A realidade social, política e educacional do Brasil, nos últimos anos, vem cobrando novos posicionamentos do campo que articula a Psicanálise e a Educação no país. O retrocesso que sofremos, seja pela ausência de investimentos, seja pelas políticas conservadoras que pautaram a condução de ações no campo social e educacional, nos últimos anos, produziu um cenário de intensa precarização em muitos setores educacionais historicamente sucateados por sucessivas crises.
Nesse contexto, passamos a interrogar de que forma a Psicanálise, como uma teoria crítica, em diálogo com o campo da educação e da política, pode contribuir com um melhor entendimento dos sintomas sociais que se apresentam nas questões educacionais e, em especial, na onda de violência que atualmente assola as instituições escolares.
Uma de nossas principais premissas nas interlocuções que travamos com outros campos, tais como a Educação, tem sido, justamente, mostrar que a psicanálise não é só uma terapêutica, isto é, seu corpo teórico-metodológico não limita sua intervenção e seus efeitos ao âmbito individual, à clínica do caso a caso. Ao longo de sua história, a psicanálise tornou-se um patrimônio da cultura que nos ajuda a pensar, de modo crítico e subversivo, as problematizações do laço social (Safatle et al., 2018).
Em termos gerais, sabemos que a educação nacional contou, nas últimas décadas, com projetos progressistas que, em muitos aspectos, nos estimularam a seguir sonhando com um grande programa educacional para o Brasil. Entretanto, da metade da década de 2010 para cá, assistimos a uma mudança discursiva gradual nas pautas educativas. Além das questões de cunho religioso na direção das ações educativas, nos preocupamos com o regime de avaliações e métricas que invadiu também a escola em todas as etapas da formação. Logo, de uma educação pautada em aspectos emancipatórios e críticos do pensamento, temos, cada vez mais, nos aproximado de uma concepção de aprendizagem baseada na funcionalidade, na reprodução e no empreendedorismo (Gurski et al., no prelo).
O realismo capitalista (Fischer, 2021), que impregna nossas vidas com a sensação de que não há saída fora do liberalismo, até mesmo no âmbito educacional, parece ter chegado também à instituição escolar. Nesse sentido, Laval (2019) sugere que a lógica neoliberal de fato parece construir um imaginário pautado pelo espírito empresarial, transformando os sujeitos em capital financeiro humano. Essa lógica da financeirização das vidas é acompanhada, no dia a dia, pelo protagonismo do consumo de objetos e do uso dos dispositivos tecnológicos, muitas vezes, não só abusivo como também equivocado.
Ora, precisamos entender que, apesar do progresso importante que as novas tecnologias e as possibilidades avançadas de conexões produzem para as relações sociais e de trabalho, seguimos com um paradoxo, o de que, mesmo com todas as inúmeras condições de conectividades, resta um enorme solipsismo na vida relacional dos sujeitos deste tempo.
Neste diapasão, sublinhamos que, durante o período da pandemia, assistimos a uma precarização ainda maior das relações sociais e laborais, situação que também chegou à Escola. De todo modo, não foi somente após a pandemia que a instituição escolar entrou em colapso no Brasil. Sabemos que a instituição escolar no país sempre foi refém dos processos políticos e das desigualdades sociais históricas e vem, nas últimas décadas, sofrendo uma séria crise de legitimidade. Contexto no qual proliferam muitas vozes que pedem a reforma da educação e da escola. Mas de que reforma, afinal, tratam? Qual Escola e para qual sociedade? Que educação, de fato, queremos para as futuras gerações? (Laval, 2019).
Se olharmos para o cenário brasileiro, de um lado, vemos a crise da educação como um projeto de subalternização e de manutenção das desigualdades entre as classes sociais e, de outro, assistimos ao avanço de um modo de pensar as práticas educativas, no qual a privatização atinge as relações com o saber e com a transmissão de conhecimento e valores (Laval, 2019). Precisamos lembrar que o pensamento crítico no Brasil foi colonizado de tal modo que há um contingente grande não só de analfabetos funcionais, mas de sujeitos que vivem em um limbo social, também, porque a sociedade e o Estado não produzem condições e possibilidades de transformação social pela via da educação (Gurski et al., no prelo).
