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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. v.61 n.1 Rio de Janeiro abr. 2009
ARTIGO
On gratitude
Maria Adélia Minghelli PietaI; Lia Beatriz de Lucca FreitasII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rio Grande do Sul, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rio Grande do Sul, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Neste artigo, fazemos uma revisão teórica sobre a gratidão. Iniciamos mostrando sua função, segundo a visão de autores de diferentes áreas de conhecimento. A gratidão teria importante papel no equilíbrio e na coesão social. Em seguida, abordamos a gratidão na Psicologia. Nesta seção, discorremos sobre resultados de pesquisas e teorizações sobre a gratidão, apontando para a hipótese de que ela se desenvolve ao longo da infância. Finalizamos salientando a necessidade de estudos sobre a gratidão em crianças, para que se compreenda melhor esse fenômeno e, se possível, se estimule esse sentimento, visto que concorre para o bem-estar das pessoas.
Palavras-chave: Gratidão; Moral; Desenvolvimento; Crianças.
ABSTRACT
In this article, we make a theoretical review of gratitude. We start by presenting its social function in the view of authors from different fields. Gratitude might play an important role in social equilibrium and cohesion. Then, we approach gratitude in Psychology. In this section, we present research results and theorizing about gratitude, stressing the hypothesis that gratitude develops through childhood. We conclude by drawing attention to the necessity of studies about gratitude in children, to better understand this phenomenon and, if possible, stimulate it, given that it contributes to individual well-being.
Keywords: Gratitude; Moral; Development; Children.
1 INTRODUÇÃO
Historicamente, a gratidão tende a ser vista como algo socialmente desejável. Ao longo do tempo e em diferentes culturas, experiências e expressões de gratidão têm sido tratadas como aspectos básicos e desejáveis da personalidade humana e da vida social (EMMONS; MCCULLOUGH, 2003). As raízes da gratidão podem ser vistas em muitas tradições religiosas, permeando textos, orações e ensinamentos (EMMONS, 2004). Diversos filósofos, desde a Antiguidade, escreveram sobre a gratidão, apontando-a como uma das mais importantes virtudes e como um ingrediente necessário para a formação da personalidade moral (EMMONS, 2004). Autores da Sociologia e da Antropologia também abordaram o tema. Na Psicologia, na primeira metade do século passado, destacaram-se os trabalhos de Baumgarten-Tramer (1938) e Klein (1957-1974). A primeira interessou-se pela gratidão ao longo do desenvolvimento e a segunda preconizou ser a gratidão um sentimento que emerge das relações primevas infantis, derivado da capacidade da criança de amar. Desde a década de 1990, alguns autores da Psicologia retomaram o assunto, mas apenas recentemente se tem observado um crescente interesse pelo tema.
Em uma busca no banco de dados científicos PsycInfo do descritor gratitude (gratidão), no período de 2000 a setembro de 2008, foram encontrados 58 artigos empíricos - um número muito superior ao encontrado anteriormente -, 30 deles voltados exclusivamente para a gratidão. Nesse período, um único artigo de autores brasileiros - Paludo e Koller (2006) - foi localizado, por meio do sistema on-line de bibliotecas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Neste artigo, fazemos uma revisão na literatura sobre a gratidão, discorrendo, inicialmente, sobre suas funções, mostrando, a seguir, como vem sendo abordada em diferentes áreas da Psicologia e, finalmente, falamos sobre a gratidão na infância. Concluímos o texto, ressaltando a necessidade de se estudar a gratidão ao longo do desenvolvimento infantil, o que pode nos ajudar a compreender melhor esse fenômeno.
