“Será a calamidade da fome um fenômeno natural, inerente à própria vida, uma contingência irremovível como a morte? Ou será a fome uma praga social criada pelo próprio homem? […] Assunto tão delicado e perigoso por suas implicações políticas e sociais que até quase os nossos dias permaneceu como um dos tabus da nossa civilização - uma espécie de tema proibido ou, pelo menos, pouco aconselhável para ser abordado publicamente”
Castro (1965, pp. 45)
Em 1932, ainda sob os desastrosos efeitos da Primeira Guerra Mundial para a população europeia e a escalada no nazismo, somadas as desilusões frente às conquistas sociais e políticas do início do século XX, Freud (1933/2010) troca correspondências com o físico Albert Einstein, onde questiona, a partir da interpelação de seu correspondente, Por que a guerra?. Nesse período, Freud já havia escrito a maior parte de sua obra e, na troca de correspondências, não se esquiva em refletir sobre a questão que pautava grande parte dos conflitos sociais e políticos de sua época, indicando contribuições oriundas da sua experiência a partir da psicanálise.
Para o preâmbulo deste artigo, interessa-nos sublinhar dois pontos das cartas de Freud a Einstein. O primeiro é a atenção dada a fenômenos sociais e políticos sobre os quais a psicanálise se ocupa desde a sua fundação, seguida da sustentação de um entendimento já trazido em textos anteriores da destrutividade como constituinte móbil da vida humana e social (Freud, 1895/1996, 1912-1913/201, 1939/2018)
O segundo ponto, por sua vez, trata de um detalhe encontrado numa metáfora usada por Freud no seguinte trecho da sua carta: “Vale lembrar aquela imagem inquietante do moinho que mói tão devagar, que as pessoas podem morrer de fome antes de ele poder fornecer sua farinha” (Freud, 1933/2010, p. 141). Podemos evocar o moinho como metáfora do jogo de forças pulsionais: a que destrói - aspecto por ele sublinhado - e a que cria. A sua velocidade - metáfora dos meios indiretos de impedir a fome e a destruição causada pela guerra - pode, portanto, ser comparada à responsabilidade política que trabalha a serviço da criação ou da destruição; nos termos desde artigo, a serviço dos enlaces e desenlaces pulsionais. Todavia, a responsabilidade política provém do reconhecimento de um desamparo social e humano. A moralidade e a escolha ética são filhas do julgamento que atesta e reconhece a existência do outro (Freud, 1926/2014), nos termos freudianos: do semelhante, Nebenmesch (Freud, 1895/1996).
Sublinhamos esse ponto do diálogo de Freud - recolhido de uma preocupação com os efeitos da ausência da política substituída pela destrutividade - por fazer parte da construção argumentativa do problema central deste artigo, qual seja, refletir sobre os efeitos potencialmente traumáticos da fome, que é marcada pela negligência, descaso ou ação deliberada de um Estado que desmente (Verleugnung) a sua existência (Freud, 1927/2014).
Para tanto, nos serviremos de dois pressupostos: o primeiro, apontado pelo médico e sanitarista Josué de Castro (1930-1973), que versa sobre a fome como um tema-tabu (Castro, 1946/1984), silenciado pela cultura; o segundo parte do estudo exploratório do termo Verleugnung utilizado por Sandór Ferenczi (1931/2011c; 1933/2011d; 1933/1990) nos seus textos finais, traduzido no Brasil como descrédito (Pinheiro, 1995) ou desautorização (Kupermann, 2017), e por Freud (1927/2014), em um sentido diferente, traduzido como desmentido. Entende-se, no entanto, que, quando abordado de uma perspectiva social e política, as duas acepções, a ferencziana e a freudiana, encontram pontos de conexão.
A desresponsabilização do outro, demarcada por Ferenczi (1931/2011c), a partir da desimplicação do adulto que, ao escutar a criança que sofreu uma violência, assevera que “nada aconteceu” (Ferenczi, 1931/2011c, p. 91), desmentindo, não apenas o relato da violência sofrida, mas as próprias percepções da vítima, dada a condição de vulnerabilidade. No caso de Freud, o desmentido possui o sentido de uma ação psíquica intencional que, para preservar o Eu de uma ferida narcísica, suprime a percepção de um traço da realidade já aferido, substituindo-o quase que imediatamente por outro (Freud, 1927/2014).
