Tendo em vista as discussões em psicanálise em torno da mulher e das relações raciais, colocamos a mulher negra no centro do debate em psicanálise. Temos como proposta apresentar algumas discussões construídas em nossa pesquisa de mestrado a1. Os objetivos da dissertação foram investigar, a partir de narrativas de mulheres negras, as percepções e significados de suas experiências enquanto mulheres, como também identificar possíveis marcadores da diferença de suas vivências em torno da feminilidade e o que possibilita que uma mulher negra experimente a feminilidade e construa discursos e compreensões sobre ela de uma forma própria. Assim apresentamos, aqui, um recorte daquela pesquisa, a partir da condição da mulher negra no laço social, dos questionamentos que podemos fazer à teoria de Freud e Lacan sobre a mulher, o feminino e feminilidade, bem como das contribuições de Souza, Nogueira, Gonzalez e Kilomba para nosso problema de pesquisa. Após expor o percurso metodológico, apresentaremos os resultados e discussões.
“Preta, Pinta, o Mundo com seu Tom”: A Mulher Negra no Laço Social
Para pensar a condição da mulher negra no Brasil da atualidade, é incontestável que devemos nos atentar para o período escravocrata, momento de nossa história em que alguns marcadores merecem ser destacados. Davis (1981/2016) ressalta que, naquele momento, o corpo da mulher negra era utilizado conforme a conveniência do momento para o senhor. Quando elas trabalhavam nas lavouras e não entregavam a produção que era demandada, recebiam castigos como açoitamentos e mutilações, ou podiam ser estupradas como via de punição. Além do trabalho nas lavouras, as mulheres negras também desempenhavam funções nas casas grandes, como cozinheiras, arrumadeiras, mucamas, amas de leite, curandeiras, benzedeiras e parteiras (Miranda, 2019). Ademais, eram vistas e colocadas enquanto fêmeas reprodutoras, forçadas a “reprodução natural” como meio de “repor” a população escravizada. Entretanto, não podiam exercer a maternidade com seus filhos. Mesmo após parir e no período da amamentação, eram obrigadas a retomar o trabalho, pois serviam como amas de leite para os bebês das senhoras que não tinham condição ou disposição para amamentar (Davis, 1981/2016). Pontuamos ainda que essas mulheres eram comercializadas e arbitrariamente separadas de seus recém-nascidos, que, muitas vezes, não eram anunciados junto com a mãe nos jornais de vendas. Essa prática era naturalizada ao ponto de o aluguel e venda de amas de leite serem compreendidos como “um dos maiores e mais prósperos negócios do Brasil nos séculos XVIII e XIX” (Gomes, 2021, p. 352).
A figura da ama de leite assume um protagonismo no debate acerca da mulher negra, por ser aquela nomeada como “mãe preta”. Gonzalez (1980/2020a) compreende que as mães pretas transmitiram as representações que se sustentam até hoje enquanto cultura brasileira e teriam desempenhado esse papel a partir da linguagem, que, numa compreensão lacaniana, é responsável pela entrada do sujeito na cultura. Em outros termos, a autora defende que “coube à mãe preta, enquanto sujeito suposto, saber, a africanização do português falado no Brasil, e consequentemente, a própria africanização da cultura brasileira… é por essa razão que a cultura brasileira é eminentemente negra” (p. 54-55).
É relevante também pensarmos e discutirmos a representação da mucama. As mucamas, de acordo com Gonzalez (1984/2020d), eram aquelas mulheres escravizadas que desempenhavam os trabalhos domésticos da casa, como cozinhar, lavar e passar, além de servir enquanto objeto de satisfação sexual para os senhores. É a partir dessa dupla perspectiva que a autora destaca “os termos ‘mulata’ e ‘doméstica’ como atribuições de um mesmo sujeito” (p. 80), pois, enquanto a mulata encarna a representação da mucama detentora de uma sexualidade exacerbada (que fica ocultada), a doméstica seria a “mucama permitida”, já que, a partir da relação servil nas casas grandes, passou pelo processo de “domesticação”.
Sobre a representação da doméstica, Collins (2016), ao realizar uma análise a respeito das posições marginais que mulheres afro-americanas ocupam dentro da academia e debater o status de “forasteiras de dentro”, afirma que “por muito tempo mulheres afro-americanas participaram dos segredos mais íntimos da sociedade branca” (p. 99). Isso porque diversas mulheres destinavam-se aos seus lugares de trabalho, ou seja, as casas das famílias brancas, “onde elas não apenas cozinhavam, limpavam e desempenhavam outras tarefas domésticas, mas também cuidavam de suas ‘outras crianças’, ofereciam importantes conselhos aos seus empregadores e, frequentemente, tornavam-se membros honorários de suas ‘famílias’ brancas” (p. 99). As mulheres negras, ao ocuparem esse lugar íntimo, assistiam à desmistificação do poder branco, ao perceberem que “não era o intelecto, o talento ou a humanidade de seus empregadores que justificava o seu status superior, mas o racismo” (p. 99). Como se vê, é possível pensar a mulher negra como epicentro de três representações: a mãe preta, que se atualiza na figura das babás, e a mucama, que, a depender do contexto, pode ser lida como a mulata ou como a doméstica.
