““Ei, você não fala?”
Sacudi a cabeça.
“Deixou a língua em Joburgo?”
Assenti.” (Levy, 2023 p.41)
Turim, 2023. O museu Gallerie d’Italia exibe painéis gigantes que estampam crianças deslocadas, fotografadas em campos de refúgio na Ucrânia, Ruanda, Mauritânia, Colômbia e Grécia. A instalação é parte do projeto Déplacé∙e∙s do artista francês JR (2023), que aborda o fenômeno cada vez mais contundente do deslocamento de pessoas ao redor do mundo. Em 2022, o número de pessoas forçadas a deixar suas casas devido à perseguição, guerra, desastres e violação de direitos humanos excede cem milhões. Conforme lemos na apresentação da exposição, há dez anos este número era dez milhões. Se desta vez as imagens são vistas dentro de uma galeria, o trabalho do artista é conhecido por ocupar espaços públicos com rostos de desconhecidos, pessoas comuns, qualquer um em uma escala que atrai a atenção daqueles que não costumam frequentar museus. É impossível passar por um de seus painéis sem olhá-lo, especialmente pela sua escala que presentifica em lugares inusitados sujeitos que geralmente passam como se fossem invisíveis. Silenciosos? Silenciados? Mas em que língua falar deste desarraigamento radical?
As catástrofes trazem à tona a questão da representação e de seus limites na abordagem do trauma. O problema da língua e os limites nos quais o exercício da língua esbarra é um tema que interessa à psicanálise, principalmente na atualidade, em tempos em que as condições de enunciação nem sempre estão claras ou podem ser dadas de antemão. A reconstrução de ferramentas táticas e a interrogação acerca da posição do analista diante do sofrimento social são prerrogativas importantes para pensar o estabelecimento de endereçamento transferencial. Ao retomar a relação entre letra, lugar de enunciação e fronteiras da língua, a dimensão translinguística do inconsciente ganha destaque e permite pensar a viabilidade da operação psicanalítica em territórios linguísticos pouco explorados. Freud (1926/2006) ressalta a dimensão de poder que a palavra pode veicular, ao assinalar a sua qualidade de curar, mas também de causar imensas feridas.
A tensão entre sujeito e cultura ganha contornos cada vez mais ferozes no contemporâneo: a segregação e a violência cotidiana avançam junto com novos recursos, muitas vezes envolvendo o uso de tecnologias complexas, voltadas ao controle social e político de corpos e subjetividades. A distribuição desigual do poder e a política de exclusão reforçam o desamparo e produzem efeitos que não podem ser desconsiderados na clínica. O entrecruzamento de opressões de gênero, raça, classe se une à política de segregação, tornando estrangeiro todo aquele que não participa da pretensa universalidade apregoada pela lógica dominante, centrada no modelo patriarcal eurocêntrico. O desenraizamento causado pelo exílio forçado e a vida em territórios violentos produzem um apagamento da história, dos costumes, ritos e hábitos locais. Encontramos, nessas condições, sujeitos amputados de sua língua, tendo que fabricar modos inéditos de dizer que, por remeterem à perda e ao desamparo, podem reatualizar a dor vivida e reabrir feridas. O cenário de guerra e os efeitos da devastação, ao invadir o cotidiano, atravessam vidas singulares que são desafiadas a encontrar novas formas para se articular. O exílio e o lugar da fronteira tornam-se ao mesmo tempo obstáculo e limiar a ser transposto, zona de trânsito e possibilidade de subversão da língua, que força sua entrada em contrabando.
Incluir o furo, troumatisme, no texto de um vivido, exige um esforço de leitura (Nicéas, 2018). Ler com o translínguistico é uma maneira de grifar o movimento daqueles que estão à margem e fornece pistas para a reinvenção necessária do lugar de escuta. A psicanálise deve estar implicada em um esforço de inclusão de outras modalidades de enunciação, construindo novas paisagens subjetivas com a sustentação de uma prática que dê lugar a experiência intolerável/insuportável da segregação e da exclusão. Como a psicanálise pode acolher aqueles que são constantemente destituídos de valor na hierarquia das vidas (Fassin, 2018), de modo a contribuir para que suas narrativas sejam validadas e exerçam a função implicada em uma política de testemunho?
