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Arquivos Brasileiros de Psicologia

 ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.61 n.1 Rio de Janeiro abr. 2009

 

ARTIGOS

 

Da intuição como método filosófico à cartografia como método de pesquisa - considerações sobre o exercício cognitivo do cartógrafo

 

From the intuition as philosophical method to the cartography as research method - considerations on the cartographer's cognitive exercis

 

 

Fernanda AmadorI; Tânia Mara Galli FonsecaII

IUniversidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Rio Grande do Sul, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto discute a cartografia, uma prática geográfica de acompanhamento de processos em curso que, mais do que de um traçado de percursos históricos, ocupa-se de um campo de forças no seio mesmo dos estratos. Proposto enquanto caminho errante por Gilles Deleuze e Félix Guattari, a cartografia se oferece como trilha para acessar aquilo que força a pensar, dando-se ao pesquisador, como possibilidade de acompanhamento daquilo que não se curva à representação. Entendendo que o método cartográfico convoca um exercício cognitivo peculiar do pesquisador - uma vez que, estando voltada para o traçado de um campo problemático, requer uma cognição muito mais capaz de inventar o mundo do que de reconhecê-lo -, buscamos elementos para essa discussão em uma interlocução com Henri Bergson quando se dedica a pensar a respeito da intuição como método.

Palavras-chave: Cartografia; Cognição; Pesquisador.


ABSTRACT

This text discusses the cartography, a geographical practice of attendance of processes in course which, more than a delineating plan of historical courses, it is in charge of a field of forces in the core of the strata. Proposed as wandering way by Gilles Deleuze and Félix Guattari, the cartography offers itself as trail to access that which forces to think; to that which forces to move practices, subjectivities and worlds going in the pursuit of the event and giving itself to the researcher, as attendance possibility of that which does not bend to the representation. Understanding that the cartographic method convokes a peculiar cognitive exercise of the researcher - once being turned to the plan of a problematic field, it requests a cognition much more capable of inventing the world, that of recognizing it -, we looked for elements for that discussion in a dialogue with Henri Bergson when he is devoted to think about the intuition as method.

Keywords: Cartography; Cognition; Researcher.


 

 

Este texto discute a cartografia, uma prática geográfica de acompanhamento de processos em curso que, mais do que de um traçado de percursos históricos, ocupa-se de um campo de forças no seio mesmo dos estratos. Proposta enquanto caminho errante por Deleuze e Guattari (1995)1,a cartografia se oferece como trilha para acessar aquilo que força a pensar, dando-se ao pesquisador, como possibilidade de acompanhamento daquilo que não se curva à representação.

Entre sua definição enquanto método e a recusa a qualquer pretensão de sê-lo, a cartografia apresenta-se como procedimento de pesquisa que exige do pesquisador posturas específicas. Convoca-o para um exercício cognitivo peculiar, uma vez que, estando voltado para o traçado de um campo problemático, requer uma cognição muito mais capaz de inventar o mundo. Trata-se de uma invenção que somente se torna viável pelo encontro fecundo entre pesquisador e campo pesquisa, pelo qual o material a pesquisar passa a ser produzido e não coletado, uma vez que emerge de um ponto de contato que implica um deslocamento do lugar de pesquisador como aquele que vê seu campo de pesquisa de um determinado modo e lugar em que ele se vê compelido a pensar e a ver diferentemente, no momento mesmo em que o que é visto e pensado se oferece ao seu olhar.

Por isso, traçamos questões a respeito da peculiaridade do processo cognitivo implicado na pesquisa cartográfica, o qual parece sintonizar-se sobretudo com a dimensão inventivo-intuitiva da cognição abordada por Bergson, antes que com a esfera da inteligência, aspectos esses sobre os quais discorreremos ao longo deste artigo.

Para tanto, buscamos elementos no pensamento de Bergson (1984), especialmente em seu texto publicado na Coleção Os Pensadores, intitulado ''O pensamento e o movente'', e de Deleuze (1999) sobre Bergson, publicado na obra O bergsonismo. É no conceito de intuição e, mais especificamente, em suas formulações sobre esta enquanto método que nos detemos, devido à potência que aí julgamos existir para nos possibilitar refletir a respeito do tema aqui proposto: o exercício cognitivo do cartógrafo.

