23 Lélia Gonzalez: Uma Ponte entre a Descolonização e a Contracolonização da Psicanálise BrasileiraDo Narcisismo das Pequenas Diferenças ao Gozo Narcísico Racismo, Colonialidade, Segregação, Genocídio 
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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.spe Rio de Janeiro  2023   20--2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.80100 

DOSSIÊ PSICANÁLISE E POLÍTICA: A INSISTÊNCIA DO REAL

A Superfície da Raça: Topologia e Identificações Raciais Brasileiras

The Surface of Race: Topology and Brazilian Racial Identifications

La Superficie de la Raza: Topología e las Identificaciones Raciales Brasileñas

Amana Rocha Mattos* 

Professora Associada do Instituto de Psicologia e Professora Permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


http://orcid.org/0000-0002-2890-5421

*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil


RESUMO

Neste artigo, são percorridas algumas indicações feitas por Jacques Lacan sobre a função da superfície e da importância do traço para pensar topologicamente a identificação. Em seguida, a direção dada pelo autor para pensarmos a identificação - especialmente acerca da importância da superfície e da nomeação pelo Outro - é articulada com questões que têm sido discutidas no âmbito das relações raciais no Brasil, trazendo as contribuições de autores do campo das relações raciais como Stuart Hall, Frantz Fanon e Lélia Gonzalez. Situando o campo discursivo sobre as identidades raciais em um contexto nacional marcado, desde a primeira metade do século XX até os dias atuais, pela proposição e pela manutenção do mito da democracia racial por parte considerável da intelectualidade brasileira (branca), são recuperadas questões presentes no trabalho de Lacan para pensar como as identificações são atravessadas pela raça hoje, bem como para indagar discursos que têm desqualificado tais debates nos campos políticos e teóricos. Nas considerações finais, são apontadas algumas implicações dessa discussão para o exercício da clínica psicanalítica.

Palavras-chave: identificação; raça; subjetividade; mito da democracia racial; psicanálise.

ABSTRACT

This article explores specific insights provided by Jacques Lacan regarding the role of surface and the relevance of trace in a topological understanding of identification. Subsequently, the study aligns Lacan's perspective on identification - particularly emphasizing the importance of surface and the Other's act of naming - with pertinent issues to Brazil's racial dynamics. It embodies insights from race relations’ scholars such as Stuart Hall, Frantz Fanon, and Lélia Gonzalez. Placing the discourse on racial identities within the national context of Brazil, which has been shaped by the persistent myth of racial democracy propagated by a significant portion of the white Brazilian intellectual sphere from the mid-20th century to the present, this article retrieves Lacanian concepts to realize how contemporary identifications intersect with race. It also investigates discourses that have marginalized these discussions in both political and theoretical realms. In its final considerations, the article underscores the implications of this discourse for psychoanalytic clinical practice.

Keywords: identification; race; subjectivity; myth of racial democracy; psychoanalysis.

RESUMEN

En este artículo se exploran algunas indicaciones hechas por Jacques Lacan sobre la función de la superficie y la importancia de la traza para abordar topológicamente la identificación. Luego, se conecta la dirección proporcionada por el autor para reflexionar sobre la identificación, especialmente en relación con la importancia de la superficie y la nominación por el Otro, con cuestiones que han sido discutidas en el ámbito de las relaciones raciales en Brasil, incorporando las contribuciones de autores en el campo de las relaciones raciales como Stuart Hall, Frantz Fanon y Lélia Gonzalez. Al situar el campo discursivo sobre las identidades raciales en un contexto nacional marcado desde la primera mitad del siglo XX hasta la actualidad por la proposición y el mantenimiento del mito de la democracia racial por una parte significativa de la intelectualidad brasileña (blanca), se retoman aspectos presentes en el trabajo de Lacan para analizar cómo las identificaciones son atravesadas por la raza en la actualidad, así como para investigar discursos que han descalificado tales debates en los ámbitos político y teórico. En las consideraciones finales, se señalan algunas implicaciones de esta discusión para el ejercicio de la clínica psicoanalítica.

Palabras clave: identificación; raza; subjetividad; mito de la democracia racial; psicoanálisis.