Adentrar na esfera do traumatismo exige um manejo do silêncio e implica o desafio de estabelecimento de laço com aquilo que não entra na língua (Laub, 1992). Com isso, queremos propor que o testemunho implica o agenciamento de dois tipos de silêncio: o silêncio estratégico, ou seja, a tomada de posição ativa que envolve a decisão de não narrar determinados acontecimentos como modo de sobrevivência; e o impossível de dizer, limite estrutural imposto ao campo da representação. O ato de recepção do testemunho exige delicadeza e trânsito entre esses dois modos de silêncio na constituição do endereçamento, como possibilidade de acolhimento daquilo que se coloca para além da mensagem. É importante, além isso, diferenciar esses dois modos de silêncio - como estratégia de sobrevivência e como limite à representação - de uma política de silenciamento, que se caracteriza como parte de um projeto de negação e de apagamento de histórias não hegemônicas. A deslegitimação de narrativas se alinha aos efeitos crescentes do racismo e da segregação no mundo, estratégia que visa a imposição de um modo de produção de conhecimento em detrimento de outros, que passam a ser desconsiderados e desvalorizados (Fricker, 2007). O silenciamento reforça, assim, o privilégio de um lugar de enunciação e o vende de modo enganoso como sendo universal, estável e disponível para todos.
A psicanálise sustenta um modo de fazer valer a singularidade de cada falasser em sua forma de conectar corpo e linguagem. Uma prática clínica inclusiva e aberta à diferença requer o reconhecimento dos efeitos do racismo e da segregação em nossa cultura. A psicanálise, ao não desconsiderar a relação entre sofrimento psíquico e os efeitos de exclusão produzidos pelo discurso dominante, abre-se à construção de uma saída, sempre única, que cada sujeito encontra e, nesse sentido, está implicada na luta pela ampliação das condições de participação social e de igualdade de direitos em nossa sociedade (Campos Guerra et al., 2021).
A segregação e o racismo deixam marcas no psiquismo, mas estas nem sempre podem ser situadas e elaboradas, já que a produção de conhecimento ainda é fortemente marcada pelo modelo eurocêntrico que sustenta a existência de um sujeito universal, talhado à imagem e semelhança do homem europeu, branco, heterossexual. A falta de instrumentos de leitura para situar as diversas formas de opressão e de violência na atualidade se inscreve no projeto colonizador que visa à submissão, ao silenciamento e invisibiliza corpos e diferenças. A validação do testemunho de sujeitos que não ocupam um lugar privilegiado na distribuição de poder é fundamental para uma mudança de cenário, tomando a clínica a partir daqueles que estão em uma posição à margem.
A função de endereçamento torna-se menos ponto de partida e mais lugar a ser estabelecido, desafio que se impõe a cada vez. Desde o escrito sobre a carta roubada, Lacan (1957/1998) assinala a relação entre a letra e seu destino, mostrando a importância do destinatário. Com o estudo das psicoses (Lacan, 1955-56/2008), a recepção do testemunho torna-se condição de possibilidade de pactuação com aquilo que se apresenta para além do sujeito, fala que parasita o código ou mensagem enigmática que abisma. A partir da releitura do chiste freudiano, Lacan (1957-58/1999) mostra que a sustentação do pacto simbólico exige que as condições de enunciação sejam cumpridas para que a possibilidade de recepção do testemunho se efetue. O Outro da paróquia é pensado por Lacan como garantia para que a linguagem se estabilize, ou seja, é preciso que o Outro se institua enquanto ficcionalização necessária para que o dito espirituoso alcance sua função. Em outras palavras, um enquadre comum deve se produzir a cada vez para que o testemunho possa ser acolhido.
No seminário 11, o testemunho se desloca e com isso Lacan (1964/1985) acentua o papel da presença do analista, pensada enquanto aposta necessária e modo de atestar a perda, perspectiva que destaca o objeto a. O percurso de uma análise bordeja o vazio, a partir de restos, dejetos e fragmentos, marcas de uma ausência que se recolhem no percurso de recontagem de uma história.