A partir do reconhecimento desse ponto de intersecção entre os usos que Ferenczi e Freud fazem do termo Verleugnung, remetemos então o leitor às reflexões sobre a indiferença traumática apontada por autores contemporâneos quanto aos deslocamentos dos imigrantes, o racismo estrutural, o extermínio dos povos minoritários, dentre outras violações dos direitos humanos mais fundamentais (Gebrim, 2018; Macedo, 2022; Mbembe, 2018).
Freud não viveu para escutar o testemunho dos judeus que viveram o assombro da fome e do terror nos campos de concentração. Aliás, a fome era conhecida de sua família e seus antepassados (Gaulejac, 1996). É lícito perguntar o quanto a ausência do tema em sua obra, encontrada apenas por meio de metáforas e, de passagem, na introdução do conceito de instinto do Eu (Freud, 1905/2017), pode corresponder a uma espécie de vergonha por ele sentida e silenciada. No entanto, essa lembrança ancestral retorna pontualmente, de forma premonitória. Assim, o terror dos campos de concentração é antecipado em um dos seus mais conhecidos chistes. Ao saber que seus livros estavam sendo queimados, teria dito: ainda bem que não estamos na Idade Média, quando homens e não livros foram queimados.
Primo Levi (1988/1947) relata ambas as formas de morte nos campos de concentração nazistas, no contexto de desumanização da vida durante a Segunda Grande Guerra Mundial, quando muitos judeus foram mortos pela privação do alimento, pelas doenças que assolavam os campos e, na sua forma extrema de deliberação, nas câmaras de gás. Nesse contexto, a morte pela fome é uma morte que não deixa marcas de sangue: os corpos definham e desaparecem em seu mais cru sentido. Todavia, seus rastros são transmitidos na forma de uma herança cultural arcaica, por muitos silenciada; rastros assim - com o caráter de “verdade histórica” - jamais são apagados por completo; de maneira deslocada, eles insistem na cultura e se reapresentam na história coletiva e individual (Freud, 1939/2018, p. 96).
No contexto brasileiro, podemos ainda evocar outros extermínios em massa pela fome. Alguns pouco conhecidos pela população em geral, como é o caso dos campos de concentração cearenses ocorridos no final do século XIX e início do século XX, montados em cidades do sertão cearense e bairros próximos à Fortaleza para impedir que os refugiados das secas de 1877, 1915 e 1932 adentrassem na capital. Na experiência concentracionista brasileira também muitos morreram de varíola e inanição (Rios, 2014; Martins & Kupermann, 2016).
Atualmente, mais de 33,1 milhões de brasileiros encontram-se em situação de insegurança alimentar grave, o que representa 15,5% da população brasileira atual. Em 2022, a fome atingia o mesmo número percentual de brasileiros que no ano de 1992. Hoje, mais da metade da população brasileira (58,7%) passa fome ou preocupa-se cotidianamente com a possibilidade de não ter condição de alimentar-se no futuro (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar [Rede Penssan], 2022).
Do exposto, com o recrudescimento da insegurança alimentar nos últimos anos, devemos considerar os efeitos subjetivos decorrentes dessas experiências, os quais são entrelaçados às dimensões sociais, políticas e econômicas de nosso país. Dimensões estas que permitem que os contextos de desigualdade e de violências institucionais - como a negação de direitos básicos de sobrevivência aos cidadãos - se repitam no decorrer da nossa história. O que a psicanálise pode construir em torno de um tema também silenciado em seu campo de estudos clínicos e metapsicológicos?
