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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.spe Rio de Janeiro  2023   20--2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.80198 

DOSSIÊ PSICANÁLISE E POLÍTICA: A INSISTÊNCIA DO REAL

A Questão da Identidade: Uma Articulação entre Psicanálise e Estudos Decoloniais

The Issue of Identity: An Articulation Between Psychoanalysis and Decolonial Studies

El Tema de la Identidad: Una Articulación entre Psicoanálisis y Estudios Decoloniales

Adriana Silva Queiroz* 

Psicóloga, graduada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cientista política, graduada pela Universidade de Brasília.


http://orcid.org/0009-0004-3077-6376

*Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil


RESUMO

A identidade é um tema de grande relevância política e social na atualidade, seja quando tratamos de movimentos minoritários que buscam reconhecimento e direitos, seja pelo crescimento de movimentos reacionários que se fundam em identidades que excluem a diferença e promovem comportamentos sociais hostis a sujeitos alterizados. No campo psicanalítico, por vezes, se trata a questão identitária como alheia às nossas discussões, utilizando-se o argumento de que trabalhamos com identificações em vez de identidades e encerrando-se, apressadamente, o debate. Com este artigo, pretendemos afirmar a importância do tema da identidade para a psicanálise e discutir, junto aos estudos decoloniais, maneiras de pensar a questão que levem em conta os seus aspectos problemáticos e, ao mesmo tempo, coloquem em evidência modos de relação com as identidades que se direcionam para a relacionalidade e para o enfrentamento dos mecanismos de dominação do mundo contemporâneo. Buscamos, para tanto, tocar nas especificidades dos processos identitários nos contextos marcados pelos efeitos da colonialidade do poder e investigar como as obras freudiana e lacaniana podem fornecer caminhos para pensar a identidade de acordo com o direcionamento proposto por este estudo.

Palavras-chave: identidade; identificação; psicanálise; colonialidade; estudos decoloniais.

ABSTRACT

Identity is a highly relevant political and social theme in contemporary times, whether we are discussing minority movements seeking recognition and rights, or the growth of reactionary movements that are founded on identities that exclude difference and promote social behaviors hostile to marginalized subjects. In the psychoanalytic field, the issue of identity is sometimes treated as irrelevant to our discussions, using the argument that we work with identifications instead of identities and hastily ending the debate. With this article, we intend to assert the importance of the theme of identity for psychoanalysis and discuss, together with decolonial studies, ways of thinking about the issue that take into account its problematic aspects while highlighting modes of relationship with identities that are directed towards relationality and confronting the mechanisms of domination in the contemporary world. To this end, we aim to touch on the specificities of identity processes in contexts marked by the effects of the coloniality of power and to investigate how the works of Freud and Lacan can provide pathways for thinking about identity in accordance with the direction proposed by this study.

Keywords: identity; identification; psychoanalysis; coloniality; decolonial studies.

RESUMEN

La identidad es un tema de gran relevancia política y social en la actualidad, ya sea cuando tratamos de movimientos minoritarios que buscan reconocimiento y derechos, o por el crecimiento de movimientos reaccionarios que se basan en identidades que excluyen la diferencia y promueven comportamientos sociales hostiles hacia sujetos alterizados. En el campo psicoanalítico, a veces se trata la cuestión de la identidad como ajena a nuestras discusiones, utilizando el argumento de que trabajamos con identificaciones en lugar de identidades y cerrando el debate precipitadamente. Con este artículo, pretendemos afirmar la importancia del tema de la identidad para el psicoanálisis y discutir, junto con los estudios decoloniales, maneras de pensar la cuestión que tengan en cuenta sus aspectos problemáticos y, al mismo tiempo, pongan en evidencia modos de relación con las identidades que se dirigen hacia la relacionalidad y hacia el enfrentamiento de los mecanismos de dominación del mundo contemporáneo. Buscamos abordar las especificidades de los procesos identitarios en los contextos marcados por los efectos de la colonialidad del poder e investigar cómo las obras freudiana y lacaniana pueden proporcionar caminos para pensar la identidad de acuerdo con la orientación propuesta por este estudio.

Palabras clave: identidad; identificación; psicoanálisis; colonialidad; estúdios decoloniales.

Este artigo tem como objetivo investigar o tema da identidade à luz das possíveis articulações entre política, psicanálise e pensamento decolonial, para pensarmos como os processos identitários se inserem no contexto contemporâneo e podem estar relacionados aos mecanismos políticos de dominação e seu respectivo enfrentamento.

Para tanto, consideramos pertinente distinguir os esforços identitários que dizem respeito a uma busca por uma unificação, padronização e uniformização dos sujeitos, conforme verificamos nos discursos de extrema direita que vem ganhando evidência em diferentes partes do mundo, e aqueles que partem dos sujeitos e movimentos marginalizados, alterizados, e que buscam afirmar determinados traços identificatórios na tentativa de alcançar o reconhecimento de sua existência e de seu acesso a direitos básicos.

A postura metodológica que adotamos se baseia na noção de “psicanálise hibridada”, proposta por Thamy Ayouch. Ela tem como princípio a ruptura epistemológica que pode ser promovida pela psicanálise no sentido de apontar os limites e problemáticas envolvidos na construção de conhecimento e de evidenciar seus diferentes aspectos, como as questões pulsionais, o nível subjetivo, o nível coletivo e os dispositivos de poder (Ayouch, 2019).