O tema das desigualdades atravessa a problemática educacional brasileira de modo expressivo. Somos uma nação estruturada por diferenças enormes do ponto de vista racial, social, econômico, de gênero e sabemos que a origem destas desigualdades remete à própria formação do país, formação essa baseada, sobretudo, na exploração de grupos minorizados - dentre eles, negros, indígenas, mulheres e sujeitos em situação de pobreza.
Pois, será a partir de tal contexto que procuraremos reconhecer, nos episódios de violência extrema nas escolas e nos ataques a seus personagens principais - professores e alunos -, o eco de muitos outros atentados que só se tornam possíveis por serem incubados em um frágil e dilacerado laço social. Precisamos também incluir, nesta discussão, o fato da sociedade brasileira, ao longo dos séculos, ter se constituído a partir da naturalização de práticas racistas e segregatórias que produzem enormes diferenças no que se refere ao acesso aos bens culturais e à formação educacional.
Para analisar essas questões, começaremos tratando de algumas dimensões contidas nos ataques às instituições escolares. Estes parecem revelar, sobretudo, a corrosão das condições simbólicas das instituições sociais e, neste caso, educacionais, seja por estarem elas imersas nas políticas de morte que vigoram em nossa sociedade, seja pela notória inconstância das decisões políticas que viabilizam, ou não, os aportes financeiros a esses projetos. Para esta discussão, também, consideramos um fenômeno mais recente que se pode denominar como uma espécie de demonização da dimensão da política nas práticas educativas.
Em suma, em primeiro lugar, discutiremos algumas questões relativas ao espectro de morte e violência no qual a escola está envolvida, isso, não só pela política do tiro, que tem nos homicídios e suicídios dos jovens um de seus corolários, mas, ainda pela necropolítica que vigora no laço social; em seguida, vamos discutir o tema dos suicídios e homicídios juvenis na escola e fora dela, à luz de variáveis que pautam o chamado estado suicidário (Safatle, 2020), junto à negligência no que se refere aos investimentos financeiros nas políticas públicas de educação ao longo de nossa história. Em terceiro lugar, chamaremos a atenção para a insistente defesa da despolitização do campo educacional, aspecto que completa o quadro que faz com que nos encontremos frente a uma crescente erosão da função simbólica do campo educacional e da instituição escolar de forma especial.
A Escola e as Políticas Educacionais Brasileiras sob o Espectro da Morte
De início, tomamos a questão premente dos homicídios e suicídios que se dão na escola e ao seu redor. Da forma como os vemos, conforme já mencionado, eles são a expressão de um frágil laço social que se dilacera ao longo dos séculos, mas, que com o passar do tempo se revelou parte integrante do espectro de morte que passa a rondar a escola. Trata-se então de considerar que os ataques aos jovens e aos profissionais que estão na escola não vêm apenas sob a forma de uma investida agressiva física e pontual. Este é, sem dúvida, um modo hediondo que nos captura a todos, mas, é, justamente, para além destes ataques que encontramos as raízes do que nos interroga.
As estatísticas, na sua dimensão mais bruta, são quase dispensáveis, dada a evidência que se mostra na mídia e nas redes sociais diariamente. De todo modo, é importante situarmos o que está em questão no que estamos chamando de espectro da morte que ronda o ambiente escolar em muitas instituições do país. O Atlas da Violência (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2021) abre o capítulo sobre “violência contra a juventude” com a seguinte afirmação: “no Brasil a violência é a principal causa de morte dos jovens” (p. 27). De fato, no caso do ano de 2019, verificamos que, de cada 100 jovens entre 15 e 19 anos que morreram no país, 39 foram vítimas da violência letal. Com estes números, configura-se a imagem brutal da violência nacional, associada que está ao racismo estrutural, traço presente na constituição da sociedade brasileira desde sua origem. Ao longo dos mais de 500 anos de existência, sabemos que a violência tem constituído uma das faces obscuras do país (Sousa, 2000).