Este artigo propõe desenvolver alguns apontamentos de natureza simultaneamente política, metapsicológica e clínica acerca do impacto da fome no processo de constituição psíquica. Para tanto, parte-se do resgate de três teses de Josué de Castro sobre a temática da fome que foram formuladas em interlocução com a obra de Freud, a saber: 1) que tanto a fome como a sexualidade são instintos fundamentais para o desenvolvimento humano; 2) que vigora um tabu socialmente alimentado sobre esses dois temas; 3) que o silenciamento em torno da fome contribui para intensificar, perpetuar e ampliar os seus efeitos. Essas teses são então interrogadas da perspectiva da primeira tópica, do primeiro dualismo pulsional freudianos e da concepção de narcisismo. Pretende-se a partir daí lançar luz sobre os impactos da fome na subjetividade humana, compreendendo tais fenômenos como de natureza traumática e intersubjetiva.
Josué de Castro e o Desvelar do Tabu da Fome
Josué de Castro foi um médico sanitarista e intelectual pernambucano. Nascido em Recife, no ano de 1908, sua vida pública foi dedicada ao desvelamento dos véus que desde longas datas encobrem a fome brasileira. Escrevemos assim, no presente - encobrem - pois, passados cinquenta anos de sua morte, esse ainda é um dos tabus conservados em nossa sociedade. Além de seu pioneirismo no tratamento dessa questão, demonstrou sagaz interdisciplinaridade. Enquanto pesquisador e pensador sabia que era necessário olhar para a complexidade dos fenômenos. Do local ao regional, do nacional e internacional, Josué abria brechas advindas de saberes diversos, cuja atenção nunca deixou de incluir suas raízes e os problemas que a população da cidade enfrentava no início do século XXI. Além disso, suas aspirações humanistas inspiravam uma notável sensibilidade para a interdependência dos povos. Nesse sentido, explicitou reiteradamente sua revolta quanto à diminuta produção bibliográfica acerca desse problema mundial que é a fome.
Ao considerar a fome um problema central para a sociedade brasileira, Castro (1984/1946) ressalta que a apreciação do fenômeno da fome não deve se limitar à discussão da escassez de alimentos. Segundo o autor, a fome deve ser considerada uma afronta à dignidade humana, um problema de injustiça social derivado da falta de políticas públicas efetivas para combater a pobreza, o que denota uma intencionalidade social. Ao publicar a sua obra mais conhecida, Geografia da Fome (O dilema brasileiro: Pão ou Aço), Castro (1984/1946) preocupou-se em explicitar que a fome é fruto da ação dos homens. A negligência do Estado (Furtado, 2006), nesse caso, transforma o outro semelhante, que em tese deveria ser fiável, em agente da destruição, que é, ativa ou passivamente - de qualquer forma, intencionalmente - infligida.
Para Josué de Castro, o estudo da obra freudiana veio antes da dedicação à problemática da fome e acompanhou-o em suas obras posteriores, com influência notável na concepção de tabu. No texto Totem e Tabu (Freud, 1912-13/2016), o tabu é associado a uma forma de transmissão psíquica por meio da culpa, o que lhe concede uma dimensão tanto ontogenética quanto filogenética. Referindo-se ao incesto, Freud considera que o tabu se origina de uma ação proibida. cuja realização possui forte inclinação inconsciente. Ressaltando ainda a ambivalência e a presença de uma força de coação em seu estatuto.
Para Josué de Castro, a fome de alimentos, assim como a fome sexual, fazem parte de um instinto primário. Conforme o autor, sua acepção de tabu não é diversa da freudiana, diferindo apenas no que se refere a uma fixação de um “substrato funcional orgânico” (Castro, 1938, p. 25-26). Para ele, ambos os instintos primários, o da fome e do sexo, se chocam “com os valores de uma cultura supostamente racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta humana” (Castro, 1984/1946, p. 30).
