Ao tratarmos sobre a adolescência, nos deparamos com uma realidade que, em 2019, 51,3% dos assassinatos totais no Brasil foram de jovens entre 15 e 29 anos, e de cada 100 mortos com idade entre 15 e 19 anos, 39 foram vítimas de violência letal (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2021), demonstrando como que esse momento da vida é marcado por um genocídio, esse último associado também a variáveis como a racial e a de gênero. Logo, vê-se que a adolescência, como é o caso de outros segmentos sociais, é um grupo minoritário e vulnerável em nossa sociedade.
Ainda, Calligaris (2000) indica que os adolescentes são submetidos a uma “moratória adulta” a qual os solicita que esperem para que, só assim, possam ser admitidos na sociedade dos adultos. Os idealiza como belos e felizes, responsáveis por inovar, empreender - sustentar o desejo recalcado dos próprios pais.
Salienta-se também que, para a psicanálise, a adolescência é distinta da puberdade. O real da puberdade se relaciona à emergência de um órgão, o órgão da libido, marcado pelo discurso, o qual presentifica na conjunção com o outro sexo uma ausência de saber. A adolescência, entretanto, remete à sequência de escolhas que o sujeito traça, remetendo ao sintoma, face ao impossível da puberdade (Stevens, 1998/2004). Outrossim, a adolescência é um fenômeno social, e não pode ser lida sem ser remetida ao laço social e à cultura que a comportam, mesmo podendo haver puberdade sem adolescência para um sujeito a depender de onde se insira no mundo.
Mais, por mais que a psicanálise retrate a adolescência como um momento lógico, distinguindo-a de um mero momento cronológico, também ela é uma identidade. O cotidiano nos faz supor que, independentemente de encontrarem-se no referido momento lógico, estando os humanos em idade compreendida como a dessa “fase do desenvolvimento”, narrar-se-á que são “adolescentes”. Quando referimos o conceito de identidade, o tomamos como compreendido por Ernesto Laclau (2013).
Para o autor, uma identidade popular, como a de povo (e aqui adicionamos que bem poderia ser a do adolescente), só comparece se dada uma demanda de alguém que é uma diferença no conjunto. Em determinado momento histórico, as pessoas têm a experiência de uma falta, de uma fratura que surge na harmoniosa continuidade social (Laclau, 2013).
A construção do “povo” (ou do “adolescente”), portanto, é o esboço mal-sucedido (necessário) de um nome para a plenitude ausente. Essa demanda, que é de um sujeito em um conjunto com elementos heterogêneos, passa a ser a possível agenciadora de uma identidade se diferentes demandas passam a equivaler, no conjunto, criando uma cadeia de equivalências (Laclau, 2013). O cientista social chega a dizer: “[...] e assim toda identidade é construída no bojo da tensão entre a lógica da diferença e a lógica da equivalência” (Laclau, 2013, p. 119).
Indagamos, portanto, se essa adolescência brasileira colonizada, ora atrelada a um momento lógico, ora a uma identidade, cujos dados indicam a brutal violência a que está submetida, faz jus aos desígnios da moratória. Afinal, os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, expostos à exploração ilegal de sua força de trabalho, aqueles a habitar os campos e periferias de nossas cidades, e dentre tantos outros impactados em sua constituição psíquica pelas violências da colonização, sofrem como os demais?
Para problematizar o questionamento acima, e sendo a adolescência, hoje em dia, presente nas periferias do mundo, apresentamos a historicidade dessa idade da vida de forma a localizar a sua constituição no bojo da tensão entre a metrópole e a colônia. Articulamos a esse debate, também, como os adolescentes e os seus corpos são controlados a partir de distintas dinâmicas de poder e como a ética psicanalítica pode ser subversiva contra a colonização da adolescência.
A adolescência, como idade da vida, versa sobre uma experiência recente na história da humanidade. Por exemplo, ao estudar o evento da “Festa dos Rapazes”, rito masculino das comunidades transmontanas portuguesas que representa a transição da infância para a adultice e que recentemente tem admitido mais mulheres, Pais (2009) indica como que, em diferentes comunidades tradicionais, a ideia da adolescência não chega a ser observada na cultura. Cita também o caso dos Tuareg, povo bérbere do norte da África, os quais não contabilizam os anos vividos por uma pessoa, logo não prescindindo de classificações de idades para referirem-se ao “ser” (Pais, 2009).
