Descolonização Terminável e Interminável?
“Quando foi o pós-colonial?” Com esses termos Hall (2003, p. 95) coloca uma questão vertiginosa para o pensamento debruçado sobre o enraizamento colonial de seus próprios alicerces. Trata-se aí de um trabalho crítico de larga escala, que envolve colocar em perspectiva os diversos e multifacetados processos de exploração colonial e seus legados epistêmicos, bem como as contrapartidas de lutas e insurreições que não cessaram de se inscrever no tecido cultural de cada povo subjugado. Todavia, não é sem ambiguidades que a noção de pós-colonialidade é colocada em circulação. Tais ambiguidades envolvem desde os sentidos assumidos pelo prefixo ‘pós’, até as proximidades e distanciamentos com respeito a categorias aparentemente correlatas, como as de pós-moderno, pós-ocidental, neocolonialismo, terceiro mundismo, pós-fundacionismo, subalternidade, etc. Também compõem esse quadro de ambiguidades as oscilações entre usos descritivos e prescritivos do termo, além de efeitos como o de tornar turvas certas oposições que serviam de base segura para orientar tomadas de posição políticas.
Hall (2003) retoma e discute tais ambiguidades, mostrando que elas são problemáticas, mas nem sempre nas direções até então apontadas. Consideremos, por exemplo, o diagnóstico de que há certo pendor universalista na crítica pós-colonial, posto que se tende a assumir todas as pós-colônias num mesmo sentido, ou seja, reinscrevendo processos históricos e formações sociais e raciais dentro de uma mesma dinâmica temporal, pertencente a uma espécie de horizonte transcendental único. Hall não contesta a multiplicidade de processos concretos, mas questiona justamente as implicações dessa recusa ao alto nível de abstração a partir do qual o conceito de pós-colonial é chamado a operar. Isso porque a tendência universalizante dessa noção não precisa implicar uma periodização cronológica linear a ser imposta a todos os contextos, nem distinguir com exatidão binarismos antagônicos estruturantes. Se as guerras por independência, as lutas por libertação, as formações de Estados nacionais envolveram processos longos e diferenciados, tais processos não podem ser simplesmente isolados das maneiras pelas quais os prolongados processos de colonização marcaram “com igual intensidade as sociedades colonizadoras e as colonizadas (de formas distintas, é claro)” (Hall, 2003, p. 101). Ao que ele acrescenta:
De fato, uma das principais contribuições do termo “pós-colonial” tem sido dirigir nossa atenção para o fato de que a colonização nunca foi algo externo às sociedades das metrópoles imperiais. Sempre esteve profundamente inscrita nelas - da mesma forma como se tornou indelevelmente inscrita nas culturas dos colonizados. Os efeitos negativos desse processo forneceram os fundamentos da mobilização política anticolonial e resultaram no esforço de retornar a um conjunto alternativo de origens culturais não contaminadas pela experiência colonial. … Contudo, no que diz respeito ao retorno absoluto a um conjunto puro de origens não-contaminadas, os efeitos culturais e históricos a longo prazo do “transculturalismo” que caracterizou a experiência colonizadora demonstram ser irreversíveis. As diferenças entre as culturas colonizadora e colonizada permanecem profundas. Mas nunca operaram de maneira absolutamente binária, nem certamente o fazem mais. (Hall, 2003, pp. 101-102)
Hall, portanto, defende que o universalismo implicado no chamado pós-colonialismo não é o de um horizonte transcendental, que estabeleceria as mesmas condições de possibilidade para todos os fenômenos de um mesmo campo, mas o de um horizonte histórico global, de “relações transversais e laterais que … complementam e ao mesmo tempo deslocam as noções de centro e periferia”, relações que mostram como “o global e o local reorganizam e moldam um ao outro” (Hall, 2003, p. 102-103) 1.
Mais significativa para nossos propósitos aqui, no entanto, é a insistência no modo como a colonialidade se inscreve profundamente nas formações culturais das sociedades envolvidas. Esse é um ponto decisivo, pois se desdobra nessa ambiguidade marcante do pós-colonialismo, a saber, a de nomear algo como um momento posterior ao do colonialismo. Quer seja entendido como o período histórico posterior às independências com relação às metrópoles, quer como uma libertação mais profunda ainda a ser construída, o prefixo ‘pós’ parece de fato desviar a atenção para essas marcas profundas que a exploração colonial deixou. Daí que uma parte da crítica tenha forjado categorias como as de colonialidade do poder, ou colonialidade do saber para tratar dessas marcas políticas e epistêmicas que consolidaram todo um conjunto de formas de pensar e agir referenciadas na exploração racializada e na dominação de gênero, entre outros fatores.
É a partir de e sobre tais inscrições profundas que os compromissos éticos e políticos pós-coloniais devem incidir. São compromissos porque não se trata de pensar que inscrições dessa ordem se apagam apenas com a circulação de obras intelectuais de desconstrução do legado colonial. O arraigamento desse legado aponta para um trabalho prolongado e comprometido de subversão e sublevação comum. O assim chamado giro pós-colonial ou giro decolonial parece não dar conta dessas implicações, propondo uma reconfiguração conceitual e epistêmica que mantém enraizamentos paradigmáticos, por assim dizer, com os saberes constituídos 2.