2 FUNÇÕES DA GRATIDÃO
McCullough, Kilpatrick, Emmons e Larson (2001), em uma revisão teórica sobre a gratidão, recapitularam sua função social, a partir da proposição de Adam Smith (1759-2002) de que a gratidão resulta em bem-estar social. Simmel (1950) referiu-se à gratidão como ''a memória moral da humanidade''. A insuficiência de estruturas sociais formais que regulem e assegurem a reciprocidade nas interações humanas faz com que, em nosso processo de socialização, aprendamos a experienciar a gratidão como uma forma de lembrarmos a reciprocidade das obrigações. A gratidão seria uma das emoções morais que ligariam as pessoas à sociedade como um todo. Nessa mesma linha, McCullough et al. (2001) assinalaram que Schwartz (1967) associou gratidão à inertia, uma força que faz com que as relações sociais mantenham uma orientação pró-social. Baumgarten-Tramer (1938) considerou a gratidão responsável pela coesão social, uma vez que cria uma relação entre pessoas, desenvolvendo seu senso de comunidade. A gratidão seria baseada, principalmente, em elementos sociais e éticos. Algoe, Haidt e Gable (2008), em um estudo empírico, encontraram dados que indicam que a gratidão tem a função de promover e manter relacionamentos. A reciprocidade que a gratidão enseja - a mútua troca de favores - teria uma função de equilíbrio social.
Para Bonnie e de Waal (2004), seria difícil pensar em como a humanidade funcionaria sem reciprocidade. Gouldner (1960) afirmou que o equilíbrio social não poderia existir sem a reciprocidade de serviços. Para Piaget (1965-1973), as trocas sociais devem atingir benefícios recíprocos ou o equilíbrio, a fim de que uma sociedade se conserve. Nas trocas que se efetuam no tempo, para que o equilíbrio seja durável, entram em ação normas tendentes à conservação de valores. De acordo com essas normas, se um indivíduo não reconhece a satisfação obtida pela ação benevolente de outro indivíduo, será acusado de erros, indo da ingratidão à traição. Trivers (1971) reconheceu que um sistema de favores e seu respectivo retorno não poderiam durar sem serem conferidos. Emoções negativas devem existir para proteger o benfeitor daqueles que não reconhecem sua benesse, violando, portanto, o código social.
Para Bonnie e de Waal (2004), assim como para Trivers (1971), a gratidão é uma adaptação evolucionária que regula as respostas das pessoas às ações altruístas. Estudos com outras espécies, especialmente primatas, sugerem que alguns pré-requisitos da gratidão já estão aí presentes. Trocas recíprocas governam a vida de muitos seres que vivem em grupos como peixes, aves e mamíferos. No entanto, a gratidão propriamente dita, segundo Bonnie e de Waal, vai além das trocas recíprocas. Ela pressupõe: a) a apreciação do favor recebido; b) sentimentos positivos dirigidos ao benfeitor; c) reconhecimento do custo da ação para o benfeitor; e d) atribuição de intenção ao benfeitor: o beneficiário não sente gratidão por ações não intencionais, conforme foi corroborado pelo estudo de Tsang (2006). A avaliação dos custos e da intencionalidade da ação do benfeitor tem como consequência o beneficiário ser grato não apenas pela ação recebida, mas também ao próprio benfeitor. O recebedor sente, então, uma dívida em relação ao benfeitor e uma obrigação de retribuir o favor. Finalmente, o recebedor retorna o favor ao benfeitor e o ciclo continua, porque o benfeitor sente-se bem e segue fazendo benesses.
Nesse ciclo de trocas no tempo, é necessária uma memória do evento anterior, não só para o reconhecimento do benfeitor, mas também para a manutenção do cálculo mental da dívida. Estudos mostram que chimpanzés se lembram de indivíduos específicos que trataram deles no passado e retribuem-lhes com comida. Bonnie e de Waal (2004) sugerem que isso seria o rudimento da gratidão. Os autores inspiraram-se nas ideias de Westermarck (1908-1928), para quem a bondade retributiva, em sua forma primitiva, é encontrada em animais que vivem em grupos, incluindo o grupo pequeno constituído de mãe ou pais, e prole. Para Westermarck, o sentimento altruísta nunca existiria sem uma reciprocidade de sentimento.