No seminário 20 (Lacan, 1972-73/1985), a partir da teoria do enxame, a dimensão fragmentária da linguagem ganha novos contornos e situa a existência de algo na linguagem que se antecede ao sentido, mordendo o corpo e provocando efeitos de gozo. Com alíngua introduz-se a ideia de uma elucubração de saber como operação necessária, esforço de escrita que tenta incluir o estrangeiro na língua, operando para além do sentido. A escrita não interessa tanto pela construção de sentido, mas como via que permite que algo do gozo escoe, trabalho de redução que reenvia às ranhuras que sustentam uma existência.
É na operação com a letra que a psicanálise encontra pontos de aproximação com a escrita literária e, em particular, com a literatura de testemunho que inaugura um campo narrativo em que a escrita, ao carregar as marcas do exílio e do trauma, convoca a pensar a função do testemunho e as condições de sua recepção. Esse gênero literário pretende denunciar violências e cuidar para que acontecimentos catastróficos não sejam esquecidos, conservando, ao mesmo tempo, a impossibilidade de uma narrativa completa, total.
No trabalho analítico, o modo de operar com a letra implica a escuta/leitura daquilo que não se dá a ler e escapa às representações. Esse trabalho convoca a língua, rompendo suas convenções, em um movimento que se aproxima da manobra poética. A apropriação da língua é algo valorizado por Lacan (1971/2003), na perspectiva da dit-mansion: a constituição de uma morada para o dito é via de acesso às coordenadas mais básicas que sustentam a existência, em contrapartida, sua perda produz efeitos de desterritorialização.
A abordagem lacaniana da letra permite alcançar novos horizontes ao situar a importância de constituição de endereçamento, a letra como carta/mensagem e, ao mesmo tempo, lixo que precisa escoar (Lacan, 1957/1998) e a demarcação de uma via de ligação com o irrepresentável e com intraduzível (Lacan, 1975-76/2007). O ilegível da letra provoca a leitura, no sentido de suscitar um trabalho de tradução/interpretação, mas introduz também um desafio de leitura que exige transposição (Lacan, 1975-76/2007). Queremos ressaltar, com isso, que o trabalho entre línguas não apenas interessa à psicanálise, como coloca a linguagem em exercício e, com isso, favorece a ultrapassagem de fronteiras, podendo ocasionar o despertar tão buscado por Lacan.
O exercício com a linguagem ou prática linguajante, como sugere Mignolo (2008), pode, nesse sentido, viabilizar o trânsito entre línguas, produzindo novos enlaçamentos. Para Mignolo, a possibilidade de pensar e escrever entre línguas tende a ser eliminada pelas estruturas sociais dominantes, a junção entre língua e território sendo a estratégia praticada para naturalizá-la em um monolinguismo. A migração, na via oposta, pode embaralhar as línguas e alcançar o bilinguajamento como estilo de vida, modo de laço que favorece o pensamento dialógico, de fronteira, ao criar zonas intermediárias, híbridas.
Testemunho à Deriva
Felman (2000), autora que se dedica a pensar escrita, literatura, línguas e tradução, interroga-se sobre a função do testemunho e trabalha essa diferença a partir de uma análise das correspondências de Franz Kafka. Nascido em Praga no seio de uma família judaica falante de tcheco e alemão, em uma Europa tensionada por disputas políticas que culminariam na Segunda Guerra Mundial, Kafka elege justamente o alemão para a escrita de sua obra literária. Felman, debruçada sobre o livro de Elias Canetti que discorre sobre os efeitos da leitura da muitas cartas que Kafka escrevia à seus próximos, chega a uma distinção: “um ‘testemunho de vida’ não é simplesmente um testemunho sobre uma vida privada, mas um ponto de fusão entre texto e vida, um testemunho textual que pode nos penetrar como uma verdadeira vida” (p.14). Um testemunho que se refere ao encontro com um certo tipo de horror que exige o ato de testemunhar. Mas, também a partir da obra de Paul Celan, outro escritor judeu que faz a escolha semelhante de escrever em alemão alguns anos depois de Kafka, Felman prossegue indicando que se “ninguém testemunha pelas testemunhas (...) é porque “testemunhar (bear witness) é aguentar (bear) a solidão de uma responsabilidade e aguentar (bear) a responsabilidade, precisamente, desta solidão” (p.15).
