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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.61 n.1 Rio de Janeiro abr. 2009

 

ARTIGO

 

Pra que time ele joga?: a produção da identidade homossexual em um vídeo educativo

 

Pra que time ele joga?: The production of homosexual identity in an educational videotape

 

 

Nilson Fernandes DinisI; Francis Madlener de LimaII

IUniversidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Paulo, Brasil
IIUniversidade Federal do Paraná (UFPR), Paraná, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar o discurso sobre a homossexualidade a partir de uma pesquisa realizada com estudantes de Educação Física. Para isso, o filme educativo ''Pra que time ele joga?'' foi utilizado como ferramenta de discussão com as turmas pesquisadas, visando a observar o tipo de representações que essas alunas e esses alunos têm em relação à homossexualidade, bem como a produção de discursos acerca da imagem do sujeito homossexual produzida pelo vídeo didático.

Palavras-chave: Homossexualidade; Gênero; Mídia e Educação; Educação Física.


ABSTRACT

This work aims to analyze the discourse about homosexuality by means of a research with undergraduate students of Physical Education.  For this purpose, it made use of the film ''Pra que time ele joga?'' as a tool of discussing the theme with the research group, aiming to observe what kind of opinions these students have about  homosexuality, as well as the discursive production of the image of homosexual subject produced by the educational videotape.

Keywords: Homosexuality; Gender; Media and Education; Physical Education.


 

 

O presente artigo tem como objetivo analisar alguns discursos sobre a homossexualidade no universo escolar, a partir de uma pesquisa sobre as impressões acerca do tema, produzidas por estudantes do curso de formação em Educação Física, em uma universidade pública. Foi utilizado, como disparador das reflexões, um vídeo educativo produzido em parceria entre o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde, que visa a discutir aspectos da sexualidade e, principalmente, da homossexualidade com estudantes do Ensino Médio.

Apropriando-se dos estudos de Michel Foucault sobre a sexualidade, pode-se conduzir uma pesquisa a respeito de um tema como a relação entre sexualidade e educação. Primeiramente, cabe rever algumas considerações de Foucault sobre a sexualidade. O autor realizou em seus três livros da História da sexualidade (A vontade de saber, O uso dos prazeres e O cuidado de si) uma genealogia, que visa a analisar de que forma a sexualidade foi constituída enquanto campo de um saber, e como essa constituição influenciou as práticas de si, no sentido de formar um sujeito dono de uma sexualidade e de um desejo. Nas palavras do autor: ''o projeto era, portanto, o de uma história da sexualidade enquanto experiência - se entendemos por experiência a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade'' (FOUCAULT, 1984b, p. 10).

Desta forma, Foucault pretendia analisar os três eixos que constituem a sexualidade, ou seja, ''a formação dos saberes que a ela se referem, os sistemas de poder que regulam sua prática e as formas pelas quais os indivíduos podem e devem se reconhecer como sujeitos dessa sexualidade'' (FOUCAULT, 1984b, p. 10).

Percebe-se, nesse procedimento metodológico, a superação da tematização da sexualidade enquanto objeto natural. Ela é vista como um objeto construído pelos eixos citados: determinados saberes específicos de um período histórico; os sistemas de poder que se relacionam com esses saberes (dispositivo poder-saber), legitimando-os e utilizando-os e, finalmente, as normatizações impostas por esse dispositivo. Essas normas são apropriadas pelos indivíduos, por meio das práticas de si, de forma que estes passam a se perceber enquanto sujeitos de desejo, portadores de uma sexualidade específica e normatizada.

A partir dessa análise, um estudo sobre a Educação e sua relação com a sexualidade deve iniciar do pressuposto de que a escola, enquanto espaço de ensino, acaba por adotar ou transformar as concepções estabelecidas de sexualidade como verdadeiras pelos saberes institucionalizados (discursos da Medicina, da Psicologia, da Pedagogia etc.). Ou seja, a escola parece ter o papel de ensinar como cada aluno(a) deve conduzir sua sexualidade, segundo um padrão social estabelecido e de acordo com os saberes considerados portadores de uma verdade sobre a saúde e sua relação com o sexo (ato sexual). Corroborando essa visão, que aponta a influência das escolas nos processos de subjetivação dos sujeitos, Louro (1997, p. 63) afirma que:

O processo de 'fabricação' dos sujeitos é continuado e geralmente muito sutil, quase imperceptível. Antes de tentar percebê-lo pela leitura das leis ou dos decretos que instalam e regulam as instituições ou percebê-lo nos solenes discursos das autoridades (embora todas essas instâncias também façam sentido), nosso olhar deve se voltar especialmente para as práticas cotidianas em que se envolvem todos os sujeitos. São, pois, as práticas rotineiras e comuns, os gestos e as palavras banalizados que precisam se tornar alvos de atenção renovada, de questionamento, e em especial, de desconfiança.

Essa reflexão da autora sobre a ''fabricação'' dos sujeitos no espaço escolar nos leva à percepção de outro ponto nos estudos de Foucault, ou seja, a utilização das práticas educacionais enquanto ''práticas de si'', as formas como se conduz a educação sexual nas escolas e quais as relações dessas práticas pedagógicas com a formação da consciência do eu e da sexualidade de cada aluno(a).

A utilização dessas práticas é de fundamental relevância para uma educação sexual, visto que opera na produção da identidade sexual e de gênero de cada educando(a). Assim, como os indivíduos são levados a ter determinada compreensão de si enquanto sujeitos, dependendo dos saberes que imperam em uma dada sociedade, a escola deveria questionar seu papel na formação dessas práticas e dessa compreensão do sujeito do desejo.