 

A INTUIÇÃO COMO MÉTODO: PASSAGENS PELO PENSAMENTO DE BERGSON

Bergson (1984), no texto ''O pensamento e o movente'', inicia suas reflexões perguntando-se a respeito da ciência, para daí derivar para o campo filosófico. Comportando a primeira uma precisão absoluta e uma evidência completa e crescente, pergunta se se poderia dizer o mesmo das teorias filosóficas. Não, logo responde, pois a ciência trata o tempo como se ele já tivesse passado, o que lhe confere o poder de prever o que virá. Assim, ela extrai e retém do mundo material o que é suscetível de se repetir e de ser calculado; conseqüentemente, o que não dura.

Já com essa primeira reflexão, Bergson introduz, no coração das discussões sobre a ciência, a dimensão do tempo. Para ele, o tempo enquanto duração é eliminado da cena pela ciência por um processo de imobilização atingida por pretensão e esforços de agarramento, de encravação das unhas em uma matéria, que, embora fluente, se acomodaria nos contornos das mãos de quem pretende detê-la.

Como, então, tangenciar o tempo que escapa? Certamente, não por agarramento, mas por apalpamento, por toque, por sensibilidade. Por uma determinada atenção que se fixa no que escorre, atenção esta que nos parece sintonizada com a intuição enquanto esfera do trabalho cognitivo, muito mais do que com a esfera da inteligência.

A respeito dessa última, diz o filósofo:

A inteligência retém apenas uma série de posições: um ponto primeiramente atingido, depois outro, depois outro. Objeta-se ao entendimento que entre esses pontos se passa qualquer coisa? [...] Nossa ação apenas se exerce comodamente sobre pontos fixos; é, então, a fixidez que nossa inteligência busca; ela se pergunta onde o móvel está, onde o móvel estará, onde o móvel passa. Mesmo se ela nota o momento da passagem, mesmo se ela parece então interessar-se pela duração, limita-se a constatar a simultaneidade de duas paradas virtuais: parada do móvel que ela considera e parada de um outro móvel cujo curso, supõe-se, seja o do tempo. Mas é sempre a imobilidades, reais ou possíveis, que ela se relaciona (BERGSON, 1984, p. 103).

A inteligência, no pensamento bergsoniano, busca a fixidez, fazendo coincidir movimento com imobilidade. É do tempo cronológico que sucede, portanto, que ela se ocupa, ao invés do tempo crônico, aquele que, enquanto simultaneidade contraída, amalgama passado, presente e futuro, tangenciado, especialmente, pela intuição. Desviando o olhar da transição, a inteligência dá conta de certa organização do pensamento e das ações, captando a mobilidade apenas a partir de pontos de ancoragem, em lugar de aceder, como faz a intuição, à mobilidade desde zonas de passagem nas quais jorra a novidade e nas quais o tempo dura em um processo incessante de diferenciação.

A intuição figura, então, diferentemente da inteligência, como via cognitiva para essa esfera de passagem para a duração, tendo sido em virtude dessas considerações que Bergson fez da intuição um método filosófico. A intuição como método é obstinada pela mobilidade, pelo insólito, pelo efêmero.

Visando a apreensão de uma certa sucessão, cujo procedimento não se faz por justaposição e sim por uma espécie de crescimento por dentro, de prolongamento e em uma interpenetração transversa2 entre passado, presente e futuro, a intuição mostra-se como via de acesso a um plano de transpasse, de transformação, de recombinação e de deslocamento. Opera como via para uma zona de transição, como o próprio Bergson anuncia em seu texto, e à qual a inteligência recusa seu olhar.

Intuição significa, primeiramente, consciência imediata, visão que quase não se distingue do objeto visto3,diz Bérgson (1984). Ela é aquilo que atinge o espírito, a mudança, a duração, a mudança pura. Para a intuição, o essencial é a mudança e sua captação prescinde de qualquer linguagem, pois os conceitos e as idéias que dela derivam começam obscuros, não importando qual seja nosso esforço de pensamento. Isso porque a ''clareza'' que dela se origina se refere a uma idéia radicalmente nova que permite vislumbrar que pensar intuitivamente é pensar na duração. Por assim ser, é impossível reconstituí-la por elementos preexistentes capazes de oferecer uma certa ordem, como o faz a inteligência, pois a intuição assume ares de incompreensível, lançando ao abismo aquele que a exerce.