Neste artigo 1, desdobro alguns pontos da teorização proposta por Lacan (1961-62/2003) acerca da identificação em seu Seminário 9 para pensar a raça e os efeitos do racismo nos processos de subjetivação em sociedades racistas, como é o caso do Brasil. Mais precisamente, recolho a questão do lugar da superfície na função do sujeito e em sua relação com o traço e a identidade, a partir da introdução do estudo do toro na topologia lacaniana. Em seguida, recuperando as indicações de Lacan (1961-62/2003) feitas em seu Seminário 9 a respeito do texto freudiano “Psicologia das massas e análise do eu” (Freud, 1921/2011), proponho algumas articulações entre esses trabalhos e o campo dos estudos das relações raciais, com destaque para os textos de Hall (2015), Fanon (1952/2020) e Gonzalez (1980/2020), autores que lançam mão de conceitos psicanalíticos para desenvolverem seus trabalhos sobre raça. Meu esforço vai na direção de aproximar a topologia lacaniana, com seus conceitos de superfície e traço, da teorização desses autores sobre o racismo e suas elaborações sobre a produção de corpos-superfícies abjetos, desumanizados. Por fim, levanto questões para a psicanálise, enquanto campo de produção teórica e clínica, que possam contribuir para uma atualização de suas práticas face à produção e às interpelações dos movimentos sociais, especialmente dos movimentos negros, sem que se perca aquilo que é próprio do campo psicanalítico: a escuta.

Superfície, Aparência e Identificação

Lançar mão da teorização lacaniana para pensar questões raciais não é tarefa fácil e sem desafios. O autor não se debruçou explicitamente sobre esse tema ao longo de sua transmissão, e os debates sobre a subjetivação racial e a luta antirracista feitos a partir de referenciais psicanalíticos têm ganhado corpo apenas nas últimas décadas, após o falecimento de Lacan. Entendo, entretanto, que seu trabalho teórico sobre a identificação, especialmente com a topologia, fornece direções para pensarmos questões relacionadas à raça e ao racismo, úteis tanto para nos aproximarmos de fenômenos que têm se colocado no social na contemporaneidade quanto para escutarmos os efeitos que a raça, como significante, opera na clínica hoje.

Neste artigo, parto do início do ensino de Lacan sobre a topologia, desenvolvido no Seminário 9, sobre a identificação, e de sua análise da topologia do toro, localizando indicações que parecem úteis para situarmos a dimensão complexa da raça na constituição subjetiva. Lacan (1961-62/2003) nos diz, logo no início do trabalho, que alternava o tema de seus seminários entre a investigação sobre o sujeito e a investigação sobre o significante. Neste, ele assume a tarefa de pensar o significante e, para tanto, convoca a topologia. Isso exige pensar o espaço e sua relação com o tempo. Como afirma Granon-Lafont (1990), em A topologia de Jacques Lacan,

O sujeito não é o objeto da psicanálise, da mesma forma que a formiga e a colherinha não são objetos de estudo dos topólogos. Eles somente se interessam por suas aparições, ou seus trajetos, na medida em que estes possibilitam a descrição de algum espaço particular. (pp. 18)

Essa afirmação permite pensarmos que o interesse de Lacan pela identificação - ao menos nesse seminário - indica uma preocupação menos em estabelecer uma análise do eu e mais em definir as dimensões e os elementos por meio dos quais as operações significantes presentes nas identificações se dão. Que emerja um sujeito daí, trata-se de efeito dessas operações, e não de seu resultado final esperado.

O sujeito racional (e não o do inconsciente) tem sido o objeto de investigação da filosofia ocidental ao longo dos séculos. Lacan (1961-62/2003) retoma formulações filosóficas que buscaram estabilizar e dar inteligibilidade ao sujeito racional, tais como os princípios lógicos aristotélicos da não contradição, em especial o princípio da identidade. Indica, ainda, como a topologia da esfera se consolidou como um modelo para a filosofia: encontramos nela a definição clara de um dentro e um fora; a unidade; a possibilidade de estabelecermos seu centro. Sua superfície é equidistante desse centro, e seu interior não traz surpresas. Ela é cosmológica. Entretanto, Lacan recolhe algo que fica de fora nas formulações racionalizantes da filosofia, a saber, o desejo, o objeto de desejo. A indicação da evanescência do sujeito no exercício cartesiano das meditações é um desses momentos. O sujeito suposto saber, aquele de que trata a filosofia, promove um determinado tipo de saber. A experiência na clínica psicanalítica com o sujeito do inconsciente, por sua vez, aponta para a necessidade de se colocar em questão a identidade “A é A” para, segundo Lacan, fazer avançar o problema da identificação.