Quer dizer, a história do Brasil é pautada por relações de dominação e de poder que se estabeleceram pela via da exploração de caráter colonial, nas quais o poder econômico das elites latifundiárias, industriais e culturais fez parte da estruturação política do país (Soares, 2015). Nesse contexto, não se pode negar o uso sistêmico da violência com a finalidade de assegurar o exercício de poderes sociais, econômicos e políticos. Foi assim, também, que, ao longo dos séculos, tivemos a marginalização de grupos sociais minorizados e a perpetuação da violência como forma de calar, impor e, muitas vezes, interromper as trajetórias de empoderamento e de transformação das relações de poder de alguns sujeitos e grupos no espaço público e social.
Como diz Rodrigues (2022, p. 27), convivemos, ao longo dos séculos, e, cotidianamente, com uma estrutura de repetição da violência “colonial, escravagista e genocida que está na origem da formação da sociedade brasileira, onde cada sujeito carrega marcas, mais ou menos, recalcadas de uma violência originária”. Atualmente, os laços do colonialismo ressoam nas formas de exploração da racionalidade neoliberal, que sabe bem aproveitar as variáveis históricas e sociais para constituir novas roupagens aos velhos hábitos de acumulação, concentração do capital e extrativismo do mundo. Mudam os nomes dos regimes, mas, a guerra e a morte seguem no centro das questões humanas. Nas palavras de Chaves (2022), o colonialismo, o fascismo e o nazismo configuram-se como três formas extremas e patológicas que revelam a queda das máscaras da face supostamente civilizada de algumas culturas e sociedades ocidentais.
Mbembe (2018), filósofo camaronês, especialmente, com o seu conceito de necropolítica, evidencia que, além da morte ser um tema central para a metapsicologia, ela também o é para a política. Mbembe mostra que os Estados modernos se organizam a partir de políticas de morte que ele denomina de necropolítica. Em sua visão, a necropolítica contemporânea operaria a gestão da morte, porém na dimensão do deixar morrer, do deixar-se morrer, ou ainda, como bem coloca Silvio Almeida (2019), “do deixar matar”.
Assim, não se trata mais de um Estado que capitaneia a violência e a morte, pois esta já se encontra disseminada nas práticas de gestão das políticas, através das quais se estabelece, antecipadamente, quais corpos e vidas de fato importam e irão merecer cuidados. As formas contemporâneas de violência racial e colonial mostram ainda que há dominação e controle sobre alguns corpos. É nesse sentido que Mbembe (2018) sugere que a violência racial pode ser pensada como o paradigma da política contemporânea.
Não é difícil concluir que a violência, historicamente inscrita nas relações sociais do país, está muito associada a este racismo estrutural e à política contemporânea, tendo produzido, ao longo do tempo, por óbvio, efeitos para os modos desiguais de acesso aos bens culturais e educacionais. Segundo Almeida (2019), tais desigualdades estão inter-relacionadas entre si e se articulam ao desejo de colonialidade, bem como às práticas necropolíticas da sociedade brasileira. Schwarcz e Gomes (2018) sugerem que a colonialidade, que se alia à necropolítica, tem estado presente como um modo de violência, desde a criação do Brasil colônia até os dias atuais. Tal condição participa vivamente das relações educacionais, especialmente, de jovens negros.
Ao articularmos o racismo estrutural à brasileira, percebemos que este se dirige a determinados grupos sociais, associando-se muito a questões de raça e gênero e constituindo atos sistêmicos cuja finalidade seria a exclusão de determinadas pessoas e grupos sociais de lugares de poder na organização da sociedade (Petrone, et al, 2020). Dito de outra forma, nas práticas racistas atuais não se trata mais de colocar alguns grupos em campos de extermínio para matar e exterminar os corpos, o extermínio ocorre por erosão de condições dignas do viver. Nesse sentido, erradicar verbas voltadas à educação pública pode, sim, ser tomado como um ato de necropolítica e um ataque ao campo da educação, na medida em que sabemos quem são os sujeitos deixados em segundo plano quando não se investe na escola pública.