Uma pesquisa na escola não pode ter como referência apenas a teoria repressiva, a qual Foucault fez questão de questionar no primeiro volume da História da Sexualidade. Segundo o autor, o poder não se encontra apenas de forma centralizada, soberana e repressora, mas sim disperso na trama social e suscetível de ser exercido pelos sujeitos envolvidos sendo que ''[...] é importante notar que, na concepção de Foucault, o exercício do poder sempre se dá entre sujeitos que são capazes de resistir'' (LOURO, 1997, p. 38). Logo, o controle da sexualidade se dá de diversas maneiras, por falas e silêncios, por atitudes de alunos e professores(as) e também por práticas eleitas como adequadas para a educação dos sujeitos. A partir dos estudos de Foucault, aprendemos a ficar atentos para outros discursos, pretensamente liberadores da sexualidade, atravessados por mecanismos sutis e sofisticados de normatização e controle sobre a sexualidade. Fischer (1996, p. 170) analisa, por exemplo, como o ''discurso da sexualidade adolescente agora incorpora expressões novas - 'momento certo', 'pessoa certa'-, termos sem definição precisa, que falam de um retorno a valores carregados de conservadorismo, como a virgindade e o romantismo das relações''. Esse mesmo discurso passa pela mídia, pela escola, pela família e pelas aulas de Educação Sexual. Parece óbvio que na visão de educadores(as) e da família conservadora esse ''momento certo'' pode ser prorrogado até os limites de um ''quanto mais tarde melhor'', produzindo novas formas de controle sobre a sexualidade adolescente.

Observam-se a criação e a manutenção de um discurso sobre a sexualidade que vem sendo construído pelas instituições aceitas como aptas e responsáveis por pronunciar a verdade sobre o sexo e sobre a sexualidade, elaborando os saberes que sustentam o dispositivo da sexualidade. Desta forma, professores e professoras, bem como todo aparelho escolar se sentem desqualificados(as) para tratar o tema e, quando o fazem, são compelidos(as) a organizar atividades com a participação de 'especialistas': psicólogos(as), terapeutas e médicas(os). Portanto,

[...] seria inexato dizer que a instituição pedagógica impôs um silêncio geral ao sexo das crianças e dos adolescentes. Pelo contrário, desde o século XVIII ela concentrou as formas do discurso neste tema; estabeleceu pontos de implantação diferentes; codificou os conteúdos e qualificou os locutores (FOUCAULT, 1984a, p. 31).

Nesses espaços geralmente são priorizadas questões referentes à reprodução humana, fazendo assim com que as questões ligadas à sexualidade se limitem à procriação, desvinculando e até ignorando as questões do desejo e das múltiplas possibilidades de vivência da sexualidade. Com isso, se estabelece, de forma oficial, que ela existe a fim de garantir o futuro da espécie, futuro este que só é possível com uma relação heterossexual e com vistas à reprodução.

Essa persistente naturalização demonstra uma falta de compreensão dos padrões e dos valores como construções discursivas elaboradas cultural e historicamente. Admite-se que a heterossexualidade é a forma correta de se viver a sexualidade, utilizando-se as mais diversas argumentações (científicas ou religiosas), como se existisse uma verdade absoluta acerca do sexo e da sexualidade. Falta, assim, a percepção de que as sociedades constroem seus sistemas de verdade e seus valores em épocas e condições sociais específicas. A homossexualidade já foi definida por inúmeros sistemas de verdades no decorrer da história humana. Foucault, ao analisar experiências homoafetivas no mundo grego antigo, analisa a problemática que envolve o próprio conceito de homossexualidade, quando se tenta aplicá-lo a experiências homoafetivas em contextos históricos e geográficos diferentes do nosso:

De fato, a noção de homossexualidade é bem pouco adequada para recobrir uma experiência, formas de valorização e um sistema de recortes tão diferentes do nosso. Os gregos não opunham, como duas escolhas excludentes, como dois tipos de comportamento radicalmente diferentes, o amor ao seu próprio sexo ao amor pelo sexo oposto. As linhas de demarcação não seguiam uma tal fronteira. A oposição entre um homem temperante e senhor de si e aquele que se entregava aos prazeres era, do ponto de vista moral, muito mais importante do que aquilo que distinguia, entre elas, as categorias de prazer às quais era possível consagrar-se mais livremente. Ter costumes frouxos consistia em não saber resistir nem às mulheres nem aos rapazes, sem que este último caso fosse mais grave do que o outro (FOUCAULT, 1984b, p. 167).

Desconsiderando essa construção social e cultural, nossa sociedade acredita que a sexualidade é aquilo que a natureza diz, como se não existisse a força das palavras e das ações humanas na formação dos conceitos e da moral. Neste sentido, Ferrari (2003, p. 100) afirma que:

Quando usam a homossexualidade para atacar, eles estão trazendo para cena séculos de construção desse valor, que se iniciou pela classificação médica do ''homossexualismo''. Entretanto, não sabem as origens do discurso assumido, que não é deles, que não é do seu tempo, mas que eles são tributários. Esse é outro aspecto importante a ser problematizado: revelar a homossexualidade como uma construção histórica e social, buscando desconstruir sua negatividade.

Na escola - bem como na sociedade em geral - não são apontadas possibilidades ou alternativas para a construção da sexualidade. A homossexualidade é vista como o 'outro', como o desvio da norma, como uma dolorosa experiência de sexualidade que não aponta positividades. Com essa visão, educa-se a criança para a 'normalidade', evitando que ela tenha contato com as diferenças.

Posições como essa reforçam a divisão extrema entre as possibilidades, sendo que a heterossexualidade é percebida enquanto 'natural' e 'normal' e não como uma construção também histórica e social, da mesma forma como ocorre com a homossexualidade: ''em nossa sociedade, a norma que se estabelece, historicamente, remete ao homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão e essa passa a ser referência que não precisa mais ser nomeada. Serão os 'outros' sujeitos sociais que se tornarão 'marcados''' (LOURO, 1999, p. 15).