O Um como tal é Outro (Lacan, 1961-62/2003). Os destroços da suposição de saber do Outro voltam ao sujeito, mais ou menos irreconhecíveis. Essa trilha permite a Lacan pensar, no Seminário 9, que a identificação não tem nada a ver com a unificação, e identificar-se não é fazer um. “A é A significa nada” (Lacan, 1961-62/2003, p. 52). Ele indica, entretanto, que a análise necessita que nós coloquemos a identificação em relação a um certo acesso ao idêntico, transcendendo-a. Haveria nessa operação uma fecundidade em se perceber o falso efeito de significado de que A seja A.

As diferenças qualitativas não dizem da diferença significante. Ao destacar o segundo tipo de identificação assinalado brevemente por Freud (1921/2011) em “Psicologia das massas e análise do eu”, qual seja, a identificação ao traço da pessoa-objeto, Lacan (1961-62/2003) põe em destaque um tipo de funcionamento identificatório em que o qualitativo não ajuda a iluminar o que se passa nessa ligação libidinal. Como indica Freud (1921/2011), esse tipo de identificação, que se faz presente na formação de sintomas em que o Eu adota características do objeto, é “parcial, altamente limitada, tomando apenas um traço da pessoa-objeto” (p. 64).

Ao destacar a função do significante (traço) na identificação, esvaziando-a do lugar de signo, Lacan (1961-62/2003) desenvolve duas formulações que têm papel importante no Seminário 9. A primeira é o lugar constitutivo do erro para o sujeito. O engano do sujeito se dá “exclusivamente pelo fato de que ele pode se dizer” (Lacan, 1961-62/2003, p. 173). E esse erro é um erro de conta. O sujeito é o erro de conta.

O fundamento de cálculo para o sujeito é o traço unário. Nas palavras de Lacan (1961-62/2003), “no nível da sucessão freudiana, (...) o traço unário designa algo que é radical para a experiência originária: é a unicidade, como tal, da volta na repetição” (p. 177). Retomando o quadrante de Pierce, ressalta que é porque se destaca o traço que se pode identificar a ausência de traço: “O sujeito como tal é -1” (Lacan, 1961-62/2003, p. 180).

A segunda formulação que Lacan (1961-62/2003) propõe é pensar a estrutura do sujeito a partir da figura do toro. Para isso, será preciso tomar uma superfície que se distingue topologicamente da esfera e, com isso, destituir o modelo filosófico de interior versus exterior, que pressupõe um centro equidistante, autoevidente para o sujeito. Lacan nos adverte que a aparência está muito longe de ser nossa inimiga quando se trata do real. Ao propor o toro para pensarmos o sujeito, ele reforça “o acento que entendo pôr sobre a superfície na função do sujeito” (Lacan, 1961-62/2003, p. 182). Com isso, seu intento é de opor-se a uma psicologia das profundezas. O que interessa para pensar o sujeito está posto na superfície: “se é expressamente à superfície que lhes peço aqui de se referirem é pelas propriedades topológicas que ela vai estar em condições de lhes demonstrar” (Lacan, 1961-62/2003, p. 183). Destaca, ainda, que o que estabelece uma superfície em topologia é o corte.

A superfície tórica teria a vantagem, em relação à superfície esférica, de que alguns de seus laços não poderiam ser reduzidos a pontos. É também uma estrutura esburacada, que permite traçarmos sobre ela a repetição, por meio da bobina da demanda que percorre o círculo do desejo. No toro, o engodo, o erro encontra sua inscrição topológica. Como afirma Lacan (1961-62/2003), “essa volta que falta na conta é justamente isso que o sujeito inclui nas necessidades de sua superfície de ser infinitamente plano, que a subjetividade não poderia apreender senão por meio de um desvio: o desvio do Outro” (p. 188). As operações identificatórias do sujeito ganham seu lugar na superfície e, ao enunciar-se, o erro já se encontra de saída nelas contido.

Recuperando a proposição topológica e o destaque dado por Lacan à superfície e à aparência na identificação e na constituição subjetiva em seu Seminário 9, gostaria de desdobrar algumas reflexões sobre os efeitos subjetivos da nomeação pelo Outro no campo das relações raciais, especialmente considerando o contexto brasileiro escravocrata que se atualiza cotidianamente em nossa sociedade. Para chegar a esse terreno teórico-político, proponho passarmos por alguns pontos do texto de Freud (1921/2011), “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, trabalho com o qual Lacan dialoga no Seminário 9 e em que Freud coloca importantes perguntas sobre os efeitos de grupo e as unidades imaginárias aí produzidas.