Dentro desse cenário, pensamos ser de grande utilidade uma proposta teórica elaborada por Bispo dos Santos (2015) segundo a qual seria importante, na lida com questões étnico-raciais, traçar uma distinção entre descolonização e contracolonização. O primeiro conceito diz respeito ao pensamento formado dentro de uma matriz eurocêntrica. Essa matriz está na raiz de uma instituição na qual nos formamos e atuamos, e que traz em seu nome, Universidade, algo que nos espelha: uma espécie de estrutura do saber que se pretende universal (aqui, no sentido mais restrito de um horizonte transcendental que estabelece validade apodítica para determinados conhecimentos). A descolonização dessa instituição em particular, a qual chamamos também de academia, passaria, entre outras coisas, por uma ação que nós podemos realizar enquanto identificação e problematização desse horizonte de inteligibilidade para o saber, e das dinâmicas históricas de poder a ele associadas. A ideia é que daí possa decorrer uma abertura de espaço para que outras formas de conhecimento coloquem seu pleito de validade dentro desse precioso espaço formativo. Ao mesmo tempo, os efeitos de tensionamento aí em questão poderiam igualmente permitir a reivindicação de pleno reconhecimento de espaços fora da academia como tendo relevância formativa para práticas culturalmente estabelecidas. A descolonização apareceria então como uma luta para transformar, a partir de dentro, a Universidade, abrindo espaço para a democratização do acesso aos saberes e uma necessária ampliação epistêmica do que a própria academia hoje é capaz de produzir.
Esse desdobramento já nos leva ao segundo conceito, o de contracolonização, que consiste justamente nessa ampliação epistêmica: a elaboração discursiva de saberes nos termos dos próprios sujeitos; sujeitos que historicamente tiveram suas práticas, tradições e concepções subalternizadas e rejeitadas. Tal elaboração se constrói em um diálogo horizontal, em espaços de produção de conhecimento socialmente reconhecidos. Não se trata, portanto, de uma defesa relativista de que diversas explicações e dimensões teóricas seriam igualmente boas. Trata-se de destituir a hegemonia, para áreas específicas do saber, de certas imposições metodológicas e teóricas, que muitas vezes só figuram no mosaico formativo de estudantes por sua proveniência europeia, ou ocidentalista, como preferem alguns. Tampouco se trata de um engajamento meramente intelectual: a contracolonização acadêmica é uma retomada, ou uma reinserção de lutas históricas nesse espaço institucional estratégico. Para dar sentido a essa densidade histórica das lutas, vejamos como Bispo dos Santos (2015, p. 48) as caracteriza: “contracolonização [são] todos os processos de resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contracolonizadores, os símbolos, as significações e os modos de vida praticados nesses territórios”. Mas tal atualização das insurreições não se limita a espaços institucionais fechados e normatizados. Tais territórios são também os espaços abertos de circulação comum dos centros urbanos, assim como os espaços de trabalho clínico, como aqueles nos quais a psicanálise tece sua atuação enquanto tratamento anímico. O aquilombamento da clínica 3 poderia ser visto como uma atuação contracolonial nos termos como a compreendemos, e as influências da obra de Gonzalez são decisivas aí.
Gonzalez trabalha na fronteira, no limiar, ou melhor, na encruzilhada 4 entre descolonização e contracolonização da psicanálise brasileira - sendo nosso propósito aqui fundamentar essa tese. O tensionamento que ela lança à branquitude acadêmica 5 não visa à imobilidade. Darmo-nos conta do abismo entre marcadores não nos impede de afirmar o “ponto fanoniano” 6, dialético, de postura antirracista que nos aproxima. Aliás, paradoxalmente, são movimentos complementares: perceber o abismo histórico entre dois marcadores sociais (um de privilégio e outro de subalternização) é uma condição para o engajamento na luta antirracista; e o desejo desse engajamento favorece a percepção do abismo. Talvez a psicanálise auxilie o reconhecimento de nossos marcadores sociais e as lentes pelas quais olhamos o mundo, como parte do processo de não-subsunção a eles - uma espécie de deslocamento narcísico que advém de uma formação histórico-crítica.
Da Descolonização da Linguagem: A Fala Viva do Pretuguês
Lélia Gonzalez fez convergirem, a partir do contexto brasileiro, a teoria psicanalítica lacaniana e as teorias marxista, contracolonial e feminista. Essa articulação de temas e linhas teóricas se condensa no momento em que Lélia fala de si. Nascida em Belo Horizonte, filha do ferroviário Accacio Joaquim de Almeida e de Urcinda Serafim de Almeida, uma empregada doméstica de origem indígena, ela teve dezoito irmãos. Seu pai morreu quando ainda era criança.
Lélia se muda para o Rio de Janeiro em 1942. Apesar das dificuldades, em 1954, conclui o ensino médio e, em seguida, gradua-se em História e Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A partir daí sua trajetória começa a ganhar relevância nacional. Torna-se um ícone dos estudos sobre negritude no Brasil, sendo uma das fundadoras do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro e membro do Movimento Negro Unificado. Ao longo de suas pesquisas, especialmente no doutorado, especializa-se nas temáticas de gênero, raça, etnia e classe, sendo o texto Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira um momento notável desta transversalização.