3 A GRATIDÃO NA PSICOLOGIA
O fato de a gratidão ser relativamente pouco estudada deve-se, em parte, à natureza evasiva deste construto. Emmons e McCoullough (2003) afirmaram que a gratidão é difícil de ser definida, permitindo muitas classificações. Ela tem sido conceitualizada como uma emoção, uma atitude, uma virtude moral, um hábito, um traço de personalidade ou uma resposta de coping.
3.1 GRATIDÃO E TRAÇOS DE PERSONALIDADE
Desde Smith (1759-2002) vários autores levantaram a hipótese de que pessoas benevolentes seriam mais inclinadas a experienciar gratidão (MCCULLOUGH et al., 2001). Esses indivíduos tenderiam a sentir empatia e a se colocar no lugar do outro. Para Wood, Maltby, Stewart, Linley e Joseph (2008), pessoas gratas têm tendência a interpretar o comportamento dos outros pelo viés da gratidão, percebendo a ajuda que recebem como custosa ao benfeitor, genuinamente bem intencionada (em vez de movida por interesses egoístas) e valiosa. Neto (2007) encontrou indicadores de que pessoas gratas têm mais propensão ao perdão.
A gratidão tem sido associada a traços de personalidade ligados a comportamento pró-social. Pessoas gratas são mais agradáveis e menos narcisistas (MCCULLOUGH et al., 2001). McWilliams e Lependorf (1990) notaram que pessoas narcisistas são incapazes de experienciar e expressar gratidão para com os outros, possivelmente, por terem dificuldade de admitir que não são autossuficientes. Uma vez que as expressões de gratidão implicam o conhecimento de que dependemos dos outros para nosso bem-estar, a gratidão seria desagradável para essas pessoas. Kashdan e Breenan (2007) encontraram indicativos de que pessoas que valorizam bens materiais têm menos gratidão.
Baumgarten-Tramer (1938) já havia sugerido uma relação entre personalidade e gratidão: indivíduos com personalidade mais realista, ou avara, tenderiam a ter um senso de dívida mais proporcional ao favor recebido do que indivíduos com personalidade impulsiva, imaginativa e generosa, os quais tenderiam a ter um senso de dívida excessivo.
3.2 GRATIDÃO E BEM-ESTAR SUBJETIVO
Em uma série de estudos experimentais, verificou-se que sentimentos de gratidão aumentaram a resiliência, a saúde física e a qualidade da vida diária (EMMONS; MCCULLOUGH, 2003). Emmons e McCullough concluíram que pessoas gratas não apenas demonstram mais estados mentais positivos, isto é, mostram-se mais entusiásticas, determinadas e atentas, como também são mais generosas, cuidadosas e atenciosas para com os outros. Pessoas que se sentem regularmente gratas aos outros tendem a sentirem-se amadas e cuidadas (ANDERSSON; GIACALONE; JURKIEWICZ, 2007). Froh, Sefick e Emmons (2008) observaram, em um estudo com adolescentes, que ao cabo de algumas vezes que os participantes listaram situações em que se sentiram gratos, houve uma melhora em seu bem-estar. Outro estudo apontou a gratidão ao passado como possivelmente um dos fatores da longevidade (MENGARDA, 2002).
A gratidão parece ser também altamente adaptativa. Fredrickson (1998) sugeriu que a gratidão pode ser relevante para o bem-estar, coping, e ajustamento, promovendo o desenvolvimento social de laços e recursos de coping que ajudam a manter o bem-estar durante situações estressantes. Para Bono e McCullough (2006), a gratidão ajuda as pessoas a responder mais positivamente aos acontecimentos da vida e a valorizar situações em que os outros são benevolentes para com elas, fornecendo recursos para o bem-estar psicológico. Wood, Joseph e Linley (2007) encontraram evidências de que pessoas gratas estão mais inclinadas a buscar apoio emocional e instrumental e a abordar problemas, como estratégia de coping, em vez de evitá-los. Paludo e Koller (2006) sugeriram que a gratidão pode servir de proteção para situações adversas, aumentando a resiliência.
