º tempo); saber o que é Lacan (3º tempo). Parece-nos que os eventos formativos do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, entre eles o Congresso de Psicanálise da Banana, estariam inseridos no 2º tempo. Miller, então, desqualificou Magno, alvejando a primeira instituição lacaniana brasileira, da qual ele era presidente: “É quando nós vemos que os psicanalistas próximos a Lacan não são os Magnos e, pelo contrário, se distinguem pela seriedade do trabalho, pela moderação do comportamento, pela erudição e aplicação de que fazem prova.” (p. E8, grifo nosso).
A entrevista de Miller repercutiu na imprensa do Rio de Janeiro, onde Magno estava radicado. A cada um segundo seu desejo (Miranda, 1989) retomou as declarações de Miller sobre Magno e reafirmou que o psicanalista francês acusou o colega de falta de seriedade, falta de moderação do comportamento, falta de erudição e falta de aplicação no seu trabalho. A matéria fez referência ao caráter afrontoso e nada decoroso de Lacan, ao relevo que ele deu ao aspecto revolucionário ou subversivo da psicanálise, à crítica aos modelos de comportamento. Sugeriu que Miller ficaria “pouco à vontade” (p. 1) com sua acusação diante da questão do desejo expressa na obra de Lacan. Após informar que “Magno não parece preocupado com as críticas millerianas” (p. 1), a matéria concluiu que “a tendência é o farpado sair ganhando: a propaganda é a alma do negócio.” (p. 1).
Discussão: Fronts Psicanalíticos. Conquista, Expansão e Defesa
Nas reportagens estudadas são recorrentes as celeumas entre lacanianos e psicanalistas filiados à IPA. Lacan, a nosso ver, sempre surge acompanhado por um ar de heroísmo, como um intelectual que foi perseguido e expulso da IPA devido a suas ideias inovadoras acerca da ética e da técnica psicanalíticas. A proposta de retorno a Freud, como nos lembra Tadei (2002), carrega elementos do romantismo: um retorno às origens não adulteradas, corrompidas após a morte de Freud.
No início da década de 1950, o freudismo clássico foi perdendo relevância na IPA. Na década de 1980, preponderava a perspectiva da psicanálise inglesa, sobretudo Klein e Bion (Tadei, 2002). Esses elementos nos auxiliam a contextualizar o discurso corrente entre lacanianos, representado pela troca de farpas com os chamados ortodoxos e por ideias tais como “restaurar a verdade freudiana”; “lutarmos por nosso mestre, seguindo os caminhos que Lacan apontou…”.
Outro ponto que nos parece relevante é a busca dos lacanianos pela afirmação da psicanálise no Brasil. A abordagem sobre a conjuntura do país, os problemas nacionais e a identidade do brasileiro ocorreu numa época de abertura política, na qual foi sancionada a Lei n. 6.683 e foi aprovada, em novembro de 1979, a reforma que reestabeleceu o pluripartidarismo no Brasil. Trata-se de um momento em que o país respirava ares de liberdade e os intelectuais estavam dispostos a pensar sobre ele. A população se mobilizava pelas eleições diretas.
A teoria lacaniana, nesse momento, despertou a atenção dos intelectuais brasileiros de esquerda. Seu pensamento interessava por sua disposição para a ruptura com as hierarquias institucionais. Daí a aposta dos lacanianos em uma psicanálise afeiçoada às questões nacionais, uma psicanálise em extensão que interceda “analiticamente na cultura, no social”.
No clima da possibilidade de redemocratização do país, os organizadores do Congresso Psicanalítico da Banana começam a discutir a inserção da psicanálise em solo nacional a partir de elementos da nossa cultura. MD Magno se preocupa com a repetição da psicanálise que inibe seus avanços, propondo uma psicanálise brasileira sem o sotaque europeu. Essa orientação está calcada no conceito de polética abordado num seminário proferido por ele. Esse seminário versou sobre o estabelecimento de uma política da psicanálise essencialmente associada ao seu fundamento ético. Ou seja, a ética da diferença é inerente à polética (Magno, 1986).
Em nossa construção, tomando como referência a pesquisa historiográfica, apoiada na sequência dos fatos, o trabalho com o conceito de polética seria uma advertência sobre acontecimentos futuros. “Se um diferente pratica sobre outro diferente - diferente com aquelas diferenças que a Lei produziu pela sua ação - o assassínio, ele abole a Lei” (Magno, 1986, p. 11).