Como aponta Britzman (1996, p. 87), falar sobre ''qualquer sexualidade'' nas escolas já esbarra em diversos tabus e medos, falar sobre a homossexualidade seria um feito muito mais arriscado. Essa vivência da sexualidade não encontra lugar para se expressar na escola, visto que é ignorada nesse espaço. O medo de tratar a homossexualidade na escola é muitas vezes maior do que o medo de falar sobre a heterossexualidade, pois, apesar de ambas se constituírem como relações sociais, negociadas entre os sujeitos e a sociedade, a heterossexualidade ainda constitui a norma. Se em aulas em que são tratados temas ligados à sexualidade, mesmo a heterossexualidade se limita à reprodução humana e ao casamento, o que se dirá a respeito da homossexualidade? Assim, ''de certa forma, o silenciamento parece ter por fim 'eliminar' esses sujeitos ou, pelo menos, evitar que os alunos e as alunas 'normais' os(as) conheçam e possam desejá-los(as). A negação e a ausência aparecem, nesse caso, como uma espécie de garantia da 'norma''' (LOURO, 2001, p. 89).

Britzman (1996, p. 75) aponta a educação dos(as) educadores(as) como um dos fatores principais que influenciam a educação sobre a sexualidade, bem como a ausência de uma pedagogia que supere a homofobia e que vislumbre uma educação para as diversas possibilidades afetivo-sexuais. Como ainda ressalta Louro (1999, p. 29): ''[...] na escola, a homofobia expressa-se pelo desprezo, pelo afastamento, pela imposição do ridículo. Como se a homossexualidade fosse 'contagiosa', cria-se uma grande resistência em demonstrar simpatia para com sujeitos homossexuais''.

Outro ponto a ser superado pelos(as) educadores(as) refere-se à ressignificação dos conceitos vinculados à homossexualidade, pois como estarão eles(as) educando de forma mais ampla, se utilizam conceitos preconceituosos ou pejorativos? Para Britzman (1996, p. 92), dever-se-ia igualmente superar a noção de que a discussão sobre a homossexualidade é de interesse somente das comunidades gays e lésbicas, adotando-se uma ''orientação universalizante'', na qual a questão se relaciona com a sexualidade em geral, desvendando assim os discursos que produzem a normalidade heterossexual e os conhecimentos e ignorâncias sobre a sexualidade humana.

Assim, questionar a sua própria sexualidade, seja ela hetero ou homossexual, como uma construção pessoal em constante negociação com o outro e com o social, pode ser um primeiro passo fundamental para a educação dos(as) adolescentes e para uma Pedagogia que possa, segundo Britzman (1996, p. 93), ''problematizar e pluralizar''  a sexualidade, compreendendo o processo que leva à formação das diversas identidades sexuais.

Uma vez que a Educação Física trata diretamente do corpo, seja ele visto como meio de transmissão de conhecimentos, seja como finalidade última de suas intervenções, faz-se imprescindível que as questões da sexualidade e da diversidade sexual sejam tratadas e questionadas; afinal, o discurso que uma professora ou um professor constrói, a partir do discurso 'oficial' sobre a sexualidade, faz parte da sua intervenção no espaço escolar, educando as sexualidades de seus(suas) alunos(as). O espaço da aula de Educação Física é sempre visto como local privilegiado para o surgimento das questões referentes à sexualidade, como aponta o trabalho de Ferrari (2003, p. 92): ''O aspecto mais relevante foi o aparecimento constante dos discursos e das imagens da homossexualidade nas aulas de Educação Física. Essas aulas haviam se mostrado como um momento privilegiado de aparecimento das diferenças e, sobretudo, da construção das masculinidades e das homossexualidades''.

A tradição biológica e tecnicista, que ainda pode ser percebida nas práticas escolares de Educação Física, nas quais prevalecem a prática desportiva e a divisão das atividades entre meninas e meninos (seja de forma espacial ou simbólica), acaba fortalecendo padrões e estereótipos de gênero, produzindo sujeitos masculinos e femininos por meio de suas práticas:

Apesar dos corpos masculinos e femininos se constituírem nas mais variadas instâncias escolares, parece que é na educação física que essa distinção é salientada repetidamente. Pois ainda hoje, a partir de uma hierarquia das aptidões físicas aceitas socialmente, considera-se as meninas ''naturalmente'' mais frágeis do que os meninos, justificando, assim, a necessidade de uma estrutura especial que proteja as meninas da ''brutalidade'' inerente aos meninos (FRAGA, 2000, p. 117).

A partir dessa separação, considerada 'natural' por muitos(as) professores(as), são formadas e reforçadas as expectativas e modos de comportamento 'próprios' de cada gênero. Para as meninas são reservadas atividades como jogar caçador ou realizar atividades ligadas à música e à dança; já para os meninos são permitidas atividades esportivas mais 'agressivas', que desenvolvem e/ou liberam sua suposta agressividade.

No caso da produção da identidade de gênero masculina, esse tratamento diferenciado passa a exigir certo tipo de comportamento que deve ser atendido pelo aluno. Entender que o menino é mais agressivo e ativo do que a menina faz com que o(a) professor(a) espere dele determinadas atitudes que podem não corresponder à sua personalidade, mas que acabam sendo vistas como 'normais'. Essa cobrança é feita também por aqueles que se encaixam nesse padrão de masculinidade, que esperam de seus colegas atitudes 'dignas de homens'. Essa necessidade de se encaixar em um padrão faz com que os alunos internalizem certas formas de vigilância e autorregulação, a fim de garantir sua inserção no grupo. Segundo Louro (1995, p. 89),

[...] podemos pensar então que as práticas escolares, como todas as outras, participam desse processo e, portanto, também imprimem no corpo de crianças e jovens disposições, atitudes, hábitos, comportamentos, que, num determinado momento e espaço social, são considerados como adequados à formação de meninos ou meninas.

