INTRODUÇÃO
O Mutismo Seletivo (MS), é um transtorno de ansiedade que se caracteriza por uma incapacidade persistente que a criança apresenta de falar em situações específicas, nomeadamente sociais, nas quais existem expectativas de que a criança manifeste a fala (APA, 2014). De acordo com Peixoto, Caroli e Mariama (2017) o MS apresenta impacto negativo no âmbito intrapessoal e interpessoal, visto que a criança bloqueia a fala com pessoas do círculo familiar, inclusive mais nuclear, além de pessoas envolvidas em seu contexto educacional - local de maior manifestação do comportamento mudo. O MS é considerado um transtorno raro, com prevalência encontrada em menos de 1% da população, sendo sua incidência maior no sexo feminino e com idade de manifestação abaixo dos cinco anos de idade (APA, 2014; Peixoto, 2006; Oerbeck et al., 2018, Pereira et al., 2020). O diagnóstico normalmente acontece no período de entrada na escola, onde se espera que a criança fale com os outros, quando passa, então, a ser percebida sua recusa a falar e resistência a se comunicar (Diliberto & Kearney, 2016; Pereira et al., 2020).
Estudos que usaram análises correlacionais evidenciaram associação entre o MS e a inibição comportamental, e também com níveis elevados de sintomas de ansiedade social e outras perturbações de ansiedade (Muris, Hendriks & Bot, 2016; Lucas & Costa, 2021). O estudo realizado por Steffenburg, Steffenburg, Gillberg e Billstedt (2018), demonstrou que a ansiedade vivenciada pelas crianças com MS gera recusa à fala porque podem estar “paralisadas pelo medo”. De acordo com Peixoto e Zaneli (2014), a utilização de uma comunicação empobrecida, em que prevalece o uso de sinais não-verbais ou ausência total desta, gera carência no repertório básico de conduta no relacionamento com seus pares e adultos, e são características muito presentes no mutista. De acordo com as mesmas autoras, os portadores do MS apresentam padrões de fala variante e comunicação não-verbal típica, como acenar a cabeça, apontar/gesticular, ou mesmo não fazer contato ocular ou se movimentar. Estudos apontaram que os mutistas apresentam características de timidez e isolamento social (Peixoto, 2006; Muris et al., 2016). O temperamento tímido e retraído é uma característica marcante na personalidade de crianças avaliadas com MS (Kumpulainen, Räsaänem, Raaska & Somppi, 1998; Peixoto, 2006; Muris et al., 2016; Gensthaler et al., 2016) e, segundo Lara (2009, pg. 15), “o temperamento está ligado a sensações e motivações básicas e automáticas da pessoa no âmbito emocional”: é herdado geneticamente, regulado biologicamente e pode ser observado desde os primeiros anos de vida”. A etiologia do MS é tida como multifatorial, e é resultante da interação entre fatores, principalmente ambientais e genéticos (Peixoto, 2006; Rodríguez, Alcázar & Olivares, 2007; Lucas & Costa, 2021). Pelas condições citadas acima, o MS é considerado um transtorno resistente a qualquer tipo de tratamento, correspondendo melhor a intervenção comportamental ou cognitivo-comportamental (Østergaard, 2018).
Um modelo utilizado para explicar a manutenção do comportamento mudo fundamenta-se nos princípios da Teoria da Aprendizagem. E cogita a ideia de que os comportamentos (respostas) são mantidos por suas consequências, ou seja, a qualidade e magnitude da consequência dependerá do tipo e intensidade da resposta. Diante de estímulos que eliciem a fala, a criança pode ativar as emoções de medo, vergonha ou ansiedade, produzindo, em sequência, respostas de evitação ou fuga, e decide, neste caso, por evitar a fala ou interação (Peixoto, 2006; Østergaard, 2018; Pereira et al., 2020). Ao evitar/recusar a fala, a criança sente uma diminuição da ansiedade, obtendo uma sensação de controle sobre a situação experimentada. Contudo, tal processo serve como reforçador negativo para a manutenção do MS - o reforçamento negativo é uma estratégia que gera o aumento de uma resposta por meio do término da ocorrência de um estímulo aversivo, primário ou secundário (Rodríguez et al., 2007; Oerbeck et al., 2018).