Para além das experiências de exploração e dominação das mulheres negras na história, frisamos a presença delas em revoltas e confrontos armados que culminaram na abolição da escravatura (Gonzalez, 1980/2020a). Ademais, de acordo com Miranda (2019), as mulheres negras foram as primeiras entre os cativos que puderam ocupar o espaço urbano enquanto quitandeiras, cozinheiras e lavadeiras, o que permitiu que alcançassem autonomia financeira e organizassem a compra da própria liberdade, bem como a de seus maridos e filhos. Além dos enfrentamentos na luta abolicionista, são as mulheres negras que iniciam contraposições dentro dos movimentos de lutas por direitos das mulheres. Enquanto, por exemplo, as mulheres brancas reivindicavam o acesso ao mercado de trabalho, as mulheres negras já eram trabalhadoras, como já exposto acima, inicialmente na condição de escravizadas e, posteriormente, enquanto meio de subsistência de suas famílias (Davis, 1981/2016). Para acessar o espaço do trabalho, mulheres brancas renunciavam ao exercício da maternidade em tempo integral, ao passo que as mulheres negras, até então, eram impedidas de exercer a própria maternidade, visto que seus filhos eram tomados de si para serem vendidos (Davis, 1981/2016).
Por fim, enquanto mulheres brancas confrontavam o sentido de “fragilidade” atribuído a elas, para as mulheres negras, esse lugar nunca foi possível, pois para estas era reservado o lugar de força (Hooks, 1981/2020). Ou seja, é a partir da marca da diferença da experiência de mulheres racializadas que as mulheres negras iniciam um movimento próprio pela luta de direitos, em que as relações raciais e de classe se apresentam em horizontalidade com as questões de gênero. Para ilustrar esses tensionamentos, apresentamos um trecho do discurso de Sojourner Truth, realizado em 1851, em Ohio, numa conferência pelos direitos das mulheres:
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E eu não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E eu não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem - desde que eu tivesse oportunidade para isso - e suportar o açoite também! E eu não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E eu não sou uma mulher? (Truth, 1851/2014)
O discurso de Sojourner é um dos fios condutores deste estudo, visto que, com a pergunta “e eu não sou uma mulher?”, ela coloca em questão quem de fato é entendida enquanto mulher e como a experiência dela se diferencia daquilo que é difundido enquanto representação de uma essência feminina. Ou seja, enquanto mulheres brancas estavam confrontando esse imaginário acerca da fragilidade e passividade, as mulheres negras buscavam o reconhecimento de suas experiências. Acrescentamos a essa discussão um trecho de um artigo publicado no jornal O Globo a respeito da “mulata”, encontrado em Gonzalez (2020b):
‘Uma mulata deve ter delicados traços brancos se espera sucesso garantido, o que, é preciso dizer, não é fácil de encontrar’, observa Ilan Amaral. Em sua opinião, mesmo se a mulata não tiver um nariz fino e lábios bem desenhados, ela pode se destacar no palco e ser invencível em sua profissão, se ‘aprender como ser uma mulher’. Isso - diz Amaral - pode ser ensinado. Como? ‘Com aulas de etiqueta social’, diz ela (p. 168).
Aqui novamente temos um exemplo do não reconhecimento da negra enquanto mulher, visto que seria preciso “aprender como ser uma mulher” caso ela não possua características que remetam à mulher branca. Esse trecho também demonstra que, em nossa história recente, a mulher negra ainda fica reduzida ao lugar de objeto, por a categoria “mulata” ainda ser difundida enquanto profissão, e ao lugar de animalização, visto que apenas com aulas de etiqueta social - ou domesticação - era possível que as “mulatas” obtivessem status de mulher. A partir desse panorama, questionamos como a psicanálise poderia contribuir para o debate sobre as mulheres negras, tendo em vista suas compreensões em torno do feminino e da feminilidade. Seguimos, portanto, com alguns aspectos das propostas de Freud e Lacan, bem como de Souza, Gonzalez, Nogueira e Kilomba, para assimilar aquilo que é possível a respeito de nossas questões.
“Cê tem a Liberdade pra ser Quem Você Quiser”: Mulheres Negras e Psicanálise
Com a ascensão do debate acerca das relações raciais no campo psicanalítico, Silva (2017, p. 87) defende a “inauguração de uma psicanálise brasileira”, em que tenhamos como ponto de partida o impacto da realidade sócio-histórica do nosso país nas subjetividades dos sujeitos. Nesse sentido, é fundamental localizar que, tanto Freud quanto Lacan constroem suas teorias a partir do cenário europeu, escutando sujeitos localizados num contexto socioeconômico e cultural específico. Portanto, não podemos realizar a leitura de seus escritos desavisados de que suas considerações se fundam na escuta de mulheres brancas e europeias.