“A é A” como Metonímia Racial

“Psicologia da Massas e Análise do Eu” é uma obra em que Freud (1921/2011) exercita as conexões entre psicanálise e política, o que a torna uma referência ainda hoje bastante presente em trabalhos que pensam o social. Entretanto, vale observar que o texto, que completou cem anos em 2021, tem sido lido por psicanalistas, com certa frequência, como referência para localizar o efeito de massa também em movimentos sociais de “pautas identitárias”. Insiro as aspas aqui uma vez que essa nomeação é, via de regra, desqualificadora, relacionada a um suposto narcisismo das pequenas diferenças desses movimentos. No entanto, as duas massas artificiais a que Freud se refere explicitamente em Psicologia das Massas são a Igreja e o Exército, e nada em seu texto parece indicar, de saída, uma equivalência entre estas e os movimentos sociais organizados.

Neste ponto, gostaria de retornar à afirmação de Lacan (1961-62/2003): “É na medida em que o A é A deve ser colocado em questão, que nós podemos fazer avançar o problema da identificação” (p. 48). No Seminário 9, a identificação é pensada como algo que se produz a partir da nomeação pelo Outro - uma vez que abandonamos a esfera como modelo para a subjetividade, não é possível apostar em uma interioridade ou natureza própria, a ser descoberta. O sujeito irá se constituir no campo do Outro, da linguagem.

Quando movimentos sociais, populares, levantam pautas e bandeiras de luta relacionadas à garantia de direitos e de reconhecimento político das minorias políticas, essas lutas se articulam em torno de nomeações que, além de terem sido estabelecidas pelo Outro, são desumanizantes ao situarem e fixarem determinados grupos/populações como menos humanos, ou mesmo não humanos. Movimentos negros, indígenas, LGBT+, dentre outros, são mobilizações que se organizam em torno de marcações que, inicialmente, promoveram o lugar de alteridade dessas populações. A produção de tais nomeações subalternizantes pelos grupos que detêm o poder (econômico, político) é frequentemente suprimida quando se discutem as “pautas identitárias” dos movimentos sociais. Que se diga fica esquecido.

Em um longo momento de nossa história, “A é A” foi dito como “negro é escravo”, por exemplo. Essa formulação não deve ser lida como uma sentença com sujeito e predicado, mas como uma metonímia. Negro e escravo são significantes que emergem como idênticos na invenção da escravidão moderna. Destaco isso para visibilizar que os movimentos negros se articulam a partir de uma gramática previamente estabelecida, Outra, com efeitos devastadores sobre um grupo racial que passa a ser reconhecido e nomeado enquanto tal justamente a partir dessa gramática. O que os movimentos negros produzem, de maneiras as mais heterogêneas e diversas, são deslocamentos dessa identidade a partir de identificações com outros traços, outros referentes, que não sejam aniquiladores da subjetividade das pessoas negras.

Que os sujeitos, a partir desses movimentos, tomem essas identificações como estáveis, fixas, ou que a partir delas percorram caminhos singulares com convergências e divergências coletivas, isso está em aberto. Mas quando há uma reiteração social de equações “A é A” com efeitos destrutivos para determinados grupos, parece-me importante pensar as condições mesmas que se colocam para que os sujeitos produzam identificações - inclusive coletivas - a partir de certos traços, sem tomar esses movimentos como equivalentes às massas que tanto ocuparam Le Bon e outros psicólogos sociais e sociólogos.

O teórico cultural e sociólogo Hall (2015), em seu texto “Raça, o significante flutuante”, argumenta que “raça é um significante, e que o comportamento e a diferença racializados devem ser entendidos como fato discursivo e não necessariamente genético ou biológico” (seção “O distintivo de raça”). Para o autor, o corpo é um texto e somos todos seus leitores. Somos leitores de raça e, portanto, da diferença social. Hall propõe que pensemos raça no campo da linguagem para se contrapor às abordagens religiosas, biologizantes e essencialistas que propõem explicações/justificativas para a desigualdade social observada entre as raças em diferentes contextos. Suas contribuições acerca da raça como texto a ser lido no corpo, na superfície do corpo, produzem ressonâncias para a discussão do lugar do corpo e da superfície na constituição do sujeito lacaniano.