A família, especialmente os pais/cuidadores, assumem um papel significativo na promoção da educação da criança, sendo os modelos e os maiores influenciadores de comportamentos exibidos pela criança, nomeadamente o comportamento social e a fala (Muris & Ollendick, 2015; Østergaard, 2018; Lucas & Costa 2021). É comum que pais de mutistas, ao verem os filhos se mantendo mudos após serem questionados por outras pessoas, responderem por eles, temendo que se sintam desconfortáveis ou expostos. Este comportamento por parte dos pais diminui a sensação produzida pela ansiedade, mas reforça o comportamento de evitamento da fala ao longo do tempo. O mesmo ocorre no ambiente escolar junto aos colegas, em sala de aula, quando os pares começam a falar pelo colega de classe que não fala - o que mantém o comportamento de mutismo na criança (Peixoto, 2006).
O MS pode interferir no desempenho educacional ou ocupacional da criança e tem efeitos significativos na vida acadêmica, no envolvimento em atividades extracurriculares, tarefas em pequenos grupos dentro ou fora da sala de aula, além de nas apresentações escolares (Peixoto, 2006; Pereira et al., 2020). Apesar do MS não estar associado a um prejuízo intelectual, algumas crianças, no estudo de Mitchell e Kratochwill (2013), foram consideradas atrasadas no ciclo escolar, ou como tendo habilidades reduzidas na decodificação de palavras e leitura oral, uma vez que não respondiam aos questionamentos de sala de aula para avaliação do conhecimento.
Importante ressaltar que o MS não pode ser atrelado a um desconforto ao falar ou a qualquer condição específica de atraso no desenvolvimento, como no Transtorno do Espectro Autista (TEA) (APA, 2014; Hua & Major, 2016). Porém, em alguns casos, observa-se dificuldade no diagnóstico diferencial entre o MS e TEA (Steffenburg et al., 2018). Para o diagnóstico do TEA é necessário que exista o comprometimento da linguagem e da comunicação: a manifestação desse sintoma revela-se na reciprocidade socioemocional deficiente onde há uma variação de abordagem social, entre anormal e com dificuldade, para o estabelecimento de uma conversa, bem como dificuldades no compartilhamento de interesses, emoções ou afeto (Silva & Elias, 2020).Ainda para o atendimento dos critérios para o TEA, a criança deve apresentar deficiência em seus comportamentos comunicativos não verbais usados para interagir socialmente, tais como contato visual, linguagem corporal, déficit na compreensão, uso de gestos e ausência de expressões faciais.A forma como se relaciona também é afetada, pois apresenta déficit para desenvolver, manter e compreender relacionamentos de uma forma geral e apresenta uma dificuldade no ajuste entre o comportamento adequado para determinado contexto social. Sobre a maneira de brincar, os portadores de TEA, dependendo do nível, se mostram desinteressados em compartilhar atividades lúdicas com seus pares, fazer amizades e interagir em brincadeiras imaginativas, diferentemente dos portadores de MS, que preservam suas interações de lazer com amigos, mesmo que não exiba a fala com eles (Cordioli, Kieling, Silva, Passos & Barcellos, 2014; Pérez e Martínez, 2015). No estudo realizado por Steffenburg et al., (2018) com um grupo de crianças com MS e TEA, estavam mais frequentemente presentes a falta de habilidades sociais/interesse social e a recusa em falar, que refletia uma recusa teimosa/obstinada ao invés de timidez. Esse estudo relatou que princípios de intervenção no TEA (como preparação para novos eventos, suporte visual para a estrutura diária e tornar as atividades diárias previsíveis) e o conhecimento dos problemas de comunicação observados no TEA (que sempre incluía prejuízos no uso social da linguagem) foram benéficos para o grupo comórbido de MS e TEA.