Deleuze (1999) incursiona pelo pensamento de Bergson sistematizando algumas de suas idéias a respeito do método intuitivo. Nesse percurso, destaca que a intuição não é um sentimento em uma inspiração, ou uma simpatia confusa, mas um dos mais elaborados métodos da filosofia. Já pressupondo a duração, a intuição é, para Deleuze, segunda em relação à duração ou à memória, consistindo em uma via para sua apreensão, assim como, também, para apreensão do impulso vital.

Logo nas primeiras páginas do capítulo intitulado ''A intuição como método'', Deleuze (1999) pergunta-se sobre como pode a intuição, que designa antes de tudo um conhecimento imediato, formar um método, já que esse implica em mediações. De fato, essa pergunta é instigante quando retomamos as considerações de Bergson a respeito da intuição como consciência imediata, na qual a visão não se distingue do objeto.

Em uma tentativa de sistematizar uma postura metódico-intuitiva, ainda que imersa em uma multiplicidade virtual na qual ela se atualiza e, portanto, em uma pluralidade de elementos irredutíveis, Bergson propõe três espécies de atos/regras: ''a primeira espécie concerne à posição e à criação de problemas; a segunda, à descoberta de verdadeiras diferenças de natureza; a terceira, à apreensão do tempo real'' (DELEUZE, 1999, p. 8).

Detenhamo-nos, então, um pouco nessas regras. Quanto à primeira, ela se refere à aplicação da prova do verdadeiro e do falso aos próprios problemas, de modo a denunciar os falsos problemas, reconciliando verdade e criação no nível de sua colocação. Com essa formulação, Bergson aponta que as dimensões de verdadeiro e de falso concernem não somente às soluções do problema, mas, sobretudo, aos modos de colocá-lo. Um problema bem colocado pode levar à resolução em uma via especulativa enquanto descoberta, mas também pode - e essa é a ''menina dos olhos'' do filósofo - levar a uma espécie de resolução inventiva. No primeiro movimento, o da descoberta, o que já existe, atual ou virtualmente, é des(coberto), enquanto, no segundo, o da invenção, dá-se o ser ao que não era, abrindo um plano de forças que dá existência às coisas. Assim, um problema bem colocado é aquele que se mostra prenhe de uma força problematizadora, capaz de durar em uma zona de recusa à imediata solução pela inteligência, para deixar-se levar por sendas intuitivas capazes de fazer emergir ''verdades criadas''.

Como regra complementar a essa, Deleuze acrescenta: os falsos problemas são de dois tipos: os inexistentes, quando seus termos implicam uma confusão entre o mais e o menos, e aqueles mal colocados, uma vez que seus termos representam mistos mal analisados. No primeiro caso, as reflexões de Bergson dirigem-se para pensar a respeito de uma espécie de improdutividade das perguntas formuladas em termos de por que alguma coisa e não outra, pois nelas tomamos o mais pelo menos, tais como em perguntas sobre ordem e desordem, sobre ser e não-ser. Nestes momentos, há como que uma idéia de preexistência de um termo em relação ao outro. Já nos problemas mal colocados, o equívoco está em agrupar coisas que diferem por natureza, buscando articular ''naturalmente''coisas irredutíveis, tal como felicidade e prazer, por exemplo.

Nossa tendência intelectual é a de pensar em termos de mais e de menos, vendo diferenças de grau onde existem diferenças de natureza. Para reagir a essa tendência, é preciso, então, suscitar a intuição, pois ''ela reencontra as diferenças de natureza sob as diferenças de grau e comunica à inteligência os critérios que permitem distinguir os verdadeiros problemas e os falsos'' (DELEUZE, 1999, p. 13-14).

A segunda regra consiste na busca pelas verdadeiras diferenças de natureza ou as articulações do real. Tal regra se funda na concepção bergsoniana de que os mistos4 diferem em tendências, por natureza, aí residindo sua noção de pureza. Buscar a pureza corresponde, então, a restaurar as diferenças de natureza, dividindo o misto de acordo com a maneira como ele combina a duração e a extensão, uma vez que as diferenças de natureza se oferecem de modo virtual.