A complexidade do pensamento de Lélia reside menos no uso instrumental da erudição, e mais na pertinência política em trazer tais recortes teóricos para dizer de si, de seu sofrimento concreto, para o mundo. Seu compromisso é com a ética, com a práxis. Sua formação psicanalítica não esteve alheia à sua raça, seu gênero, sua origem socioeconômica ou sua trajetória de vida. Pelo contrário, é na interface dessas camadas, na dialética entre o social e o subjetivo, que Lélia teoriza e se expressa. E se trata de uma expressão generosa e corajosa, na medida em que inaugura, através da tematização de sua particularidade, uma complexidade ao pensamento social propriamente brasileiro. A leitura de seus textos convoca à problematização de nosso lugar nas estruturas de poder no discurso social e político.
Já na primeira página do texto supracitado, somos interpelados ao exercício de estranhamento dos nossos marcadores sociais e das relações de poder nas quais tomamos parte uma vez inseridos na academia (mesmo aqueles supostamente implicados com lutas antidiscriminatórias, seja no campo racial, de gênero ou de classe). Gonzalez (1984) tensiona a reflexão sobre a reprodução, em nós, do colonialismo no campo acadêmico - a chamada colonialidade do saber. Assim, ela critica a delegação de resoluções a um único grupo, ou seja, evita a divisão entre aqueles que são o problema e aqueles que fazem parte da solução, pois todos estamos inseridos nesse cenário de “duplo narcisismo”, diria Fanon 7. Assim, a psicanálise pode ser uma ferramenta estratégica na elaboração de nossas demandas e na construção das lutas contra a estrutura de poder racializada, sexista e patriarcal à qual pertencemos, uma vez que ela seria capaz de fornecer chaves de elaboração para um trauma racial histórico constitutivo da brasilidade.
Nesse processo, a palavra e a linguagem, enquanto construtos históricos, enquanto práticas sociais condensadas, podem ser tomadas como um elemento primário de reflexão coletiva. Ora, se controlar a gramática é um dos eixos fundamentais do poder, Gonzalez (1984) toma a linguagem enquanto elemento de reflexão, e deformação. Enquanto fala sobre o racismo subjetivado em nós, recorre às sedimentações históricas que a linguagem abriga. Utiliza, portanto, a linguagem estabelecida para mostrar a necessidade de operar sua subversão. A proposição de neologismos como “pretuguês” e “Améfrica Ladina” 8 sinaliza precisamente a passagem da descolonização à contracolonização da linguagem, incidindo aí no ordenamento político que nossa linguagem encerra em si. Lélia se utiliza da psicanálise para explorar aquilo que a lógica colonial não consegue domesticar. Para tanto, ela não se apoia na cultura hegemônica dos formalismos acadêmicos; daqueles que encontraram a verdade e dizem o caminho para os demais. Assim, em distintos momentos, sua escrita assume a primeira pessoa do singular. Curioso que, dentro do padrão universitário ocidental, a indeterminação do autor reivindique caráter de verdade. É contraditório que a autoria seja tão fundamental para a academia, ao mesmo tempo em que se recomende a supressão do seu sujeito, na concretude das determinações históricas e sociais que ele necessariamente carrega. A suposta imparcialidade, o distanciamento necessário entre sujeito e “objeto” de estudo, é critério da produção científica, o que revela o caráter ideológico contido nessa pretensa neutralidade 9. A linguagem, sabemos, amalgama-se à própria natureza de um argumento. A linguagem acadêmica é parte constitutiva e constituinte de um lugar de saber que reifica as estruturas de poder. Na primeira pessoa do plural o sujeito se dilui no universal abstrato da comunidade científica. Tal fetichização é uma operação própria daquilo que se deseja naturalizar como verdade.
Devereux (2018) certa vez colocou em xeque a dicotomia entre subjetividade e objetividade pretendida pelo método científico moderno, uma vez que lhe interessava relacionar as decisões teóricas e metodológicas aos mecanismos de defesa dos pesquisadores. A racionalidade científica moderna dedicou-se a compreender e esquematizar a realidade ao seu redor, reificando a dicotomia entre o sujeito e o seu meio a partir de um eu conquistador que lê a realidade enquanto substância. O sujeito da ciência se libera da angústia de conhecer as suas disposições narcísicas ao se subtrair da pesquisa. Certamente um sujeito difuso, cuja indeterminação encarna a comunidade científica, expressa na primeira pessoa do plural. Mas temos aqui uma interrogação sobre as vinculações entre os condicionantes subjetivos e o estabelecimento dos marcadores teóricos e metodológicos da pesquisa, fazendo da angústia gerada pela inserção do pesquisador na cena investigativa um dispositivo fundamental da própria pesquisa. Abre-se, então, a possibilidade de que a psicanálise seja pensada como uma espécie de ferramenta metodológica para lidar criticamente com as ciências humanas e sociais. A partir dessa proposta, seria mais viável uma análise rigorosa, por exemplo, sobre como o nosso racismo se presentifica em nossas produções acadêmicas.