RELATO DO CASO: DESCRIÇÃO GERAL DO PROBLEMA E CARACTERÍSTICAS DO PACIENTE
Este relato de intervenção descreve o processo de avaliação e intervenção terapêutica e medicamentosa para tratar os sintomas do MS em uma criança portadora do TEA. Trata-se de um menino de oito anos de idade, que denominaremos como B., morador na cidade do Rio de Janeiro, estudante do 4º ano escolar e que, segundo os pais, até os 4 anos de idade falava com as pessoas normalmente, embora sempre marcado pela timidez e retraimento social. A anamnese realizada com a mãe no início do tratamento revelou que o filho falava apenas com os pais, a irmã de quinze anos e a empregada doméstica. Este não se expressava oralmente com pessoas do e no ambiente escolar, apesar de brincar normalmente com seus pares; não demonstrava iniciativa para interagir ou solucionar problemas; evitava qualquer tipo de exposição e não participava de nenhuma atividade escolar utilizando comunicação oral.
O paciente passou por um tratamento psicológico aos seis anos de idade e, após um ano e dois meses de intervenção, o tratamento foi interrompido por seus pais pois não obteve avanços significativos em torno da aquisição da fala, melhora da ansiedade/vergonha ou do comportamento de fuga das situações sociais. A família não soube informar a abordagem psicoterapêutica seguida no tratamento relatado.
Na primeira escola frequentada pelo paciente, aos dois anos, na pré-escola, chegou a falar pouco, mas após os 4 anos parou de falar e foi notória a regressão no comportamento motor e falta de entusiasmo para estudar ou frequentar a escola. Após esse período, mudou de escola e começou a demonstrar que gostava do novo ambiente, começou a se comunicar de forma não-verbal, através do olhar, gestos e, às vezes, por leitura labial. Com os amigos, brincava fazendo sons.
Desde a primeira sessão neste processo de intervenção terapêutica, B. falou com a terapeuta e relatou não se sentir feliz nem à vontade na escola, sentir medo. B. demonstrou temperamento de teimosia e resistência frente à possibilidade de se comunicar, pois relatou, por algumas vezes, que falaria com as pessoas quando quisesse.
PROCESSO DE AVALIAÇÃO
O processo de intervenção terapêutica teve duração de 96 sessões, com uma duração média de dois anos, sendo um ano antes do período de pandemia e um durante a pandemia, com frequência de uma vez por semana, com sessenta minutos de duração. Importante ressaltar que as sessões antes da pandemia foram realizadas, preferencialmente, na casa do paciente, modelo de intervenção indicado para eliciar a fala do paciente quando se trata de MS (PEIXOTO, 2006). As sessões no período de pandemia foram realizadas de forma remota, utilizando-se um computador para interação com a família e paciente. A intervenção foi baseada nos pressupostos da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC).
No início do tratamento foi solicitada uma avaliação psiquiátrica, devido ao tempo de manifestação do MS; pela manifestação de comportamento de ansiedade e um padrão rígido e inflexível na interação, principalmente verbal; obstinação extrema com texturas e aparência da comida, bem como obstinação de restrição alimentar. Por conta do TEA, B. exibia padrão inflexível, seletividade alimentar, rituais, e persistência de um mesmo padrão na forma de brincar, não compreensão de metáforas e piadas. Após avaliação médica, a psiquiatra, além de ratificar o diagnóstico para o MS, constatou-se que B. era portador do TEA, com sintomas leves. Então a psiquiatra adotou um protocolo medicamentoso com um ISRS - Inibidor Seletivo da Recaptação da Serotonina - denominado fluoxetina, na dose de 20 mg/dia.