O autor entende que a psicanálise não se pauta na inteligibilidade e no sentido manifesto articulados nos discursos, mas nos processos de enunciação e de endereçamento e, portanto, não pode permanecer alheia à subjetividade do seu tempo (Ayouch, 2019). Ayouch mostra que, na construção de saber em psicanálise, está incluso aquilo que mobiliza os sujeitos de uma cultura e o que constitui um determinado momento histórico, como as relações de gênero, colonialidade e raça que as grandes referências da literatura psicanalítica não poderiam ter contemplado em seu tempo.

Nesta proposta, não se opõe a “verdade do inconsciente" a uma “militância política incompatível com a psicanálise”, o que significaria conceber a teoria como atemporal e apolítica. Conforme afirma o autor, recusar a historicidade do discurso e a sua inscrição política é, de todo modo, uma opção política, já que configura escolha de fazer parte de jogos de poder que favorecem a ordem e o conservadorismo, em detrimento da transformação e da criação (Ayouch, 2019).

A psicanálise considera, portanto, os mecanismos de poder em que o sujeito está inscrito e as discursividades em que eles se fundam. Assim, a ela compete, precisamente, uma abordagem que leva em conta a historicidade e os processos culturais e de linguagem em que o sujeito está situado, e que trata da constituição de sua singularidade. Nas palavras de Ayouch (2019): “se, como assinalou Lacan, “o inconsciente é a política”, é nesse lugar híbrido, localizado na encruzilhada do sujeito e dos outros que ele se fabrica: ali onde a subjetivação passa pelos significantes sociais, as normas e as assignações dos corpos” (p. 21).

A psicanálise hibridada diz respeito, ainda, a uma postura de abertura em relação a outros discursos que possam trazer contribuições convergentes com os referidos preceitos que orientam o campo psicanalítico. Na medida em que este constrói uma crítica às identidades monolíticas, deve manter-se em semelhante posição ética quanto à sua própria epistemologia. É nesse sentido que consideramos pertinente tratar da identidade em articulação com os estudos decoloniais, uma vez que estes se dedicam ao tema de maneira a colocar em evidência os aspectos ambíguos dos processos identitários e dar importância à retomada dos aspectos políticos e relacionais neles envolvidos.

Outra ideia que norteia o texto é a de “analista cidadão”, postulada por Éric Laurent. O autor propõe o questionamento do entendimento corrente de que o analista deve ser uma figura reservada, apartada das questões políticas vigentes e sem qualquer ideal, se dedicando apenas a uma suposta produção de um “vazio” (Laurent, 2007). Laurent retoma a concepção de seu antigo professor, Serge Leclaire, de que a psicanálise deveria ser entendida como uma prática da desidentificação. Laurent é crítico a este ponto de vista e defende que, em vez de se tornar um “especialista da desidentificação”, o analista assuma a posição de cidadão, no sentido de privilegiar as convergências de interesses entre o discurso analítico e uma política democrática inclusiva.

O autor defende que o analista se torne sensível às formas de segregação de seu tempo e construa, a partir daí, entendimento acerca da função social que lhe cabe (Laurent, 2007). Para ele, o analista tem o dever de transmitir para a humanidade o interesse que as particularidades de cada sujeito têm para o coletivo. Isto é, em vez de permanecer limitado ao cultivo e retomada da particularidade em si, o analista deve transformá-la, também, em instrumento social.

Cabe fazer referência, ainda, às noções de “desobediência epistêmica” e “gramática da decolonialidade”, apresentadas por Mignolo (2010), que foram suportes metodológicos para a construção deste texto. O autor toma como princípio a vinculação direta entre a colonialidade do poder, em suas dimensões política e econômica, e a colonialidade do conhecimento. A construção de conhecimento é, sistematicamente, utilizada como instrumento de colonização. Sendo assim, deve sofrer processo de desconstrução pautado no entendimento da maneira como o sujeito se inscreve e inscreve os demais na matriz colonial de poder.

A gramática da decolonialidade é possível a partir do momento em que os atores que habitam línguas e subjetividades racializadas e alterizadas se tornam atentos aos efeitos da colonialidade sobre o ser e o saber. A desobediência epistemológica pressupõe a percepção de que a cosmovisão de uma etnia ou cultura particular não deve ser imposta como uma racionalidade universal (Mignolo, 2010). Tal esforço metodológico contribui para este texto pois buscaremos complementar críticas consolidadas à identidade com perspectivas que consideram que os sujeitos situados em diferentes posições de poder podem se relacionar de maneiras diferenciadas com os efeitos políticos e subjetivos que os processos identitários produzem.

A Crítica da Identidade

Quando partimos de uma perspectiva crítica da identidade no seu aspecto de predicação e determinação do sujeito, atribuímos a ela o estatuto de uma ilusão egoica, orientada pela ambição do sujeito de alcançar uma igualdade com o ego ideal ou pela manifestação de um “desejo de apropriação mítica de si” (Ayouch, 2019, p. 210). Tal ambição teria um efeito de submetimento do sujeito a representações fixas e a um domínio artificial de si, levando-o em direção à negação da diferença. Como afirma Safatle (2006) em A Paixão do Negativo, “a positividade da identidade é suportada pela força de uma negação interna que, na verdade, pressupõe sempre a diferença pensada como alteridade” (p. 24).

Esta concepção da identidade a relaciona com o registro do Imaginário, no qual opera uma estagnação formal sustentada por um processo de unificação sintética e constituição do eu sob a lógica da permanência e da substancialidade: “mediante a imagem, as identidades são naturalizadas” (Safatle, 2006, p. 38).