Ou seja, para além das investidas físicas e diretas que vem atingindo a escola e o campo da educação, nos preocupamos com os efeitos éticos e simbólicos desses ataques, sobre os quais podemos dizer que a escola no Brasil sempre foi alvo. Ademais, é bom lembrar que a escola brasileira nunca deixou de ser uma instituição social dividida entre a excelência de um ensino para as elites econômicas e culturais e o resto, resultado, é claro, de políticas e investimentos secularmente controversos, desencontrados e mantidos sob o signo da carência e da progressiva falência de tudo que a cercou.
O Suicídio e o Homicídio de Jovens na Escola e o Estado Suicidário
Entendemos que os modos de sofrimento psíquico, que os adolescentes contemporâneos apresentam, evocam questões não só individuais, mas, também, de caráter ético-político e social. Renovando a aposta freudiana na torção irredutível entre o social e o psíquico e, concomitantemente, recusando explicações simplistas de causas puramente orgânicas, buscamos problematizar o aumento preocupante do mal-estar juvenil de nosso tempo, mal-estar revelado por crescentes índices de depressão e de suicídio de jovens brasileiros.
Em setembro de 2019, a Word Health Organization (WHO) divulgou dados alarmantes sobre o suicídio de forma geral. A cada ano, quase 800 mil pessoas tiram a própria vida, o equivalente a uma morte a cada 40 segundos. No que se refere aos jovens, as altas taxas de mortes autoprovocadas e os quadros de depressão em adolescentes são particularmente preocupantes. O relatório da WHO (2019) indicou que o suicídio foi a segunda principal causa de morte entre sujeitos de 15 a 29 anos, ficando atrás apenas dos acidentes de trânsito.
Temos, já há algum tempo, convivido com o aumento das taxas de sofrimento psíquico de adolescentes e jovens. No Brasil, em 2016, o suicídio foi a 4ª causa de morte entre jovens. A preocupação com o tema se justifica, pois, no intervalo entre os anos de 2000 e 2016, tivemos um aumento de 30% nas taxas de suicídio juvenil, já que, em 2000, foram 2142 jovens tirando a própria vida (Manir, 2019, p. 16-21) e, em 2016, os números cresceram, indo para 3097 jovens.
Nas pesquisas em que articulamos psicanálise, adolescência, educação e laço social, temos construído algumas problematizações que dialogam tanto com questões estruturais do sujeito quanto com as variáveis do laço social. De que forma os adolescentes têm vivenciado a mais delicada das passagens em meio às atuais configurações do laço social (Lacadée, 2018)? Como pensar os efeitos psíquicos de uma adolescência vivida em meio à propagação de discursos de ódio assentados em políticas de morte?
Preocupa, sobretudo, o fato de o adolescente contemporâneo jogar com seu gozo em uma lógica que parece transcender a preservação da vida. Neste diapasão, não se pode esquecer que, se a grande questão de todo sujeito humano é encontrar modos de se fazer representar no discurso social, com os adolescentes, isso passa a se dar de uma forma ainda mais intensa, fato que traz consequências importantes do ponto de vista psíquico e social. Não raro, vemos nesta fase, o abandono escolar, a apatia, o isolamento, as pequenas transgressões e outros sintomas claros do mal-estar na adolescência que pautam o cotidiano das instituições.
O sequestro atual do tema do suicídio e do mal-estar na infância e adolescência pela psiquiatria medicamentosa deve nos fazer interrogar de que forma vem funcionando a rede de proteção e acolhimento daqueles que fazem, por si mesmo, suas primeiras incursões ao mundo social. Referimo-nos às instituições sociais, à família, à escola, às políticas públicas dirigidas aos jovens, entre outros dispositivos do campo da educação e da saúde mental. Cabe a pergunta, sobre como temos escutado o mal-estar e os sinais de sofrimento psíquico desses sujeitos tanto na escola como na família (Gurski et al., 2020).