O processo de conceitualização do caso teve a duração de quatro semanas. Este processo abarcou entrevista de anamnese da história pregressa do paciente e da relação com seus familiares, reunião com a orientadora educacional do Núcleo Pedagógico do Fundamental I e com as professoras da escola, bem como duas sessões com o paciente. Foi possível elaborar uma análise funcional, que incluiu investigação do temperamento, tipos e formas de vínculos afetivos, análise de prontidão para o engajamento na terapia, levantamento dos aspectos emocionais e comportamentais preestabelecidos, internalizados e reforçados. Foram utilizados como parte da avaliação e delineamento do padrão de funcionamento de B. os seguintes instrumentos: escala de avaliação do comportamento mudo infantil para o professor, no intuito de medir o tipo e o nível do mutismo (Peixoto, 2006); escala de stress infantil – ESI (Lucarelli & Lipp, 2005), com o objetivo de avaliar a possibilidade de manifestação de stress; coletando informações para avaliação com a escola (Peixoto, 2006) – pretendendo levantar informações sobre as relações escolares do paciente; escala de avaliação do comportamento mudo infantil para os pais e questionário “Como estou me sentindo”, visando obter informações sobre possíveis sentimentos e emoções (Peixoto, 2006).
As sessões iniciais visaram também o estabelecimento de vínculo com o paciente dentro do contexto apresentado - meta que se mostrou desafiadora. Nas brincadeiras, gostava sempre de jogos com níveis altos de dificuldade, pois brincadeiras de sua faixa etária nunca o motivavam. Esse fator foi um grande instigante para a terapeuta, pois não conseguia trabalhar com jogos imaginativos e ludicidade típicos para a idade. Dessa forma, a terapeuta priorizou jogos de alta complexidade nas respostas, em que B. pudesse manifestar sua inteligência.
Os resultados obtidos após a avaliação inicial e que permitiram a construção da conceitualização do caso constataram comportamentos em sala, sem emissão de som oral em aula com o professor e alunos; presença de poucos gestos corporais para se comunicar; comunicação razoável por olhares; não utilização dos amigos para fazer pedidos e ausência de contato corporal; participação em algumas atividades, mas de forma individual; demonstração de timidez excessiva e medo. No campo do temperamento foi destacada a timidez, com presença de tristeza e um padrão extremamente observador.As respostas obtidas evidenciaram que, na escola, apesar de interessado e participativo, B. procurava se comunicar sem emitir som. Os professores relataram perceber um incômodo por parte de B, pelo fato de não falar e pelo engajamento muito maior em uma atividade específica, como jogos de construção. Para diminuir o impacto da falta de comunicação, ultimamente a escola vinha intensificando comunicar-se com B. através da escrita, mas ainda não tinham obtido sucesso. B. relatou para a mãe, em alguns momentos, que não falava na escola porque tinha vergonha da sua voz e não sabia como as pessoas reagiriam caso começasse a conversar com elas. Numa das sessões com a terapeuta, escreveu três causas para não falar com as pessoas e a vergonha da voz apareceu como uma das opções.