A Amefricanidade e as Consequências de sua Denegação
Gonzalez (1984) trabalha na chave acima apresentada, explícita ou implicitamente. Ela lança a tese de que o racismo é o sintoma da neurose cultural brasileira, articulando-o ao sexismo e ao patriarcado, o que faz das mulheres negras o grupo mais violentado e superexplorado no Brasil 10. A autora acusa a perversão da branquitude patriarcal, corporificada nos senhores, imposta às mulheres negras, ora através da subalternização, como na função de empregada doméstica; ora em posição de “objeto do desejo” desses mesmos senhores, na posição de “mulata do samba”. Ela faz perceber ainda que tais lugares sociais reservados à mulher negra descendem da escravidão, quando elas estavam submetidas ao trabalho de mucama e ama de leite - posições que transitam, diante do olhar do senhor, da posição de serviçal dos trabalhos da casa grande para a posição de escrava sexual. Retomando o que foi abordado mais acima, é possível reconhecer uma espécie de homologia entre esse olhar do senhor e aquele contido nas pretensões de certa figura dominante da racionalidade moderna.
Anteriormente, dissemos que a episteme hegemônica, amparada em seu pilar racial, passando pelas narrativas nacionais, foi estabelecida em oposição ao chamado “outro da modernidade” e a seus conhecimentos 11. Gonzalez (1984) se vale de duas categorias que facilitam a compreensão dessa dinâmica do ponto de vista psicanalítico, quais sejam: consciência e memória. A partir de tais conceitos, fica deflagrado o interesse dos agentes do capitalismo colonial em destruir os “sistemas de referência e da memória” dos povos originários e africanos, sendo tal agenda parte fundamental da estratégia de imposição de dominação a esses povos - e de uma determinada consciência, que toma uma leitura de mundo autorreferenciada como a própria realidade. Mas fica latente, também, as possibilidades contracoloniais da linguagem.
A memória, nas reflexões de Gonzalez (1984), emerge também a partir da linguagem como campo estratégico de luta. Ela revela um recalque que tenta obliterar lembranças coletivas, que carregam conteúdos culturais ancestrais. Ao anunciar que “o lixo vai falar”, ela se coloca como lixo, e, logo ao dizê-lo, já não o é mais 12. Ela utiliza arcabouços estabelecidos não para afirmá-los enquanto hegemônicos, mas como forma de sustentar a afirmação histórica e política de que a mãe da brasilidade é a mulher negra, que ensina o filho do senhor o seu idioma, o pretuguês:
Ora, na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise. E justamente a partir da alternativa proposta por Miller, ou seja: por que o negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar? E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa. (Gonzalez, 1984, p. 225)
Gonzalez (1984) toma a relação entre memória e consciência para falar do carnaval enquanto acontecimento social que marca traços velados da dinâmica afetiva escravocrata diante do mito da democracia racial. A perversidade do carnaval se endereçaria à mulher negra e pobre, descendente da ama de leite: o endeusamento da mulher negra no carnaval - "mulata deusa do meu samba", "que passa com graça/ fazendo pirraça/ fingindo inocente/ tirando o sossego da gente" - ocorre paralelamente à manutenção de sua subalternidade na posição de empregada doméstica, na relação capitalista que se reproduz no ambiente privado das famílias burguesas. Essa é sua sentença, castigo por ter ocupado durante o carnaval o lugar de “objeto de desejo” do senhor. Esse é o contraponto necessário para manter a colonialidade da dinâmica afetiva racista entre o senhor e a mucama. O ponto de referência é o desejo do homem branco, seja para manter o binômio escrava / ama de leite ou empregada doméstica / musa do carnaval. É esse o equilíbrio da economia libidinal da cultura brasileira, da liga social entre desejo e opressão, que sustenta a neurose racial - o racismo. O logro em manter o recalcado e em ocultar os sintomas é dado como a “normalidade” subjetiva.
Ainda sobre o carnaval, Simas (2021) percebe como o conteúdo latente se faz presente na narrativa mais manifesta. Os sambas-enredos de muitas escolas de samba, até poucas décadas atrás - especialmente durante a ditadura - exaltavam a colonização, contando os feitos de seus protagonistas. Pouca ou nenhuma atenção era dada ao ponto de vista do oprimido, escravizado e morto durante a barbárie. No entanto, as escolas de samba estão majoritariamente nas periferias brasileiras, sendo compostas pelo povo negro, por sua cultura, instrumentos e, sobretudo, pelos ritmos africanos e pelos toques para orixás. Existe, então, uma convivência entre gramáticas: a dita e a tocada. Já que a dita, a portuguesa, é a hegemônica, ela acaba sendo tomada como o primeiro nível do discurso, torna-se parte do nosso pronto entendimento. A gramática dos tambores, que sustenta o carnaval, é ensinada para poucos. É muito provável que os membros da bateria saibam perfeitamente para qual orixá estão tocando, mas grande parte do público consumidor do carnaval, especialmente aqueles que pagam para ver os desfiles na arquibancada da avenida, desconhecem tal idioma. Aplaudem o que querem ouvir, e se balançam ao ritmo dos deuses que seus antepassados tentaram eliminar. Hoje os sambas-enredos não admitem mais a exaltação do olhar colonial como antes, e as baterias seguem tocando pro santo.