A entrevista concedida por Miller à Folha de São Paulo (Costa, 1989) revela, entre outras coisas, a tentativa de anulação das diferenças. Lembremos que essa entrevista sucede o incidente ocorrido em junho de 1985, que envolveu a Fondation du Champ Freudien, instituição francesa, e os lacanianos brasileiros ligados a A Causa Freudiana do Brasil, em virtude de um encontro proposto por Jacques-Alain Miller um ano antes. Nesse episódio, os lacanianos brasileiros perceberam a intenção da instituição francesa em tutelar as relações entre as várias instituições lacanianas do país. 9
O grupo ligado a Magno reage a essa tentativa de tutela e publica um manifesto em que afirma:
não sugerimos aos nossos, nem a xenofobia militante, nem a subserviência mansa do colonizado - e sim, como nos ensinou Oswald de Andrade, momento em que nos apontou talvez o coração da nossa sintomática, insistimos sim na assimilação, mas com boca própria, por antropofagia (ou heterofagia). O desejo de assimilar o Outro - “só me interessa o que não é meu” -, que Oswald aponta haver no brasileiro, nele se coaduna muito bem com seu vigor de castração “contra todas as catequeses” (Magno, 1985, p. 308).
Em conferência proferida em outubro de 1987, Magno e seu grupo insistem na contraposição política aos franceses. Ao denunciarem a tentativa de apropriação do mercado brasileiro de formação de analistas por eles, insinuam que seu objetivo é a obtenção de dividendos.
a gente pode dialogar, mas não fazer hegemonias desse tipo. Além do mais, o que vejo nesse tipo de investida é muito mais da ordem do mercado. Não sei se o mercado europeu, por exemplo, está meio esgotado e é preciso arranjar um público um pouco maior para pagar as contas… É preciso a gente se precaver contra isto, e não deixar transformar em questão de psicanálise o que é questão de mercado. (Magno, 1988, p. 7).
Em que pesem as reações desse grupo e a distância que algumas associações de psicanalistas tomam com relação à proposta francesa, em agosto de 1994, decidiu-se pela formação da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), filiada à Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Miller, em carta datada de março de 1995, relembra os 13 anos de trabalhos e impasses para a criação da Escola Brasileira, referindo-se a esse período da seguinte forma: “parece-me que se perdeu muito tempo em dissensões subalternas”. (Miller, 1995, para. 6).
Seriam subalternas essas questões? Em nossa leitura, os entraves surgidos no Congresso de Psicanálise da Banana ressonarão na trajetória das instituições lacanianas brasileiras, promovendo impasses e rupturas.
Considerações Finais: A Dissolução da Transferência como uma Política não Discriminatória
Nas páginas anteriores, ao analisarmos as temáticas das matérias dos jornais, foi possível perceber um percurso em que uma contradição se fez presente: a chegada dos lacanianos, críticos ao rigor clássico dos analistas vinculados à IPA, inclusive com juízos acerca da indiferença deles para com os problemas sociais brasileiros. Contudo, as disputas entre colegas pela hegemonia no território e pelo prestígio social, perpassadas pelo significante verdadeira psicanálise, levam a um enrijecimento institucional em que a discriminação dos pares se torna uma marca no laço entre lacanianos.
Safouan (1985) nos lembra que, desde Situação da psicanálise em 1956, Lacan mostra que a dimensão da verdade que fala teve como consequência o fato de que a relação entre analistas foi organizada como uma relação social, fundada sobre o poder. Aqui temos uma organização baseada na soberania dos mais fortes sobre os mais fracos. Na Proposição de 1967, foi apresentada a ideia do gradus, que supostamente se realizaria durante uma análise. Enfatizava-se, assim, a posição subjetiva do analisando frente ao analista, colocando em evidência o conceito de transferência, que até então estava engolfado na pessoa do analista.
Nessa perspectiva, Safatle (2017) defende que o texto de 1967 tem implicações políticas explícitas. Elas se presentificam em uma reflexão sobre a estrutura da transferência. Ora, os laços sociais se formam a partir das identificações; estas, por sua vez, explicam as relações de poder com seus afetos e demandas de amor. Destarte, a transferência nos auxilia na compreensão dos modos de dominação.