De acordo com Josué de Castro, a fome-tabu leva as pessoas a desenvolverem uma relação paradoxal com a comida. Por um lado, a fome é vista como uma ameaça constante, o que leva a uma valorização excessiva da comida, considerada um bem precioso. Por outro lado, a fome também é vista como uma condição inevitável e até mesmo desejável. Essa concepção da fome-tabu teve um grande impacto no pensamento social e político brasileiro, ajudando a tornar a questão da fome uma preocupação nacional e internacional. Nas palavras de Josué de Castro:
Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido ou, pelo menos, pouco aconselhável de ser abordado publicamente. (Castro, 1984/1946, p. 20)
Retomamos assim, a pergunta proposta desde a introdução, de que modo a psicanálise tem se ocupado dessa problemática, que participa tão fundamentalmente da construção dos psiquismos e das culturas. Diante dessa questão, são tecidos a seguir alguns apontamentos sobre a fome a partir da obra freudiana, com ênfase nas forças internas e externas implicadas nesse fenômeno e na sua importância para a construção de uma referência alteritária subjetiva.
Considerações Metapsicológicas da Fome
Com o objetivo de esboçar uma metapsicologia da fome e, paralelamente, demarcar suas relações com a dor psíquica, propomos retomar algumas hipóteses lançadas por Freud (1895/1996) no Projeto para uma psicologia científica por considerá-las fundamentais para compreensão dos primórdios das noções de identidade, estrangeridade e alteridade na psicanálise.
No modelo freudiano de 1895, o funcionamento do aparelho psíquico depende dos destinos da transformação da excitação, a quantidade de estímulo, em qualidade psíquica. Assim, qualquer aumento de tensão associado ao desprazer deve ser escoado, ocasionando uma descarga, equivalente à uma experiência qualitativa de prazer (Freud, 1895/1996).
Entretanto, os estímulos endógenos, tendo a fome como um de seus exemplos, são fontes permanentes de excitação. Para que a tensão decorrente do acúmulo desses estímulos seja apaziguada, o bebê - o sujeito em vias de constituição - precisa, por meio do grito ou do choro, sinalizar o seu desconforto, que mobiliza então a mediação de um adulto. Esse intervém não só com cuidados, mas também com palavras, afeto e linguagem, em um ritmo intermitente, o que permite uma gradual autonomização e individuação do bebê (Freud, 1895/1996).
Em síntese, a constituição do psiquismo é simultânea aos processos primários de simbolização, que necessitam da participação asseguradora do outro para a sua efetivação. O tratamento que esse outro oferta às demandas pulsionais não são sem consequências para a formação das inscrições psíquicas primordiais (Freud, 1895/1996), bem como para o processo de desenvolvimento posterior. É necessário considerar a importância de uma apresentação gradual e progressiva do mundo externo para a criança à medida que os “seus desejos de proteção, de calor e de alimentação estão assegurados pela mãe” (Ferenczi, 1913/2011a, p. 48).
No contexto da primeira tópica, nos Três ensaios sobre a sexualidade, Freud (1905/2016) parte da premissa de que existem dois instintos (Triebe) humanos básicos: as pulsões sexuais, também denominada libido, e as pulsões do Eu. Afirma que as primeiras visam a preservação da espécie (filogênese), enquanto as últimas, a do indivíduo (ontogênese). Estas possuem por modelo a experiência de saciamento da fome; aquelas, o ato de satisfação sexual. No entanto, Freud destaca que essas duas qualidades fundamentais da pulsão não são independentes. Elas estão na sua origem fundidas e sobrepostas. Só gradualmente ocorre a separação e distinção de ambas. Esse processo recebe o nome de relação de apoio (Anlehnungsbeziehung), também traduzida por relação anaclítica. Aceitando-se a condição de desamparo originário do recém-nascido, depreende-se que a maternagem, a mediação de um cuidador, é um fator essencial para a erogeneização do corpo infantil, o que afetará o desenvolvimento psicossexual subsequente.
Freud (1900/2019), na Interpretação dos sonhos, indica como mecanismo básico do funcionamento do psiquismo o princípio do prazer, também chamado processo primário. O autor compreende metapsicologicamente o aparelho psíquico como uma espécie de circuito fechado que procura manter a regulação interna. Daí que o acúmulo de tensão é vivido como desprazer, ao passo que a descarga de tensão produz prazer. Ele pressupõe então que há uma tendência originária no lactente de buscar satisfação da forma mais direta e imediata: alucinatoriamente, reinvestindo regressivamente traços mnêmicos de suas primeiras experiências de satisfação. Todavia, tal estratégia está fadada ao fracasso, haja vista que ignora a realidade e a mediação do outro, que são essenciais para a obtenção de vias efetivas de satisfação. Por conseguinte, faz-se necessário que uma vivência de desprazer intensa e duradoura, mas refreada pelo apoio de um adulto, leve a um segundo tempo de organização psíquica, o processo secundário ou princípio da realidade, que viabiliza a realização de uma ação motora específica coordenada e direcionada a um objeto do mundo exterior.