Sobre esse ponto, cabe uma reflexão que remete ao nosso lugar enquanto pesquisadores, membros de uma comunidade acadêmica: a relação que o campo acadêmico mantém com os conhecimentos indígenas e afrocentrados, uma relação de espetacularização e canibalização (Carvalho, 2010). Se, num primeiro momento, a branquitude colonial estabeleceu uma relação ora de apropriação dos conhecimentos indígenas e africanos, ora de epistemicídio, desde a constituição burguesa do Estado brasileiro em geral as pesquisas acadêmicas mantém uma relação de consulta instrumental às comunidades estudadas. Fala-se das culturas subalternizadas e dos seus dramas históricos como forma de atender a uma demanda dos pesquisadores, numa “tradução” que atenda à pesquisa. O desejo do homem branco, símbolo da produção acadêmica e científica, segue sendo o referencial.
Uma Incursão Contracolonial: O Édipo Negro e Função Materna da Mãe Preta
Nos Estados Unidos de W.E.B. Du Bois, na Martinica e na França de Frantz Fanon, ou no Brasil de Alberto Guerreiro Ramos, Neusa Santos Souza e Lélia Gonzalez, diante das inúmeras barreiras impostas aos “não-brancos” (numa provocação sobre a referência), aqueles que conseguissem ascender socialmente enquanto exceção estariam destinados a tomar como modelo o que nunca seriam. Tais sujeitos ficam condenados a se posicionar em uma estrutura social que, independentemente de seu status, refletiria o trauma colonial; expondo-lhes à “patologia do branco” e ao “pacto” com a ideologia da branquitude. Uma leitura histórica minimamente comprometida já permite revelar o recalque crônico da nossa “amefricanidade”, ao ponto de produzirmos um quadro de “neurose cultural”, sintoma do nosso racismo estrutural 13.
Um conjunto de reflexões importantes, que lidam com a instituição do patriarcado colonial e a interdição da “mãe preta” enquanto figura maternal de famílias brancas, provém da obra de Rita Laura Segato; reflexões que gostaríamos de retomar em diálogo com os textos de Lélia Gonzalez que estamos trabalhando.
Segato (2006) percebe, em obras de arte do período colonial brasileiro, a progressiva desaparição da figura das “amas de leite” ou “amas-secas” nas obras fotográficas e artísticas que registravam bebês brancos, em geral da aristocracia, até o ponto de estarem totalmente retiradas da cena ou absolutamente veladas 14. Rita também pontua a ausência da inscrição dessas mulheres na literatura contemporânea 15, inclusive dentro da bibliografia psicanalítica, ainda que, ou justamente porque, esta seja uma figura maternal fundamental na formação identitária e psíquica de gerações brasileiras.
Segato (2006) considera o argumento de Malinowski - sobre o desacoplamento entre a estrutura edípica e suas manifestações concretas - para pensar a posição da mãe biológica e da babá no contexto brasileiro. Utiliza o conceito de “maternidade transferida”, de Suely Gomes Costa, para perceber historicamente a dinâmica afetiva de uma maternagem atravessada pela questão de raça, classe e gênero, desde a ama de leite até as babás. Caberia destacar alguns de seus aspectos: em primeiro lugar, a relação entre a babá e a mãe biológica é marcada pela superexploração típica das relações de trabalho brasileiras: assentada em uma extrema precariedade salarial herdada de um passado escravagista, tal relação resulta em peculiar opressão, que borra as fronteiras entre o oferecimento de um serviço doméstico e um pertencimento familiar pelo encargo da criança, filha de seus contratantes.
Seguindo uma compreensão psicanalítica, lembremos como bebês possuem uma relação de espelhamento com a mãe, ou melhor, com quem exerce a função materna, como se, através dela, pudesse ter algum contorno de si. Posteriormente, essa mesma pessoa acaba sendo um dos primeiros objetos de amor da criança e de fornecimento de um ideal de Eu. Nesses dois primeiros momentos do desenvolvimento subjetivo (até os seis anos, mais ou menos), pela lente lacaniana, a criança pode tender a um sentimento de posse, de propriedade, com quem exerce a função materna, sendo que tal sentimento pode não se reduzir à tenra infância. Na realidade colonial brasileira - considerando a dinâmica afetiva a partir da chave da ama de leite, secularizada enquanto babá -, a condição literal de propriedade de um senhor sobre a ama de leite duplica aquele sentimento de posse. Ocorre que tal posse sobre o objeto de desejo é realizada na vida adulta apenas parcialmente pois, havendo uma interdição moral de um vínculo amoroso reconhecido entre o homem branco e uma mulher preta, reeditando aquela primeira escolha objetal, interdição que é própria de uma sociedade racista, tal objeto de desejo só pode ser acessado em modalidades, por assim dizer, extraconjugais. A nosso ver, tal interdição do vínculo amoroso racializado reforçaria o “diagnóstico” de neurose da cultura brasileira feita por Gonzalez (1984), curiosamente ausente do texto de Segato 16.