Esquecer as diferenças de natureza entre a percepção e a afecção e entre a percepção e a lembrança engendra falsos problemas. Assim, a intuição enquanto método emerge como procedimento de distinção entre as duas esferas, instaurando uma zona de não contigüidade entre as mesmas e abrindo, desse modo, um plano de dissonância por onde ela, muito mais sintonizada com a afecção, possibilita aceder a um plano transitório ao qual a inteligência não se dedica. Trata-se de uma zona relativa às condições da experiência, as quais são determinadas por perceptos e afectos5,os quais, por se situarem em uma zona de passagem, são afeitos a dar existência às coisas, daí ligando-se a uma regra complementar, pela qual se mostra como um problema, tendo sido bem colocado, tende por si mesmo às forças virtuais em curso de atualização. Tal regra diz: o real é também o que se reúne segundo vias que convergem para um ponto virtual.

Por fim, a terceira regra: colocar os problemas e sua resolução muito mais no plano do tempo do que no de espaço. Neste último, a coisa só pode diferir em grau das outras coisas e de si mesma, enquanto no tempo, no lado da duração, a coisa difere por natureza de todas as outras e de si mesma. O tempo refere-se ao locus da alteração, sendo que esta, portanto, não se (des)cobre, inventa.

Assim, a intuição enquanto método define-se enquanto reconciliação com o imediato. Diz-nos Deleuze (1999, p. 23): ''sobretudo o movimento pelo qual saímos de nossa própria duração, o movimento pelo qual nós nos servimos de nossa duração para afirmar e reconhecer imediatamente a existência de outras durações acima ou abaixo de nós''.

A intuição como método, é então, problematizante, diferenciante e temporalizante. Não seriam tais características próximas do procedimento cartográfico de pesquisa? Retomando alguns pontos das regras da intuição como método de Bergson apresentados até aqui, perguntamos: não seria essa também a busca da cartografia: traçar um campo problemático cuja resolução seja, eminentemente, inventiva? Para tanto, a intuição, enquanto via em que se acessam os perceptos e os afectos, estaria próxima da cartografia como estratégia criadora de mundos? A intuição, colocando os problemas no plano do tempo, figuraria como percurso que permite ao cartógrafo dissolver-se no campo de pesquisa para, assim, encontrar-se com as dissoluções nele presentes?

Parece-nos instigante seguir nesta direção, especialmente porque aproximar a cartografia como método de pesquisa da intuição enquanto método filosófico possibilita pensar a primeira para além de uma dimensão procedimental. Antes disso, viabiliza germinar o cartógrafo em nós, uma vez que, para cartografar, faz-se necessário certo desmonte do esquema cognitivo por parte do pesquisador; desmonte esse que lhe possibilite abrir-se às forças do presente para virtualizar o mundo.

Tendo percorrido alguns pontos da produção de Bergson, parece-nos que o trabalho do cartógrafo requer mais da intuição do que da inteligência, muito embora ambas não se encontrem definitivamente apartadas. Por isso, o trabalho de cartógrafo exige do pesquisador, antes que definições técnicas, uma experimentação na própria duração.

 

CARTOGRAFIA E INTUIÇÃO: PESQUISA E FABULAÇÃO DO MUNDO

A cartografia, segundo Kastrup (2007), consiste em um método proposto por Deleuze e Guattari (1995) que vem sendo utilizado em pesquisas interessadas pelo estudo da subjetividade. Trata-se de investigar um processo de produção, de acompanhar um certo traçado insólito, um certo tempo que dura. Assim, a cartografia ocupa-se de um plano movente, interessando-lhe as metamorfoses e anamorfoses tomadas como processos de diferenciação.

Configurando-se como um método cuja definição de passos a priori é posta sob suspeita, seu fazer se faz por des(fazimento), por uma espécie de disposição de (des)aprontar-se, de modo a sintonizar com os percursos processuais que se constituem em seu objeto. Como fazê-lo, senão adotando uma postura intuitiva?

Contudo, assim como a intuição como método se apresenta enquanto um rigoroso procedimento filosófico, a cartografia também exige um rigoroso cuidado do pesquisador. Ao invés de constituir-se em tarefa que assume ares de total independência de princípios, é preciso, em lugar disso, um atento respeito a determinados elementos que servem ao cartógrafo de ''fugazes-sólidas pedras no caminho'' por onde possa pisar de modo nômade. Caso contrário, pode ver-se capturado pelas forças da inteligência que tendem a apressar-se em fixar e ordenar as dimensões não fixas e inordenáveis do campo de pesquisa.

Como fazê-lo, então? Kastrup6 aponta o que seriam oito pistas do cartógrafo: trata-se de um método para acompanhar processos e não representar objetos; refere-se a um coletivo de forças, visa um território existencial; traça um campo problemático; requer a dissolução do ponto de vista do observador; exige certo tipo de atenção ao presente; requer dispositivos para funcionar; e, por fim, consiste em um método que não separa pesquisa de intervenção.