Tem-se daí que é essencial para o desenvolvimento saudável da criança a presença de um cuidador que inicialmente supre integralmente as necessidades da criança e que, pouco a pouco, retrai esse cuidado, possibilitando dessa forma a autonomização do sujeito em constituição. Winnicott (1975) chama essa relação de suporte interativo e retroadaptado entre cuidador e bebê de mãe suficientemente boa. Pode-se dizer então que a oferta de uma boa maternagem é um fundamento para a autonomização do sujeito e para a sustentação de uma dinâmica satisfatória entre as realidades psíquica e exterior. A esse equacionamento Winnicott dá o nome de espaço transicional.
Essa dinâmica entre princípio do prazer e princípio da realidade, entre pulsão sexual e e do Eu, é reequacionado com a introdução do conceito de narcisismo. O narcisismo é apresentado como uma ação psíquica que leva à formação do Eu, entendido aqui não mais como uma qualidade fundamental e inata dos instintos, mas como uma instância psíquica que resulta de um processo de desenvolvimento específico que congrega elementos heterogêneos: a imagem do próprio corpo, o domínio da praxia motora, um lugar de endereçamento ao outro e de reconhecimento alteritário (Freud, 1914/2010, 1923/2011).
Freud (1914/2010) inaugura nesse momento uma nova forma de homeostase. O Eu passa a ser ele próprio um objeto investido pela libido e, por isso, capaz a acumulá-la e reenviá-la para outros destinos, como um reservatório. Tem-se então uma distribuição da libido que busca manter a homeostese entre investimentos narcísicos e objetais. O acúmulo excessivo da libido em um dos dois polos pode ocasionar fragilidades e sofrimentos psíquicos. Cabe perguntar então em que medida a fome é capaz de afetar a dinâmica narcísica e quais as consequências individuais, sociais e políticas advindas dessa situação.
Entende-se a partir daí que a alimentação, que é uma pré-requisito indispensável para a sobrevivência, torna-se também condição de possibilidade da inscrição primordial de uma marca da relação libidinal, simbólica e social com o outro. Freud (1895/1996, 1900/2019) nos indicou o modo como a ação específica, apoiada no reconhecimento e no amparo de um adulto, possibilita ao sujeito em vias de constituição subscrever os sentidos para a satisfação e o desamparo.
Depreende-se daí que o fracasso da ação específica, que supre as necessidades primordiais do infans e promove a interrupção do desprazer, articula-se à dor moral e ao trauma. A fome, quando vivenciada no curso do processo de constituição psíquica, pode fragilizar o estabelecimento de uma relação estável com o(a) cuidador(a), que é fundamental para o desenvolvimento subsequente da demanda e do devir do desejo.
Do exposto, cabe perguntar: o que pode acontecer, em termos subjetivos, quando se repete e perdura o estado de urgência e tensão caracterizado pela fome? Martins (2020) pontua:
Em suas estratégias, propõe Freud, o bebê poderá, em sua onipotência, alucinar a experiência vivida anteriormente. Mas a alucinação tem um prazo a vencer; continuar investindo a realidade alucinada conduzirá à dor, uma dor nomeada por Freud como uma espécie de desengano, uma primeira ferida em sua onipotência. (Martins, 2020, p. 237)
O tempo de espera e a experiência alucinatória são condições fundantes da constituição do psiquismo. O desengano, todavia, vem da fome continuada, que é apenas provisoriamente suplantada pela alucinação. Lembremos o que escrevera Josué de Castro “a fome não se deixa enganar [...] apenas ilude-se sua sensação consciente, mas na intimidade profunda de cada célula perduram indefinidamente os seus efeitos” (Castro, 1984/1946, p. 87-88). A fome, quando sentida demoradamente, sob o signo do abandono, produz revivências traumáticas nos sujeitos, afetando sobretudo a dimensão sensível das experiências.