Freud atravessa um longo percurso desde a fundação da Psicanálise para chegar a algumas conclusões em torno da problemática da mulher. Em alguns momentos (Freud, 1916/2018; 1923/2018; 1925/2018; 1926/2017) aponta que existem contraposições na experiência da constituição psíquica de meninos e meninas, devido à dialética do ter ou não ter o falo. Dessa forma, a menina estaria marcada pela ausência do falo, via pela qual ela se insere no complexo de Édipo. No percurso, Freud (1926/2017) chega a nomear a constituição psíquica da mulher como um “continente negro”, afirmando um enigma em torno da questão. No trabalho “Sobre a sexualidade feminina” (1931/2018), ele propõe para a menina três saídas possíveis do complexo de Édipo. A primeira seria o abandono e repulsa da sexualidade, a segunda, o complexo de masculinidade e a terceira, uma configuração feminina “normal”, em que o desejo de ter um bebê para reaver o falo perdido lhe faria chegar a uma “feminilidade definitiva”. É possível observar que Freud, ao longo de seu ensino, ainda se utiliza da anatomia e do falo enquanto elementos centrais da estruturação psíquica. Ao final da conferência “A feminilidade”, no entanto, Freud (1933/2018) admite que seu trabalho acerca da feminilidade “certamente está incompleto e fragmentário” (p. 341). E conclui que, “se quiserem saber mais sobre a feminilidade, então perguntem às suas próprias experiências de vida, ou voltem-se aos poetas, ou esperem até que a ciência possa lhes dar informações mais profundas e bem articuladas” (p. 341).
Dessa forma, é consenso no campo psicanalítico que Lacan oferta avanços tanto para a compreensão da sexualidade, por conseguir se desgarrar do campo biológico e anatômico, como para o reposicionamento do feminino e da feminilidade (Demes et al., 2011; Pacheco, 2017). Lacan (1972-73/2008) postula, ao final de seu ensino, a respeito de uma assimetria da experiência dos sexos, pois parte do ponto de que não há, para a mulher, uma representação simbólica em torno da problemática sexual. Isso faz o autor chegar ao aforismo “Não há relação sexual”, pois as posições feminina e masculina não estão restritas à experiência da mulher e do homem, respectivamente, e não operam enquanto complementares. Assim, Lacan afirma a masculinidade e feminilidade como posições diante do significante fálico que fundam os modos de gozo. Enquanto a posição masculina vivencia o gozo fálico, a posição feminina vivencia o gozo suplementar, não-todo (Lacan, 1972-73/2008).
Nessa perspectiva, o feminino não está condicionado à norma fálica, mas vive a ausência de um símbolo comum que o represente, pois se situa para além do falo; logo, a diferença sexual não é mais regida por dois sexos, mas por dois modos de gozo. Lacan (1972-73/2008) compreende que os sujeitos se posicionam diante da sexualidade em relação às modalidades de gozo, em que, de um lado, temos o gozo fálico, o gozo todo, que se apoia na linguagem e nos elementos da cultura, e, do outro lado, temos o gozo suplementar, o gozo não-todo, que diz respeito a uma experiência que não alcança a linguagem e o saber. É a partir disso que Lacan (1972-73/2008) aponta para a ausência de um significante comum para o que é ser mulher: cada mulher se constitui uma a uma, buscando seus referenciais de feminilidade no laço social, apontando que se trata de um processo de tornar-se. Dessa proposição surge um outro famoso aforismo do autor: “A mulher não existe” (Lacan 1972-73/2008). Agora, a feminilidade passa a ser compreendida como uma experiência plural que comporta as mais diversas singularidades.
A condição de vazio e de inominável da posição feminina, do gozo não-todo e da possibilidade inventiva, é comum a todos os sujeitos, a todas as mulheres, independente do lugar racializado. Logo, o aforismo lacaniano “A mulher não existe” poderia ser uma resposta para a pergunta de Truth, mencionada anteriormente e que apresentamos acima: “e eu não sou mulher?” Pensamos, no entanto, que o questionamento de Truth não trata exclusivamente de uma experiência psíquica, mas também de uma perspectiva do laço social, que difunde marcadores específicos para a mulher negra: além de estar do lado mulher, também está do lado negra - em oposição a homem e branquitude, os dois maiores representantes de poder e saber no laço social.
Ampliando o debate, Andrade (2022) defende que a premissa lacaniana a respeito dos modos de gozo fornece uma leitura para além dos impasses sobre o sexo e tece uma leitura sobre nosso campo social e político. O autor observa que “as fórmulas da sexuação são críticas de Lacan ao falo, ao Édipo, ao Pai, e ao simbólico” (Andrade, 2022), pois o lado mulher apresenta uma possibilidade de entrada para as críticas àquilo que reivindica o status de todo, como o colonialismo e o patriarcado, por exemplo. Por conseguinte, o autor defende que, assim como a mulher, “o negro não existe”, visto que ambos não estão inscritos num “horizonte de sentido” de acordo com os termos fálicos. Portanto, para Andrade (2022), reivindicar que a mulher ou o negro sejam incluídos na lógica toda e, portanto, fálica, é insuficiente, pois não produz efeitos, visto que universalizar a questão sutura aquilo que poderia dizer de uma outra experiência e impossibilita que se crie algo a partir da diferença e da alteridade.
Em nossa leitura, o que Sojourner Truth marca em seu discurso é a recusa desses signos universais enquanto representantes do que significaria ser mulher. A sua figura - e arriscamos dizer a figura da mulher negra - aponta na direção de compreendermos o que se produz dessa experiência de estar à antítese do falo e da branquitude ao mesmo tempo. Por isso, trazemos para o debate as produções de Souza, Gonzalez, Nogueira e Kilomba, mulheres negras que articularam o debate entre psicanálise e relações raciais, para traçar um caminho em torno da nossa questão.