Essa modalidade de testemunho se diferencia das obras de arte/literárias que narram acontecimentos históricos - e traumáticos - do nosso tempo. Trata-se de uma escrita que, como veremos, cumpre uma função para aquele que escreve, aproximando-se de uma prática da letra tal como formulada por Lacan. O desarraigamento se alinha a questões pertinentes para a prática psicanalítica e, embora não se constitua como um conceito próprio do campo, permite problematizar o trauma, a ausência de estofo simbólico para bordejá-lo e a solidão que a falta desta ancoragem pode provocar.
Voltando à poesia de Paul Celan, Felman (2000) a descreve como um “testemunho à deriva” (p. 51), escrita no desarraigamento. O autor vivenciou a perda dramática dos pais durante o regime nazista e enfrentou o horror da Shoah, vivendo anos de perseguições, incialmente pelos russos e, posteriormente, pelos alemães. Após a passagem por um campo de trabalhos forçados, passa por Bucareste, Viena e se instala, finalmente, em Paris. Trabalha com tradução, edição e se estabelece como professor de literatura alemã na École Normale Supérieure. Sua trajetória como poeta do exílio, segundo a definição de Auster (1975/2009), empreende um trabalho de escrita que, por meio da dor, da devastação da guerra e de sucessivos deslocamentos involuntários, se utiliza da ruína como fonte de inspiração e introduz o leitor em uma textualidade absolutamente singular e inédita.
Nesse sentido, Celan faz uso da escrita como forma de atingir/machucar a língua, manobra que subverte o corpo do texto e altera suas margens. O alemão, língua de seus algozes, é também língua ferida da qual Celan se serve para escrever durante a perseguição nazista, mas a publicação do texto só se dá quando vai para Paris, aproximadamente aos trinta anos. A utilização do alemão é desconcertante e revela um caminho árido, sem sombra, modo de enfrentamento radical do trauma e do horror. A língua que foi cooptada pelos nazistas, a alemã, é tratada de um modo muito particular por Celan, que a desestabiliza internamente. Com essa manobra, ele parece visar àquilo que não tem nome, o impossível de testemunhar (Auster, 1992).
O lugar inquebrantável da língua é salientado pelo escritor (Celan, 1996) em um famoso discurso em Bremem, durante premiação ocorrida na cidade no ano de 1958. Celan ressalta que o alemão se manteve à salvo, sobrevivendo à guerra e à devastação. Evidencia, assim, sua intenção de machucar a língua, fazê-la se mover, deixando uma ferida ao alterar sua gramática e semântica (Derrida, 2001). Conforme apontado por Barros (2009), em um de seus poemas, Celan faz uso da língua francesa, escrevendo Cicatricement, isto é, cicatrizmente, como nomeação daquilo que nunca se fecha em uma ferida e, ao mesmo tempo, sugere um trabalho inesgotável de cicatrização. O risco de aniquilação e de mortificação é constante e ronda, de maneira indelével, a sua obra. Como abordar o trauma quando a própria narração pode reconduzir ao horror?
Felman (2000) destaca que o gesto poético do autor se configura como uma mensagem que clama por endereçamento, como palavras encapsuladas lançadas em uma garrafa ao mar. Essa aproximação nos interessa porque, conforme apontaremos, o regaste de subjetividades em naufrágio introduz para a psicanálise o desafio de invenção de modos de recepção do testemunho que ajudem a contornar, bordejar o trauma. A poesia de Celan salienta a importância do lugar de escuta, como possibilidade de constituição de um destinatário que receba aquilo que se coloca entre línguas. Como recolher o esforço de tradução do impensável, inimaginável?
Ao escrever na língua do trauma e do perseguidor, Celan, por meio de uma subversão, efetiva a destruição da língua do opressor desde dentro. Mas, por outro lado, seu trabalho com a língua clama por destinatário, testemunho à deriva que itera em apelo, à espera de ancoragem. Encapsulando o excedente, Celan empreende travessia perigosa que se eterniza à deriva, em busca de ancoragem.