Delas, extraímos três para discorrer neste texto: sua ocupação com o traçado de um campo problemático, a dissolução do ponto de vista do observador e a atenção específica ao presente. Assim o fazemos por nos parecer que estas se ligam, de modo especial, ao nosso propósito: pensar o trabalho cognitivo do pesquisador que emprega a cartografia e que do trabalho cognitivo se impregna. E, ainda, por nos instigar a levantar algumas questões relativas ao lugar da imaginação e da fabulação no empreendimento da pesquisa cartográfica.

Traçar um campo problemático enquanto cartógrafo significa problematizar as formas cognitivas do próprio pesquisador em sua relação junto ao campo ao qual se dedica. Assim, exige dele uma permanente modulação do problema, uma postura de abertura às forças que forçam a pensar, como uma sintonia com a dimensão da primeira regra do método intuitivo: reconciliar verdade e criação no nível dos problemas.

Tal pista põe em evidência a importância de que, na pesquisa, o pesquisador venha a se conduzir na direção de resoluções inventivas, que o forçam a traçar novos problemas, em uma inconformidade incessante que lhe permite não ceder às seduções das respostas apaziguadoras ligadas ao plano da recognição. Em lugar disso, produz vitalidade às forças que dão existência às coisas, produzindo material de pesquisa no momento mesmo em que problematiza o campo.

Daí, decorre a dissolução do ponto de vista do observador. Aliás, o próprio Bergson anuncia tal dissolução, quando diz que a clareza que se origina da intuição é, de certo modo, obscura por referir-se a uma idéia radicalmente nova. Trata-se de idéias radicalmente novas tanto em relação ao campo quanto ao pesquisador, em um processo em que, por uma zona de contato, ambos deixam, de certo modo, de ser o que são. Tal dissolução marca a força que faz sair da dicotomia o par sujeito-objeto, instaurando um processo de dupla captura em que pesquisador e campo se fazem em um movimento implicado-explicado.

A implicação, inevitável ferramenta no trabalho do cartógrafo, põe em evidência a natureza da relação sujeito-objeto como própria de uma relação transdutiva, em uma alusão ao conceito de transdução7,cunhado por Simondon (1964). Falar em relação transdutiva é remeter a uma relação estabelecida em uma zona de não-formas, portanto, no caso, de não-formas sujeito e objeto que, interpenetrando-se, criam um campo de fecundação mútua e movente.

Por esta razão, não há sobre o que lançar o olhar a priori. Há um lance de dados pelo olhar do pesquisador que, em um primeiro momento, pode parecer uma expressão demasiada de individualismo e subjetivismo. Contudo, pelos elementos fornecidos pelo pensamento bergsoniano, constitui-se justamente em outra coisa, qual seja: o remetimento para um campo propriamente coletivo. Referimo-nos a um coletivo não tomado a partir de critérios quantitativos e personalizados - como conjunto numericamente estabelecido -, mas enquanto zona de multiplicidades e de impessoalidade (SHERÉR, 2000).

Assim, como um coletivo de forças, forja-se o material de pesquisa enquanto mapa, convocando o cartógrafo a acompanhar seu traçado em uma tarefa possível apenas pela criação de um território para habitar enquanto pesquisador: é de dentro enquanto fora8que se pode operar a cartografia. É incursionando pelo campo, em uma postura sensível ao seu fora, que o pensamento daquele que pesquisa pode fecundar um material empírico e vice-versa.

É criando centros de estabilidade momentânea no caos, ao que denominamos de zona de duração, que o cartógrafo empreende sua tarefa. É pela operação em um plano de signos que, como obra de arte, produz-se ao mesmo tempo o material de pesquisa e o sujeito pesquisador. Daí, a cartografia fazer-se, primordialmente, por um remetimento ao plano dos afectos e dos perceptos, sendo ambos pertinentes ao campo da arte e esta uma via para cortar e enfrentar o caos.

Emerge, assim, a cartografia como modo de fazer pesquisa que compõe, com o campo e seus fluxos, vias de acesso ao insuspeito e à variação. Trata-se de traçar um testemunho do mundo por formas novas e inéditas, razão pela qual por cartografia nada se explica, uma vez que os dados, sempre relançados, apenas se implicam, produzindo material de pesquisa, subjetividades e mundos.