McCullough et al. (2001) assinalaram que a gratidão é referida em estudos (MAYER; SALOVEY; GOMBERG-KAUFMAN; BLAINEY, 1991; REISENZEIN, 1994) como uma emoção agradável e está associada a estados psicológicos positivos como contentamento (walker; pitts, 1998), felicidade, orgulho e esperança (overwalle; mervielde; de schuyter, 1995). para baumgarten-tramer (1938), no entanto, a gratidão gera um sentimento de dívida que pode se tornar um fardo. watkins, scheer, ovnicek e kolts (2006), contrariando essa posição e seguindo a linha de heider (1958), encontraram indicativos de que gratidão e endividamento são afetos distintos. gratidão e obrigação também têm sido propostas como conceitos distintos por diversos autores (alves, 2007; anderson, 2005; goei; buster, 2005; gouldner, 1960).
3.3 GRATIDÃO E MORAL
No tocante à moralidade, existem pelo menos três perspectivas da Psicologia que relacionam a gratidão à moral: uma delas é a que considera a gratidão um afeto moral; outra é a que vê a gratidão como uma virtude moral; e, uma outra, é a que contempla a gratidão como um sentimento interindividual. Discorreremos a seguir sobre elas.
Com base, principalmente, em Adam Smith (1759-2002), McCullough et al. (2001) têm abordado a gratidão como supostamente pertencente à esfera moral. Os autores fizeram uma exaustiva revisão na literatura e encontraram estudos empíricos que apontam nessa direção. Referindo-se à gratidão como um afeto moral, esses autores não estão propondo que experiências de gratidão em si mesmas sejam morais. A hipótese dos autores é a de que, pelo fato de a gratidão resultar de comportamento moral e estimulá-lo, ela pertenceria ao âmbito da moral. Por comportamento moral, aqui, entende-se a ação que leva o outro em consideração. Os afetos considerados morais como empatia, compaixão, culpa e vergonha têm uma variedade de características e funções pró-sociais que têm sido encontradas também na gratidão. Enquanto a empatia e a compaixão operam diante do infortúnio de outrem, e a culpa e a vergonha emergem quando não atingimos os padrões morais, a gratidão opera tipicamente quando somos beneficiários de um comportamento pró-social. McCullough et al. propuseram que a gratidão teria três funções especificamente morais: 1) a função de barômetro moral: a gratidão seria uma reação emocional diante da generosidade de outrem (o indivíduo seria, tal qual um barômetro, um ''sensor'' de comportamento moral); 2) a função de motivar o comportamento moral: a gratidão motivaria a pessoa grata a praticar ações altruístas não apenas em relação a seu benfeitor, mas também a outras pessoas e, neste sentido, promoveria o comportamento pró-social; e 3) a função de reforço moral: a expressão de gratidão a um benfeitor encorajaria este a se engajar em mais comportamentos pró-sociais, inclusive com relação a terceiros.
Segundo Williams (2002), virtudes são as qualidades de caráter admiráveis e louváveis, bem como as qualidades de uma pessoa em um contexto ou papel restrito, por exemplo, suas qualidades esportivas ou sua habilidade manual. La Taille (2001) reiterou que as virtudes podem ser atribuídas tanto a ações do ser humano - cantar bem ou ser habilidoso em algo -, como ao caráter da pessoa - ser humilde ou fiel. As virtudes que se referem ao caráter - virtudes de caráter (gratidão, justiça, generosidade, coragem) - ocupam lugar especial entre as virtudes, sendo virtudes morais. São virtudes morais porque podem ter importante papel na gênese da moralidade, concorrer para a sua efetivação e constituir a chamada personalidade moral - personalidade à qual estão intimamente associados valores morais que fazem parte do autoconceito.
La Taille (2000) considerou a gratidão uma virtude moral e ressaltou que esta não é derivada de um direito alheio de retribuição, mas sim de um valor moral. O reconhecimento espiritual de uma dívida é algo espontâneo, considerado um bem pela maioria das pessoas, sem que a isso corresponda nenhum direito. É justamente o fato de não haver um direito de receber a gratidão de outrem que a torna uma virtude moral.