Deslinguar-se
A migração e o atravessamento de fronteira são estratégias cada vez mais presentes em nosso tempo. A proliferação da violência e a desvalorização da vida têm levado a uma busca por formas de viver alternativas, deslocadas. Inúmeros desafios se impõem para aqueles que deixam seu território de origem, muitas vezes em condições precárias, entre essas dificuldades destaca-se a necessidade de abandonar a língua materna e os costumes. Língua e território constituem-se como modo de habitação primordial, campo onde a linguagem se instaura e as palavras se assentam. Conforme veremos, perder a possibilidade de praticar cotidianamente a própria língua se refere ao que a escritora Sylvia Molloy chama de ficar deslinguado (Molloy, 2018). Além disso, tomar uma nova língua exige um esforço para fazer entrar aquilo que não marcou o corpo desde sempre, forçagem necessária que requer um abrir mão, dando passagem a um novo horizonte, constituindo nova morada para o dito. Exige assim convivência com aquilo que rateia, passando a comparecer na língua um sotaque que denota o estrangeirismo daquele que vem de fora.
Vale notar que Freud (1919) trabalha o fenômeno do estranho justamente a partir da análise linguística do termo alemão Unheimlich. Trata-se de uma palavra que desdobra uma série de significações até coincidir com sentidos opostos. Unheimlich [estranho] pode significar heimlich [familiar]. A partir da leitura que faz desse significante, Freud conclui que Unheimlich é aquilo que, de tão íntimo, torna-se estranho, alheio. Estranhamente familiar, outro dessemelhante que irrompe de súbito, despertando angústia e horror.
Ainda sobre a questão da língua, Sylvia Molloy trata em seu livro Viver entre línguas (2018) da origem do termo Shibboleth, indicando que esta palavra bíblica costuma ser utilizada como armadilha, forma de localizar a origem do estrangeiro. Utilizada na Tribo de Efraim, a pronúncia da palavra Shibboleth constituía-se como modo de revelação da presença de forasteiros inimigos, ressaltando a diferença intolerável da língua (Molloy, 2018, p.26). Pois o sotaque afinal delata, denuncia o falante (Ibid), indicando não ser dali por conta de sua pronúncia marcadamente infamiliar aos ouvidos de um nativo. O conflito territorial entre as tribos comparecia na pequena diferença, uma letra que no hebraico pode ser lida como ‘sh’ ou ‘s’ [shibboleth ou sibbolet] selava o destino daqueles que podiam ou não atravessar a fronteira vivos.
No texto bíblico, o termo aparece no original, não traduzido, apenas transliterado. A tradução literal fica suspensa indicando que não se trata da significação que está aqui em jogo, mas o uso da matéria sonora. A partir do modo como a palavra Shibboleth era vocalizada, a origem de quem a enunciava podia ser rastreada, o sotaque demarcando assim a separação territorial. Palavra senha que desenha uma fronteira na língua.
O poema Shibboleth, de Paul Celan, acentua o problema do estrangeiro, o acirramento da intolerância e a recusa à diferença. Ao evocar a resistência dos espanhóis republicanos contra a invasão franquista, acrescenta no texto, escrito em alemão, a expressão “No pasarán”, deixando-a sem tradução. À expressão em espanhol, junta-se o termo Shibboleth, em hebraico, no poema redigido em alemão: o uso das palavras estrangeiras aponta uma estratégia de não tradução, modo de descortinar o choque, a colisão entre as línguas, mas também descontinuidade e repetição do heterogêneo que emerge na história como limiar que separa, mas também aproxima. O poema evoca, assim, o não pertencimento de Celan, seu não lugar, e a radicalidade de sua condição errante.
A partir da discussão sobre tradução, testemunho e pós-colonialidade, Selligmann-Silva (2022) comenta que “um dos sentidos de Unheimlich” - significante freudiano para nomear os paradoxos da experiência do estranho -, “como o próprio Freud destacou, é o de unbehaglich (o que provoca mal-estar). Unbehagen significa também estar sem abrigo, sem moradia” (p. 138). A disseminação do projeto de desapropriação daquilo que um sujeito tem de mais íntimo foi prenunciado por Lacan (1970/1992), ao ligar o racismo ao movimento de aliança pela fraternidade de corpos.