A tese desse autor é que a emancipação seria possível a partir da liquidação da transferência, ou seja, ela teria a forma de uma solução transferencial. Para o percurso histórico apresentado nas páginas anteriores isso é fundamental, pois tal liquidação ou solução traz de forma intrínseca questões relacionadas ao destino da experiência do saber.
Não seria possível em texto breve - e nem é nosso objetivo - retomar por extenso a problemática do poder em Foucault, trabalho realizado por outros com a devida competência. Interessa-nos, neste momento, o uso de alguns elementos da analítica foucaultiana do poder, proposta por Lima (2015) para a historiografia da psicanálise, para buscarmos, ainda que de forma breve, o diálogo com a tese da emancipação. Ele destaca que, para Foucault, existe uma articulação possível entre as esferas do saber e do poder. No percurso foucaultiano da arqueologia à genealogia, a indagação “quem fala” se torna subsidiária do que se deve apreender na superfície do discurso pela questão “o que se pode falar?” Assim, o poder, em sua relação intrínseca com a liberdade, incide sobre a ação do outro.
Dessas considerações, dois pontos merecem ser destacados. O poder gera resistência e a relação que ele engendra reiteradamente gera produção. A reação à tutela francesa corporificada no Congresso de Psicanálise da Banana ameaçou a Fondation du Champ Freudien. A contrarreação foi calcada nos significantes o que é Lacan e verdadeira psicanálise, o que seria de domínio exclusivo dos franceses. Esses significantes, utilizados pelo herdeiro de Lacan, circulam em sua busca intensa pela hegemonia interpretativa da obra, atrelada a uma concepção de soberania do território.
Aproximar a trama conceitual lacaniana dos problemas sociais e da cultura brasileira supostamente seria trair o “verdadeiro Lacan”. O movimento de liberação dos colonizados seria um passo fundamental para a emancipação. Esta incluiria uma definição de formas aceitáveis, possíveis de organização político-institucional dos lacanianos brasileiros. A tese de Safatle (2017) que assevera a emancipação como dissolução da transferência pressupõe a queda de processos identificatórios responsáveis pela constituição imaginária do eu por intermédio de relações narcísicas. Assim, a resistência ao poder se daria na relação de si para consigo. A possibilidade de estar entre o pessoal que sabe o que é psicanálise e a pratica com seriedade funciona como uma promessa que aliena alguns.
Não é por acaso que a ausência de arquivos (manuscritos, notas, correspondências) sobre a obra de Lacan faz com que a história dela se mostre sem origens, sem fontes (Roudinesco, 2009). Essa maneira a-histórica de apresentar o texto lacaniano, conduzida por seu legatário, produz o domínio imaginário. Supostamente, para saber de Lacan é preciso ouvir dizer quem sabe interpretá-lo. Instaura-se, dessa forma, uma identificação que nasce como resultado da transferência e que deve ser mantida intacta sob o significante “fidelidade”. Percebemos um contrassenso, pois na perspectiva lacaniana a transferência é a materialização de uma relação com o engano, que consiste em o sujeito atribuir a um outro um sentido absoluto (Lacan, 1967/2003). Como resto dessa operação tem-se a discriminação dos “infiéis”, daqueles que se distanciaram da “verdadeira psicanálise”.
Não parece ser outra coisa o que encontramos na Notícia deixada por Miller quando do estabelecimento do primeiro seminário do qual participara, sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: “Aqui se quis não ser levado em conta, e procurar, da obra falada de Jacques Lacan, a transcrição que terá fé, e valerá, no futuro, como o original, que não existe.” (Lacan, 1964/2008, p. 269). Com efeito, se “o original não existe” e o autor da transcrição (e efetivo coautor dos seminários 10) “não é levado em conta”, não há maneira possível de se questionar a fidelidade de sua abordagem da psicanálise.
A chegada das instituições lacanianas ao Brasil traz consigo as marcas do laço social fundado em identificações maciças que, ao exigirem fidelidade, mostram-se ameaçadas com a possibilidade de circulação do poder. Cria-se, assim, um obstáculo para lidar com as diferenças, ou seja, os não identificados com determinado grupo tornam-se uma massa homogênea, os menos psicanalistas. A discriminação no laço social 11 entre analistas surge como subproduto da ausência de uma proposta política que considere a presença do real e seu papel na circulação dos processos identificatórios para a emancipação dos sujeitos. Essa questão, desde 1910, com o Comitê Secreto e sua missão de manter “pureza doutrinal”, retorna entre analistas.