Na construção do corpo masculino feita na escola, os jogos que desenvolvem coragem, lealdade e que se dão pela competição seriam práticas 'naturais' e 'instintivas'. A configuração de uma aula de Educação Física faz com que todos os sujeitos sejam observados, representando ''uma situação constante e peculiar de exame'' (LOURO, 1995, p. 91). A permanente exposição que a aula exige faz com que as ações individuais possam ser observadas e avaliadas, tornando facilmente perceptível qualquer atitude 'anormal' dos(as) alunos(as).

Entre as diversas ''anormalidades'' a serem controladas está a homossexualidade e, aqui, mais uma vez, devemos atentar para alguns mecanismos pretensamente liberadores de um discurso progressista que visa a combater preconceitos sexuais e de gênero nos espaços educativos, mas que sutilmente acabam reforçando determinados padrões tidos socialmente como mais aceitos. Pois, afinal, na campanha antipreconceito realizada atualmente pelos veículos midiáticos, não é qualquer imagem de homossexual que é mostrada e valorizada, mas justamente uma imagem do sujeito homossexual que esteja o mais próxima possível das normas de uma quase assexualidade. Os casais homossexuais que frequentam nossas salas de estar durante a novela das oito vivem uma relação quase assexual, uma vez que não expressam contato físico algum. É uma relação que poderia ser facilmente confundida com uma relação entre dois ou duas colegas que apenas dividem o mesmo apartamento.

No entanto, esses apelos midiáticos têm trazido o tema para o interior das escolas  por demandas trazidas pelos(as) estudantes. E também têm provocado algumas iniciativas por parte de educadores(as) na discussão do tema. Com a criação pelo governo brasileiro, em 2005, do programa Brasil sem homofobia, resultado da constante pressão política exercida pelos grupos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT), o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde, em parceria, têm produzido materiais didáticos visando a fomentar a discussão do tema nas escolas. Um desses materiais é o vídeo educativo intitulado ''Pra que time ele joga?'', cujo título parodia uma das expressões populares utilizadas para indagar as práticas sexuais de qualquer indivíduo sobre o qual há suspeitas de uma possível homossexualidade.

Com a finalidade de perceber de que forma se manifesta o discurso sobre a homossexualidade a partir das proposições trabalhadas pelo vídeo, realizamos uma pesquisa com 75 estudantes de um curso de graduação em Educação Física de uma universidade pública. Desse total, 40 alunos(as) terminaram o curso no final de 2004 e os outros 35 alunos concluíram o curso no final de 2005. O grupo total de alunos(as) pesquisado era composto por 41 homens e 33 mulheres, com idades variando entre 20 e 30 anos, sendo que a maioria tinha entre 20 e 25 anos de idade. A coleta de dados foi realizada nos anos de 2004 e 2005 em algumas aulas gentilmente cedidas por docentes do Departamento de Educação Física.

Para a realização da pesquisa foi exibido o filme ''Pra que time ele joga?'' e, depois, utilizando a técnica dos grupos focais, foi realizada uma conversa com as turmas a partir de alguns temas propostos pelo filme. Todas as falas foram gravadas e posteriormente transcritas, sendo essas informações um dos objetos de análise deste artigo. O grupo focal buscou, por dinâmicas, estabelecer reflexões sobre conhecimentos e práticas dos sujeitos envolvidos. A apresentação do filme serviu como disparador das discussões do grupo. Após sua exibição, o grupo todo se reuniu, confrontando e discutindo os diversos conceitos produzidos por cada um(a), permitindo refletir sobre os limites e as possibilidades impostas a cada indivíduo ao se submeter aos estereótipos construídos por uma cultura. Ao final do trabalho, o grupo elaborou uma síntese dos conceitos e opiniões, sendo destacados os principais aspectos, identificando as resistências, as dificuldades e as possibilidades de transformação.

O filme apresentado trata da questão da homossexualidade a partir da história de um adolescente que participa de um time de futebol do seu colégio e que levanta algumas ''suspeitas'' em seus(suas) colegas por nunca ter sido visto namorando uma garota. A homossexualidade do garoto fica explícita para os(as) colegas no dia em que um ex-namorado lhe dá um beijo na frente da escola, desencadeando uma série de reações, incluindo a do próprio garoto que se isola dos outros e deixa de participar da final do campeonato de futebol com sua equipe. A sua desistência e vergonha perante os colegas é o ponto fundamental para a reflexão realizada, momento em que seu professor de Educação Física revela ser também homossexual e tenta convencê-lo a lutar contra o preconceito e enfrentar a situação. Assim, o garoto resolve voltar para a escola e ajudar seu time de futebol a vencer o campeonato. A história termina com a vitória de seu time e a aparente aceitação que recebe de seu grupo de colegas.  O filme aborda com certa tranquilidade o fato de todos aceitarem a homossexualidade do garoto. Tanto seus(suas) colegas quanto seus pais aceitam sua orientação sexual sem maiores problemas no final.

Esta abordagem com ''final feliz'' foi bastante contestada na discussão em grupo com os(as) alunos(as) que participaram de nossa pesquisa, por considerarem esse ''romantismo'' do filme um problema, uma vez que a realidade, na opinião deles(as), é mais complexa. Na opinião deles(as), essa aceitação pode ter sido facilitada pelo fato de a imagem do garoto ser muito próxima da de seus pares heterossexuais. Além disso, como comenta um dos alunos, o garoto do filme é mostrado como possuindo vários ''méritos'', é um bom aluno, é sociável, não tem problemas de comportamento: ''[...] ele tem méritos, ele é bom em matemática, era bom em futebol, e se ele não fosse nenhum dos dois? Numa escola de rede pública, se ele fosse um aluno normal, mediano, acho que ele ia sofrer bem mais. O filme romantizou bastante, não mostrou muito a realidade''.  O perigo também está no fato de que tantas qualidades poderiam ser associadas no imaginário como uma espécie de compensação pelo fato de o adolescente ser homossexual.