Nesse ponto, ligamos a última pista eleita para debruçar-nos neste trabalho: a atenção ao presente. Considerando que, embora pela cartografia detectemos e identifiquemos estratos históricos, é importante salientar sua sedução pelo plano virtual, o qual se refere às forças e potências que se atualizam por diferenciação. Confronto, pois, com uma espécie de complexo problemático ou nó de tendências que coloca em cena o presente como centralidade. Sendo assim, que tipo de atenção é necessária para captá-lo?

Uma atenção que acompanhe a fluidez do pensamento. Dito de outro modo, uma atenção que não é simples seleção de informações, diz-nos Kastrup (2007), baseando-se em conceitos como o de atenção flutuante (FREUD, 1912-1969), reconhecimento atento (BERGSON, 1897/1990) e atenção à espreita (DELEUZE, 2006b). Para cartografar, é necessário, portanto, estabelecer pontos de contato com os perceptos em lugar das percepções; com os afectos em lugar das afecções; com um plano de signos e de forças que emergem de um material, por vezes, desconexo e estranho, uma vez que a sedução do cartógrafo se dá, justamente, pelos traçados de virtualidade em meio a planos de atualização.

Tendo como objetivo acompanhar processos, vem a indagação: como pousar no movimento? Como centrar a atenção naquilo que é movente por natureza? Como atentar para o que ainda não é enquanto atualização? Como estar sensível para as dimensões que o inesperado oferece como surpresa?

Pensando por uma atenção entendida como fundo de flutuação da cognição, tal como nos aponta Kastrup (2007), a partir do campo da Psicologia Cognitiva Contemporânea. Trata-se de uma atenção relacionada à consciência tomada enquanto domínio de mutações e aberta ao encontro; uma atenção que recusa a simples seleção de informações para detectar signos e forças circulantes, o que requer uma concentração sem focalização.

Convocando o corpo inteiro enquanto centro de captação das forças do mundo, tal atenção implica em uma abertura do cartógrafo a uma espécie de toque do fragmentário, que, recusando totalidades perceptivas, abre as portas para a fabulação9.Para pousar, é preciso focalizar a atenção, reconhecendo, contudo, que o foco não consiste em estaticidade e que requer do cartógrafo que se mantenha em movimento pela memória, em um esforço de reconhecimento de algo, porém fugindo de possíveis elementos preexistentes que o definam, pois o que se efetiva é a emergência de um mundo já existente enquanto virtualidade. O caminho pela memória é, portanto, feito para reduplicar a percepção, já que, ao se remeter a ela, o cartógrafo o faz para reconduzir-se ao objeto em sua potência singular.

É pelo reconhecimento atento proposto por Bergson (1999) que o cartógrafo empreende essa tarefa. Um reconhecimento, que não tendo como base a ação e a inteligência, permite acessar seus contornos singulares, remetendo a um passado pela memória que, tangenciando o plano do sonho, transforma as imagens do mundo.

Trata-se de um reconhecimento que nos parece operado pela intuição, o que possibilita não exatamente ver os objetos-processos, mas visioná-los, inventá-los, fabulá-los pelo plano dos perceptos e dos afectos que acionam potências impessoais e inobjetais, ao invés de imaginá-los pela percepção e pela lembrança. Espécie de reconhecimento que atenta não exatamente para as (in)formações do mundo, mas para suas (out)formações, para o plano da duração dos objetos-processos, viabilizando, por circuito, uma reconfiguração permanente do território de observação e uma recondução incessante ao objeto diferentemente e diferenciantemente.

Retornando ao objetivo central do texto, qual seja o de discutir acerca das peculiaridades do exercício cognitivo do cartógrafo, eis o que nos parece ser sua tarefa: incursionar pela atenção de modo a atingir o virtualmente dado e construir, por ela, os objetos-processos, em um movimento em que a atenção não (re)conhece, e sim inventa. Cartografar implica em trabalhar em um terreno de certa ludicidade que exige, contudo, extremo rigor em seus procedimentos, especialmente pelas conseqüências geradas pelo tão bem construído trabalho de desqualificação do exercício da cognição inventiva por parte dos pesquisadores, no ideário cientificista da modernidade.