Souza (1983/2021) afirma que nascer negro no Brasil não constrói por si uma identidade negra, visto que, por não ser uma condição dada a priori, é um processo de tornar-se, de vir a ser. Entretanto, no meio do caminho desse tornar-se, há diversos atravessamentos. Pautada pelos conceitos de Ego Ideal e Ideal de Ego freudianos, a autora compreende que a produção do negro enquanto sujeito é permeada por um Ideal de Ego branco. Ela afirma que, devido às representações negativas sobre o negro no laço social, ele é empurrado para uma negação acerca de tudo que lhe aproxima da negritude, e o branco, então, é eleito enquanto modelo de estar no mundo. Entretanto, por mais que o negro, a partir de comportamentos, linguagens, trejeitos e, inclusive, a partir de lesões em seu próprio corpo, tente se aproximar desse ideal, se tornar branco é impossível, tendo em vista os elementos do Real que se apresentam.
Além das constatações acerca do Ideal de Ego branco, Souza (1983/2021) discute as perspectivas que empurram o negro para a condição de animalidade, retirando-o a possibilidade de ser compreendido como sujeito. Por exemplo, “o privilégio da sensibilidade” seria compreendido a partir de uma significação positiva, por conter aspectos de reconhecimento do “jeitinho” que o negro tem para a música, para a ritmo e para a dança, além de os corpos serem idealizados a partir de uma suposta potência sexual. Entretanto, “Todos esses ‘dons’ estão associados à ‘irracionalidade’ e ao ‘primitivismo’ do negro, em oposição à ‘racionalidade’ e ao ‘refinamento’ do branco” (Souza, 1983/2021, p. 61). Souza destaca que este processo de animalização “exclui a entrada do negro na cadeia de significantes, único lugar de onde é possível compartilhar do mundo simbólico e passar da biologia à história” (p. 57).
Ao considerarmos a exclusão do negro da cadeia significante, pensamos em Gonzalez (1988/2020c), pois ela vai situar as mulheres não brancas ao lado da categoria de infans, articulado pela psicanálise lacaniana. O infans é aquele que é falado pelos outros, é o momento da constituição psíquica em que o bebê recebe dos adultos todas as significações em terceira pessoa e, portanto, não possui um discurso próprio, ficando alheio ao Outro. Com isso a autora considera que “Nós mulheres e não brancas, somos convocadas, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação que nos infantiliza . . . nos nega o direito de ser sujeitos não apenas de nosso próprio discurso, mas de nossa própria história” (p. 141).
Além disso, Gonzalez (1988/2020c) se utiliza do conceito de sujeito suposto saber, que parte de construções imaginárias em torno de uma figura que sabe algo sobre o sujeito que ele mesmo não sabe, para evidenciar os mecanismos psíquicos presentes no movimento do colonizado e atribuir uma imagem de superioridade ao colonizador. A autora afirma que esse mecanismo inconsciente é um produto da neocolonização e que é justamente a partir disso que a sociedade brasileira conseguiu institucionalizar o mito da democracia racial, que “oculta algo para além daquilo que mostra” (Gonzalez, 1984/2020, p. 80). Esse ocultamento exerce uma violência específica sobre a mulher negra, em que só lhe é permitido transitar em duas cenas: a mulata do carnaval, endeusada em um momento específico do ano, e nos quartinhos da empregada, a partir do trabalho de doméstica.
A partir da figura da mulata, da doméstica e da babá, herdeiras das representações da mucama e da mãe-preta, Gonzalez (1984/2020d) discute que é a mãe-preta (ou babá) quem exerce a função materna em nossa cultura, visto que a nossa inserção na linguagem é marcada por uma latinidade que inexiste no português lusitano. De acordo com a autora, “A função materna diz respeito à internalização de valores ao ensino da língua materna e uma série de outras coisas mais que vão fazer parte do imaginário da gente” Gonzalez (1984/2020d, p. 88). Assim, enquanto a branca é a outra, a mãe-preta é a mãe, pois é ela quem “amamenta, que dá banho, limpa o cocô, que põe pra dormir, que acorda de noite pra cuidar, que ensina a falar, que conta história…” Gonzalez (1984/2020d, p. 87) e marca a entrada do bebê na linguagem. Ademais, para a autora, a mucama (ou mulata) é a mulher, perspectiva discutida por ela a partir da prática colonial de iniciação sexual dos jovens com as “crioulas”:
Quando chegava na hora do casamento com a pura, frágil e inocente virgem branca, na hora da tal noite de núpcias, a rapaziada simplesmente brochava. Já imaginaram o vexame? E onde é que estava o remédio providencial que permitia a consumação das bodas? Bastava o nubente cheirar uma roupa de crioula que tivesse sido usada para logo apresentar os documentos. E a gente ficou pensando nessa prática, tão comum nos intramuros da casa-grande, da utilização desse santo remédio chamado catinga de crioula. (Gonzalez, 1984/2020d, p. 86-87)
Pensar a mucama como a mulher carrega um sentido interessante para nossa questão de pesquisa. Até aqui discutimos os lugares em que a mulher negra é fixada e seu não reconhecimento enquanto mulher. Porém, Gonzalez (1984/2020d) subverte esses discursos partindo do ponto de que, apesar de ser um elemento recalcado, a mulher negra é quem carrega e transmite os significantes daquilo que temos enquanto referência de sexualidade em nossa cultura.