Fome, Trauma Intencional e Vulnerabilidade Narcísica
O psicanalista Sándor Ferenczi ajuda-nos a articular as proposições anteriores, haja vista que em sua teoria se verifica o destaque dado à participação do ambiente e das trocas intersubjetivas na produção do trauma. No texto A propósito da “afirmação do desprazer”, Ferenczi (1933/1990) escreve:
Uma criança maltratada, digamos, pela fome. O que se passa quando o sofrimento aumenta e ultrapassa a força de compreensão do pequeno ser? O uso corrente caracteriza o que se segue pela expressão ‘a criança está fora de si’ (vistos do exterior) são: ausência de reação do ponto de vista da sensibilidade, cãibras musculares generalizadas, frequentemente seguidas de paralisia generalizada (‘ausentar-se’). À crer nas declarações de meus pacientes que me descrevem tais estados, pois bem, esse ‘ausentar-se’ não é forçosamente um ‘não-estar’ mas um ‘não-estar-lá’. [...] lá onde estão não existe tempo; passado, presente e futuro estão presentes para ele ao mesmo tempo, numa palavra, têm a impressão de ter superado o espaço e o tempo. (Ferenczi, 1933/1990, pp. 65)
No trecho citado, Ferenczi estabelece uma relação entre o sentir fome e o sentir-se ausente, numa espécie de suspensão do si mesmo. A partir desta perspectiva, os sofrimentos do paciente tornam-se desimportantes, momento em que, segundo o autor, forças naturais lutam e se opõem na própria pessoa. Estamos aqui diante de um novo elemento da traumatogênse ferencziana, que envolve, além da supressão de algumas necessidades orgânicas fundamentais, riscos para a sobrevivência do Eu e para a validação da fiabilidade do Outro. Nesses casos, Ferenczi hipotetiza um tipo de defesa relacionado à anestesia de si, do tempo e do espaço. Essa formação defensiva retorna posteriormente ao Eu. Nesse momento, a superação do sofrimento se transforma em uma intensificação da prudência e da paciência, situação que pode se manifestar na forma de uma tendência à submissão a contextos desfavoráveis. Com isso, o psicanalista húngaro nos alertas para os efeitos de apassivação dos sujeitos que a fome produz.
Assim, Ferenczi (1931/2011c) abre caminhos para se pensar estatuto da realidade concreta, social e política do trauma ao teorizar o trauma como o resultado de uma desautorização subjetiva. A situação traumática é então desdobrada em dois tempos. No segundo tempo, que chancela o efeito traumático a uma vivência anterior de excesso de tensão, o outro - no caso, o adulto cuidador - nega a violência sofrida pela criança, fazendo com que essa desacredite de sua experiência e coloque em dúvida a validade de suas próprias percepções. Nas palavras do autor:
O pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática dos pensamentos ou dos movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico. (Ferenczi, 1931/2011c, pp. 91)
Para Ferenczi (1929/2011b), o colapso psíquico não é tão somente efeito do evento em si mesmo - a experiência subjetiva da criança no exemplo descrito pelo autor -, mas o choque causado pela falta de reconhecimento da violência sofrida por parte do adulto. Nesses termos, não apenas algo impróprio aconteceu, a violência cometida e relatada, mas algo que teria que ter sido feito não foi. É lícito então reconhecer como um fator determinante para a gênese do trauma psíquico a experiência de negação de uma expectativa de cuidado ou, nas palavras de Ferenczi (1929/2011b), de uma omissão de socorro.
Podemos inferir daí um outro aspecto que nos auxilia a discutir a dimensão potencialmente traumática da fome, qual seja: o fato de que ela está apoiada a uma experiência de sobrevivência física e psíquica. A omissão de socorro e a desresponsabilização do outro semelhante (Nebenmensch) mutila o corpo físico. A morte aparece não apenas por meio da agudização da angústia, mas a partir dos sinais evidentes da inanição no corpo, como nas situações de padecimento e restrição das sensorialidades.