A identidade enquanto imagem sintetizada do eu ganhou maior dimensão num contexto de predominância dos mecanismos de domínio da subjetividade. Quando o indivíduo passa a ser o centro da sociedade moderna, a identidade aparece como o modo hegemônico de entendimento da experiência subjetiva e se desdobra na demarcação dos limites do eu e de sua relação com o mundo.

Cunha (2009) destaca a inteligibilidade como pressuposto que sustenta o modo como certos processos identitários se perpetuam no mundo contemporâneo. A exigência de que a enunciação do indivíduo seja adequada aos modelos de linguagem e de moral vigentes se impõe como barreira para o surgimento de novos modos de relação consigo e com o outro, de maneira que se estabelece uma lógica de exclusão da diferença. Torna-se circunscrito o ato de dizer a verdade sobre si, a partir da legitimação de uma exclusão essencial e de um consequente assujeitamento a modos de ser previamente ratificados como possíveis e desejáveis.

A teoria lacaniana sugere que o sujeito se constitui a partir da instauração da lei simbólica, possibilitada pela operação da função paterna e pela inscrição do que o autor chama de “Nome-do-Pai”. Esta instauração permite ao sujeito organizar-se e situar-se na linguagem e na cultura. A função paterna, que se pauta no registro da castração e na intervenção de um terceiro responsável pela separação entre mães e filhos, deixa de ser ratificada, na atualidade, como instância centralizadora das referências simbólicas. Isso porque se instala, em nosso tempo, um processo de desinstitucionalização da família nuclear e de declínio das estruturas patriarcais tradicionais.

Conforme esclarece Safatle (2020), o fato de a figura paterna ser ausente, claudicante e postiça provoca um declínio da possibilidade do estabelecimento de uma relação transcendente com a Lei, isto é, de que o sujeito atribua à figura paterna tanto um aspecto de rivalidade quanto um aspecto de encarnação da Lei e, com isso, possa vislumbrar agir de maneira transgressora ao longo de sua história. A relação transcendente com a Lei permite a circulação de conflitos e o reconhecimento da importância de um vazio no lugar da autoridade para a criação e a transformação social. Isto é, “a assunção de que ninguém pode falar em nome do poder poderia permitir a liberação em relação às exigências de sujeição presentes no interior da ordem familiar” (p. 46).

A fragilidade das figuras de autoridade da família burguesa a deixa sem condições de se estruturar como um suporte seguro de identificação ao sujeito. Este, por sua vez, pode tentar compensar a ausência da transcendência em relação à Lei pela consolidação do narcisismo. As identificações, nesse contexto, não são construídas a partir de ideais simbólicos, mas de construções narcísicas compensatórias de um sofrimento vivenciado a partir de uma percepção de fragilidade do Eu.

A rivalidade edípica é substituída por um comportamento de afirmação de si perante os outros, levando a um culto da performance e a uma pressão narcísica de ideais pré-fixados. Nessa perspectiva, a sociedade capitalista contemporânea se organiza a partir de conflitos concernentes não mais às interdições da Lei, mas à impotência diante da exigência de realização de ideais narcísicos.

O fortalecimento do narcisismo será, para Lacan, responsável pelo recrudescimento de retrocessos sociais como a xenofobia, o fascismo e a busca por figuras de autoridade superegoicas. É nesse ponto que a crítica da identidade enquanto expressão de um narcisismo hiperinflado pode ser desenvolvida. Sendo assim, a criação de identidades coletivas em contextos pautados em mecanismos narcísicos é tributária da consolidação de práticas de segregação (Safatle, 2020).

Cabe destacar que esta argumentação não deve nos levar a defender uma retomada da centralidade paterna e o fortalecimento de seu caráter normativo. Trata-se de apontar, justamente, a falência do modelo patriarcal de organização social e pensar meios de se estabelecer vínculos sociais que se afastem de mecanismos de exclusão e segregação nele colocados.

Outro efeito relacionado aos processos identitários na contemporaneidade é a identificação dos sujeitos com representações advindas das exigências capitalistas de consumo. Em A nova razão do mundo, Laval e Dardot (2016) caracterizam o modelo neoliberal contemporâneo pela homogeneização do discurso que estabelece uma equivalência entre o ser humano e a empresa. A racionalidade característica do neoliberalismo faz com que as atividades do sujeito tendam a se assemelhar a um investimento e a um cálculo racional de custos e benefícios. Cada indivíduo deve aprender a ser autônomo e capaz de criar e desenvolver a si mesmo.

Os autores acreditam que há um processo de “dessimbolização” dos sujeitos no neoliberalismo e argumentam que a estrutura simbólica contemporânea passa a ser instrumentalizada pela lógica econômica capitalista e os indivíduos passam a se identificar, então, com cargos, funções, grupos de consumo e marcas da moda, de maneira que a identidade se torna um produto consumível e manipulável pelo aparato econômico (Dardot & Laval, 2016). Assim, as reivindicações identitárias se subordinam a uma falsa universalidade do Capital, fazendo parte de seu jogo, uma vez que cada identidade pode ser apropriada e ser transformada num target a ser incluído na rede mercantil (Dardot & Laval, 2016; Zizek, 2011).

Nessa perspectiva, a crítica da identidade é pertinente ao colocar em xeque a sua apropriação para favorecer as estruturas capitalistas de normatização do gozo, imperatividade do consumo e empuxo à performatividade e produtividade. Junto a uma crítica da identidade em sua manifestação imaginária e predicativa do sujeito, bem como em sua manifestação narcísica e produtora de exclusão social, reunimos leituras acerca do tema que são fundamentais para que não se faça uma defesa apressada dos processos identitários na atualidade.