Outro aspecto comentado que chamou a atenção de todos(as) no filme é o fato de o garoto gostar de jogar futebol e de ser o melhor jogador de sua equipe. Ou seja, é mostrada uma identidade homossexual que foge ao estereótipo daquele que 'deixa de ser homem', de gostar de 'coisas de homem'. Essa caracterização parece satisfazer uma discussão que preza a aceitação do homossexual como uma pessoa 'normal', facilitando a compreensão, principalmente dos garotos, uma vez que o personagem é igual à maioria dos meninos. O fato de ele ser homossexual não interfere nas suas atitudes 'típicas' de garoto, uma vez que é justamente o fato de um garoto não praticar esportes ditos ''masculinos'' que faz com que seja visto como sinal de alguma coisa errada. Essa aproximação do modelo de masculinidade tradicional parece facilitar a aceitação de um outro que no fundo não é tão diferente da maioria. Ao mesmo tempo que essa abordagem auxilia a desconstrução de um estereótipo de homossexual, ela reflete a necessidade de comparar e julgar, de perceber que o outro é parecido comigo, sendo assim aceito mais facilmente.

Em relação ao estereótipo ligado à homossexualidade, os(as) alunos(as) realizaram interessante discussão. A partir do filme, alguns(mas) alunos(as) comentaram que o garoto é diferente do professor de Educação Física, que o garoto ''é mais meigo'', ao passo que só se descobre que o professor é homossexual no momento em que ele assume perante o garoto. Um aluno chega mesmo a dizer que ''o professor talvez nem fosse gay, só tava querendo ajudar'', ou seja, o fato de o professor não ter características estereotipadas específicas daquilo que se caracteriza como sendo uma identidade homossexual, faz com que ele seja visto como um homem 'normal', que talvez não fosse homossexual, uma vez que não se encaixava em um perfil socialmente estereotipado da homossexualidade.

Percebe-se nas falas uma confusão sobre as diversas formas de identidades sexuais e também uma confusão entre as identidades sexuais e de gênero. É comum as escolas tratarem gênero e sexualidade como sinônimos, padronizando um modo único e adequado do que é o masculino e o feminino, possibilitando apenas uma maneira de viver a sexualidade. Tece-se uma complexa trama normativa que estabelece uma linha de continuidade entre o sexo (macho e fêmea), o gênero (masculino e feminino) e a orientação sexual (heterossexual), que se direciona 'naturalmente' para o sexo oposto. As formas de ser homem e mulher ainda estão diretamente vinculadas à orientação sexual, trazendo dúvidas para aqueles(as) que se deparam com situações que fogem a essa relação linear. Essa confusão pode ser percebida em algumas falas do grupo que retratam situações cotidianas de pessoas com diferentes orientações sexuais, tentando enquadrá-las em algum grau de ''normalidade'' e revelando, ao mesmo tempo, certa estranheza com a impossibilidade de enquadrá-las totalmente em um padrão estereotipado: ''eu mesmo conheço um casal de mulheres homossexuais, mas as duas são extremamente femininas, nem parecia...'' Ou ainda: ''eu conheço também um casal, no caso, que é gay, o dia-a-dia é normal''.

Essa 'normalidade' percebida nas relações faz com que se supere a visão de ausência de algo, visão esta que faz o senso comum acreditar que em casais homossexuais existiria a figura masculina e feminina, formando, assim, um casal semelhante ao casal heterossexual. A necessidade de compreensão daquilo que é diferente faz com que se busque no padrão conhecido as normas que explicariam as atitudes desviantes. Desta forma, surgem as imagens do(a) passivo(a) e ativo(a). Aparece a figura da mulher/homem que representaria o homem/mulher do casal, menos sensível e mais 'masculinizada', no caso das mulheres, e mais sensível e feminino no caso dos casais homossexuais masculinos. Ao debater a homossexualidade feminina, Portinari (1989) analisa esses mesmos aspectos, ao afirmar que ''o relacionamento amoroso/sexual entre duas mulheres é chamado a se moldar segundo o padrão da parceria heterossexual, o modelo homem/mulher'', pois, ''só podemos conceber a união (ou mesmo a atração) entre um princípio ativo e um princípio passivo, por sua vez quase universalmente traduzidos em termos de masculino e feminino'' (PORTINARI, 1989, p. 53).

Quanto mais distante de um modelo 'normal', mais a diferença causa polêmica e incômodo. Segundo as falas dos(as) estudantes pesquisados(as), aqueles 'tipos' de homossexuais que ''querem ser mulher'' causam mais estranhamento do que aqueles que ''você olha e diz: 'é homem'''. Desta forma, fica explícito, mais uma vez, que aquele(a) homossexual que está mais perto da norma é menos discriminado(a) do que aquele(a) que ''desvia'' dela de forma mais radical. As diversas formas de construção das identidades sexuais ainda não são compreendidas, uma vez que ainda nos baseamos em padrões tradicionais de ser homem e mulher. Qualquer alteração nessa construção traz incômodo e é incompreendida, levando a um julgamento daquele(a) que ousa fugir da normalidade.

A crescente discussão acerca das sexualidades traz uma série de conceitos que ainda causam confusão nos discursos dos(as) estudantes que participaram da pesquisa.  Termos como homoerotismo, metrossexual, travesti, transexual, bissexual, transgênero e muitos outros causam confusão na compreensão das diferentes formas de viver a sexualidade. Isso é apontado pelos(as) alunos(as) quando surge na discussão o termo metrossexual. A constatação de que ''é muito nome'', faz com que se reflita sobre o porquê da necessidade de classificação, de separação e de delimitação das atitudes, gestos e características de cada grupo de pessoas. A partir da necessidade de reconhecimento e discussão das diferenças, criam-se divisões e regras de conduta que podem levar ao isolamento das lutas, à criação de guetos que se recriminam e passam a impossibilitar uma luta conjunta buscando transformações sociais mais amplas, pois ''se inserimos a discussão das sexualidades no campo político, e se pensamos que isso diz respeito aos discursos produzidos, assim como o direito de expressão dos desejos, isso significa pensar que tais discussões se inscrevem na proposta de construção de uma sociedade diferente'' (FERRARI, 2003, p. 90).