Isto porque, se tomarmos acontecimentos como o de Suzano, ocorrido em março de 2019, e as tragédia de 2023, na Vila Sônia - SP, e na cidade de Blumenau - SC, assim como as estatísticas crescentes de tentativas de suicídio de universitários, temos de necessariamente pensar sobre os sinais que estes jovens certamente transmitem ainda antes da passagem ao ato. Por exemplo, segundo narrativa póstuma ao acontecimento de Suzano, os meninos teriam evadido precocemente da escola. Nesse sentido, precisamos interrogar onde estava a busca ativa da política educacional. O que é feito, afinal, pelas instituições sociais, quando se produz a evasão de um aluno em idade escolar? Algum serviço da Rede vai atrás do aluno e da família a fim de esclarecer o motivo do abandono? Onde a rede de proteção integral, preconizada no ECA, se apresenta? O que é preciso ocorrer para que as políticas sociais, o Outro da cultura, ocupe-se, de fato, desses jovens? Afinal de quantos descasos e invisibilidades se faz uma tentativa de suicídio ou homicídio de um jovem (Gurski et al., 2020)?
Apesar de discutirmos de modo genérico aspectos da construção psíquica, na passagem adolescente, os homicídios e suicídios que atingem jovens e crianças no espaço escolar são efeitos, por certo, das políticas de morte que vigoram numa sociedade que se tornou uma sociedade suicidária. Vladimir Safatle (2020), ao analisar a distopia brasileira, ao longo da pandemia, refere-se ao estado suicidário - expressão que retira de Paul Virilio - a fim de dizer que não se trata só de um estado gestor de mortes e de desaparecimentos, mas, de um estado autor de sua própria catástrofe porque, além de deixar sua população morrer, acelera na direção de sua destruição:
(...) o estado brasileiro nunca precisou de uma guerra porque ele sempre fez a gestão de uma guerra civil não declarada. Seu exército não serviu a outra coisa que se voltar periodicamente contra sua própria população. Esta é a terra da contrarrevolução preventiva, como dizia Florestan Fernandes. A pátria da guerra civil sem fim, dos genocídios sem nome, dos massacres sem documento, dos processos de acumulação do capital feitos através de bala e medo contra quem se mover. (Safatle, 2020, n.d.)
Quer dizer, como nota Safatle (2020b) em relação a esta sociedade suicidária, "para além da necropolítica", trata-se de nos darmos conta dos vários sentidos em que a escola, desde sempre, esteve sob ataque neste país. Se tomarmos a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Educação 2019) e os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), veremos que 71,7% dos jovens que estão fora da escola são negros e apenas 27,3% deles são brancos. O mesmo estudo demonstra a desigualdade de acesso à educação nos índices de analfabetismo: em 2019, 3,6% das pessoas brancas de 15 anos ou mais eram analfabetas, enquanto entre as pessoas negras esse percentual chegava a 8,9% (Instituto Unibanco, n.d.).
Nesse sentido é que entendemos que a educação no país foi construída como um campo pautado por enormes desigualdades de acesso, essas desigualdades fundam um espaço praticamente “oficial” de marginalização educacional de alguns grupos sociais, condição que ajudou a perpetuar a violência simbólica, afora a física, como forma de calar, impor e, muitas vezes, interromper trajetórias de empoderamento e de transformação, tanto individual como coletiva no espaço público.
A ausência secular de investimentos na educação, além de fixar no imaginário social, a imagem de prédios escolares deteriorados, decadentes, sem conservação, certamente, também, se configura como um modo de ataque, pois, é o retrato da negligência com que, sem dúvida, é tratada a escola pública e a formação educacional dos jovens brasileiros. Conforme observava Darcy Ribeiro, sob um tom bem humorado, a crise da educação no Brasil não é apenas uma crise, mas uma estratégia política.