Da parte da mãe escrava tampouco existe a possibilidade de realização do vínculo amoroso, pois a “consciência de um passado” revela que ela não teve outras escolhas de vida/trabalho, seja pela escravidão ou pela pobreza decorrente do racismo. Sua relação com o filho da sinhá também é, ao menos na origem, instrumental, porque vinculada ao seu trabalho. Aqui, cabe pontuar que a “consciência de um passado” dialoga com o uso das categorias “consciência” e “memória” na obra de Gonzalez (1984), quando esta aborda as “falhas” da linguagem hegemônica e a afirmação do “pretuguês”, como exposto adiante. A consciência de um passado traz um paralelo com o recuperado da memória, ou seja, com o trabalho elaborativo, que possibilita a diferença na lide com os elementos traumáticos.
Ainda seguindo o rastro da “maternidade transferida”, Segato (2006) lembra da suposição de um saber médico científico do período pós-colonial segundo o qual o ato sexual deveria ser vetado às mulheres grávidas, uma vez que o sêmen poderia contaminar o leite materno, estimulando a inclusão da mucama na esfera afetivo-sexual dos seus patrões. Por fim, retoma a vigência de um olhar patriarcal escravocrata existente na segunda metade do século XIX que condenava o chamado “aleitamento mercenário” - referente àquelas amas de leite que deixavam a amamentação de seus próprios filhos para vender o seu serviço ao senhor e à sinhá - e exaltava as que ofereciam esse serviço sem cobrar, vistas como de boa índole.
Se essa mulher negra, subalternizada, que exerce a função de uma maternidade transferida, é ocultada nos registros de uma sociedade que pretende manter o mito da democracia racial, ficando ausente da hermenêutica intelectual e psicanalítica hegemônica, na tradição Yorubá ocorreria o contrário. A partir de sua vivência no Xangô do Recife, Segato (2006) reforça e existência dessa figura a partir da mitologia de Iemanjá e Oxum 17; ou, inversamente, na “maldição da malinche”, a presença de uma mãe biológica, indígena, inscrita na formação identitária da nação mexicana, ainda que esta maternidade seja fruto de um estupro.
A autora lança mão do conceito de foraclusão 18 para caracterizar essa ausência de inscrição da mãe preta, ama de leite e/ou babá da iconografia e da produção literária e acadêmica, enquanto correspondente do desconhecimento simultâneo do materno e do racial, do negro e da mãe. O racismo e a misoginia estariam condensados no mesmo gesto psíquico, revelando camadas importantes para pensar as manifestações concretas do complexo de édipo no contexto brasileiro. Diz ela: “A foraclusão da raça encarnada na mãe é fundamentalmente isso: é o acatamento da modernidade colonial como sintoma” Segato (2006, p. 16). Essa negação via foraclusão seria mais radical do que a efetuada pelo recalque, uma vez que, enquanto este último pressupõe um momento anterior de inscrição, posteriormente recalcado, o primeiro diz respeito à ausência dessa inscrição, gerando a impossibilidade fundante de instalar a negritude da mãe no discurso: “Estamos falando do que não se pode nomear, nem como próprio nem como alheio” Segato (2006, p. 18).
Se Gonzalez pretende afirmar o lugar da mãe preta como o único, sendo a sinhá a outra, Segato (2006) abre espaço para perceber o trânsito entre a mãe preta e a biológica na função materna, marcada pela relação de posse que o racismo escravocrata inscreve. É por esse caminho que chega ao conceito de Édipo Negro e importantes desdobramentos, como o da falência da função paterna e de sua atuação pela mãe biológica 19. Sendo a racionalidade moderna encarnada em um homem, a objetificação e a posse sobre o corpo da mulher, ainda que não negra, fusionaria a maternidade e a escravidão. Portanto, Segato segue um caminho diferente de Gonzalez para chegar à vinculação intrínseca entre o patriarcado colonial e o racismo.
Cabe refletir sobre os desdobramentos que o termo foraclusão estabelece. Se, quando referente ao pai, favorece a compreensão de uma dinâmica psicótica, enquanto referente à mãe, esta é projetada sobre um fenômeno crônico, social e histórico que marca a nação. Essa radicalidade parece apontar para uma grande dificuldade na alteração desta dinâmica - seja do ponto de vista colonial sobre a função materna, da mulher negra, em famílias brancas, seja enquanto escrava ou empregada.
O diagnóstico da indissociabilidade entre a misoginia patriarcal, o racismo e o classismo na impossibilidade de reconhecimento da mãe preta é um ponto de intersecção entre Segato e Lélia. No entanto, Gonzalez (1984) faz uma afirmativa política invertida da hermenêutica hegemônica que sustenta narrativas da nossa formação histórico-cultural. Afirma que a “mãe preta” é a mãe de fato do “herdeiro da família da casa grande”, esse que “encarna a voz oficial da cultura brasileira”, pois é ela quem o cria. A mãe biológica, a sinhá, é a outra. Pariu mas não criou. A mãe é preta e o pai está pra ser nomeado por ela. Enquanto isso, nos diz Lélia, invertendo os polos e abrindo horizonte para uma nova compreensão da estrutura de poder, “o senhor é o corno, no máximo, o tio”. A função materna diz respeito à transmissão de mensagens inconscientes e valores, ao ensino da linguagem, às condutas sociais e a própria nomeação do pai. Então, a mãe é a mãe preta. E esse pai não está tão bem definido como a mãe, inclusive porque vira as costas muitas vezes à sua prole, como fazem costumeiramente as elites das colônias com seu povo. Se Dom Pedro I tem algum apelo, com sua nobre brancura europeia, para ocupar esse lugar, Lélia cita outros “pais” possíveis para essa nação de maioria negra: representações populares do herói como Macunaíma, Zumbi, Ganga Zumba. Esses heróis resistem ao tempo, ao apelo dos heróis importados, à tentativa de acabar com a nossa memória, dos livros didáticos à grande mídia cotidiana que insistem em naturalizar o genocídio negro.