Cabe investigar, então, quais são as contribuições da perspectiva decolonial acerca do tema, a fim de investigar o modo como a identidade se insere em contextos que, ainda que sejam marcados pelas problematizações aqui expostas, possuem especificidades políticas e históricas que podem levar a novas abordagens de seus efeitos subjetivos e sociais.

Identidade e Pensamento Decolonial

O pensamento decolonial tem como uma de suas principais referências a ideia de colonialidade do poder, que é concebida por Aníbal Quijano como as atividades de controle exercidas sobre o saber, o ser, o fazer e o pensar nos contextos de colonização. Quijano (2009) argumenta que a colonialidade é um dos elementos constitutivos do funcionamento do capitalismo, que se sustenta na imposição de uma classificação étnica e racial operante nos planos material e subjetivo da vida em sociedade.

Vale destacar que “colonialidade” é um conceito diferente de “colonialismo”, uma vez que o último abarca estritamente a chave “dominação/exploração” pela qual o controle dos meios de produção e da autoridade política é exercido por uma população sobre outra. A noção de colonialidade abrange as relações de poder baseadas no racismo, que se impõem sobre a subjetividade do ser colonizado, por meio dos efeitos do colonialismo, de maneira enraizada e prolongada.

A matriz colonial é, nessa perspectiva, uma rede de crenças sustentada em três pilares principais: o conhecer (epistemologia), o entender (hermenêutica) e o sentir (aesthesis). O exercício do poder colonial depende do controle sobre as bases nas quais se assentam esses três aspectos da vida social. Um dos pontos centrais da crítica de Quijano à colonialidade é a sua cumplicidade com a racionalidade moderna em sua dimensão de privilégio de uma “totalidade totalitária”, isto é, de exclusão da diferença (Mignolo, 2010; Quijano, 2009).

O mundo eurocentrado naturaliza um padrão de poder e cria uma concepção de humanidade segundo a qual os sujeitos se diferenciam entre inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivos e civilizados. Os territórios colonizados representam o modelo de exclusão radical, da ordem do sub-humano, que permanece presente nos discursos e práticas ocidentais da atualidade.

O questionamento da colonialidade se orienta para a reconstrução e restituição de histórias silenciadas, subjetividades marginalizadas, linguagens e conhecimentos subalternizados. Nessa perspectiva, a heterogeneidade histórico-estrutural substitui a ideia de uma história linear e eurocentrada para identificar a multiplicidade encontrada nas relações coloniais e impulsionar a pluriversalidade como projeto universal (Mignolo, 2010; Quijano, 2009).

A partir desse direcionamento, a questão identitária se torna um dos temas centrais dos estudos decoloniais. Mignolo (2008) discute a identidade a partir de uma perspectiva pós-colonial e faz uma distinção entre a “política da identidade” e a “identidade em política”. A primeira diz respeito a uma visão essencializada das identidades, que leva à intolerância e a práticas de exclusão da diferença, sendo as posições fundamentalistas ou fascistas um possível efeito desse modo de apreender a questão identitária. A política da identidade, quando assume contornos essencializantes, se caracteriza por uma concepção de identidade que não se entende como específica, mas como universal e natural. Isto é, o indivíduo branco, heterossexual e do sexo masculino representa as principais características de uma política de identidade que parte do que a elas se assemelha para validar aspectos essenciais ou fundamentais da existência dos seres humanos.

A identidade em política, por outro lado, se refere à construção de teorias e ações políticas em torno das identidades que foram designadas por discursos hegemônicos para, justamente, desnaturalizar a construção racial, patriarcal e imperial que permanece em voga no mundo. Unir a descolonialidade e a identidade em política implica, então, em revelar a identidade que se esconde por trás das teorias democráticas universais e em utilizar as identidades racializadas, que são ao mesmo tempo criadas e ocultadas pelo pensamento ocidental, para subverter a ele mesmo.

Homi Bhabha traz três aspectos fundamentais acerca da construção da identidade em contextos coloniais. O primeiro deles se refere ao modo como a existência está atrelada a uma relação de alteridade. A construção da identidade acontece num movimento lançado para fora, para um Outro externo. O autor remete a identidade colonial à ideia de “sonho de inversão”, cunhada por Frantz Fanon, em que o sujeito colonizado deseja ocupar o lugar do colonizador. O colonizador, por outro lado, permanece submetido a um temor de perder seu lugar de privilégio para o colonizado. Desse modo, a identidade é sempre articulada em relação ao lugar do Outro (Bhabha, 1996; Souza, 2004).

O segundo aspecto é o processo de cisão gerado por uma ambiguidade relacional e por um desejo de vingança que surge para o sujeito colonizado. Ele almeja ocupar o lugar do colonizador, mas isso não pode vir sem a prévia ocupação do lugar de colonizado, uma vez que a vingança pode se dar somente quando ele passa a ocupar a posição de seu antigo carrasco (Souza, 2004). Nas palavras de Bhabha (1986): “Não é o eu colonizador nem o Outro colonizado, mas o espaço perturbador entre os dois que constitui a figura da alteridade colonial - o artifício do branco inscrito no corpo do negro” (p. 45).

O terceiro aspecto diz respeito ao fato de que o processo identitário não se limita à afirmação de uma identidade preexistente. Ao contrário, produz-se uma imagem de identidade que vem sempre acompanhada por uma tentativa de transformação do sujeito, uma vez que ele não corresponde ao ideal estabelecido a partir do colonizador. O sujeito colonizado vive uma divisão e uma angústia a partir da percepção de um espaço que separa a imagem, ou a máscara, e a pele (Souza, 2004).