Diferentemente do que ocorre ainda em algumas sociedades tradicionais, Pais (2009) chega mesmo a afirmar que, na contemporaneidade, os ritos de passagem têm dado lugar aos ritos de impasse, dada a perda de referências simbólicas na cultura que dão continência ao fenômeno geracional.
A história da adolescência remonta à modernidade europeia, sobretudo à virada do século XIX para o XX, e se relaciona a como as idades da vida eram, antes de sua emergência, assumidas naquela sociedade. Se antes eram interpretadas como parte de uma continuidade inevitável e cíclica, consonantes à concepção medieval de um determinismo universal da ordem das coisas, só com a modernidade que passam a ser associadas aos estados físicos do corpo (Ariès, 1973/1986). Por conseguinte, a associação entre adolescência e puberdade é recente na história europeia, e passa a ser um fato social em outras culturas a partir do intercâmbio, que não sem violência, propiciou a comunicação entre as formas da metrópole e da colônia durante a neocolonização do globo.
O prelúdio da adolescência pode ser observado, já no século XVIII, na literatura com o Querubim, e com o ofício do conscrito. Em momento posterior, a obra musical de Wagner também cumprirá o papel de representar o que seria a adolescência para a Europa. Com isso, novos significados são associados a essa idade, atrelando-a às ideias de força e beleza. A adolescência, portanto, se torna uma resposta à velhice de uma sociedade aristocrática, similar à tentativa do romantismo que, porém, ainda não tinha criado uma idade da vida depositária de seus efeitos (Ariès, 1973/1986)
Curiosamente, é na modernidade que surge um específico poder o qual toma o corpo como palco privilegiado de sua operação, e que, portanto, temos a hipótese de que possa ser uma das condições de possibilidade para a emergência da adolescência enquanto idade, essa última agora atada à puberdade: o poder disciplinar.
Esse se caracteriza por ser uma técnica de controle que pressupõe um minucioso conhecimento das funções do corpo. Assim, os corpos são domesticados, já que dóceis, não permitem segredos sobre o seu funcionamento, e tornam-se úteis, pois a partir que são conhecidos, instala-se a possibilidade de uma compreensão econômica do corpo, tornando-o cada vez mais eficiente para os intuitos da política. Outrossim, o poder disciplinar é mediado por um saber médico/jurídico, dentre outros, o qual não só o transmite como justifica a criação de prisões e hospícios, por exemplo (Foucault, 1975/1999).
A hipótese traçada, e que relaciona esse poder à gênese da ideia da adolescência, associa o que Ariès (1973/1986) indica ser próprio e original à modernidade europeia - o atrelamento dos estados do corpo às idades da vida - à outra novidade moderna, a de um poder que nunca antes, com tamanho sucesso, conseguiu agenciar os corpos aos seus intuitos. Foucault (1975/1999) mesmo indica a indissociabilidade dos conceitos de poder disciplinar e de corpo.
Assim, associamos às contribuições foucaultianas o debate da adolescência, indicando como essa perpassa pelo âmbito do poder disciplinar. Igualmente, denunciamos como que uma outra grande parcela de pessoas em idade cronológica equivalente à de outros adolescentes, não experimentam a adolescência, logo sendo alijadas dela. Para tanto, consideramos o conceito de necropoder, de Mbembe (2003/2018), para balizar teoricamente o funcionamento dessa referida exclusão no âmbito da política.
O necropoder, forma avançada do que antes fora a escravidão, constitui-se a partir da violência, que toma o lugar do direito, e da Exceção como garantia da soberania, tomando os corpos, aos quais se destina, como não humanos, como mortos-vivos. Aliado a uma lógica geográfica de segregação e a uma dinâmica descentralizada do poder (como também o poder disciplinar opera devido à descentralização propiciada pelo panóptico), o necropoder faz operar o seu controle para os colonizados (Mbembe, 2003/2018).