Hall (2015) argumenta ser importante pensarmos de que maneira a ideia de raça (e, com isso, o racismo, do qual ela é tributária) se atualiza, uma vez que a sustentação biologizante da existência de raças humanas já caiu por terra. Como poderíamos, então, entender a manutenção da ideia de raça se seu sentido não pode ser fixado histórica e culturalmente? Para Hall (2015), haveria sempre

algo relacionado com raça que permanece não dito, alguém é sempre o lado externo constitutivo, de cuja existência a identidade de raça depende, e que tem como destino certo voltar de sua posição de expelido e abjeto, externo ao campo da significação, para perturbar os sonhos de quem está à vontade do lado de dentro. (seção “Raça como linguagem”)

A raça, como significante, recorta superfícies. Em sociedades organizadas sobre relações racistas (tanto no micro quanto no macro), tais superfícies serão lidas não apenas por suas singularidades, mas também se levando em consideração nomeações destitutivas compartilhadas no social, com efeitos materiais terríveis para as populações marcadas por esses significantes. Para Hall (2015), entender como essas operações se dão, no nível da linguagem, também ajuda a entender a permanência da raça nas relações, nas percepções e nos fenômenos sociais. As definições genéticas, biológicas e fisiológicas de raça, já rechaçadas pelo conhecimento acadêmico e entendidas como racistas e eugênicas,

passam bem, obrigado, nos discursos de senso comum de todos nós. O fato é que a definição biológica, fisiológica e genética de raça, convidada a se retirar pela porta da frente, tende a dar a volta e retornar pela janela. (seção “A sobrevivência do pensamento biológico”).

Como bem sabemos, o recalcado retorna.

Hall recupera na obra do psiquiatra e filósofo Frantz Fanon a inscrição racial na superfície do corpo do sujeito negro, inscrição esta que é vivida como diferença e alteridade, apontadas pelo outro, branco, que insere o significante negro. Em Pele negra, máscaras brancas, Fanon (1952/2020) fala, em interlocução com conceitos e autores da psicanálise, de seu processo de subjetivação racial para pensar como o esquema corporal desse processo se sustenta em um esquema histórico-racial que não advém das sensações e percepções oriundas dos órgãos dos sentidos, mas chega ao sujeito pelo Outro, o branco colonizador, que o racializa e desumaniza. Quando uma criança branca o aponta na rua e grita: “Mamãe, olhe o negro, estou com medo!” (Fanon, 1952/2020, p. 127), a leitura do corpo de Fanon feita pela criança destaca um traço, “negro!”, e marca afetos e posições sociais a despeito do que ele pudesse dizer, sentir ou pensar. Nesse sentido, é importante entender, com autores que discutem o racismo na contemporaneidade, como as nomeações que demarcam posições hierarquizadas são produzidas de maneiras opressoras e desumanizantes. Ao olharmos para o Brasil contemporâneo, não nos faltam exemplos.

O Mito da Democracia Racial e sua Função Pacificadora

Um ponto que vem sendo amplamente investigado em estudos das últimas décadas sobre as relações raciais é que a raça é uma categoria relacional. Uma vez que tomamos raça como um significante, um traço, ela não porta, em si mesma, um sentido ou uma essência. Desta forma, é preciso não só discutir o que é nomeado, mas pensar de onde parte a nomeação. Que posições relacionais se encontram não marcadas no jogo das nomeações? E o que isso nos diz das relações que se estabelecem no laço social?

Retomando a discussão proposta por Lacan a respeito da identificação (1961-62/2003), especialmente da identificação ao traço, que ele recolhe de Freud, a identificação não deve ser entendida como uma unidade, nem pode ser pensada a partir de uma busca pelas origens. Narrativas que procuram estabelecer origens comuns, unitárias e totalizantes são narrativas míticas, que tentam dar conta de explicar o mundo para os sujeitos dando inteligibilidade às relações (e também às hierarquias e às opressões). Pensar as identificações pela psicanálise, lançando mão da topologia lacaniana da superfície, exige pensar tal processo remetido ao campo do Outro, processo no qual a superfície e a aparência têm importância. Estas, como vimos, são recortadas por meio de significantes, que advêm do campo do Outro.

A direção dada por Lacan para pensarmos a identificação (1961-62/2003), portanto, não recorre a uma psicanálise das profundezas nem a explicações míticas ou cosmológicas. Isso não significa que tais explicações não possam operar nas culturas, inclusive para organizar e classificar as raças humanas e as diferenças que podem ser observadas ente elas. Sobre esse ponto, inclusive, o antropólogo Munanga (2004) destaca que narrativas totalizantes sobre raça podem ser encontradas em contextos religiosos, na filosofia Iluminista, na zoologia e na biologia do século XIX, e no imaginário social presente na modernidade e na contemporaneidade.