Deve-se, no entanto, reconhecer que a crescente exposição e valorização da mídia sobre o conceito de metrossexual, por exemplo, gera uma discussão que abre espaço para um outro tipo de masculinidade, diferente daquela imposta pela moral tradicional. Valoriza-se, assim, aquele homem que constrói sua masculinidade a partir de outros elementos. Mas, ao mesmo tempo, essa forma diferenciada de ser homem causa medo naqueles(as) que ainda mantêm uma atitude tradicional, medo esse causado por ''esse estranho paradoxo - identidades emergentes se tornando mais visíveis, mas também menos compreendidas'' (BRITZMAN, 1996, p. 85). Uma vez que não compreendem as diferenças, seu medo reside no fato de serem confundidos com homossexuais ao romperem com algumas barreiras de gênero, tomando atitudes ditas de mulher ou de homossexuais, pois ''a transgressão de fronteiras generificadas resultará provavelmente no questionamento social da identidade do/a transgressor/a, bem como na penalizante insistência de que formas de masculinidade e feminilidade devem ser estabelecidas como rigidamente opostas, como desvinculadas do processo de construção social'' (BRITZMAN, 1996, p. 76).

Esse medo de transgredir as normas, de ser diferente e não corresponder a um padrão socialmente esperado, faz com que os(as) próprios(as) alunos(as) passem por situações de dúvidas em que se sentem diferentes da norma e, por isso, passam a questionar sua orientação sexual. Desta forma, a incompatibilidade social imposta entre os atributos da sensibilidade e da masculinidade levam a uma situação de conflito e ansiedade frente à própria identidade sexual e de gênero. Ou seja, mesmo que um garoto não seja homossexual, suas atitudes 'diferentes' o levam a questionar sua masculinidade, como se ela estivesse presa somente a valores externos a ele, atitude que, segundo Ferrari (2003, p. 105):

[...] pode representar a negação dos desejos e, talvez, das experiências vividas, quando os que sofrem a discriminação vão se afastando cada vez mais de si, buscando construir e assumir identidades mais aceitas socialmente, revelando a incorporação dos valores dos outros e demonstrando como as várias identidades são entendidas hierarquicamente.

Demonstra-se neste caso, como aponta Foucault (2005, p. 1), a busca pela verdade sobre o desejo por meio das perguntas ''Quem sou eu? Qual o segredo do meu desejo?'', perguntas estas que acabam levando ao martírio pessoal daquele(a) que desconfia de si próprio. Indo na direção oposta dessa 'autoinquisição', o autor afirma que ''o problema não é descobrir em si a verdade sobre seu sexo, mas para além disso, usar sua sexualidade para chegar a uma multiplicidade de relações''.

Segundo a opinião de uma aluna do grupo que assistiu ao filme, ele é preconceituoso, mesmo tendo como objetivo a superação desse sentimento em relação à homossexualidade. Esse preconceito aparece com a ideia de que o personagem central ''joga futebol, apesar de ser gay'', e também no comentário de outro personagem, que, após quase perder a final do campeonato devido à ausência de Pedro (personagem central do vídeo), afirma: ''nunca achei que ia querer ter um gay do meu lado''. Essa última fala foi a que mais gerou comentários na turma e muitos risos. A frase desse personagem deixa claro o fato de que ter um gay por perto é apenas aceitável quando ele é necessário para alguma coisa, nesse caso, para levar o time à conquista do campeonato de futebol da escola. Fora de uma situação assim, fica implícito o distanciamento em relação aos homossexuais. Constatação também feita por Rosa (2004, p. 120):

Outra forma de se vincular o preconceito foi o que chamei de homofobia velada, isto é, atrás do uso da categoria respeito, que os alunos utilizaram, percebi uma aversão, ou seja, um distanciamento físico e afetivo dos sujeitos homossexuais, pois em última instância, os homossexuais seriam considerados portadores de uma sexualidade incontrolável e impulsiva. Neste sentido, segundo suas representações, até permite-se uma certa aproximação com sujeitos gays, mais sempre se tem/teria a impressão, idéia, de que eles iriam ultrapassar os limites de uma amizade, por quererem estabelecer relações afetivas/sexuais....

No debate com os(as) alunos(as) parece também ter ficado claro para a turma a relação entre preconceito e estereótipo, pois ambos estão ligados em uma rede discursiva que cria uma imagem do desconhecido, do estranho, imagem esta que reflete e fomenta o medo e a não aceitação do 'anormal'.

Sobre a criação e a função dos estereótipos, Richards (1993, p. 29) afirma que ''os estereótipos são um meio de dar sentido a um universo desordenado, impondo ordem, definindo o eu, personalizando os temores [...] o estereótipo nasceu especificamente do contexto social, sua forma e conteúdo sendo dilatados pela sociedade que o produziu. Ele constituía o que era diferente, e diferença era o que ameaçava a ordem e o controle''. Logo, os estereótipos são o resultado da necessidade de padronização de uma sociedade, para facilitar sua submissão às normas e ao poder estabelecido. Eles surgem para satanizar as diferenças, criando um medo que impede as pessoas 'normais' de se aproximarem do outro, mantendo-se, assim, na rota 'apropriada'.

Tendo-se presente a noção de que a homossexualidade masculina está na margem oposta à masculinidade dominante, muito reforçada e 'treinada' por meio dos esportes, o personagem do professor de Educação Física se impõe enquanto sujeito normal através de um estereótipo, que o situa dentro de um grupo de pessoas que praticam esportes, mais especificamente o futebol, um esporte representado como essencialmente masculino, e que, por isso, está dentro de uma masculinidade socialmente aceita como verdadeira.