Cabe destacar que Homi Bhabha entende que a imagem, como suporte para a identificação, é sempre cindida e marcada por uma dinâmica de ambivalência. Segundo ele, o acesso à imagem identitária só é possível em seu caráter de substituição metafórica, de algo que nunca é a coisa em si, e por isso impõe um aspecto de ambiguidade para a realidade do sujeito.

Bhabha (1998) utiliza a expressão “fixidez deslizante” para tratar dos processos identitários. Nesta perspectiva, o ser é constantemente deslocado, de modo que a identidade é algo a ser continuamente repensado e reconstruído pelo sujeito. O autor propõe ao ser colonizado, que por sua circunstância já se encontra em uma relação movediça com as identificações, deixar de vislumbrar uma identidade essencialista e unitária para concebê-la em permanente construção, numa lógica que se distancie de discursos binários ocidentais.

Na medida em que a identidade é marcada pelo aspecto relacional e de alteridade, isto é, colonizado e colonizador constroem imagens identitárias em relação ao lugar do Outro, ela se funda inevitavelmente numa hibridez. A hibridização da identidade faz com que ela não seja jamais um produto acabado e configure sempre um processo problemático de acesso a uma imagem de totalidade, sujeito ao dinamismo relacional da alteridade. A identidade se dá, portanto, nas fissuras e negociações que aliam “o interno e o externo, o público e privado, o psíquico e o político” (Souza, 2004, p. 124).

No mesmo sentido, Glissant (2005) levanta a hipótese de que é possível, numa perspectiva decolonial, deslocar a maneira como compreendemos a identidade, a fim de permitir que apareça o seu aspecto relacional e não somente limitante do modo como o sujeito se posiciona frente ao mundo. Nesse sentido, o autor lança mão da noção de crioulização, que se refere ao processo de miscigenação contínua que o mundo vive na contemporaneidade e da circulação de elementos culturais e ideias em fluxo constante e irrefreável. É o encontro de componentes de diferentes culturas, vindos de horizontes distintos, que se imbricam e possibilitam o surgimento do imprevisível e do novo. Assim, a crioulização diz respeito à potencialização das manifestações da diversidade que pode constituir, para o autor, os processos identitários. Nas palavras do autor:

Porque de fato é disso que se trata: de uma concepção sublime e mortal que os povos da Europa e as culturas ocidentais veicularam no mundo; ou seja, toda identidade é uma identidade de raiz única e exclui o outro. Essa visão da identidade se opõe à noção hoje “real”, nas culturas compósitas, da identidade como fator e como resultado de uma crioulização, ou seja, da identidade como rizoma, da identidade não mais como raiz única, mas como raiz indo ao encontro de outras raízes. (Glissant, 2005, pp. 24)

Entendemos, portanto, que os aspectos abordados acerca da identidade em contextos de colonialidade contribuem para apontarmos a importância de se discutir os diferentes modos de relação do sujeito com os processos identitários e, ainda, como eles carregam elementos de ambiguidade e multiplicidade em sua própria constituição.

A Identidade em Psicanálise

Um dos eixos centrais do campo psicanalítico se pauta no resgate da singularidade do sujeito, privilegiando a diferença em detrimento de uma abordagem uniformizada da subjetividade. A identidade, nesse contexto, é comumente entendida a partir de uma ideia de unidade e estabilidade que entra em conflito com o descentramento da consciência de si que a descoberta do inconsciente instaura.

Seja a identidade pensada como um sentimento de unidade consigo mesmo ou como elemento predicativo e estável designado ao sujeito, ela permanece ligada ao âmbito dos conteúdos disponíveis à consciência e, por consequência, a uma certa alienação em relação ao que é da ordem do inconsciente. Em psicanálise, o sujeito não se apresenta na forma de uma unidade, integridade ou constância, mas de modo pontual e evanescente. É corrente o entendimento de que o campo opera, então, com a noção de identificações, em vez de identidade, para denotar as marcas pelas quais o sujeito é constituído em sua singularidade (Souza, 1994; Costa, 1998).

O termo identificação é utilizado desde a origem da psicanálise. Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud (2011) define a identificação como a mais antiga forma de ligação de uma pessoa com outra. Ele estabelece, no texto de 1921, três modalidades de identificações. A primeira é de ordem edípica, em que a menina ou o menino buscam assemelhar-se àquele que é tomado como modelo. A segunda é relativa à formação neurótica de sintomas, em que um traço do outro pode ser apropriado por motivos edípicos e relativos à escolha de objeto feita pelo sujeito. A terceira é de ordem histérica, em que o sujeito se identifica com o próprio ato de desejar percebido no outro e busca se colocar na mesma situação.

Depois, na teoria lacaniana, tratou-se da identificação com a imagem do espelho, da identificação com o desejo, das identificações imediatas na psicose, da identificação com o falo, entre outras.

A pesquisa realizada por Cunha (2000) acerca do uso do termo “identidade” nos estudos psicanalíticos confirma que ele não aparece de maneira consistente na terminologia utilizada. O autor constata que em quatro dos principais dicionários de psicanálise (Chemama, 1995; Kaufmann, 1996; Laplanche & Pontalis, n.d.; Roudinesco & Plon, 1998) o termo aparece somente na diferenciação entre a “identidade de percepção” e a “identidade de pensamento” e no verbete “identidade sexual”.