A Erosão da Função Simbólica da Escola e os “Uns Soltos”
Quando nos deparamos com as estatísticas de suicídios de adolescentes e com as enormes diferenças nos índices de abandono da escola entre jovens negros e brancos, temos que necessariamente nos perguntar sobre os discursos e práticas que fazemos circular no laço social, discursos esses que são anteriores e que constituem a materialidade simbólica com a qual as crianças e adolescentes irão, de algum modo, dialogar. Será que ainda é possível constituir espaços sociais e educacionais pautados por uma perspectiva de futuro passível de lançar os jovens na articulação de desejos de vida e de criação e não em pautas de morte?
Para problematizar essa questão é necessário irmos mais longe, porque quando se trata do neocapitalismo, não é só a escola pública que sofre as consequências da desregulamentação do capital e do trabalho, da desagregação das formas estáveis de trabalho, da terceirização e da precarização crescente da força de trabalho (Fischer, 2021). É o mundo, pelo menos o mundo capitalista - que inclui quase todo o globo -, que vai lentamente se desfazendo, é o tecido social que vai se esfacelando numa medida inaudita, e que atinge a tessitura de toda a sociedade.
Neste ponto, a psicanálise nos oferece uma base para o entendimento do que vemos ser o afrouxamento acentuado do que enoda os registros do real, do simbólico e do imaginário que sustenta o laço, com suas consequências desastrosas principalmente para os mais jovens que se arriscam ao fazer seu ingresso no mundo dos adultos.
Lacan (1974-1975/2022) usa o nó-borromeano para demonstrar como o laço social é resultado de uma série de sucessores, trata-se do {n+1}, {n+1} que sustenta uma sequência. O sucessor estrutura a rede à condição de ter um que não seja sucessor, que é o zero; a partir dele, no entanto, todo número tem um sucessor, o que permite que a propriedade borromeana da estrutura seja mantida. Cada dois elos se mantêm enodados pelo terceiro e este enodamento segue até o infinito na condição de que se mantenha atado ao último elo que garante que a sequência seja observada.
Ora, nos deparamos atualmente com a queda desta função de sucessor do +1. Uma vez que o +1 é eliminado, "não há mais cadeia, não há mais série, haja vista que só pelo só fato da secção desse um-entre-outros, todos os outros, digamos, se liberam como uns" (Lacan, 1974-1975/2022, p.69). O que passamos a encontrar agora é 1, 1, 1, 1… Trata-se então do exercício do individualismo levado à outrance, pois, se a ideologia individualista sempre acompanhou e foi corolária do capitalismo, os efeitos do capitalismo tardio e computacional, como o denomina Mbembe (2019), exacerbam ainda mais a visada empreendedorista em que cada um cuida de si e representa a si próprio. Há aí uma passagem da esfera propriamente política e de discussão em nível macro para o nível da esfera micro em que o que é valorizado é a experiência individual, pessoal e intransferível (Lago, 2022). A microesfera íntima, da experiência pessoal, a "visceralidade" (Mbembe, 2018, p.7) sob o disfarce de autenticidade, substituem as formas da vida vivida de forma coletiva.
A crença de que os espaços interiores, em todos os sentidos, são espaços seguros por resguardarem os direitos individuais acima dos direitos comuns, levam a que a esfera política seja vista com desconfiança, quando não seja completamente descartada. As expressões mais radicais do individualismo neoliberal passam a ser então a individualização das ações que, até então, eram entendidas como sendo de responsabilidade do Estado. Não entrando no importante fato de que esta função que caberia ao Estado, particularmente na área da educação, em sua quase totalidade, mal é realizada e de forma precária, como vimos examinando até aqui, o fato é que mesmo a pouca presença do Estado é contestada. É quando a educação passa a ser um assunto privado, que deve ser exercido pelos pais.