Logo, relacionamos o genocídio contra os adolescentes ao império do necropoder pois, como descrita a moratória por Calligaris (2000), observamos que ela não compreende o adolescente colonizado, formalizando uma imagem para a adolescência que diretamente se refere à experiência burguesa, o que interpretamos como coincidente com o modo como opera o necropoder, que, para Mbembe (2003/2018), funciona ao obliterar o sujeito, já que o escravo era somente o objeto da ação de um senhor. Não podemos afirmar a constituição dessa referida imagem que exclui os adolescentes colonizados da política, sem compreender que está articulada ao poder.
Buscamos também, a partir da análise de como o poder incide nos distintos corpos adolescentes desde como estão dispostos no espectro colonial, elucidar os significados que, abaixo do significante adolescência, se deslocam inversamente abaixo da cadeia de significantes do sujeito. Ariès (1973/2008), ao tratar da história da adolescência, e Calligaris (2000), como enunciando alguns desses significados consolidados sob a forma da moratória, dão elementos para atribuir à ordem da felicidade o lugar a ocuparem os jovens. Esse debate nos encaminha para o enlace entre psicanálise e política.
Como indica Lacan (2008), não há como se pensar a política, em nossa contemporaneidade, sem compreender que a felicidade se tornou um de seus fatores. Essa felicidade de hoje em dia pode ser muito bem expressa pela formulação aristotélica a qual relaciona às ações humanas uma função de virtude, essa última obtida por um mesotes, e que em última consequência, define como meta moral do humano o Bem Supremo. A demanda do analisando, em última instância, é sempre a demanda por essa felicidade (Lacan, 2008), assim também sendo a dos adolescentes e a dos adultos.
Das Ding, vivida na experiência do sujeito como Fremde, estranha, o Outro absoluto, é aquela a que ele faz referência, e pelo princípio de realidade, busca convencer-se que há no exterior um objeto que não foi perdido. Esse processo, tomado sob a forma da felicidade, traz uma perigosa conotação (Lacan, 2008).
Maesso (2020) compreende o empreendimento da psicanálise como se dando por meio de um tipo de dispositivo, mas de um tipo diferente, garantido pela ética da psicanálise. Acreditamos que o referido dispositivo, ou melhor, contradispositivo, pode ser relevante para uma subversão não-toda da colonização da adolescência.
Um dispositivo dispõe de uma série de elementos heterogêneos, organizando os ditos e não-ditos, como se fossem máquinas que levassem os corpos a falar e a fazer (Maesso, 2020).
Diferenciando-se, porém, dos tradicionais dispositivos, a psicanálise propicia contradispositivos de profanação, privilegiando um saber não-todo. A estratégia, nesses casos, supõe a transferência, e não o poder. Diferente daquele que busca o Bem Supremo aristotélico, é, no contradispositivo sustentado pela ética da psicanálise, o sujeito a se deparar com a sua continuidade em uma cadeia de significantes que substitui o significado (Maesso, 2020).
Evidenciamos, portanto, a importância de identificar/escutar os diferentes significados que atropelam os adolescentes em suas significações, esses adolescentes massacrados por uma violência cotidiana, para que, só assim, possamos, enquanto coletivo de psicanalistas, permitir ascender um saber sobre o sujeito na clínica, em oposição à moratória que incita à felicidade, subvertendo a colonização da adolescência.
Também, recorremos às contribuições de Anzaldúa (2009/2021), a qual propõe que, na sociedade multicultural e decolonizada (Nova Nação Mestiza), devemos portar-nos como “Mulas de Tróia”, propondo novas ideias (e que interpretamos como tratando-se de significados) frente àquelas já impostas pelo colonizador. Abre-se o debate, por conseguinte, que alguns significados são “mais mortíferos” para a emergência do sujeito, do que outros.
Lima (2021), a título de ilustração, dá um exemplo de como a cena imaginária pode impactar o funcionamento psíquico, aqui no que concerne à oposição entre a experiência dos corpos negros e a dos corpos brancos. Ela diz que, para os negros, o que vem como sentido do campo do Outro é de uma violência tão extrema - à base do chicote, por exemplo - que o inabilita para uma plena confirmação de um Eu, sendo o negro conduzido a uma condição grave de fragmentação autoerótica. Pois, imaginamos também que, para os adolescentes, impõem-se significados que causam uma série de consequências para o psiquismo a serem melhor estudadas.
Assim, os significados da adolescência são problematizados, de modo que indicamos como a ética da psicanálise é importante para a subversão da colonização dos adolescentes e de suas identidades.