Cartografar implica, assim, a convocação de um devir criança na cognição, a instauração de uma espécie de estado nascente, a ser alimentado no percurso cognitivo do pesquisador, para que, assim, este se torne sensível à captação daquilo que evolui, criando-se. É preciso escapar às tentações explicativas dos movimentos do mundo remetendo a pontos estáticos de sua mutação, tal como no exemplo da borboleta trazido por Bergson (1984) em ''O pensamento e o movente'',pelo qual afirma a infecundidade de dissertar a respeito do invólucro de onde ela sai, pretendendo que ela, voando, transformando-se, vivendo, tenha sua razão de ser e sua refeição, na imutabilidade da película de seu casulo.

Cartografar exige, antes de tudo, implicar-se no movimento. Tal como no processo da borboleta, é preciso entrar no invólucro e com ele transmutar, libertando-se a si e a crisálida, restituindo ao movimento do mundo sua mobilidade, à mudança sua fluidez, ao tempo sua duração, como ''brinca'' o filósofo no exemplo, ou, dito de outro modo, como sugere Bergson filosofando.

 

REFERÊNCIAS

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______; GUATTARI, F. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

______. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise. In: ______. Obras completas de Sigmund Freud. v. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1912-1969.

KASTRUP, V. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. Psicologia e Sociedade,Porto Alegre, v. 19, n. 1, jan./abr. 2007.        [ Links ]

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SIMONDON, G. L'individu et la genèse phisico-biologique. Paris: PUF, 1964.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Fernanda Amador
E-mail:feamador@uol.com.br

Tânia Mara Galli Fonseca
E-mail:tfonseca@via-rs.net

Submetido em: 03/07/2007
Revisado em: 10/12/2007
Aceito em: 03/03/2008

 

 

1 Os autores discorrem a respeito da cartografia também nos demais volumes desta obra.
2 Parece-nos interessante, a respeito deste termo, ler Deleuze (2006a). Para o autor, a transversalidade consiste em um caminho para o estabelecimento de relações que não carecem de conjuntos para se unificarem. Em lugar disso, comunicam-se por singularidades, por uma espécie de não-comunicação que instaura uma distância profana entre os termos, estabelecendo distâncias entre coisas contíguas.
3 Esta espécie de indistinção entre visão e objeto visto abre reflexões a respeito da intuição, da imaginação e da fabulação, dimensões às quais nos dedicaremos mais adiante no texto.
4 A definição de misto em Bergson remete a idéia de mistura entre extensão e duração, entre espaço e tempo. Por isso, a unidade das coisas é sempre impura, sendo a pureza somente viável de ser alcançada mediante um trabalho de restauração das diferenças de natureza, o qual se faz por um acompanhamento do traçado de suas tendências, já que são sempre impuras por serem misturadas, referindo-se a indeterminações e a virtuais.
5 Deleuze e Guattari (1992) partem dos conceitos de percepção, enquanto um estado do corpo induzido por um outro corpo e da afecção enquanto passagem desse estado a outro. Em ambos os termos, está em cena o corpo daqueles que percebem e se afectam. Já perceptos não são mais percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam, enquanto os afectos não são mais sentimentos ou afecções, pois transbordam as forças daqueles que são atravessados por eles.
6 Tais pistas foram desenvolvidas por Virgínia Kastrup em curso ministrado sob o título de ''Cartografias da invenção: pistas e políticas de um método de pesquisa'', em março de 2007 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Material não publicado.
7 A este respeito, consultar Altoé (2004).
8 O fora para Deleuze (1988) trata-se de uma matéria móvel que constitui um dentro: não outra coisa que o fora, mas o dentro do fora. Trata-se de um conceito cunhado pelo autor para incursionar pelo pensamento de Foucault, compondo, com as dimensões do poder e do saber, caminhos para, em articulação complexa, pensar acerca da constituição da subjetividade. O fora segundo Pál Pelbart (1999) é abertura de um futuro, apresenta-se como o ''espaço'' no qual nada acaba, porque nada começou e tudo se metamorfoseia.
9 Fabulação é um termo mencionado por Bérgson (1984) e trabalhado por Deleuze e Guattari (1992). Tal termo é preciosamente ''roubado'' por Deleuze (1997), que o remete ao contato com visões que se elevam aos devires, às potências, aos perceptos e aos afectos. Bergson (1984) aborda a imaginação como estando relacionada a um trabalho da inteligência, o que nos leva a pensar na fabulação enquanto dimensão diferente da imaginação, por ser relativa a um trabalho da intuição e deslocada de qualquer espécie de projeção do eu.

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