INTERVENÇÃO TERAPÊUTICA E EVOLUÇÃO DA FALA
B. apresentou muita resistência no início do tratamento, comportamento comum já indicado nas publicações sobre o tratamento de crianças portadoras de MS (Peixoto, 2006; Rodríguez et al., 2007; Oerbeck et al., 2018; Pereira et al., 2020): esquivou-se de fazer referência às emoções ou questões pertinentes ao seu comportamento, sempre se retraía durante as sessões. Nos primeiros encontros a comunicação ocorria somente de forma não-verbal (através de alguns gestos, desenhos e escrita). Por conta desse fator, foram introduzidas atividades com pouca exigência de comunicação verbal. As sessões aconteceram na casa de B. e com a presença da mãe durante todo o período da sessão (Peixoto et al., 2019; Peixoto, 2006), e logo foi percebido que B. sentia-se mais confortável para se engajar nas tarefas com a participação de sua mãe. Para eliciar a fala com a terapeuta - visto que o paciente não falava com ela - e diminuir a ansiedade nas sessões, foram introduzidas as técnicas do desvanecimento do estímulo, em conjunto com a exposição gradual e o reforçamento positivo, indicadas no protocolo de tratamento validado para os portadores de MS na tese de Peixoto, 2006. O desvanecimento do estímulo é uma técnica comumente utilizada no MS e refere-se à introdução gradual de uma pessoa (estímulo) que a criança não discrimina bem (não consegue verbalizar), na presença de estímulos que ela discrimina (como os pais e o ambiente do lar). É um procedimento comportamental que, utilizado com a exposição gradual dos estímulos temidos (como falar), gera habituação. O esquema de reforçamento positivo utilizado inicialmente foi o contínuo – sempre que o paciente emitia algum tipo de comportamento que evidenciasse sua aproximação com a comunicação verbal, e posteriormente, quando já havia eliciado a fala com pessoas importantes do círculo familiar e escolar, foi introduzido o esquema de reforçamento intermitente por razão variável, entendendo que esse esquema seria mais eficaz na manutenção da fala. Segue a descrição mais detalhada sobre aplicação dessas técnicas para eliciação da fala em B.: na sessão inicial, B., o pai e a mãe ficaram na sala sozinhos e se envolveram em uma atividade que B. gostava e se comunicaram verbalmente. Uma vez que B. já estava envolvido na tarefa/jogo de Minecraft (escolhido pelo paciente) e respondia de forma consistente aos pais, a exposição gradual à terapeuta foi iniciada - a profissional encontrava-se posicionada no corredor da casa, próximo à sala e foi se locomovendo gradualmente até a presença deles -, após comando verbal dos pais, quando sentiram que B. estava se sentindo menos desconfortável com a presença dela no ambiente, a terapeuta aproximou-se mais da presença deles. À medida que B. conseguia sustentar a fala, suportando a aproximação e mantendo a mesma comunicação verbal com os pais, manteve, também, o volume de sua voz, a terapeuta de aproximava e participava do diálogo entre eles. Em alguns momentos, quando verificada uma diminuição da comunicação verbal pelo paciente, a terapeuta interrompia a tarefa/jogo e perguntava a B. se estava muito ansioso com sua aproximação, utilizando o termômetro da ansiedade, verificando o nível desta para a continuidade ou interrupção da técnica naquela sessão. Em cada sessão, a terapeuta iniciava a aproximação gradual do local onde interrompeu na sessão anterior. Quando B. interrompia a comunicação com os pais, ou diminuía o volume a tal ponto de não conseguirem ouví-lo devido à aproximação da terapeuta - posto que no combinado inicial o sussuro no ouvido não era permitido - então, voltava-se ao passo anterior para que B. pudesse retomar o status da comunicação anterior e a sessão finalizava naquele momento. Em alguns momentos da sessão, quando a terapeuta percebia que o paciente estava menos ansioso, a mãe gradualmente solicitava o envolvimento da terapeuta com a atividade, e depois se retirava do ambiente, até que B. continuasse engajado na atividade sozinho com a terapeuta (fase final almejada). Foram realizadas oito sessões utilizando esse formato. Na sessão de número 6, a terapeuta já conseguia envolver-se na atividade/ jogo com a família e B. falava normalmente na presença dela. Estas sessões aconteceram nos dois meses que antecederam o início do processo pandêmico por Covid-19.
Iniciada a fala com a terapeuta no segundo trimestre, foi possível observar avanços em tarefas motoras no contexto escolar, como ir a um brinquedo de “pula-pula”, permitindo-se brincar mais de forma mais “solta” na escola com os colegas, bem como participar de passeios escolares e, também, de sessões externas com a terapeuta em locais do seu interesse, como em um evento de apresentação de dinossauros. Também conseguiu iniciar uma chamada de vídeo com o primo que mora em outro estado, falando em tom baixinho e contido.