A Adolescência: Colonização e Significados
Ariès (1973/1986) indica como é um fato recente na história o atrelamento das idades da vida aos estados biológicos do corpo, o que ocorre para a adolescência, a qual é remetida à puberdade em nossa cultura. Assumimos que esse processo de consumação da adolescência no campo da puberdade não representa uma mera coincidência, de maneira que lançamos a hipótese de ser consequência do modo como a política e o poder operam no momento em que se dá o referido atrelamento.
Foucault (1975/1999) traz importantes reflexões sobre a dinâmica do poder a emergir na modernidade, conduzindo para o que expressa ser uma biopolítica. Nunca antes na história o corpo se tornou agente, em tamanha relevância, dos auspícios do poder.
Há distintos poderes dispostos no mundo, porém um deles, o poder disciplinar, se torna preponderante na modernidade (Foucault, 1975/1999).
Ainda para caracterizar o poder disciplinar e justificar a sua predominância na modernidade, Foucault (1975/1999) compara-o a outros tipos de poder, e versamos sobre um dos por ele retratados: a escravidão. Nessa, vê-se que o poder atua tomando os corpos em seu sentido genérico, sendo que nenhum escravizado é tomado enquanto unidade particular. Assim, para o autor, o poder disciplinar seria mais eficiente em aplicar a sua violência, já que cada corpo é entendido em sua particularidade, podendo assim, através da lógica do panóptico, restringir de maneira mais vasta a liberdade dos cidadãos.
A operação do poder disciplinar, por sua vez, não indica que, domesticados os corpos, não sofreria resistências. Foucault (1975/2009) diz que, à medida que se exercem sobre os corpos os intuitos do poder disciplinar, instala-se um contra-poder em que o sujeito reivindica o corpo ante o poder, a sexualidade ante a moral, a saúde ante a economia.
Portanto, não se trata de uma domesticação sem protestações, sendo que a psicanálise, ao privilegiar o sujeito do desejo, pode promover, na brecha foucaultiana que o contra-poder permite, a sua ética.
O funcionamento do biopoder opera, e pode ser demonstrado, na cena da adolescência, já que nessa idade da vida o corpo não só sofre mudanças reais, e que traduzimos por puberdade, como também é submetido a formas muito estreitas de controle.
A moratória de que Calligaris (2000) fala, e que interpretamos como sendo um recorte de significados que dão sentido à economia utilizada para o controle dos adolescentes e de seus corpos, exige que o adolescente espere, sem justificativas plausíveis, para só assim ser admitido ao mundo dos adultos. Posto isso, é comum que os adolescentes, buscando a referida admissão, atuem para os adultos aquilo do desejo não admitido dos pais. Os pais em tais ocasiões, por sua vez, tendem a reprimir com forte violência os filhos, reprimindo no outro o que é sobre si (Calligaris, 2000).
Se há um dispositivo que regula a operação dos corpos adolescentes na modernidade, o que se articula à esfera do biopoder como indica nossa hipótese, a moratória retratada por Calligaris (2000) não só é analisável por demonstrar como o poder disciplinar se articula a enunciados que coagem os corpos a determinado funcionamento econômico, mas também por ser uma amostra importante de significados que, para tantos, deslocam-se abaixo do e inversamente ao “significante adolescência”, significante esse engatilhado a uma cadeia de significantes do ser falante.
Sendo, portanto, necessário para a realização da ética psicanalítica um esvaziamento dos sentidos em prol de que o sujeito representado entre significantes possa reinventar, por meio de seu desejo, seus caminhos, é salutar que analisemos quais significados comparecem no imaginário sobre a adolescência, e que aprisionam os falantes a determinadas identidades. Podemos considerar a moratória descrita por Calligaris (2000) como um bom recorte de significados que, comparecendo abaixo do significante adolescência, aprisionam imaginariamente os adolescentes aos sentidos da beleza, da inovação, daqueles que esperarão, sem protestos, pela admissão ao mundo dos adultos.
Nem todos os adolescentes, porém, são aqueles que permanecerão à espera, sem trabalhar, para no futuro serem empreendedores de sucesso; nem todos compartilham da mesma raça que possui privilégios no terreno do que é dito como belo e/ou aceitável.