Conclusão: Descolonização Interminável?
O projeto contracolonial de interpretação da nossa maternagem significa, em termos psicanalíticos, uma outra postura diante da inscrição da mãe na formação psíquica da nação. O termo foraclusão sublinha esse sentido de antecipação à inscrição e, por consequência, a possível debilidade no trato do trauma, dos sintomas do patriarcado e do racismo. Gonzalez (1984), ao falar em termos de neurose, ressalta a memória recalcada enquanto possibilidade de resistência à consciência burguesa. Elementos emancipatórios resistem na linguagem. Estão aí, no pretuguês. Perpetuam-se na memória e aparecem entre supressões, tidas por aquela consciência como “erros gramaticais” 20 e em diversos outros termos utilizados correntemente por todos os brasileiros, em sua maioria ignorados quanto a suas origens.
A chamada cultura popular, muitas vezes entendida de forma estagnada no tempo, enquanto conjunto de artefatos culturais de um passado, de um folclore nacional, são compreendidos por Lélia (1984) como “objetos parciais” da nossa brasilidade. O objeto parcial mais ilustrativo desse mecanismo de defesa é a adoração à bunda, especialmente de mulheres negras. Este é o objeto para o qual é canalizado o desejo na impossibilidade da experiência amorosa com a mulher inteira. O próprio termo “bunda”, nos explica Lélia, é uma língua africana, falada pelos bundos, que constituem a etnia banto. Aqui temos uma evidência, carregada de muitas e complexas camadas de significação social, do pretuguês.
Por fim, é importante registrar que Segato e Gonzalez traçam diagnósticos não-estáticos e que, guardadas as suas diferenças e impactos políticos, não precisam ser contrapostos. No caso de Segato podemos entender como os não-brancos, especialmente, mulheres, foram foracluidos da ideia de humanidade, de civilização, de razão, de cultura, como parte de uma operação necessária para naturalizar a sua subjugação aos imperativos do capitalismo e de um patriarcado racista. Mas certamente essa tentativa de foraclusão encontra resistência, afinal a população não-branca nunca deixou de lutar pelo reconhecimento de sua soberania e de novas formas de sua inscrição no ethos cultural brasileiro. Na própria obra em questão existe um elemento ilustrativo que parece se coadunar com o diagnóstico de recalcamento e neurose que Gonzalez atribui ao funcionamento do racismo brasileiro: a pesquisa sobre a qual Segato se apoia diz respeito a uma progressiva desaparição das amas de leite. O caráter progressivo aqui não seria, então, correspondente à total ausência de inscrição, mas a uma intencionalidade de ocultamento por sua indesejada ou insuportável aparição, algo mais próximo à dinâmica do recalque.
Por outro lado, poderíamos aludir à ideia de que a dinâmica neurótica não é pura, absoluta. A própria Gonzalez, em texto posterior (1988), descreve a recusa à nossa ladino-amefricanidade como denegação, sendo ela parte do mecanismo da neurose cultural de onde emerge o racismo enquanto sintoma. Assim, se podemos identificar um momento agudo de foraclusão durante a construção dos pilares coloniais para compor entendimentos sobre o mundo onde a raça aparecesse como um desígnio divino - e não uma criação europeia para viabilizar um capitalismo escravagista em termos globais; podemos também entender que ao longo dos anos o recalque atuou como forma de invisibilizar as reivindicações étnico-raciais, compondo uma sociedade neuroticamente racista; e, ainda, onde a denegação viria como parte do uso perverso das estruturas, racistas, de poder. Em seu limite, muitas vezes impreciso, a neurose poderia admitir outro sofrimento abismal, no qual reside, à espreita, a loucura.
O entendimento de ambas sobre a realidade brasileira contém em seu cerne um projeto político de torção, de ressignificação da nossa história a partir do reconhecimento do papel da mulher negra na formação sociocultural do país. Trata-se de leituras estratégicas e rigorosas. Talvez possamos pensar novamente com Bispo dos Santos (2015) para melhor compreender as colaborações de ambas: o diagnóstico e ação descolonizadora enquanto horizonte dos estabelecidos, mas críticos ao modus operandi; a ação contracolonial enquanto horizonte possível àqueles e àquelas que testemunharam com seus corpos os efeitos do modus operandi colonial. Lélia, com o seu diagnóstico político, não está apenas na chave descolonial, mas propriamente contracolonial: a amefricanidade, o pretuguês e a mãe preta são pontas de lança de uma agenda contracolonial. Lélia risca o chão da psicologia e da psicanálise brasileiras, estabelece uma encruzilhada e nos aponta uma direção, da qual ainda hesitamos em extrair consequências clínicas.