Essa padronização por estereótipos foi criticada também quando os(as) alunos(as) comentaram a cobertura que eventos como a ''Parada Gay'' de São Paulo recebem da mídia: ''normalmente os jornais colocam as figuras mais exóticas na capa do jornal [...] não colocam, por exemplo, um homossexual ''normal''. [...] Eles não colocam porque não caracteriza''. Percebe-se então a maneira pela qual os grupos que fogem do padrão são estigmatizados e categorizados por um estereótipo que os especifica enquanto diferentes e anormais.

Outro ponto do filme bastante comentado pelos(as) alunos(as) é a relação entre os valores socialmente impostos e o enfrentamento do outro com uma possível alteração desses valores. Isso fica claro nos relatos que apontam para uma situação inicial em que a heterossexualidade se sente desrespeitada ou ameaçada pelo homossexual: ''Eu sempre tive uma formação, tanto a minha família, como na escola que eu estudei, eu tive uma formação religiosa. [...] Isso é tipo, uma questão de valores''. A homossexualidade é aceita enquanto permanece distante. No momento em que ela se aproxima, os valores individuais e sociais, que configuram a homossexualidade enquanto anormalidade, fazem que a pessoa heterossexual sinta-se invadida e desrespeitada. Isso torna os sentimentos confusos, como nos casos relatados pela turma, podendo causar uma alteração significativa no sentido de perceber que o outro não me é tão estranho: ''No começo, eu via com maus olhos: pode ser, mas longe de mim. Mas depois, eu comecei a enxergar que o homossexualismo não era um problema, não era um caso à parte''. Segundo algumas falas, essa compreensão e aceitação da diferença ocorre a partir do momento que se vive próximo aos sujeitos que antes causavam estranheza: ''[...] eu acho que a convivência ajuda bastante. Você ver que alguém da sua família, ou qualquer pessoa assim é gay, é diferente, você passa a aceitar''.

Pode-se explicar essa atitude nas afirmações de Ferrari, relacionando-a com a construção das identidades por meio dos valores culturais e sociais, uma vez que a educação, segundo o autor, ocorre em variados espaços sociais:

Podemos perceber que existe uma articulação entre construção de identidades e educação, o que possibilita ampliar a noção de educação em um processo que vai além da escola, envolvendo uma multiplicidade de relações de forças que se estabelecem nas relações familiares, nos meio de comunicação, nos convívios sociais, enfim, em diferentes espaços em que os indivíduos são transformados e aprendem a se reconhecer como detentores de determinadas identidades (FERRARI, 2003, p. 106).

Outra questão levantada pelos(as) alunos(as) refere-se às diferenças existentes entre o espaço público e o privado. Para eles(as), ainda é necessário que o(a) homossexual se comporte publicamente de determinada maneira, a fim de garantir um emprego e uma posição social estável, como fica explicitamente marcado nesta fala: ''Tem todo um contexto social [...] Se ele não se reservasse, não deixasse transparecer tanto, talvez o garoto não saiba como lidar [...]  e por isso o professor mostrou pra ele que ele pode lidar com a homossexualidade dele sem ser escrachado, na profissão que ele tem''. Comportar-se de modo a não chamar a atenção permite ao(à) homossexual permanecer inserido na sociedade, uma vez que os(as) alunos(as) afirmam que o preconceito existente é muito grande. Ao analisar a presença da homossexualidade nas escolas, Britzman aponta para o fato de que os(as) jovens precisam se adequar ao espaço no qual estão inseridos, criando códigos e comportamentos que visam a facilitar sua inserção nesse espaço:

Os jovens gays e as jovens lésbicas devem aprender a esconder significados, codificando significantes de forma que as práticas gays e lésbicas sejam ocultadas daqueles que as consideram inaceitáveis. Ao mesmo tempo, esses códigos devem também se tornar inteligíveis para aquelas pessoas que fazem parte das comunidades gay e lésbica (BRITZMAN, 1996, p. 82).

Essa codificação, que resulta do ato de se esconder perante um grupo hostil, pode ser pensada também na vida adulta, uma vez que essa prática está presente na vida de pessoas homossexuais que tentam se adequar à norma para permanecerem dentro da sociedade, mantendo seus empregos e seu status social. Segundo os(as) alunos(as), isso ocorre por causa do preconceito que ainda existe e, também, porque as identidades sexuais devem ser mantidas fora do espaço de trabalho.

Uma questão brevemente comentada pelos(as) alunos(as) está ligada à impressão que se tem em relação à 'descoberta' ou ao 'desenvolvimento' da homossexualidade, a ideia de que esse é um caminho que não se trilha só, que o(a) jovem descobre sua homossexualidade com a ajuda de alguém, geralmente mais velho: ''Parece que tem sempre um mais velho, um mais velho pra direcionar'', ''pra ensinar o caminho''. Portinari chama essa pessoa que irá auxiliar a outra a se descobrir homossexual como 'aquele alguém': ''[...] o aquele alguém não precisa necessariamente ser uma pessoa real; mesmo quando assume esta forma, nem sempre desempenha essa função através de uma sedução; e ainda que essa sedução se dê, ela dificilmente se dará por deliberação. O que essa espécie de mito pressente - corretamente - é que ninguém se torna homossexual sozinho'' (PORTINARI, 1989, p. 69).

Ao mesmo tempo em que essa ideia reforça a aceitação da influência das relações sociais na constituição das identidades, ela também pode resultar em um  medo paranóico em relação a um possível 'contágio' do(a) jovem heterossexual pelo(a) adulto (a) homossexual.

Finalmente, ao debater o papel da escola e do(a) professor(a) de Educação Física, surge nos(nas) estudantes que participaram da pesquisa a constatação de que é difícil mudar os valores e atitudes das crianças em relação à diversidade sexual, pois a educação recebida em casa e a imposição dos valores sociais dificultam um trabalho que se desenvolva de forma isolada na sala de aula, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, se reconhece na infância uma abertura maior à diferença: ''Que nem com os pais, não adianta, a primeira opinião sobre isso é a opinião dos pais, em casa, aí fica difícil [...] Acho que lidar com as crianças é mais fácil do que lidar com o que é culturalmente construído desde casa''. Neste sentido CAMARGO (1999, p. 95) afirma que ''as crianças desde que nascem estão mergulhadas em um sistema de significações sociais e tanto o adulto quanto os seus pares lhe possibilitam o contato com esses significados''. Sendo assim, é necessário refletir sobre o papel da escola na luta pela transformação das concepções normativas, por exemplo, em relação ao tema da diversidade sexual.