Guerra et al. (2012), por exemplo, versam sobre como o compasso de espera que marca a adolescência não é universal, provocando-nos acerca da inexistência do momento lógico da adolescência para determinados falantes, a depender de sua posição social.
A puberdade, que irrompe como real, comparece como aquela que desata o nó borromeano, despedaçando a imagem corporal previamente estabelecida no, agora, púbere. Igualmente, desprovido de recursos simbólicos pela intrusão do real da puberdade, o adolescente tem, em sua fantasia, a possibilidade de reconstituir-se em novos destinos, com novos percursos no trançamento entre real, imaginário e simbólico a advir (Guerra et al., 2012).
Para Guerra et al. (2012), contudo, ao analisarem o fenômeno do tráfico de drogas entre adolescentes, problematizam como que para os jovens alienados ao saber do Outro do tráfico não existe o referido compasso de espera. Esses jovens deparam-se com as drogas, o ato sexual genital, e os crimes que, de certa maneira, funcionam como soluções rápidas para o encobrimento da falha estrutural deflagrada pela puberdade.
Logo, põe-se em questão que, diversos sujeitos a passarem pela puberdade, não necessariamente passarão pelo momento lógico da adolescência, contudo, identificados ao significante “adolescência”, são integrantes da identidade coletiva forjada para os adolescentes. Se Guerra et al. (2012) evidenciam a inexistência do compasso de espera na adolescência para parcela da população adolescente, daquela imersa na realidade social do tráfico de drogas, articulamos que também para outras adolescências colonizadas - àquelas vinculadas a uma sexualidade distinta da heterossexual cisgênero, a cenários de extrema miséria e marginalização social, ao racismo, às violências de gênero, às mazelas do latifundiarismo e a demais cenários de colonização dos corpos e subjetividades - podem ocorrer outros modos de sofrer que não os normalmente encontrados nos adolescentes hegemônicos.
A adolescência, além de um significante, representa uma identidade, e, por consequência, a representação de um grupo.
A sociedade, de certo modo, clama por um todo que dê conta de seu “ser”, e, para Laclau (2013), o todo sempre é encarnado por uma parte. Sendo o todo impossível, é a parte que, enquanto objeto a, vem a ser fonte de gozo. Isso também ocorre para a “identidade adolescente”.
Laclau (2013) compreende que, para se falar de uma totalidade que engloba todas as diferenças dentro de um conjunto, há que se ter necessariamente um elemento externo. Esse elemento externo, para garantir a composição de um todo, não pode ser um elemento neutro, mas sim um excluído (determinado grupo coloca seus integrantes em “equivalência” frente a uma identidade excluída, por exemplo).
Outrossim, o impossível todo de uma sociedade só se faz representado na linguagem, logo sendo a identidade popular somente possível a partir da identificação de heterogêneos sujeitos ao traço de um significante (Laclau, 2013).
Há, obrigatoriamente, a necessidade de um “significante vazio” para a constituição de uma identidade coletiva, em outros termos, a unidade do conjunto de equivalência depende da produção de um nome. O nome é puro significante, não havendo qualquer unidade conceitual anterior, já que o todo é o real. Quanto mais vazio o significante for, também será a sua capacidade de gerar processos identificatórios em sujeitos com demandas insatisfeitas heterogêneas postas em relação em uma cadeia de equivalência de demandas. Deve-se ter uma identificação aos significantes compartilhados pelo grupo social de pertencimento, os quais são dispostos em uma cadeia de equivalência, em que a demanda também se faça representar (Laclau, 2013).
Perez e Starnino (2021) buscam estudar a constituição das identidades coletivas, como as de gênero ou raça, relacionando as contribuições de Ernesto Laclau a produções freudianas e de demais autores. Indicam, em consonância a Laclau, que uma identidade coletiva estruturalmente necessita da demanda, do significante vazio, da identificação e do gozo (la jouissance). Descrevem como o significante, antes de tudo, é um conceito político, evidente nas disputas em torno dos significados organizados na multiplicidade contingencial dos movimentos sociais e políticos.