No terceiro trimestre houve uma evolução no contexto escolar e, por vontade própria, quis tocar um instrumento numa apresentação da escola. Ainda não conseguia se comunicar verbalmente de forma fluente com a terapeuta sem a presença da mãe nas sessões, mas já emitia uma comunicação por leitura labial e permitia que a terapeuta escutasse a sua voz sussurrando. Iniciou envio de áudios e vídeos para a terapeuta e para a médica psiquiatra que o acompanhava. Neste momento, B. apresentou uma transição no estágio da comunicação, iniciando e respondendo conversas com a terapeuta e colegas, com emissão de sons, grunhidos ou sussurros. Como tarefa de casa, recebia amigos em casa e utilizava a forma de se comunicar acima descrita com eles, permitindo que ouvissem-no ao falar com o pai.
No quarto trimestre do tratamento, aconteceu outra passagem importante na comunicação de B. e, por orientação terapêutica, passou a se comunicar verbalmente com os avós por chamadas de vídeo, respondendo de maneira curta e direta. A técnica da exposição gradual foi feita até o passo das chamadas de vídeo. Foi realizada uma sessão avaliativa do tratamento até aquele momento com o paciente. Nesta sessão foram compartilhados os seguintes pontos: todos os avanços após o início do tratamento; o papel da terapia em sua vida; o que se pretendia como objetivos na intervenção até o final do tratamento para o mutismo; e a disponibilização de um plano para o tratamento que, posteriormente, foi assinado pelo paciente como uma forma de contrato entre ele e a terapeuta. Neste, ficava estabelecido que as algumas sessões seriam realizadas com e sem a presença dos pais. B. evoluía sorrindo de forma mais expressiva, já estabelecia contato visual e demonstrava vínculo afetivo, fastos estes que possibilitaram a redução considerável do desconforto e da ansiedade na presença da terapeuta. Ficou evidente que o fato de o paciente apresentar TEA dificultou o manejo terapêutico de algumas técnicas, devido ao padrão inflexível com mudanças e quebra de rotinas. O tempo esperado para o resultado de aplicação das técnicas foi maior. Contudo, B., ao final do primeiro ano de tratamento, iniciou a comunicação verbal com a terapeuta, permitindo que ela participasse dos jogos em família e respondendo-a de maneira curta e direta.
ADAPTAÇÃO PARA SESSÕES ON-LINE POR CONTA DA PANDEMIA
No quinto trimestre de terapia irrompe o início da pandemia de Covid-19. Tal acontecimento impossibilitou o início da próxima fase do tratamento que, de acordo com a formulação para o caso, ocorreria no contexto escolar e de forma presencial. Dessa forma, adaptações importantes precisaram ser realizadas para a manutenção do tratamento, preservando-se os ganhos terapêuticos. Foi então proposto a B. e sua família um novo formato de intervenção, entendendo que, devido à complexidade do momento pandêmico mundial, não teríamos a possibilidade do formato presencial dos encontros, mas estes poderiam ocorrer em forma de terapia on-line. A família consentiu, a escola de B. também foi se estruturando para dar início às aulas on-line, B. estava muito resistente e desestimulado com esse formato e quase não participava - não ligava câmera e nem áudio durante as aulas -, entregando somente os exercícios solicitados, sem quase nenhuma participação no chat. As sessões de psicoterapia no formato on-line, foram iniciadas na plataforma de videoconferências Zoom Meetings.