E isso traz responsabilidade ética também para a disciplina de Educação Física. A persistência de uma Educação Física que não reflete sobre suas práticas e que não se responsabiliza pela formação de seus(suas) alunos(as) acaba colaborando para a formação dos estereótipos de homem e mulher, ajudando na formação de uma consciência coletiva de que ser homem e ser mulher deve atender a determinados padrões e regras de conduta. Desta forma, fecha-se a porta para as diversas manifestações de masculinidade e feminilidade existentes, limitando as experiências às práticas normatizadas e estabelecidas como 'adequadas' aos meninos ou às meninas.

Cabe, então, repensar o papel desse conteúdo escolar, buscando novas formas de ensino e novas relações sociais que possibilitem a ampliação do olhar sobre as construções das sexualidades, uma vez que, de acordo com as falas de algumas alunas e de alguns alunos do curso de Educação Física, a oportunidade de enfrentar o novo e refletir sobre a existência do outro é fundamental para a superação dos estereótipos e preconceitos. Considerando a aula de Educação Física um espaço político-pedagógico importante dentro da escola, e tendo consciência das possibilidades de problematização que esse espaço proporciona, faz-se fundamental refletir e questionar a forma como os(as) futuros(as) professores(as) estão sendo preparados(as) para trabalhar com questões ligadas à diversidade sexual.

A ausência de uma discussão mais aprofundada do tema, durante a graduação em Educação Física, foi percebida também por Rosa (2004, p. 121), em sua pesquisa sobre as representações sociais sobre a homossexualidade no curso de Educação Física da Universidade Federal de Santa Catarina:

Apesar de considerar que a formação desses estudantes foi um ponto positivo para uma boa compreensão da homossexualidade, o CDS segundo os alunos da 7ª fase, ainda não superou as representações sociais negativas associadas aos homens e mulheres que se relacionam sexualmente com outros/as sujeitos/as do mesmo sexo, e que o curso de Educação Física da Universidade Federal de Santa Catarina, ainda não tratou de uma forma organizada e científica, o tema da homossexualidade [sic].

Assim, há necessidade tanto de pesquisas acadêmicas sobre o tema como uma discussão séria e ampliada sobre a sexualidade e suas relações com a área da Educação Física nos cursos de formação docente. A carência de abordagem aprofundada desse tema fica explícita também na fala dos(as) estudantes em nossa pesquisa: ''[...] acho que essa foi a maior discussão que a gente teve em 4 anos!''. Foi possível perceber que para alguns alunos e algumas alunas essa discussão é pertinente e pode auxiliar na reflexão e atuação destes(as) como educadores(as), podendo levar a uma alteração significativa das práticas escolares.

Mas talvez devamos ir ainda mais além, desconfiando mesmo de práticas pedagógicas que se propõem como críticas. A análise do filme Pra que time ele joga? nos mostra que mesmo uma proposta ''bem intencionada''  e de ''visão crítica'' sobre a sexualidade pode também cair, às vezes, em discursos normatizantes. O filme tem méritos, de certa forma ajuda a desconstruir a ideia de que a identidade homossexual só possa ser vivida por formas estereotipadas produzidas pelo discurso preconceituoso e estigmatizante, à medida que mostra um garoto homossexual que não parece assim tão distante dos outros garotos, favorecendo uma aceitação social. Mas também pode conduzir a outros caminhos perigosos, em vez da aceitação das diversas expressões sexuais e de gênero, pode dar a impressão de que a diferença a ser aceita deve ser apenas aquela que mais se adequa à norma, aquela que mais se parece com nós mesmos. Ou seja, o filme parece abordar uma visão antipreconceito, mas sem vencer as barreiras do próprio discurso normativo que produz as próprias categorias de 'normal' e 'anormal'.

É nesse sentido que Foucault (2004, p. 122), ao ser questionado sobre as lutas dos direitos legais dos grupos homossexuais, já alertava:

É preciso inverter um pouco as coisas, e, mais do que dizer o que se disse em um certo momento: ''Tentemos reintroduzir a homossexualidade na normalidade geral das relações sociais'', digamos o contrário: ''De forma alguma! Deixemos que ela escape na medida do possível ao tipo de relações que nos é proposto em nossa sociedade, e tentemos criar no espaço vazio em que estamos novas possibilidades de relação''.

Mais do que uma educação para a tolerância, deve-se almejar uma prática educativa que possa questionar as próprias categorias normativas que tentam codificar e capturar nossa experimentação dos prazeres sexuais, o que pode levar não só as relações homossexuais, mas também as próprias relações heterossexuais a se reinventarem. E talvez um dia palavras como normal, anormal, homossexual, heterossexual percam todo o sentido que tem produzido e limitado nossas identidades sexuais. Ou como finalmente ressalta Foucault (2005, p. 1): ''Isso em que devemos trabalhar, me parece, não é tanto em liberar nossos desejos, mas em tornar a nós mesmos infinitamente mais suscetíveis a prazer. É preciso fazer escapar às duas fórmulas completamente feitas sobre o puro encontro sexual e sobre a fusão amorosa das identidades''. Reinventar infinitamente nosso uso dos prazeres, reinventar infinitamente nossas identidades sexuais e de gênero.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Nilson Fernandes Dinis
E-mail:ndinis@ufscar.br

Francis Madlener de Lima
E-mail:francis_mad@hotmail.com

Submetido em: 11/09/2008
Revisado em: 27/01/2009
Aceito em: 23/03/2009

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