No final da primeira metade do século XX, no Brasil, ganhou força a ideia de que o país não vivia - ao contrário de outros países, como os Estados Unidos e a África do Sul - uma política de segregação racial, e que, em solo brasileiro, viveríamos sob uma democracia racial. Essa ideia contribuiu, por muitas décadas, para que falar de raça e, principalmente, de racismo no Brasil fosse um tabu. Mas, paralelamente à difusão da ideia de democracia racial brasileira, encontramos pesquisadores que tensionaram essa crença, localizando-a como uma narrativa hegemônica, branca. Mais precisamente, como um mito.

Em seu relatório final de pesquisa no Projeto UNESCO, no início dos anos 1950, o sociólogo Florestan Fernandes utiliza pela primeira vez o termo “mito da democracia racial” para se referir à ideia, propagada e compartilhada pela intelectualidade e pela elite brasileiras (brancas), de que no país não haveria racismo ou desigualdades raciais (Oliveira, 2015) 2.

Como uma das autoras que lançaram mão desse conceito para pensar o Brasil, a filósofa e antropóloga Gonzalez (1980/2020) fala do “orgulho besta [dos brancos] de dizer que a gente é uma democracia racial”, de falar de “coisas nossas” como “samba, tutu, maracatu, frevo, candomblé, umbanda, escola de samba e por aí afora” (p. 91), invisibilizando a manutenção das lógicas escravocratas nas relações sociais, de trabalho e de intimidade. A autora propõe uma instigante discussão do racismo no Brasil, lançando mão de conceitos lacanianos para interrogar práticas e experiências brasileiras bastante naturalizadas no cotidiano, como a ambivalente relação das famílias brancas com suas empregadas domésticas negras, e o lugar excepcional que a mulata e os negros ocupam no carnaval, por exemplo.

Para Gonzalez (1980/2020), o mito da democracia racial teria a função de ocultar, de velar o racismo que não se quer mostrar na sociedade, pondo em funcionamento o que ela demarca como “neurose cultural brasileira”. Nas palavras da autora:

Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra, pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes cargas de agressividade. É por aí, também, que se constata que os termos “mulata” e “doméstica” são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação em que somos vistas. (Gonzalez, 1980/2020, pp. 80, grifo da autora)

A reiteração social de “A é A” retorna, aqui, a partir do olhar racista brasileiro que constitui os nossos modos de subjetivação. A função do mito da democracia racial seria, portanto, a de pacificar a discriminação que opera nas leituras raciais as mais cotidianas de cada um de nós, transformando-a em afeto nas relações de intimidade; em meritocracia, no campo institucional; ou em chiste, no laço social, recobrindo e denunciando, por meio do incômodo que produz, a permanência da questão.

Essa pacificação recorta uma negritude silenciada, nomeada pelo Outro (branco), servil e subjugada, que não diz de si em nome próprio. Reencontramos aqui os efeitos violentos da nomeação pelo Outro descritos por Fanon (1952/2020), com um traço próprio do racismo à brasileira: a negação de que haja racismo.

Em “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Gonzalez (1980/2020) traz “a nega ativa” (p. 79) para pensarmos a dupla função que a mulher negra assume no racismo brasileiro: a de objeto sexual e a de serviçal, jogando com a homofonia com o significante negativa, operação central no recalque. Para a autora, o funcionamento do racismo como neurose cultural brasileira permite que a discriminação racial opere ao mesmo tempo em que a ideia de que não existe racismo no Brasil se propaga (ela é praticamente da família… não sou racista, sou casado com uma negra… tenho um grande amigo negro… não sou racista, amo a cultura negra…). Gonzalez desdobra o recalcamento que localiza no social brasileiro como permitindo, inclusive, a destituição de pessoas negras, tão comum em nosso vocabulário cotidiano. “É por essa via que dá para entender uma série de falas contra o negro e que são como modos de ocultação, de não assunção da própria castração. Por que será que dizem que preto correndo é ladrão? Ladrão de quê? Talvez de uma onipotência fálica” (Gonzalez, 1980/2020, p. 90).

Lélia Gonzalez avança, assim, na escrita dos modos de subjetivação que se dão no contexto brasileiro e que, por isso, são marcados por significantes e desigualdades sociais que estão presentes nas nomeações e superfícies que aí se estabelecem.

… E o que Resta (à Psicanálise)?