Outra discussão que gostaríamos de destacar trata das contribuições teóricas de Nogueira (2021), que debate como o corpo negro se inscreve na dimensão psíquica, apontando para as vivências singulares que essa experiência produz. Sobre o processo de constituição psíquica, Nogueira (2021) afirma que, para a criança negra, essa passagem tem algumas especificidades. Além do fascínio que o momento do estádio do espelho proporciona, a criança negra experimenta uma repulsa à imagem virtual que lhe é ofertada pelo espelho, tendo em vista que a “a criança do projeto e do desejo da mãe certamente não está representada no pequeno corpo negro que o olhar materno, inconscientemente, tende a negar. A mãe negra deseja o bebê branco, como deseja para si, a brancura” (p. 121). Isso não significa que a mãe negra não ame seu bebê negro, mas, ao mesmo tempo que lhe ama, nega o que o corpo negro representa simbolicamente. Portanto, a relação entre o desejo materno e o que a criança encontra enquanto no espelho tem uma dupla lacuna: além de se haver com seu corpo real, “a assunção jubilatória é acompanhada de um processo suplementar que envolve a negação imaginária do semblante que a imagem especular oferece, pois a criança negra reluta em aderir essa imagem que não corresponde à imagem do desejo da mãe” (Nogueira, 2021, p. 123).
Por conseguinte, a criança negra fica mobilizada inconscientemente a buscar corresponder de alguma forma a essa imagem desejada pela figura materna e passa a desejar para si a brancura. Entretanto, a procura por essa referência imaginária do branco não encontra correspondência no real de seu próprio corpo, que, no caso, é negado pelo sujeito, causando discordâncias entre aquilo que seria real e o imaginário (Nogueira, 2021). Nesse sentido, ao pensar as repercussões dessa configuração para o sujeito negro a partir da referência do estádio do espelho e dos registros real - simbólico - imaginário, a autora indaga:
Que sujeito desejante é o negro, que vê no seu equipamento para satisfação do desejo, o corpo, desde já uma entrave - sua cor? Um corpo que é a negação daquilo que deseja, pois seu ideal de sujeito, sua identificação, é o inatingível - o corpo branco. (Nogueira, 2021, p. 105-106)
Já Kilomba (2019) vai trazer, como elemento chave nessa discussão, a imagem da Escrava Anastácia e a máscara que era utilizada enquanto instrumento de tortura no período colonial. Apesar de não contar com uma história oficial, há algumas versões para as razões pelas quais ela foi castigada. Uma delas seria por ser uma ativista que contribuiu para a fuga de outros escravizados; uma outra seria por ter se negado a aceitar investidas sexuais de seu senhor; e uma última versão seria o castigo de uma sinhá devido à sua beleza. Passado algum tempo de sofrimento, Anastácia morre de tétano causado pelo colar de ferro e fica reconhecida como santa entre africanos e escravizados (Kilomba, 2019).
Ao pensar essas narrativas em torno de Anastácia, Kilomba (2019) entende que essa máscara é uma das grandes representantes do colonialismo, pois denota o processo de negação, no qual “o senhor nega seu projeto de colonização e o impõe à/ao colonizada/o” (p. 34). Quando pensamos no sujeito enquanto cindido, a autora propõe que algumas das partes são projetadas para o externo, e então se cria um “Outro” que possui aquilo que negamos em nós mesmos. Ou seja, “o sujeito branco de alguma forma está dividido dentro de si próprio” Kilomba (2019, p. 36) e vivencia a parte “boa” e benevolente enquanto “eu” e a parte “má” é projetada sobre esse Outro, como se fosse algo externo a si mesmo. Assim, “O sujeito negro torna-se então tela de projeção daquilo que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo, neste caso: a ladra ou o ladrão violenta/o, a/o bandida/o indolente e maliciosa/o” Kilomba (2019, p. 37). Dessa forma, a branquitude, ao reprimir em si mesma os aspectos que são lidos como “ruins”, como a agressividade e a sexualidade, por exemplo, os transforma em tabu e os projeta sobre o negro, sustentando assim a sua imagem de “boa” e como modelo ideal, civilizado e livre daquilo que está reprimido.
Dessa forma, o negro não ocupa apenas o lugar de “Outro” - de diferença, em relação ao sujeito branco, mas de “Outridade”, pois encarna aquilo que o “eu” do sujeito branco nega em si mesmo; portanto, “nós nos tornamos a representação mental daquilo que o sujeito branco não quer se parecer” (Kilomba, 2019, p. 38). Nesse sentido, o fenômeno para o qual estamos olhando não trata do sujeito negro de fato, mas das fantasias do branco construídas em torno da negritude a partir de suas projeções. Assim, para Kilomba (2019), estamos diante de um processo de alienação, visto que a relação construída pelo negro consigo mesmo parte da presença constante e alienante do outro, branco; o negro se vê forçado a se identificar com os heróis brancos e rejeitar seus semelhantes, colocados enquanto inimigos.