Ainda para esse autor (LA TAILLE, 2001), a polidez antecede a moral e desempenha um papel na gênese desta, pois é por meio das regras de polidez que a criança pode começar a compreender certas virtudes, por exemplo, ''o 'obrigado' aponta para a gratidão'' (LA TAILLE, 2001, p. 116). Em um estudo sobre a polidez, uma ''pequena virtude'', La Taille realizou entrevistas clínicas com crianças, contando uma história sobre uma transgressão e dois personagens - um polido e outro não. Após indagadas sobre quem era o autor da transgressão, as crianças menores de 6 anos tenderam a achar que foi o personagem mal-educado. Em outra história, que envolvia um ato virtuoso e dois personagens - novamente, um polido e outro não -, após serem questionadas sobre quem praticara o ato, as crianças menores de 6 anos disseram, em sua maioria, ter sido o personagem bem-educado. Estes achados levaram La Taille a concluir que, para crianças pequenas, a polidez é um indício de que a pessoa educada comporta-se bem, não transgredindo leis, sendo virtuosa, portanto, sendo moral. As virtudes morais teriam, assim, relevante função na gênese da moralidade.
A gratidão como um sentimento interindividual, por sua vez, foi abordada por diversos autores. Piaget (1965-1973) considerou que os sentimentos interindividuais aparecem nas trocas de valores entre os indivíduos. Toda ação de um indivíduo repercute sobre outros, provocando uma ação de volta, que pode ser material ou virtual. Quando a ação de retorno é material, ocorre transferência de objeto em retribuição à ação recebida; quando é virtual, ocorre valorização positiva ou negativa do agente, a partir de uma escala pessoal de valores, ocasião em que o sentimento interindividual aparece. No caso específico da gratidão, ocorreria, por parte do beneficiário, uma valorização positiva do benfeitor, portanto um sentimento interindividual. Pode-se dizer que, na gratidão, ocorre uma troca (e não uma transferência de valor), pois do recebimento de uma benesse decorre a valorização positiva do benfeitor (e não a transferência de objeto em retribuição à ação recebida). É dessa valorização positiva do benfeitor - e não apenas de sua ação - que decorrem o sentimento de uma dívida psicológica e a necessidade sentida pelo beneficiário de retribuição da benesse recebida.
Baumgarten-Tramer (1938) qualificou a gratidão, do ponto de vista psicológico, como um sentimento reativo que emerge quando se obtém uma benesse ou ajuda desejada. A autora destacou a complexidade do sentimento de gratidão, que abarcaria: a) satisfação pela assistência recebida - componente de natureza egoísta; b) valorização do benfeitor - componente de natureza social; c) desejo de recompensar o benfeitor - componente de natureza social; e d) sentimento de dívida impossível de ser saldada. Quanto à satisfação pela assistência recebida, para La Taille (2000), o beneficiário de uma ação generosa percebe esta como um gesto espontâneo do benfeitor, que atenta para a sua singularidade, e não como algo que lhe cabe por direito. Esse fenômeno acarreta a valorização do benfeitor e o desejo de recompensá-lo, elementos que, por sua vez, conferem o caráter interindividual do sentimento de gratidão. Para Bonnie e de Waal (2004), nesse mesmo sentido, a gratidão pressupõe, além da apreciação do favor recebido, sentimentos positivos dirigidos ao benfeitor, sendo, pois, um sentimento interindividual. Westermarck (1908-1928) viu a gratidão como um sentimento retributivo benevolente o qual, para Solomon (2004), é contrário à vingança, outro tipo de sentimento retributivo.