Nesse sentido, o trauma se efetiva quando se "desmente" (Ferenczi, 1931/2011) o sujeito nas suas dimensões factuais e perceptivas, em um contexto que favorece tais ocorrências, o que, via de regra, acaba por atingir a sua própria existência. O que temos percebido, a golpes sucessivos, é que o modelo civilizatório vigente promove a destrutividade em seus destinos diversos, a qual comparece não apenas como repetições nas subjetividades individuais, mas nas próprias instituições e no modo como elas se estruturam.
O relevo da intencionalidade do trauma, originalmente sugerido por Saglio-Yatzimirsky (2015, p. 177), trata de uma diferenciação entre traumas acidentais, decorrentes de catástrofes ambientais, por exemplo, e os traumas intencionais, que são efeitos de ações ou negligências perpretadas por outros seres humanos. O que é ressaltado nessa diferenciação, é que, no caso dos traumas intencionais, a marca da violência humana, conforme salientou a leitura de Gebrim (2018), ameaça as edificações simbólicas da cultura, pois infringem seus interditos fundamentais.
Nesse contexto que Saglio-Yatzimirsky (2015) pensa sobre o trabalho numa clínica com refugiados em uma instituição de saúde, na qual os indivíduos narram seus sofrimentos no contexto de uma série de privações e violências. Nos casos de migrações forçadas, políticas adversas estão colocadas de forma direta como causas dessas violências sofridas, sugere a autora. Porém, no caso da fome, é difícil apontar responsáveis, tendo em vista as múltiplas, complexas e diversificadas formas de violência que a engendram, sendo que muitas dessas violências estão associadas às negligências do próprio Estado. A concepção de trauma intencional sublinha a dimensão de um sofrimento que é ao mesmo tempo singular e político, entretanto, a dimensão traumática nunca está no evento em si, mas nos efeitos singulares de tais eventos ou contextos.
Inclui-se, ainda, entre a fome-tabu e o trauma intencional, a instauração da vergonha como uma forma de sofrimento moral. As dores corporais e vivências traumáticas que não puderam ser expressas publicamente são então silenciadas, tornando-se em uma forma de dor psíquica. Conforme escreve Gaulejac (1996), a vergonha evidencia a gênese social - não apenas a sexual - dos conflitos psíquicos. O autor destaca que a vergonha frequentemente surge associada na fome, na medida em que essa, enquanto uma experiência psíquica, fisícia e social, social, interfere na constituição do narcisismo. Pode-se dizer então que a dor da vergonha simultaneamente convoca, mobiliza e denuncia um olhar alteritário que desmente a existência subjetiva dos que padecem da fome. Diante disso, supomos haver uma expressão cultural do desmentido, que tem como uma das características, a recusa de uma realidade.
Se no contexto da fome o olhar de um outro que nega a expectativa de um cuidado essencial pode ser considerado o objeto da vergonha, tal afeto, por sua vez, atinge um Eu profundamente enfraquecido nas suas forças vitais e simbólicas. Como defesa, tal Eu erige a vergonha simultaneamente como uma forma de submissão e defesa do outro, que desponta como hostil e não fiável, mas em relação ao qual o sujeito encontra-se em situação de urgência e dependência.
Dessa forma, fazemos coro com Viñar (2005): “Como acompanhar analiticamente esta experiência extrema? O analista deve estar aberto e disponível para esta dupla vertente, por um lado do indecifrável e da cicatriz de algo morto ou destruído no núcleo da vida psíquica” (p. 67).
Partindo-se dessa perspectiva, colocamos em relevo uma postura ética da psicanálise ao considerar a necessidade de, em certos contextos, reconhecer materialidade traumática dos acontecimentos reais, que não são redutíveis a processos intrapsíquicos (Ferenczi, 1933/1990). É necessário e urgente, portanto, que os analistas - ainda que com limitações - criem oportunidades de escuta de testemunhos de experiências dolorosas e traumáticas tão presentes em contexto brasileiro, ensejando uma forma de endereçamento favorável para que uma verdade histórica e silenciada possa advir e, então, ser reconhecida, dignificada e subjetivada.