Molloy concebe a experiência brutal do desarraigamento como um ficar “deslinguado” (2018, p. 11). Sair de um país não é apenas deixar uma casa, mas também implica em perder essa primeira morada que é a língua. Habitar uma língua requer um exercício que pressupõe parceria na diferença e implica um ato de inclusão como condição de participação. Nesse sentido, o fazer do psicanalista na atualidade pode ganhar nova roupagem destacando-se, em seu fazer que considera o intraduzível da experiência, uma estratégia que se soma a um esforço coletivo de reocupação da vida. A partir de novos letramentos, a releitura de nossas práticas clínicas se constitui como movimento decidido e implicado em uma luta antirracista e decolonial.
Nessa direção, a tarefa do analista se aproximaria a do tradutor na perspectiva de Benjamin (2011), como sendo aquele que rompe as barreiras apodrecidas de sua própria língua, ampliando suas fronteiras. E, ainda, ao fazer do poeta que, como assinala Derrida (2001) ao analisar a escrita de Celan, força a língua ao conservar aquilo que resiste à tradução para, nesse mesmo ato, deixá-la em carne viva e com isso fazê-la despertar. O texto sobrevive na medida em que demanda nova leitura, ainda que reste um caroço sempre intraduzido. Na experiência do inconsciente nem tudo é interpretável, a escrita que se desdobra no trabalho analítico não busca remontar a uma origem perdida, mas a uma reescrita do que resiste ao sentido; na língua, entre línguas. Resto perdido que ressoa.
Ir da história ao caroço é um procedimento que, como salienta Milner (1996) em seu livro A obra clara, toma o necessário “como cicatriz do contingente” (p.52) e exige a disposição de acompanhar a língua aos tropeços, em sua coleção de equívocos. Na dobradiça entre estranho e familiar, uma escrita se tece, sem perder de vista o traumático, como aquilo que não fecha naquilo que se escuta. Mas, como incluir o furo, troumatisme, no texto de um vivido, na escrita de uma vida? Ler com o translínguistico, grifando o movimento daqueles que estão à margem, dá pistas sobre a necessidade de reinvenção do lugar de escuta.
Repensar o local de enunciação requer uma operação de revisão acerca do modo de endereçamento hoje. A literatura de testemunho, mas também os escritos feministas, sobretudo aquele empreendido por autoras subalternas e negras, aponta para a necessidade de uma reconstrução do comum. Como fazer comunidade sem depender de ideais preestabelecidos? Como criar enlaçamento a partir daquilo que tropeça e não faz todo? O laço social, abalado pelo universalismo, soma-se à solidão contemporânea que, instigada pelo individualismo, dificulta a singularização. A articulação entre distintividade e comunidade se apresenta como desafio na atualidade e exige a invenção de modos de coletivização que incluam aquilo que singulariza. Estabelecer práticas que fomentem modos de pertencimento a partir da inclusão da diferença é tarefa premente em nosso tempo.
Escutar dando destaque ao modo de uso, aos artifícios pelos quais cada um assume uma língua como própria, acolhendo o sotaque e os rateios da língua pode ser o primeiro passo em busca de uma reterritorialização da vida. A escrita de Maria Lugones (2005) e de tantas outras mulheres de fronteira, clama e reivindica o direito a uma existência em trânsito, fazendo vibrar a língua em um fazer com a letra que é também modo de sobrevivência, ir e vir que subverte o regime universalizante e totalizador. Para aqueles que experimentam a “zona de não ser” (Fanon, 2008), o entre mundos se revela como estratégia de sobrevivência e lugar possível de habitar. Para Lugones (2005), a resistência é condição para a luta pela igualdade de direitos e deve acontecer em uma zona de fronteira e de desobediência epistêmica. A autora aponta com isso para um modo de laço que se dá por meio da possibilidade de parceria na diferença, como fundamento de uma comunhão testemunhal. Interrogar a colonização da linguagem é lugar de partida e condição de possibilidade de construção de uma prática inclusiva e respeitosa com a diferença, possibilitando que cada um encontre sua língua e estabeleça um modo de bem-dizer sobre aquilo que não tem língua.