De que maneira essas reflexões podem nos ajudar a pensar como questões sociais, que atualizam violentos processos de dominação históricos, atravessam as subjetividades no Brasil contemporâneo? Neste trabalho, desenvolvi brevemente uma discussão que nos permite pensar a identificação em interlocução com o campo político e nas relações raciais. Nesse exercício, destaquei a dimensão da superfície e da nomeação pelo Outro como conceitos lacanianos a partir dos quais podemos escutar e ser interpelados pelas questões levantadas pelos movimentos negros e por autores negros estudiosos das relações raciais que nos indicam, com muita precisão, lacunas nos debates sobre as subjetividades, que não incluem raça como um significante que nos interpela, de diferentes lugares e posições, em nossa sociedade. Entretanto, propor uma discussão sobre raça e racismo partindo de referenciais da psicanálise lacaniana tem seus desafios, especialmente porque raça, como pontuamos no início do texto, não foi um tema sobre o qual Jacques Lacan se debruçou ao longo de sua obra. O exercício aqui pretendido reconhece esta limitação, mas recolhe, do ensino de Lacan, elementos e proposições que podem nos ajudar a nos aproximar, pela via mesmo da psicanálise, de um tema do qual não é possível se esquivar hoje no social e mesmo na clínica. Mais estudos que persigam as contribuições da psicanálise neste tema em diferentes contextos, especialmente no exercício da clínica, são necessários.

A dificuldade e resistência de entrada neste campo das relações raciais, somada ao desconhecimento por parte de muitos psicanalistas dos autores que nele produzem - muitos destes, inclusive, lançando mão de conceitos psicanalíticos - talvez explique a produção de textos e falas por certos psicanalistas que se queixam do “mimimi dos movimentos sociais” (como podemos ouvir em diferentes ocasiões, públicas e privadas, de discussão sobre política entre psicanalistas). Um incômodo que ganha ares de nostalgia de um mundo que já teria sido melhor. A meu ver, esse tipo de fala (e de posição política) evoca outros cenários, aqueles da casa grande instaurada em nosso país há mais de cinco séculos, que reclama das ações afirmativas, dos aeroportos que parecem rodoviárias, dos tardios direitos trabalhistas das empregadas domésticas. A denúncia de um “identitarismo” dos movimentos sociais e das pautas políticas por reconhecimento e direitos das minorias recorrentemente aproxima os movimentos, como indiquei inicialmente, do efeito de grupo das massas descrito por Freud, deixando de fora uma variável central, senão principal, na constituição deste cenário: o neoliberalismo e seus efeitos econômicos e subjetivos. É preciso desconfiar de que os termos dessa equação sejam invertidos de tal forma que a responsabilidade pelo esgarçamento do laço social seja imputada aos grupos sociais que têm pagado altos preços políticos, subjetivos e mesmo de sobrevivência no mundo atual.

Por outro lado, temos visto psicanalistas comprometidos em se aproximar de discussões e debates que chegam à clínica sem recorrer aos discursos massificantes e simplistas da mídia clickbait. Por “se aproximar” me refiro a acompanhar a densidade das práticas e discursos intelectuais e ativistas que se produzem nesses campos de investigação e luta política. Ao pensar a raça como uma categoria produzida socialmente, sem desconsiderar as desigualdades e opressões que habitam as relações raciais, a psicanálise pode se reaproximar de seu próprio surgimento, como uma clínica que colocou perguntas para saberes instituídos, e que trabalha desde então com a palavra e com a escuta.

Escutar as pautas e demandas dos movimentos sociais, percorrer suas teorizações e práticas de enfrentamento às opressões permite, portanto, que nos reconectemos com a potência transgressora da própria psicanálise. Lacan (1966/1988) nos lembra, em seu seminário sobre a ética da psicanálise, que o analista não deve colocar sua prática em função do “serviço dos bens” (p. 363), nem do Bem. Nesse sentido, os movimentos de minorias políticas têm muito a contribuir, oferecendo novos olhares e leituras sobre um mundo que nos é oferecido como pronto, dado, natural. Se, como nos diz Lacan (1966/1998), a resistência à análise está do lado do analista, me parece que cabe a psicanalistas e a suas instituições pensar os entraves, as tensões e as questões que se colocam na clínica nessas interpelações.