Ferenczi já perceba os riscos de uma psicanálise que ignora a realidade de um evento violento e traumático, conforme escreveu em seu Diário clínico:
Parece que os pacientes não podem acreditar, pelo menos não completamente, na realidade de um evento, se o analista, única testemunha do que se passou, mantém sua atitude fria, sem afeto e, como os pacientes gostam de dizer, puramente intelectual, ao passo que os eventos são de natureza tal que devem evocar em toda pessoa presente sentimentos e reações de revolta, de angústia, de terror, de vingança, de luto. (Ferenczi, 1933/2011e, p. 57, grifo nosso)
Logo, pensar nessa dimensão do testemunho traumático, assim como nas experiências desestruturantes da fome, implica também situar a dimensão sensível envolvida nessa experiência (Ferenczi, 1933/2011e). Ao considerarmos a intencionalidade e/ou desresponsabilização, fazemos uma aposta no sujeito singular que, por vezes, para sair dessa condição imobilizadora, precisa de uma escuta de anteparo, para que possa dar bordas à experiência traumática, alguém que se coloque na posição diferenciada daquela do olhar que se presentifica no sentimento de vergonha.
Considerações Finais
Com Freud, destacamos que os seres humanos são inerentemente marcados pelo desamparo. Deriva daí a disposição ao encontro com o outro desde o início da vida, fato que é necessário à sobrevivência e a própria constituição do psiquismo. A fome participa desse movimento de construção da alteridade, ao passo que ultrapassa a necessidade orgânica, incluindo a modulação e mediação das dimensões libidinais, narcísicas, simbólicas e sociais. É neste movimento que os sujeitos constroem seus próprios acervos subjetivos e relacionais.
Esperamos com o desenvolvimento deste trabalho aprofundar a pesquisa sobre os efeitos de desenlaces sociais e pulsionais ocasionados pela experiência da fome. Almejou-se ainda situar teoricamente os pontos de encontro e desencontro no que tange às concepções de Ferenczi e Freud acerca da Verleugnung, respectivamente desautorização e desmentido.
Foi proposto a hipótese metapsicológica de que o fracasso continuado da experiência de satisfação que caracteriza a fome introduz o sentido do desamparo, circunscrevendo uma situação-limite que interfere no desenvolvimento dos processos de vitalização psíquica. Suas consequências subjetivas podem ainda colocar em cena uma espécie de vergonha, relativa ao desengano, à desesperança da ajuda do próximo (Martins, 2020), podendo suscitar, entre outros efeitos, uma espécie de desenlace na relação com o outro. Sublinhou-se a importância de se nomear e discutir as implicações na personalidade ocasionados pelo contexto social que impõe a fome aos sujeitos, lembrando o as contribuições de Josué de Castro. Dentro desses efeitos, pode-se encontrar a despotencialização da libido, processos de apassivação subjetiva, desregulação da distinção dinâmica entre realidade interior e exterior e entre investimentos narcísicos e objetais.
Considera-se que implicações como as citadas acima retornam como desafios à clínica e à continuidade da pesquisa psicanalítica, levando-se em conta as vicissitudes da psicanálise em seus mais diversos contextos.
Sustentou-se que é impossível dissociar esses efeitos psíquicos de seu caráter político, intersubjetivo e cultural. Por isso, estabeleceu-se a ponte entre a fome-tabu, em Josué de Castro, e os efeitos da intencionalidade traumática, com Freud, Ferenczi e outros psicanalistas. Assim, ao lançarmos o olhar aos efeitos subjetivos da fome, demarcou-se o fundamental papel da alteridade, expresso na constituição dos psiquismos, no campo da cultura, como também nas possibilidades e desafios de escutar o indizível da fome. Sublinhamos, que faz parte da experiência cultural, de modo geral e da psicanálise, em específico, indagarmo-nos o que é convocado em nossos próprios desmentidos em relação a essa experiência.