Cunha conclui que, ao contrário do que ocorre com a identificação, a identidade não implica um conceito, processo ou fenômeno específico para a psicanálise. As únicas exceções são a noção de “estados de identidade”, adotada por Freud em Projeto de Psicologia, de 1895, e os conceitos de “identidade de pensamento” e “identidade de percepção”, introduzidos no texto Interpretação dos Sonhos, de 1900. Nas duas ocasiões, a identidade é usada para designar processos de investimento ou desinvestimento em ideias ou representações.

No caso dos estados de identidade, trata-se de uma correspondência, buscada pelo aparato psíquico, entre as representações e a realidade, que tem como consequência o reconhecimento perceptivo necessário para a experiência de satisfação. No que se refere à identidade de percepção e à identidade de pensamento, o reconhecimento perceptivo passa da primeira instância (percepção), relativa ao processo primário do funcionamento psíquico e ao inconsciente, para a segunda instância (pensamento), relativa ao processo secundário e ao registro de pré-consciente/consciência. É nessa passagem que, para Freud, o sujeito pode agir sobre a realidade e modificá-la.

Esses conceitos são trabalhados pontualmente nos referidos textos e não são retomados por Freud ao longo de sua obra. Em todo o restante de seu trabalho, afirma Cunha, o termo identidade é utilizado conforme o uso da linguagem corrente, sem que haja um rigor conceitual atrelado a ele. O autor encontra, entretanto, algumas “pistas” deixadas por Freud em sua obra acerca de seu pensamento sobre o tema da identidade. Uma delas é a de que, em diferentes momentos da obra freudiana, a identidade é entendida como aquilo que possibilita a aferição de que uma pessoa é ela mesma. Nestas ocorrências, o termo assume o sentido corrente da filosofia, referente ao que é idêntico a si mesmo.

Outra pista se encontra em um pequeno discurso realizado em 1926 junto a uma comunidade de intelectuais judeus. Freud usa a palavra identidade no sentido a que nos referimos e utilizamos para colocar em discussão as questões identitárias na atualidade. Na ocasião, ele trata a identidade como associada à intimidade, à familiaridade e relativa a uma mesma “construção anímica” entre ele e o povo judeu. Em sua fala, Freud relaciona o processo identitário à possibilidade de acolhimento do sujeito como igual em um determinado contexto e considera esse acolhimento fundamental para que ele possa afirmar sua singularidade, para que possa falar e ser escutado (Freud, 1990).

A presença frequente da noção da identificação e a incidência pouco substancial do termo identidade na teoria psicanalítica podem ter feito com que muitos analistas concluíssem que as questões identitárias não seriam um problema do nosso campo. Mas, como coloca Colette Soler em Rumo à identidade:

Então, por que esta reserva dos analistas? (...) Seria porque, não encontrando a palavra identidade, eles, na ausência da coisa, concluem pela ausência da questão da identidade? (...) qual é a função ou a visada de uma identificação, seja ela qual for, senão assegurar a identidade? Aí, também, eu posso acrescentar a identidade, seja ela qual for. (Soler, 2021, pp. 13 e 14)

Trabalhamos, assim, com a aposta de que, a partir do campo psicanalítico, pode-se extrair um fecundo debate em torno das questões da identidade, do laço social, do problema da predicação do sujeito e os possíveis entrelaçamentos entre elas. Consideramos oportuno, então, utilizar a noção de identificação para tratar dos temas relativos à identidade e, além disso, pensar em como o próprio termo identidade pode ser referido e trabalhado nos estudos psicanalíticos, uma vez que em torno dele se desdobram discussões centrais do campo político atual.

Identidade, Relacionalidade e a Lógica do Significante

Diante do exposto até aqui, cabe perguntarmos quais as consequências políticas da crítica às categorias identitárias nos contextos em que se fazem presentes os efeitos da colonialidade, além de buscarmos formulações teóricas que deem ensejo a uma abordagem multifacetada da identidade.

Qual é o impacto de se formular uma crítica à identidade e sustentá-la em práticas políticas e clínicas no contexto contemporâneo, no qual, ao mesmo tempo que é possível vislumbrar a possibilidade de as identidades promoverem modos problemáticos de assujeitamento, elas podem ser entendidas como ferramenta importante de enfrentamento à perpetuação e imposição de formas hegemônicas de existência? Como pensar a identidade a partir de uma perspectiva atenta às diferentes consequências políticas e subjetivas que ela acarreta, a depender do lugar social que o sujeito ocupa e do projeto político a que esteja associado?

Rivera (2020) faz importante apontamento ao situar historicamente a crítica da identidade feita pelo discurso psicanalítico, inscrito na cultura ocidental na segunda metade do século XX, e a crítica da identidade feita no contexto brasileiro da contemporaneidade. Para a autora, muito embora o Brasil tenha se constituído sobre a ideia de que teríamos uma tolerância e permeabilidade em relação às diferenças, essa ideia se mostra falaciosa e cumpre papel de ocultamento das desigualdades e opressões praticadas sistematicamente em nossa história. Neste contexto, a crítica indiscriminada da identidade pode contribuir para a não aceitação do outro como diferente, em vez de promover o reconhecimento da alteridade.

A recusa da identidade em nome do privilégio da singularidade pode, assim, ignorar que a afirmação de diferenças historicamente denegadas por um pensamento “pseudo-desidentirário” se torna fundamental para a destituição de circuitos sistemáticos de dominação. Num contexto marcado pelo colonialismo e exclusão social, identificar-se com significantes que permitem o reconhecimento de grupos silenciados de maneira estrutural pode ter, como ponto de partida, dimensão performativa e política de grande relevância.