Os autores afirmam que “[...] os “grandes significantes” (no caso o significante que remete à figura de um líder) tomam destinos de significado assumidos pelos atores sociais [...]” (Perez & Starnino, 2021, p. 100). Logo, se a adolescência pode ser analisada não só como um tempo lógico, mas também como uma identidade coletiva, os significados da cultura e que se articulam ao coletivo de falas dentro de um grupo, devem ser analisados, até mesmo para se dimensionar os desafios a que o psicanalista implicado politicamente terá que se deparar no processo analítico. Além do mais, questionamos se a identidade a que se vinculam os adolescentes burgueses é a mesma a que se vinculam os colonizados.
Conclui-se assim que, seja enquanto identidade ou enquanto momento lógico, à adolescência necessariamente estão associadas as vicissitudes dos significados.
Anzaldúa (2009/2021), teórica essa que não é psicanalista, igualmente disserta sobre o conceito de identidade. Indica, pois, que se constituem como “nos/otras”, e que do Outrx cultural, muitas das vezes, advém identidades que oprimem. Propõe que na Nova Nação Mestiza os sujeitos devem reivindicar uma identidade ao molde da Mula de Tróia, introduzindo novas ideias na cultura, as quais devem operar pela libertação dos cidadãos.
Anzaldúa (1991/2021), versando sobre a leitura, trata que ela depende de como as identidades do leitor articulam distintas posições frente a um Outrx. Versa sobre um episódio em que, na recepção de seu livro Boderlands, foi interrogada por Cherríe Moraga (uma leitora de sua obra), a qual desferiu dúvidas sobre a lesbianidade de Anzaldúa, já que, na obra publicada, não enfatizava a luta das mulheres lésbicas. Cherríe partilhava da identidade heterossexual. A identidade “lésbica”, nessa situação “lida” por Moraga, deflagra como que à identidade estão articulados poderes que subjugam os corpos à violência sexista, nesse caso.
Interpretamos que, como Anzaldúa articula o conceito de identidade, por mais que não versando diretamente sobre a linguagem, articula-o diretamente à noção de significado. Ao tratar sobre a identidade lesbiana, aponta para a prevalência de um “significado” que, para os sujeitos do desejo, faz operar os seus efeitos imaginários ao deslocar-se abaixo do significante “lésbica”.
Se à identidade é intrínseco um significante vazio, havendo portanto, em um grupo, um específico processo de identificação, através de Anzaldúa podemos tratar sobre os efeitos do significado.
Se por um lado é da ética da psicanálise privilegiar o significante em detrimento do significado, adicionamos que, para determinados corpos marcados, em seu imaginário, por sentidos tão aniquiladores, deve-se agir como a Mula de Tróia, promovendo novas ideias, ou melhor, novos significados menos mortificantes, para que posteriormente esses novos igualmente sejam esvaziados.
O engajamento de diferentes movimentos sociais pela disputa de significados, em torno de determinados significantes, não necessariamente é nocivo. As defesas apaixonadas de certos movimentos sociais pelos significados do ser gay, negro ou adolescente, mais são uma alternativa imaginária a um avassalador e mais mortífero conjunto de significados propostos colonialmente e que interpelam os sujeitos portadores das identidades oprimidas, e que, só completam sua função ética para o sujeito do desejo se, após o novo significado, o significado Mula de Tróia, advir o seu atravessamento, restando o significante puro que será o terreno para a criação desejante.
Comentários Finais: Da Bio para a Necropolítica
Como revelam os dados do Atlas da Violência de 2021 (IPEA, 2021), já descritos na introdução desse artigo, podemos ver no genocídio o sintoma de uma sociedade que atribui aos adolescentes uma gama de significados articulados a uma trama de poder.
A moratória, como indicada por Calligaris (2000), oferta significados aos adolescentes, ao ver deste artigo, que coadunam para a felicidade, Bem Supremo, como resposta problemática à relação do sujeito com das Ding, felicidade essa a ser garantida após a “necessária espera”.
Lacan (2008) chega mesmo a dizer que, na análise, seria trapaça prometer ao sujeito que, de alguma maneira, poderia encontrar o próprio bem. Sobre isso, fala:
“Não há razão alguma para que nos constituamos como garante do devaneio burguês. Um pouco mais de rigor e de firmeza é exigível em nossa confrontação com a condição humana, e é por isso que relembrei, da última vez, que o serviço dos bens tem exigências, que a passagem da felicidade para o plano político tem consequências” (Lacan, 2008, pp. 355-356).