A Psicanálise e a Prática D´Alíngua
No trabalho analítico, a leitura que opera toma como horizonte aquilo que resiste à interpretação. Ler a letra exige um esforço de operar na fronteira entre língua, saber e gozo. Nesse sentido, o desafio do migrante e a escrita literária podem vir a se aproximar daquilo que se escreve em uma análise no sentido de uma escrita que dá corpo à noção de litoral. No campo psicanalítico, a escrita faz margem, bordeja elementos heterogêneos, a partir dos acidentes que costuram uma história. Litoral e fronteira se distinguem: “não é a letra... , mais propriamente, ou seja, figurando que um campo inteiro serve de fronteira para o outro, por serem eles estrangeiros, a ponto de não serem recíprocos?” (Lacan, 1971/2003, p. 18).
Um trabalho analítico pode vir a inscrever formas de vida, convocando os analistas a encontrarem, entre bordas e fronteiras, novos enlaçamentos entre intenção e extensão que possibitem a sustentação na pólis de um lugar para o singular da diferença. A estabilização de uma estrutura de linguagem não se dá sem o transitar entre línguas, sendo condição para que esta permaneça viva. A insistência do real faz a psicanálise avançar e refazer a sua aposta a cada nova volta, reatualizando a discussão sobre o mal-estar e seus efeitos de segregação no contemporâneo. A prática com alíngua requer invenção e faz surgir o entre línguas em um fazer que a vivifica. Como indica Lacan (1975-76/2007), apenas imaginamos, supomos, que escolhemos a língua que falamos, quando na realidade, ao falar, “a criamos a cada instante” (p. 129). Língua é matéria viva.
O trânsito entre línguas fora notado por Freud desde seus primeiros textos, seja em comentários sobre casos da clínica ou experiências próprias como no mecanismo psíquico do esquecimento de um nome - Signorelli. Leitor de Freud, Lacan (1957-58/1999) afirma que, ao tomar a palavra, um sujeito em análise não muda de língua sem razão. A hipótese do inconsciente supõe que se saiba ler o que escapa ao sentido, o que resiste à tradução, mas que se faz ouvir na experiência analítica. O inconsciente é um saber que se articula neste trabalho de tomada da palavra endereçada, engendrando um discurso pela função desejo do analista. Lacan (1964/1985) define: “Nenhuma práxis mais do que a psicanálise é orientada para aquilo que, no âmago da experiência, é o núcleo do real” (p. 55).
Ler em psicanálise exige um passo de leitura que só pode se dar ao incluir aquilo que não se dá a ler. Lacan mostra que a leitura do sintoma implica em um “processo de escrita” (Lacan,1957b/1998, p. 446). No seminário 20, a suposição de o sujeito do inconsciente “sabe ler” ou pode “aprender a ler” (1985, p. 52) conecta a leitura ao escrito como algo que “não é (...) para ser compreendido” (Ibid. p. 48). É assim também que Lacan retoma seus Escritos, como texto não-a-ler, modo a partir do qual ressalta a importância de um esforço de leitura que inclua o ilegível. A letra é, portanto, “aquilo que da linguagem só se revela por escrito” (p. 63), isto é, “a nuvem da linguagem faz escrita” (p.163).
Uma análise enquanto prática d’alíngua remete a uma experiência costurada entre línguas, convergindo com a operação da letra que enlaça os registros psíquicos, desenhando uma borda que escreve o limite do dizer. Tomar o não pertencimento como lugar de origem, conduz à inevitável percepção de que somos seres de empréstimo. Se a linguagem é, de início, transtornada, interessa como cada um se vira com ela. Trata-se, então, de escutar dando destaque ao modo de uso, aos artifícios pelos quais cada falasser se assume enquanto língua própria.
A dimensão coletiva é fundamental para acolher modos de existência não conformes e viabilizar a construção de uma comunidade de testemunho que desdobre os efeitos da colonização da linguagem e abra passagem para o trânsito entre línguas. O translinguistico em psicanálise não visa o multilinguismo, mas a possibilidade de fazer com que cada um possa encontrar vias para habitar a língua. O processo de linguajamento é fundamental para que o falasser realize a leitura do mundo, que só pode acontecer a partir d’alíngua, sempre única.