Com as mobilizações teóricas apresentadas por Souza, Gonzalez, Nogueira e Kilomba, temos um panorama da complexidade do processo de vir-a-ser negro. E como já apresentamos, nossas indagações giram em torno do que pode ser produzido pela mulher negra enquanto experiência de feminilidade, tendo em vista as ambiguidades da travessia do tornar-se mulher e tornar-se negra. Dessa forma, a seguir apresentamos nosso percurso metodológico para chegar a três mulheres que compartilharam suas experiências desse processo e contribuíram para uma mobilização do nosso debate.
Procedimentos Metodológicos
Como recurso metodológico para a construção deste estudo, nos apoiamos na proposta da pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos. A pesquisa psicanalítica está fundamentada na articulação do sujeito com a prática clínica, a teoria e a pesquisa, inseridas no campo da psicanálise. Nessa relação, o saber que se apresenta está ancorado no inconsciente e, portanto, implica a relação transferencial entre pesquisador - pesquisa - participantes. Ou seja, neste estudo investigamos o saber construído pela relação transferencial a respeito da questão levantada. Saber este produzido singularmente e sem pretensões de alcançar uma totalidade da experiência de todos os sujeitos, essencializando ou universalizando a questão (Iribarry, 2003; Cárdenas & Guerra, 2018).
Lembramos, a partir das considerações de Braga (2016), que, no Brasil, grande parte das pessoas que acessam a psicanálise, seja no processo analítico ou nas formações, ainda são brancas e pertencem a uma classe social específica. Portanto, os resultados que se apresentam em pesquisas psicanalíticas que derivam da “experiência clínica” de consultórios privados dizem respeito a essas pessoas. Diante disso, retomamos o potencial político do método psicanalítico e propomos pensar este estudo a partir da pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos (Cárdenas & Guerra, 2018; Chrisóstomo et al., 2018; Rosa, 2004; Rosa & Domingues, 2010).
Cárdenas e Guerra (2018) apontam que um estudo que parte dessa metodologia se constrói a partir de um impasse. Ao pensarmos o saber em oposição à verdade, “um vazio se instala” que acarreta um impasse clínico ou teórico (Cárdenas & Guerra, 2018, p. 234). Para além disso, os autores propõem que desse vazio também advém um “impasse político-social” (Cárdenas & Guerra, 2018, p. 234), e este seria, então, objeto de uma pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais. Nesse cenário, portanto, é possível ir em busca do saber do participante, além de um saber sobre o social (Cárdenas & Guerra, 2018), bem como “a dimensão do inconsciente nas práticas sociais” (Rosa & Domingues, 2010, p. 187). Rosa (2004), Rosa e Domingues (2010), Cárdenas e Guerra (2018) e Chrisóstomo et al. (2018) apresentam a entrevista como possibilidade para coleta de dados em pesquisa psicanalítica quando se trata de uma investigação pautada pelos fenômenos sociais. Nessa direção, o pesquisador supõe que os participantes sabem algo sobre o tema (Rosa & Domingues, 2010).
Assim, nesta pesquisa a2, propomos realizar entrevistas com mulheres que se interessaram e se disponibilizaram a contribuir para o estudo. Para alcançar possíveis participantes foi realizada a divulgação da pesquisa via internet e redes sociais. O cartaz de divulgação contava apenas com o título “Questões sobre a feminilidade da mulher” e com as condições para participação: mulheres que se autodeclararam pretas, pardas e/ou negras, possuir mais de 18 anos, residir em Londrina e ter disponibilidade para participar de entrevistas presenciais com dia, horário e local a combinar.
Foi possível realizar as entrevistas com três mulheres - com a primeira mulher, as entrevistas ocorreram em sua residência e com a segunda e a terceira, no consultório da pesquisadora. Na primeira conversa, foi pontuado que gostaríamos de realizar até cinco entrevistas com duração de 50 minutos cada. Com as duas primeiras mulheres foi possível realizar cinco encontros e com a terceira realizamos três. Todas as mulheres concordaram em participar da pesquisa e assinaram o TCLE (Termo de Consentimento Livre Esclarecido). Além disso, as entrevistas foram gravadas e realizadas em espaço que garantisse o sigilo das informações. Com a intenção de que a conversa fosse livre, ao longo dos encontros, solicitamos apenas que elas compartilhassem suas histórias de vida e suas experiências enquanto mulheres. Por fim, foi realizado um último encontro com as participantes para uma conversa acerca dos caminhos de análise, com o intuito de integrá-las também nesse momento da pesquisa. A seguir, apresentamos um recorte das reflexões que foram possíveis a partir dos encontros com cada mulher.
Resultados e Discussão
A primeira mulher que nos encontramos escolheu o nome Maju para ser identificada aqui, tomando como referência a repórter e apresentadora Maju Coutinho. Logo no primeiro encontro, percebemos que a cachorrinha dela se chamava “Glória Maria”. Pontuamos, ao final das entrevistas, como os nomes “Glória Maria” e “Maju Coutinho” chamaram nossa atenção, especificamente por o nome de sua cachorrinha ser Glória Maria, uma mulher negra que ela disse, em nossos encontros, considerar feia, e ela pensar em Maju Coutinho como uma referência de mulher negra para nomeá-la nesse trabalho. Maju Coutinho seria uma negra muito linda, porém com uma boca feia, como ela mesma pontuou. Maju diz que gosta das duas mulheres que mencionou e que, inclusive, se fosse para conviver com uma delas, escolheria a Glória Maria por o seu jeito ser mais parecido com o dela; por isso, colocou esse nome em sua cachorrinha.