A ética da psicanálise, portanto, só é subversiva contra a colonização da adolescência se, por atuação do analista, refutar veementemente a oferta da felicidade. Se o faz de modo contrário, o psicanalista se mostrará não só antagonista à ética psicanalítica como também aliado à “moratória adulta” a qual tanto se relaciona com o sofrimento adolescente.
Como podemos interpretar a partir de Anzaldúa (2009/2021), concordamos que o movimento de constituição de novos significados na cultura, e que buscam dar destinos aos corpos que não os da colonização, abrindo margem para possibilidades imaginárias mais criativas, seja importante.
Porém, só a partir do significante a deslizar pela cadeia, desenredando-se dos significados que abaixo de si transcorrem, que é possível a metonímia fundamental para a liberação de uma responsabilidade frente ao desejo (Lacan, 1950/1998).
É natural nos depararmos com novos significados sobre a adolescência, muita das vezes protagonizados pelos movimentos sociais que lutam pela causa, e interpretamos isso como uma saudável tentativa de desvencilhamento dos significados cruéis que, em última instância, legitimam a atuação genocida contra a juventude. Mais ainda, tal fato retorna aos psicanalistas a grande contribuição que pode ser feita, na clínica e nas lutas sociais, em, a partir da ética da psicanálise, poder dar o passo a mais que, para além do significado, pode trazer à cena o desejo da “adolescência”.
Esse número alarmante de vidas ceifadas, alicerçado em significados culturais que, abaixo do significante “adolescência”, faz seus efeitos, atesta as distintas prisões imaginárias desses jovens. Os adolescentes vítimas desses significados, também o são do poder que os interpela, ademais.
Mbembe (2003/2018) desenvolve uma teoria que, por um lado parece explicar a sina de tantos adolescentes nesse país, e que se dá a partir de uma análise da escravidão enquanto um poder colonizador.
Diferente do que entende Foucault, Mbembe (2003/2018) compreende que a escravidão é um dos mais sofisticados poderes da modernidade, ou ainda melhor, é o prenúncio do necropoder, não excluindo, para tanto, a emergência, também significativa, do poder disciplinar.
Na condição de escravizado, o sujeito se depara com três perdas fundamentais: perde-se o lar; perde-se o direito ao próprio corpo; perde-se estatuto político. O escravizado, portanto, tem o corpo controlado não devido a dispositivos médicos e legalistas que, na valorização da vida, constroem suas bases, e sim por uma força que, sinalizando a morte, faz a sua tônica (Mbembe, 2003/2018).
O biopoder, por sua vez, continua a existir, mas, dadas as contribuições de Mbembe (2003/2018), coexiste com o necropoder, atuando distintamente a depender da posição que o sujeito ocupa na estrutura colonial.
Essa adolescência brasileira assassinada, adolescência em sua maioria composta por rapazes negros, parece ser submetida a um poder que a toma pela morte. Atrelada a significados que constituem imaginários bárbaros contra os adolescentes, cenas imaginárias que edificam um “paraíso na terra” caso uma lei que diminua a maioridade penal fosse aprovada nesse país, ou que até mesmo ecoam o que é enunciado na tão cada vez mais comum fala de que “bandido bom é bandido morto”, significados outros que não só os expressos pela moratória, a adolescência colonizada pode contar com a ética da psicanálise como proposta contra-normativa e decolonial em prol do desejo do sujeito.
Ao referirmo-nos a “outros significados que não só os expressos pela moratória”, indicamos uma pergunta para futuras pesquisas: “não sendo os significados da moratória os únicos a interpelar os adolescentes, afinal, quais são os demais, e como eles operam?”. Trazemos essa pergunta pois, o que escutamos como significados da adolescência na clínica com vulneráveis, nem sempre são os mesmos da moratória, significados que atrelam ao significante “adolescente” sentidos tais quais o do “bandido”, do “desvirtuado”, mas que ainda não estudamos.
Outra limitação significativa desse artigo encontra-se na proposição da relação entre o poder disciplinar e o necropoder à emergência, na modernidade, da adolescência enquanto ideia na cultura ocidental. Indicamos com honestidade, pois, tratar-se de uma hipótese a qual pode ser melhor trabalhada em demais estudos.