Ora, a proposta de homeschooling é o exemplo mais contundente desta ação que é, em todos os sentidos, uma ação de despolitização, cuja consequência se faz sentir em várias esferas da vida em sociedade. Por exemplo, a concepção de que a defesa da integralidade física é problema de cada um - o que leva à necessidade de armar a sociedade e tornar a defesa própria incumbência de cada um, em caso de assaltos e atentados de qualquer espécie - é seguramente um caso da "liberação dos uns" em termos lacanianos. Trata-se da desamarração, da individualização de um problema que desde sempre teria sido função garantida pela segurança pública. Ao contrário, o que se vê são os números assustadores da violência de Estado que atinge, como temos visto ao longo deste trabalho, sobretudo, a população jovem negra e periférica (IPEA, 2021).
O que temos então são as "guerras civis do neoliberalismo", como apontam Pierre Dardot et al. (2021), que as consideram guerras "totais", porque têm cunho social, étnico, político e jurídico, cultural e moral, ou seja, que não dão lugar a uma estratégia global, nem opõem uma ordem global a populações tomadas em bloco. Antes, seguem linhas de clivagem complexas que escolhem a cada vez seus oponentes, usam regras, referem-se a temas e situam seus lugares de enfrentamento de acordo com critérios que visam à manutenção da ordem neoliberal.
No que diz respeito à educação, a proposta que surge da ideologia neoliberal individualista, de uma instrução que se daria fora da escola, conduzida pelos pais ou familiares, é mais uma consequência da desamarração dos nós que sustentariam o tecido social. Sobretudo, demonstra e atualiza o ataque à função simbólica da escola - aquela que permite, por excelência, que crianças e jovens tenham a oportunidade de fazerem, ou melhor, de inventarem um lugar para si.
O papel ético e político da instituição escolar será então o de oferecer as condições para a realização da passagem de um mundo infantil, que se entendia como total, para o mundo em que será possível a inscrição do singular do sujeito na dimensão coletiva, a mesma que, por seu turno, garante esta própria dimensão. Trata-se, portanto, de um dispositivo que assegura a transmissão, uma vez que é onde a adolescência toma para si, ou inventa para si, repetimos, uma versão do que recebeu do Outro - justamente o que se apresenta aí é a oportunidade para o surgimento do novo (Lo Bianco & Costa-Moura, 2017).
Ao contrário do que colocamos, o que um sistema como o de homeschooling engendraria é a dissolução progressiva dos laços, é o aniquilamento da dimensão política que conduz o ato do sujeito em direção a sua inserção na coletividade. Aliás, a tendência para despolitização da educação esteve mais do que nunca em evidência com o movimento que preconizava uma "escola sem partido". Este movimento nitidamente visava a criminalizar a discussão política e a afastar o que poderia ser caracterizado como uma educação crítica nas escolas, sob o pretexto de que se estaria impondo uma espécie de "marxismo cultural" que prejudicaria o aprendizado - o que provavelmente se supunha era a necessidade de ter que oferecer conteúdos neutros e pragmáticos! A despolitização da escola passa, assim, a ser o alvo primeiro de um sistema educacional que está a favor de um ensino reprodutivo e acrítico e, que, acima de tudo, se mostra incapaz de ofertar ao jovem um motivo para que compareça com seu desejo de construção de um futuro que não seja a repetição ecolálica e melancólica do passado.
À Guisa de Conclusão
Nesse espaço, à guisa de concluir, lembramos a intervenção de Freud (2013/1910), quando em uma reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena, na qual tratava-se justamente do tema do suicídio de jovens escolares, ele diz que a escola teria que poder fazer mais do que evitar o suicídio de seus alunos, pois é sua tarefa transmitir-lhes o "desejo de viver". Para Freud, é preciso que a Escola possa apoiar os jovens, especialmente, considerando que se trata de uma época em que estão afrouxando as relações com os pais e a família e, nesse sentido, a escola pode ser um espaço social transmissor de condições importantes a fim de que invistam seu despertar no mundo lá fora 1.