Rivera propõe que consideremos a possibilidade de que o descentramento do sujeito possa passar, no contemporâneo, por um processo de identificação coletiva. Diz ela:

Aqui e neste momento, parece-me inegável que se identificar ativamente pelo compartilhamento de significantes como preta/o ou mulher ou gay ou lésbica ou trans etc. é um ato de descentramento do lugar de confusão alienante entre eu e outro. (Rivera, 2020, pp. 27)

Este argumento não implica no abandono da ideia de que o laço social pode acontecer de modo distinto daquele que se dá conforme o funcionamento da massa, em que há a tendência de homogeneização e ocultamento das singularidades. Isso porque, afirma a autora, os significantes estão sempre em movimento, circulam e se interseccionam. Podem chegar a alterar-se, de modo que os grupos permanecem sempre em trânsito, em fluxos de divergência e convergência e constituindo-se em processos conflituosos, em vez de estarem essencialmente pautados numa rígida identificação entre seus membros.

Cabe a nós promover a circulação de significantes que articulem identidades e diferenças no sentido de comporem uma luta contra a ascensão dos modos de organização social que essencializam as identidades e marginalizam a heterogeneidade.

Encontramos, na literatura, autores que tratam da importância tática da identidade para a garantia de direitos sociais. Spivak (1996) apresenta a noção de “essencialismo estratégico” como ferramenta para se ganhar e propagar a consciência subalterna, desde que haja um interesse político claro e “escrupuloso”. Safatle (2015) fala de um uso "estrategicamente provisório” da identidade para a construção da consciência de vulnerabilidade de grupos historicamente desprivilegiados. Butler (2003) defende uma “construção variável da identidade” como ferramenta para se alcançar o objetivo político do movimento feminista, se opondo, assim, ao uso da identidade enquanto o fundamento em si desses coletivos.

Essas abordagens dizem respeito, mais especificamente, aos recursos de que podemos lançar mão nas lutas organizadas perante as condições sistemáticas e institucionais de dominação. Esse aspecto é fundamental para a discussão do tema, mas acreditamos que é possível, também, desenvolver hipóteses acerca das diferentes maneiras como a identidade pode operar na sua dimensão mais propriamente subjetiva, isto é, do processo de dizer de si do sujeito, e não somente como ferramenta política provisória.

Em Psicanálise e Hibridez, Ayouch (2019) toca na questão da identidade de maneira a esclarecer possíveis caminhos para tratar do tema conforme esta proposta, uma vez que o autor reafirma a importância de se pensar a identidade fora de contornos ontológicos e se pergunta como uma psicanálise hibridada, descolonizada, pode contribuir para a desessencialização das identidades. A noção de relacionalidade trazida pelo autor é fundamental para esta discussão, pois diz respeito ao investimento libidinal entre sujeitos, capaz de estabelecer vínculos que respeitem uma hibridez cultural e psíquica, e que se distanciem de um processo identificatório próprio da formação das massas, em que há uma uniformização associada à introjeção de um ideal do Ego apresentado de maneira unívoca.

Ayouch retoma análise feita por Edward Said acerca do escrito freudiano intitulado Moisés e o Monoteísmo. Nele, Freud coloca em questão a identidade de Moisés, uma vez que ele seria estrangeiro em relação ao povo para o qual serviu como líder. Freud questiona, a partir disso, a noção de que religião e cultura surgem de dentro de uma sociedade e toma o judaísmo de exemplo: Moisés é egípcio, o monoteísmo advém do faraó egípcio Akhenaton, a circuncisão é uma prática originalmente egípcia e Yahve, o nome hebraico de Deus, tem provável origem em uma tribo árabe. Sendo assim, o judaísmo se constitui pela inclusão de elementos estrangeiros e a identidade judaica não pode ser unívoca e exclusiva (Ayouch, 2019).

Ayouch traz, ainda, o argumento de que a relação ética ao que é não-judeu é precisamente aquilo que constitui o que é ser judeu. Assim, na identificação judaica, a alteridade destitui a ontologia e “interrompe a identidade como ipseidade e coincidência consigo mesma e a transforma no resultado de uma relacionalidade” (Ayouch, 2019, p. 24). É nesse sentido que se evidencia o modo como a própria teoria psicanalítica pode contribuir para um entendimento multifacetado acerca da identidade.

Vale destacar que Lacan, ao questionar o próprio princípio da identidade e do pensamento representativo, fala de uma identificação simbólica, em que a unidade da identidade seria substituída pela “unariedade” da identificação com o significante. Lacan propõe, então, que seja feita uma distinção entre dois tipos de mediação entre o sujeito e a apreensão da sua existência: aquela que se dá pela imagem e aquela que se dá pelo significante (Lacan, 2003).

Na identificação pelo significante, o sujeito se remete a um traço diferencial, que, em vez de lhe conferir unidade, o configura como cindido, de modo que as qualidades predicativas que sejam a ele atribuídas sempre serão inadequadas e insuficientes perante seus questionamentos subjetivos, mesmo que tenham um papel de o representar para os outros (Lacan, 2003; Souza, 1994).