A forma como Maju apresenta suas referências de mulheres nos fez pensar no paralelo entre mulheres brancas e negras. Quando perguntamos as referências de mulheres de Maju para saber como poderia nomeá-la aqui, ela falou sobre diversas mulheres famosas brancas e, ao citá-las, não fala em nenhum momento de traços ou trejeitos que não lhe agradam. É apenas falando de Glória Maria e Maju Coutinho que ela marca o que seria feio e, ao mesmo tempo, compreende que se identifica mais com o jeito Glória Maria de ser do que com essas outras mulheres. O que gostaríamos de destacar é essa dupla perspectiva que escutamos no discurso de Maju. É como se as mulheres brancas da TV ainda apresentassem uma beleza sem questionamentos e as mulheres negras, apesar de bonitas e com uma presença própria, ainda possuíssem marcadores de algo que não é belo. Maju se reconhece a partir desta não beleza quando afirma que se percebe feia…
Esses elementos nos fazem lembrar do que Kilomba (2019) discute acerca do processo de alienação ao discurso do outro branco, pois aqui, enquanto a mulher branca ainda é sustentada enquanto modelo ideal de beleza a ser alcançado, a negra possui marcadores de diferença - boca feia e mulher feia. E o interessante é que, mesmo diante desse processo de alienação dos elementos que seriam de beleza, alguma coisa escapa, assim como no mecanismo de repressão, também discutido por Kilomba (2019). Escapa em forma de carinho demonstrado por Glória Maria e na admiração pela figura de Maju Coutinho, ao escolher seu nome como fictício para este estudo. O discurso de Maju reitera nossa questão de pesquisa, quando discutimos como fica a experiência da feminilidade da mulher negra tendo em vista que os referenciais do laço social ainda se pautam pela mulher branca. Sobre isso, as participantes Bell e Maria, ao apresentarem suas experiências, nos ofertaram reflexões interessantes.
Bell foi a segunda participante da pesquisa e escolheu esse nome em referência a bell hooks. Em um de nossos encontros, Bell questiona os símbolos que representariam o que seria feminino e o que seria masculino. Ao dizer sobre roupas, acessórios e maquiagens estarem associados ao gênero, Bell indaga qual o uso que pessoas brancas e negras fazem desses itens. Enquanto a pessoa negra faz uso de determinados elementos que têm um sentido, como relacionado à ancestralidade, por exemplo, pessoas brancas fazem uso de uma forma esvaziada dos sentidos atribuídos pela comunidade negra, embora sejam estas que acabam recebendo o status de beleza. Aqui, Bell questiona justamente os significantes simbólicos e imaginários que traduziriam as posições feminina e masculina em nossa cultura, e o ponto interessante desse questionamento é como as representações desses símbolos se diferenciam entre pessoas negras e brancas. Bell, por exemplo, compara como mulheres brancas com tranças e alongamento de unhas recebem uma significação de belo e, quando se trata de mulheres negras, essas são vistas como feias ou escandalosas, mesmo que esses símbolos culturais tenham origem na comunidade negra.
O que gostaríamos de destacar é como esses recursos não possuem uma uniformidade no que diz respeito à experiência subjetiva. Aqui, cabe uma ressalva à proposta de Freud (1931/2018) de que haveria uma “saída normal” para que as mulheres alcançassem a feminilidade e desenvolvessem características gerais que fossem “femininas”. Para além da generalização, sempre errônea, do que é feminino, a saída proposta por Freud é referenciada pela experiência da mulher branca. Nesse sentido, Nogueira (2021), com base na concepção lacaniana, pontua que é a partir da inscrição simbólica e imaginária que damos conta daquilo que é irrepresentável; então, a partir da linguagem, cada comunidade vai ofertar via linguagem esses recursos para cada sujeito. Quando pensamos nos elementos trazidos por Bell, como as tranças e unhas, ela pontua que eles têm um dado significado para a comunidade negra que a comunidade branca não alcança. Bell responde uma de nossas principais interrogações quando traz esse questionamento, pois não se trata apenas de reconhecer como bonita também a unha da negra, assim como é a da branca. Para termos pistas de como mulheres negras vivenciam sua feminilidade, é preciso escutar o sentido dado por elas próprias e por sua comunidade aos elementos simbólicos e imaginários que estão em seu cotidiano. Nesse sentido, é Maria quem nos apresenta uma experiência referenciada por outra mulher negra.