Desejando a manutenção de todos os ganhos ocorridos presencialmente na casa de B., as quatro sessões iniciais via formato on-line, através do computador, visaram o desenvolvimento de tarefas lúdicas com a participação dos pais e foram concluídas com sucesso. As sessões foram temáticas e envolviam tarefas que B. sugeria. Seus pais e a irmã atuavam nas sessões de forma ativa (permaneciam na tela do computador junto com B. e em conexão com a terapeuta). Após o início das sessões on-line, B. manteve a comunicação verbal com a terapeuta e, ao final da quarta sessão on-line, evoluiu para um novo estágio da comunicação verbal, iniciando conversas de forma curta e direta. Paralelo a isso, a terapeuta já havia solicitado aos pais que iniciasse contato de forma gradual com os avós e, neste momento, a terapeuta também indicou a expansão dos contatos on-line com a tia materna. A terapeuta propôs que a tia e a avó participassem das sessões juntamente com os pais e a irmã de B, com o objetivo de fazer a exposição de B. à comunicação verbal na presença de outras pessoas nas sessões, mantendo os ganhos da comunicação com a avó e com a tia, objetivando a generalização dos ganhos verbais e comportamentais para as aulas no formato on-line.
Na sessão com participação dos pais, da avó, da tia, das professoras e de duas colegas, B. escolheu uma brincadeira que os participantes deveriam adivinhar o desenho de cada um. A sessão transcorreu com sucesso e, na sessão seguinte, a terapeuta já tinha combinado com B. que os familiares já não estariam mais presentes, as professoras também seriam liberadas e seus pais estariam no início da sessão, em outro cômodo da casa, e sairiam vinte minutos após o início da sessão, permanecendo apenas a terapeuta, B. e os quatro colegas convidados. Dessa forma aconteceu, com desfecho positivo - pois conseguia iniciar a fala com todas as pessoas escolhidas.
A próxima etapa do tratamento para eliciação da fala foi aproximar B. dos colegas da escola. Para isso, foram replicadas as técnicas de exposição gradual, reforçamento positivo e desvanecimento do estímulo para pessoas. Algumas metas foram traçadas conjuntamente com o paciente: envio de áudios para parabenizar os amigos pelos seus aniversários, envio de áudio para uma de suas professoras cumprindo uma tarefa escolar e dar permissão para que seus colegas da escola ouvissem seus áudios. Nesta fase do tratamento B. Evoluiu no contexto escolar, comunicando-se via chat e, de forma mais participativa, interagiu com os colegas e professora. Já adotava uma postura completamente diferente do início das aulas on-line, quando mal respondia a professora via chat, reclamando todo o tempo daqueles momentos de aula no formato estabelecido para o contexto da pandemia. A esta altura, já respondia aos colegas de classe nas aulas, mantendo-se muito participativo.A utilização de recursos tecnológicos, aplicativos multiplataformas como WhatsApp, se mostraram bem eficazes para eliciação da fala do paciente em alguns contextos.
Para o processo de eliciação da fala na escola, foi combinada a abertura da câmera de forma gradual, diariamente, até que conseguisse alcançar o estágio de câmera ligada fulltime durante as aulas. Em uma apresentação em aula, tocou ao vivo um instrumento musical chamado escaleta, concluindo com sucesso os avanços do quinto trimestre. A professora de produção textual, então, solicitou a leitura de um texto da turma e ele gravou um áudio lendo o material e autorizou a professora a compartilhar com a turma.
Foi possível, com o consentimento de B, convidar as professoras e equipe escolar a entrar nas sessões on-line, visando a comunicação verbal nas aulas remotas. B. iniciou as aulas em abril de 2020, sem ligar áudio ou câmera e utilizando o chat com restrições. Após a entrada das professoras e utilização das técnicas de intervenção, B. foi ligando a câmera aos poucos, a cada dia, até abrir o áudio também. Nesta fase do tratamento foram introduzidas as três professoras de B., de forma gradual, e ele conseguiu se comunicar verbalmente com elas. As professoras compareceram em três sessões cada uma, nas quais, na terceira sessão de despedida de cada uma, ficava a anterior e a que assumiria o papel nas próximas sessões. A cada terceira sessão, haviam duas professoras do B. nesse momento da terapia, a avó, a tia e os pais, visando também a permanência nas sessões de várias “telinhas” na chamada via Zoom.