O entendimento de Lélia parece estar marcado pelo seu próprio lugar no mundo e por uma experiência de tornar-se negra 21. Portanto, para além de um caráter geográfico, a amefricanidade se refere a uma dinâmica cultural intensa de adaptação, resistência e criação de novas formas a partir da centralidade dos povos africanos e indígenas. Segundo Gonzalez (1988), o termo nos apresenta a possibilidade de resgatar uma unidade étnica específica, forjada a partir do contato entre as três matrizes raciais e com um horizonte político de desvelamento dos elementos culturais africanos recalcados pelas perversas estratégias de dominação do racismo disfarçado, ou por denegação, próprio das sociedades de dominação ibérica, como visto anteriormente. Inspirada em Molefi Kete Asante, criador da perspectiva afrocentrada, Lélia percebe que os caminhos de libertação de um povo não podem ser encontrados externamente, devendo ser produto das experiências históricas e culturais particulares dos sujeitos em luta.
Talvez possamos pensar nos níveis fanonianos de racismo 22 para perceber o processo de descolonização que Lélia se propõe e nos convoca. O sujeito que descoloniza a si (terceiro nível), percebe o caráter colonizador da linguagem (segundo nível). Irrompe a epiderme do discurso colonial como consequência do processo necessário de cura do corpo social, intoxicado pelo racismo. Abre espaço para que surja uma nova classe de pessoas que deixem a dialética colono/colonizador enquanto paradigma de vida e organização da produção. Expõe o corpo doente ao seu sintoma: uma neurose assentada em um fator arbitrário infundado desde sua nascença e que só pode se apoiar em uma alienação de qualquer lógica que a invoque: que fator é esse? A hierarquização ontológica por níveis de melanina na pele (primeiro nível). Não à toa tal esquema de organização racista da sociedade foi justificado com a máxima religiosa de “desígnio divino”, ou seja, uma valoração inata, biológica.
As defesas ao racismo estrutural e suas consequências psíquicas e sociais ocorrem por distintos graus e estratégias, a depender do sujeito: foraclusão, recalque, denegação. Afinal, como seria possível manter a indiferença diante dos crimes e das opressões praticadas contra os povos tradicionais e seus descendentes se assumíssemos a sua importância em nossas vidas ainda hoje? Não por acaso o mito da democracia racial, em maior ou menor grau, segue vigente por sua “utilidade” na economia libidinal da brasilidade hegemônica.
As contribuições destas mulheres ainda encontram dificuldades em se articularem com a devida pertinência à teoria psicanalítica transmitida a psicanalistas brasileiros em formação (ainda que disponíveis há mais de quarenta anos, a exemplo das formulações de Gonzalez 1984 e de Sousa 1983/2021, respectivamente). Alguns podem dizer que Lélia era uma militante do movimento negro e que a psicanálise pretende se manter resguardada das lutas “ideológicas”; outros podem dizer que a teoria psicanalítica diz respeito ao funcionamento psíquico universal e que, independente da cor, gênero, classe, história de opressão, o inconsciente é um só. Mas o dito por ela nos coloca a todos na cena histórica e diante das consequências da colonização e do patriarcado: uso do lugar de saber como parte do exercício de poder é exposto enquanto um truque da branquitude patriarcal. Gonzalez abre o hermetismo da gramática psicanalítica; oferece uma visão inversa das relações de poder; e coloca em perspectiva mitos fundantes, pretensiosamente universalistas, da constituição subjetiva e, portanto, da prática clínica.
Por um lado, caberia uma reflexão sobre os avanços da luta feminista, da luta antirracista, da popularização dos mecanismos de manutenção do patriarcado e do racismo e de avanços legais 23. Por outro, o Brasil certos setores da sociedade brasileira seguem promovendo um verdadeiro genocídio da população negra e indígena 24, assim como uma série de violências contra mulheres e a comunidade LGBTQIA+.
Cabe-nos, enquanto investigadores dos mecanismos de resistência e interessados na relação transferencial que estabelecemos com os nossos temas de pesquisa e nossa formação enquanto psicólogas e/ou psicanalistas, tensionar sobre a ausência ou tardio interesse em autoras negras que tratam dessas questões crônicas da brasilidade. Aqui gostaríamos de pontuar algo sensível: no caso da obra de Lélia Gonzalez, especialmente do seu texto Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira (Gonzalez, 1984), nossa tarefa não é apenas teorizar sobre as torções propostas. Mais uma vez é preciso atenção para não operar uma fetichização que atenda aos interesses das pesquisas e publicações, tornando Lélia uma autora “decolonial” 25, num impulso acadêmico que vela a implicação radical daqueles que habitam os espaços de poder. Nossa tarefa é ampliar a suposição de saberes teóricos e clínicos hoje restritos em sua enorme maioria aos marcos da branquitude patriarcal eurocentrada: uma práxis contracolonial ladino-amefricana, onde o giro epistêmico efetivo não ceda da sua radicalidade para ingressar em franquias teóricas. O lastro dessa anunciação aparentemente contraditória - ao se fazer em um texto acadêmico - só poderá ser sustentado em nossa ação concreta e em nosso compromisso com as necessárias aberturas epistêmicas para a formação de psicanalistas brasileiras e brasileiros capazes de escutar e participar de seu tempo.