Podemos ver na crítica de Freud o reconhecimento da dificuldade que sempre cercou as instituições educacionais, na árdua e complexa tarefa de ganhar a confiança e provocar a "vontade de viver" daqueles que estão geralmente numa fase de questionamento da ordem e de toda a autoridade que predominou em seu entorno, até então. É um momento em que, não raro, encontramos os adolescentes às voltas com incontáveis situações que levam à evasão escolar, ao isolamento e a outros sintomas do mal-estar que, a cada época, os acomete.
Nesse contexto, ao invés de apoio, encontramos a erosão do lugar que a escola, com dificuldade, busca ocupar. Lugar de anteparo para o mal-estar que a vida em sociedade impõe, mas, que se encontra no momento sob ameaça de aniquilamento que não virá sem consequências desastrosas para o mundo por vir, se ele existir (Danowski & Viveiros de Castro, 2013).
Poderíamos mesmo ousar a pergunta, de que mundo por vir se trata, quando não conseguimos abandonar hábitos que nos colocam, muitas vezes, a marchar na direção do esgotamento de condições da vida no planeta? Qual escola pode lidar com ataques forjados em meio à dimensão suicidária que discutimos mais acima?
Temos pensado que nossas interrogações precisam ser ampliadas a fim de ajudarmos a escola a operar na atual e, cada vez mais difícil, tarefa de transmitir o desejo de viver. Resta saber como podemos fazer tal transmissão quando organizamos um mundo que, de fato, está voltado para a morte; quando, ao invés de nos preocuparmos com o futuro por vir, vivemos em um presente que parece interminável, quase como se não houvesse um amanhã.
Uma das saídas imediatas para a angústia que se produz frente a todas essas condições, talvez seja mesmo forjar uma espécie de imaginário do fim do mundo que alimenta uma certa impotência depressiva individual. Essa espécie de impotência atua no campo transpessoal limitando a capacidade de pensar, imaginar, sonhar e agir para transformar.
Sabemos que não será sem efeitos para o futuro da nação, assistirmos as gerações que chegam ao mundo, desimplicando-se da tarefa de transformá-lo. De que forma, as dificuldades com o tema do sentido da vida, cada vez mais presente nos relatos dos adolescentes, podem ser compreendidas como produto da lógica neoliberal que opera essa espécie de redução espontânea de imaginação, sonhos e utopias para as novas gerações? Seria o caso de nos interrogarmos sobre o que a ausência da vontade de viver dos mais jovens pode revelar sobre as condições de nosso tecido social? Como fica o campo da educação em meio a este cenário de sonhos e utopias interrompidos pela lógica do mercado e do capital? Como voltar a sonhar com passados esquecidos e futuros impensados? Será que a escola ainda tem condição de representar, do ponto de vista simbólico, um lugar de construção de sonhos e utopias de futuro para os jovens?
Segundo Fischer (2021), esse certo marasmo com as perspectivas de futuro também ocorre por conta do realismo capitalista produzir um lento cancelamento do amanhã, impregnando a sociedade com a noção de que o capitalismo liberal é a única saída, afora isso o resto seria ilusão, utopia e inviabilidades. Em sua visão, a sociedade, de forma geral, se encontra sem possibilidade de produzir uma política acoplada ao nível do desejo, como se não pudéssemos instrumentalizar a libido para fins políticos (Fisher, 2021, p. 203), o que nos transforma em uma espécie de zumbis, impedidos de sonhar com outros futuros e imaginar outros destinos.
É nesse sentido que, mesmo considerando a importância da dimensão sociopolítica das questões educacionais no Brasil, não se pode tratar de educação e formação sem falar das condições da vida na terra e do mundo de modo geral. Ao discutirmos aspectos educacionais, necessariamente, precisamos articular questões das ciências, da natureza, da economia e da política. Mark Fischer (2021), com sua tese do realismo capitalista, multiplica os efeitos da frase atribuída a Fredric Jameson, a de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, com o que nos convoca a pensar em outras formas de transmitir, aos jovens, o desejo de um porvir, desacelerando assim o lento cancelamento do futuro a que estamos submetidos.