Brousse (2018) argumenta que a divisão subjetiva, introduzida pela psicanálise desde Freud, opõe-se à noção de identidade como unidade. Brousse propõe que se leve a identidade enquanto concernente à lógica dos significantes-mestres, de modo que se considere que o Eu não pode pretender a unidade, já que o enunciado “Eu sou” somente seria válido no instante mesmo da enunciação. Na medida em que entendemos que funcionamos, desde sempre, sujeitos à dúvida, à crença ou à incerteza, mais ou menos unificados, a perspectiva psicanalítica pode provocar, afirma a autora, uma “virada” no conceito de identidade.

Brousse nos lembra uma fala de Lacan, em um Colóquio na Universidade John Hopkins, em 1966, em que ele diz:

Os grandes psicólogos, inclusive os psicanalistas, estão imbuídos da ideia de personalidade total. Em todos os casos, trata-se da unidade unificadora que é posta em primeiro plano. Nunca compreendi isso, porque embora seja psicanalista, nem por isso sou menos homem, e enquanto tal, minha experiência me provou que a principal característica da minha vida de humano (...) é que a vida é algo que, como dizemos em francês, vai à deriva... A ideia de unidade unificadora da condição humana sempre teve o efeito em mim de uma mentira escandalosa”. (Lacan como citado em Brousse, 2018, pp. 5)

Lacan procurou demonstrar no Seminário ministrado nos anos de 1961 e 1962, intitulado A identificação, que se estabelece uma relação de “comum-pertencer”, isto é, uma relação de reciprocidade, entre identidade e identificações significantes. Estas seriam entendidas como o fenômeno no qual o sujeito assume para si e sustenta um traço pertencente ao Outro, de modo a ampliar o que lhe é próprio. Sendo assim, o Outro é o vetor dos processos identificatórios e horizonte daquilo que se denomina identidade do sujeito (Lacan, 2003).

A noção de identidade como “idêntico a si mesmo”, própria das tradições filosóficas surgidas a partir de Descartes, não poderia, então, se sustentar numa perspectiva psicanalítica, sendo insuficiente para se pensar o problema identitário. A identidade nada teria de idêntica a si mesma e não estaria, ainda, sintetizada no Eu, pois seria através do suporte significante e do registro do Outro que ela apareceria para um sujeito. Se os significantes não podem ter uma identidade consigo mesmos, não pode existir um uso acabado de um significante (Starnino, 2016; Perez & Starnino, 2021).

As identidades coletivas são, portanto, constituídas pela lógica da diferença e da contingência, em vez de estarem pautadas no princípio do idêntico a si. O vazio fundacional e o processo inacabado do significante não cessam de se inscrever, assim, nos processos identitários.

Considerações Finais

A produção deste artigo foi motivada por uma inquietação em relação à escolha que teria sido feita, no campo psicanalítico, de não se tratar dos modos de relação entre sujeito e agrupamentos sociais a partir da noção de “identidade”, pois já estaria consolidado o uso da noção de “identificação”, por esta carregar a conotação de multiplicidade e transitoriedade que a psicanálise atribui aos mecanismos de enunciação de si do sujeito.

Acreditamos que considerar esses mecanismos como provisórios e contingentes é fundamental para que se estabeleça uma concepção de sujeito que privilegie a articulação de novas possibilidades de existência. Mas a recusa de toda e qualquer manifestação da identidade, sem que se considere os diferentes sentidos e efeitos que o seu uso assume na atualidade, pode acabar por contribuir para a perpetuação de estruturas de poder que marginalizam marcadores sociais historicamente excluídos pela universalização de um padrão branco, patriarcal e eurocêntrico de relação com o mundo.

Por isso, nos detivemos inicialmente em argumentos críticos à identidade, que, a nosso ver, são úteis para que não façamos uma defesa simplória da identidade e que estejamos atentos aos efeitos de exclusão e segregação que o identitarismo, enquanto fim em si mesmo, pode adquirir, a depender do lugar social de que parte e da proposta política a que está associado.

Em seguida, expusemos a noção de decolonialidade e nela nos respaldamos para abordar novas concepções acerca da identidade, desta vez partindo de uma perspectiva que se atém ao impacto que os processos identitários produzem nos sujeitos alterizados e marginalizados a partir dos efeitos da colonialidade do poder.

Depois, abordamos o emprego dos termos “identidade” e “identificação” na teoria psicanalítica, a fim de justificar a possibilidade de discuti-los com algum nível de convergência, levando em consideração que a psicanálise não deve estar alheia às questões de seu tempo e trazendo exemplo de como Freud se utilizou do uso corrente da noção de identidade para se referir a temas como pertencimento e escuta do sujeito.

Por fim, articulamos os argumentos apresentados e discutimos a identidade de modo a incluir as perspectivas críticas e atentas aos seus desdobramentos políticos para os sujeitos alterizados. Propusemos a utilização de concepções que resgatem o aspecto relacional e de afirmação de existências que a identidade pode promover, bem como a exposição de construções teóricas que amparam o entendimento de que há diferentes modos de relação do sujeito com os significantes relativos à identidade.

Com este percurso, pretendemos contribuir para o enriquecimento da discussão acerca das questões identitárias no campo analítico, no sentido de reafirmar a importância de que ele se mantenha poroso aos temas politicamente relevantes de seu tempo e dê voz a posicionamentos que promovam a inclusão das lutas minoritárias e, enfim, o enfrentamento dos mecanismos de dominação do mundo contemporâneo.

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Recebido: 14 de Maio de 2023; Revisado: 12 de Agosto de 2023; Aceito: 05 de Setembro de 2023

Endereço para correspondência Adriana Silva Queiroz Rua Maestro Francisco Braga, 570 apto 202, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ, Brasil. CEP 22041-070, Endereço eletrônico: sq.adriana@gmail.com

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