Além disso, uma interrogação válida é aquela a respeito das práticas que têm lugar em relação aos temas raciais nos consultórios de psicanalistas (majoritariamente brancos). Que escuta tem sido dada às queixas, ao sofrimento referido pelos pacientes à experiência do racismo? Pensar sobre os apagamentos (a negativa?) que se produzem na escuta, por parte dos psicanalistas, pode nos dar elementos para situar boa parte das demandas de ativistas e de pessoas negras em geral por psicanalistas negros ou que estejam comprometidos com a luta antirracista. Como Tainá Amaro e eu discutimos (Amaro e Mattos, 2022), em pesquisa sobre a demanda de pacientes negras por profissionais psi negros,

É preciso olharmos com honestidade para as práticas e discursos de nosso campo e nos fazermos essa indagação, sem pressa em desqualificá-la. Dizer que o racismo está na cabeça do paciente, ou deslegitimar o sofrimento relacionado a condições materiais muito distantes da experiência do analista são situações bastante recorrentes. (pp. 322)

O que a psicanálise teria, então, a oferecer para as discussões que se produzem no campo da política, no social? Que fissuras a escuta do significante pode abrir nas narrativas totalizadoras sobre raça que têm lugar hoje, no Brasil? Sabemos que o trabalho de análise põe em suspensão sentidos muito amarrados e consistentes trazidos na fala do sujeito: o analista escuta, o analisante fala. Pontuações e cortes do analista vão produzindo a possibilidade de o sujeito se ouvir de outra maneira, de experimentar o contraditório, o ambivalente, de se estranhar e se reencontrar onde menos imaginava. Partindo dessa experiência clínica, podemos seguir a direção dada pelas proposições de Lacan sobre a superfície e sua produção através do corte, para pensarmos como a raça se produz singularmente através da nomeação do Outro. A imagem da raça como texto a ser lido, trazida por Hall, convida-nos a pensar outras pontuações a serem construídas coletiva e subjetivamente em nossa sociedade. Isso nos permite pensar, no tecido discursivo do social, os efeitos do racismo contemporâneo, como Gonzalez sugere, assim como pensar estratégias que incluam a palavra, os significantes, para produzir furos em seu funcionamento.

Um percurso de análise, por sua vez, pode ser uma oportunidade para que o sujeito se desloque de posições assujeitadas, objetificadas, que - no caso do racismo - são reificadas por discursos e práticas difundidas na sociedade. Pode contribuir, também, para produzir rachaduras em idealizações que frequentemente ganham corpo na militância. Em um processo de análise podem aparecer, na fala do sujeito, o revolucionário e o autoritário em um mesmo golpe, e o sujeito pode ouvir algo aí que não encontra lugar ou acolhida nos movimentos e ativismos, espaços onde a coerência política entre a palavra e a ação é tão valorizada.

Notas

1 Versões preliminares deste trabalho foram apresentadas na Jornada de Conclusão de Leitura do Seminário 9 de Jacques Lacan, realizada no formato online pelo Espaço-Oficina de Psicanálise, em outubro de 2021; e no XV Simpósio Internacional do Programa de Pós-graduação em Psicanálise da Uerj - Lacan na América Latina: uma homenagem a Diana Rabinovich, realizado em novembro de 2021, também no formato online.

2 Vale lembrar que a proposição do Projeto UNESCO, pesquisa desenvolvida em diferentes estados brasileiros envolvendo importantes acadêmicos das ciências sociais no início dos anos 1950, tinha o objetivo de investigar e difundir uma experiência tida como bem-sucedida de interação racial: a brasileira. O Projeto, proposto logo após a divulgação dos horrores da experiência do nazismo na Europa, pretendia subsidiar pesquisas que pudessem oferecer soluções para os problemas raciais do mundo, tendo como campo o Brasil. As pesquisas desenvolvidas no âmbito desse projeto, entretanto, identificaram formas específicas de preconceito e discriminação, e o trabalho de Fernandes precisou o mito da democracia racial que tem lugar na sociedade brasileira. A esse respeito, ver Oliveira (2015).

Financiamento: FAPERJ.

Referências

Amaro, T. V., & Mattos, A. M. (2022). “Eu quero uma psicóloga preta”: Prática clínica, racialização e identificações no contemporâneo. Tempo Psicanalítico, 54(2), 297-325. https://tempopsicanalitico.com.br/tempopsicanalitico/article/view/736Links ]

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Recebido: 11 de Maio de 2023; Revisado: 17 de Agosto de 2023; Aceito: 27 de Agosto de 2023

Endereço para correspondência Amana Rocha Mattos Rua São Francisco Xavier, 524 sala 10.019 F, Maracanã, Rio de Janeiro - RJ, Brasil. CEP 20550-900, Endereço eletrônico: amanamattos@gmail.com

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