Uma das principais personagens da vida de Maria é sua avó. Maria compartilha que, quando criança, se sentia inclusive culpada por ter a sensação de que gostava mais de sua avó do que se sua mãe - que é branca. Além de ter esse referencial de cuidado e de mulher, Maria conseguia perceber as maiores contradições do Brasil encarnadas na figura de sua avó. Como esta não sabia ler e escrever, contava as histórias de fome da família, ao mesmo tempo que desfrutavam de um conforto nos últimos tempos. Era confuso para Maria compreender como histórias tão distintas pertenciam à mesma pessoa. Essa contradição se escancara quando Maria escuta de sua avó “Temos que arrumar uma neguinha para limpar a casa” e ela responde “mas a neguinha vai ser você ou eu?”, e a avó solta uma risada. O laço de Maria com sua avó pareceu lhe garantir um lugar. Foi sua avó que lhe apresentou uma história familiar, era a pessoa que conversava sobre os conflitos raciais, era ela quem lhe acolheu no momento em que compartilhou sua orientação sexual com sua família. Maria conta as histórias de sua avó com o júbilo que Nogueira (2021) descreve quando a criança olha para o espelho e se reconhece. Fica a impressão que a avó de Maria se tornou a referência para ela se constituir no mundo.
Essa consideração nos remete ao que Gonzalez (1988/2020c) pontua sobre as mulheres não brancas serem entendidas enquanto infans, categoria que remete àquele que é falado pelos outros. Nesse sentido, os lugares supostos para as mulheres negras - como ter uma narrativa de dor e sofrimento - lhe retiram a possibilidade de narrar a própria história a partir de um discurso próprio. Entretanto, Maria recusa esse lugar e reitera em suas relações como sua história tem diversos outros elementos para além de dor e sofrimento. Maria reconhece e nomeia os conflitos que têm em suas relações e que lhe causam angústia, porém não toma essa narrativa como única, assim como os lugares que ela ocupa esperam dela. No discurso de Maria, fica evidente que ter sua avó enquanto referência lhe permitiu realizar essas construções. A partir dessa relação, nos perguntamos se, para uma mulher negra tornar-se mulher e negra, seria primordial a presença de outra mulher negra para fazer função de apresentar os diversos significantes possíveis para a travessia dessa experiência.
Considerações Finais
Ao retomar as indagações que objetivamos apresentar aqui, consideramos que foi possível levantar alguns caminhos em torno da nossa questão que, de acordo com nosso método, não têm o intuito de responder aos questionamentos de forma universal, mas discutir mobilizações teóricas no campo psicanalítico. Sojourner, por exemplo, em 1851, já havia posicionado uma recusa diante dos elementos que caracterizariam uma “essência feminina”, apontando que mulheres negras possuíam uma experiência própria em torno do que seria ser mulher. Entretanto, o laço social ainda empurra mulheres negras para posições específicas faladas pelos outros, como apresentado por Gonzalez (1988/2020c). Além disso, Gonzalez (1984/2020d) afirma que este sintoma - a neurose cultural brasileira, que recalca a história do colonialismo e as tensões raciais via democracia racial, oculta justamente a figura da mulher negra, essa que é “A” mulher e “A” mãe. O interesse em recobrir essa figura parece que está em torno de não querer escutar o que a mulher negra tem a dizer sobre sua experiência, pois para ouvi-la seria necessário compreender as complexidades do tornar-se mulher e do tornar-se negra e de como esses movimentos estão enredados no laço social.
Mas, como bem sabemos desde Freud e reafirmado por Gonzalez (1984/2020d) e Kilomba (2019), o mecanismo do recalque tem suas fragilidades e, a qualquer momento, aquilo que está oculto pode vir à tona; por isso, as máscaras metafóricas são colocadas nas bocas das mulheres negras. Quais seriam então as consequências atuais se as mulheres negras de hoje queiram fazer como Anastácia e lutar pela libertação dos negros, recusando ser o objeto sexual do senhor ou ser bonita demais aos olhos das mulheres brancas? Entretanto, diante dessa realidade e de experiências que aproximam o passado e o presente, Conceição Evaristo reitera que “nossa fala estilhaça a máscara do silêncio”, e assim como Neusa, Lélia, Isildinha e Grada insistiram em falar sobre nossas experiências, precisamos seguir reivindicando nosso espaço de enunciação nessa disputa de narrativas. Novamente ressaltamos que, não se trata de ocupar e acessar o mesmo lugar da branquitude, mas, como propõe Andrade (2022), construir algo próprio a partir do lugar de não-todo.
Além das reflexões teóricas, o diálogo com nossas interlocutoras, que não tinha como intuito apresentar um viés interpretativo a partir do referencial teórico mas investigar o saber delas em torno da nossa questão, apresentaram elementos fundamentais para nossa investigação. Compreendemos que nosso trabalho possui limitações no sentido de apresentar um recorte da experiência de apenas três mulheres residentes numa cidade específica e, portanto, indicamos como possibilidades de pesquisas futuras apresentar vivências de mulheres negras de outras regiões do país para levantamentos de outras questões para o campo psicanalítico. Maju nos indica que talvez algumas mulheres negras ainda estejam referenciadas pela mulher branca enquanto modelo de feminilidade. Bell nos fala da relevância dos elementos simbólicos compartilhados pela comunidade negra e Maria diz sobre a experiência de ter uma mulher negra enquanto referência em seu processo de construções subjetivas. Por fim, consideramos que se haver com a dupla perspectiva de tornar-se mulher e negra e superar os significantes difundidos no laço social colados à sua imagem, coloca a mulher negra em condições subjetiva e material específicas, mas que, para além disso, existem saídas possíveis. E a mulher negra poder retomar o centro das produções sobre si, talvez seja uma delas.