B., então, torna-se cada vez mais ativo e participativo nas tarefas escolares e participou, também, de uma amostra na sua escola, lendo uma carta para uma amiga que ele escolheu, no formato de vídeo, trabalho este que foi disponibilizado no canal do Youtube da escola.Após a consolidação da comunicação verbal com as professoras, foi combinado que a próxima etapa do tratamento envolveria a entrada de duas colegas da escolha de B. para participar das sessões. B. conseguiu generalizar a fala para a sala de aula virtual, com todos os seus colegas de classe e finalizou o ano conversando normalmente em sala de aula, apresentando seus trabalhos e até mesmo contando piadas.A figura 1 abaixo demonstra os ganhos feitos pelo paciente.
Figura 1 - Evolução do paciente B ao longo do tratamento.
Por orientação terapêutica, B. manteve contato, também por chamadas de vídeo, com os familiares e amigos; já atendia aos porteiros do prédio e também já falava com o dentista que sempre o atendeu, mas com quem nunca tinha trocado uma palavra. B. também se encontrou com a avó e seu tio presencialmente, conversou normalmente, interagindo com ambos. Para observar se o paciente manteria os ganhos de comunicação oral com a terapeuta, foi combinada uma sessão no playground do condomínio de B., mantendo o protocolo de segurança contra a Covid-19, e, para chancelar a generalização, ele falou e interagiu normalmente. B., ao final do ano escolar, em caráter remoto, comunicou-se em encontros com todos os seus colegas de escola e outros mais, criando salas para jogar com os amigos e ganhou um celular de presente para manter suas relações.
Sobre as consultas com a médica psiquiatra, a terapeuta propôs que ela participasse de algumas sessões on-line, almejando a comunicação verbal com B., pois o paciente não falava com a psiquiatra nos atendimentos. A psiquiatra participou de três sessões on-line: na primeira, participou da tarefa/ ferramenta terapêutica com B., que manteve a comunicação verbal com todos normalmente; na segunda sessão, fora combinado que B. Responderia a três perguntas já previamente trabalhadas através da técnica de roleplaying e, na sessão, tudo aconteceu conforme combinado, tendo a participação ativa de B e; na terceira sessão, que durou vinte minutos, o objetivo foi o de consolidar os ganhos das últimas sessões. No sétimo trimestre do tratamento, B. precisava passar pela consulta com a psiquiatra e as perguntas que a psiquiatra faria foram combinadas previamente e, na consulta on-line, surpreendentemente, além de responder perguntas necessárias à avaliação da psiquiatra, fez perguntas e estabeleceu considerável interação. Como precisou sair da aula mais cedo para participar da consulta, ele comunicou aos amigos e à professora, no chat, que se ausentaria mais cedo, por causa da consulta. Além de se despedir no chat, falou “ tchau” para a turma pela primeira vez – evidenciando a generalização de ganhos apresentados em outros encontros no contexto terapêutico. A generalização aumenta a probabilidade de ocorrência da resposta da fala, na presença de estímulos que tenham características semelhantes ao estímulo discriminativo, mantendo o novo comportamento e gerando o alargamento do senso de autoeficácia do paciente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O resultado das intervenções neste caso corroborou com estudos nacionais e internacionais, indicando que a utilização de técnicas da TCC são eficazes e eficientes para o tratamento do MS, principalmente quando se insere a família e profissionais da escola no delineamento do tratamento. O formato de intervenção on-line também se mostrou relevante, gerando resultado de eliciação e manutenção da fala em diferentes ambientes e na presença de diferentes pessoas, provavelmente por facilitar o controle pelo paciente das variáveis que geram medo, vergonha e ansiedade na exposição social.
Foi possível observar, a nível comportamental, que estratégias como gestão de contingências, reforçamento positivo, modelagem, treino de habilidades sociais, dessensibilização sistemática e, principalmente, desvanecimento de estímulo para pessoas e locais foram fundamentais para eliciação da fala com diferentes pessoas e contextos durante o tratamento.