3.4 A GRATIDÃO NA INFÂNCIA
Apesar de a gratidão ter sua importância reconhecida, pouco se sabe sobre esse fenômeno na infância. Em uma busca no banco de dados científicos PsycInfo dos descritores gratitude (gratidão) e development (desenvolvimento), nenhum estudo empírico sobre a gratidão ao longo do desenvolvimento infantil foi encontrado no período de 2000 a setembro de 2008. Nesse mesmo período, utilizando-se os descritores gratitude e children (crianças), somente um artigo empírico apareceu - Gordon, Musher-Eizenman, Holub e Dalrymple (2004). Para Froh et al. (2008), as pesquisas sobre a gratidão em crianças são, em sua maioria, sobre a compreensão das crianças a respeito dos antecedentes da gratidão e suas crenças sobre a gratidão, não sobre a experiência da gratidão em si. Não se sabe ainda se gratidão é inata, se se manifesta de diferentes formas em função da idade e do sexo, se pode ser cultivada e de que forma influencia o funcionamento psicológico. Se a gratidão é uma virtude que concorre para a gênese da moralidade, conforme sugeriu La Taille (2001), é importante conhecê-la melhor. Estudos também têm indicado que a gratidão pode ser importante para o coping (FREDRICKSON, 1998). Assim, torna-se relevante conhecê-la melhor, a fim de que se possam desenvolver programas que promovam o bem-estar.
Conforme Paludo e Koller (2006), o contexto de emergência da gratidão tem interessado muito aos pesquisadores, nos termos de como e quando a gratidão é expressa. Resultados de pesquisa indicam que a compreensão e a expressão da gratidão se desenvolvem ou se modificam ao longo da infância (MCADAMS; BAUER, 2004). No entanto, há muitos pontos nebulosos no assunto.
Dentre os autores que abordaram o tema, Klein (1957-1974) escreveu que somente a criança que desenvolve uma boa relação com o objeto bom materno pode construir uma forte e permanente capacidade para o amor e a gratidão. Todavia, a autora extraiu suas conclusões da observação de bebês, sem, contudo, verificar empiricamente essa sua hipótese. Lazarus e Lazarus (1994) afirmaram que a gratidão é uma das emoções que se originam na capacidade de ter empatia com os outros. Para Baumgarten-Tramer (1938) e outros autores (MCCULLOUGH et al., 2001), as crianças só compreendem a gratidão após o curso de diversos anos de seu desenvolvimento. Apesar de as experiências primevas de apego conterem alguns elementos primitivos de gratidão, por ser esta uma emoção com atribuição, ela requer uma teoria da mente internalizada, o que ocorreria apenas por volta dos 4 anos de idade (MCADAMS; BAUER, 2004).
Dados de pesquisa apontados por Weiner e Graham (1988) sugerem que a ligação da atribuição de responsabilidade por resultados positivos com a gratidão só se consolida entre os 7 e 8 anos de idade. Antes dos 7 anos, as crianças tendem a receber um benefício sem levar em conta a intencionalidade ou os motivos do benfeitor. Em um estudo empírico sobre o altruísmo com crianças de 5 a 11 anos, Lourenço (1992) constatou que, com o aumento da idade, aumenta o altruísmo das crianças, dentre outras razões, pelo desenvolvimento da habilidade de conceber os atos pró-sociais em termos de ganhos. A partir disso, pode-se pensar que as crianças, na medida em que compreendem os atos pró-sociais como ganhos, passam também a entender a função social da gratidão.
Na passagem para a adolescência, a tendência a experienciar e expressar gratidão desenvolve-se de acordo com fatores pessoais e ambientais. O senso comum e a experiência pessoal sugerem que a qualidade da vida familiar e das relações fraternas, o efeito dos pares e da mídia, a influência da escola e da igreja e, sobretudo, o grau de civilidade que caracteriza o mundo social da criança contribuem para o desenvolvimento da gratidão (MCADAMS; BAUER, 2004). A partir de um estudo longitudinal com jovens, Vaillant (1993) teorizou que a gratidão é parte de um processo criativo, ao longo do desenvolvimento, em que emoções autodestrutivas são transformadas em emoções fortalecedoras e reparadoras.
Dentre o pequeno número de estudos empíricos sobre a gratidão na infância, destaca-se o de Baumgarten-Tramer (1938), com 1.059 crianças e adolescentes de Berna, a quem perguntou: ''O que tu mais queres?'' e ''O que tu farias para a pessoa que te desse o que tu mais queres?''. Com base nas respostas escritas, encontrou quatro tipos de gratidão, de complexidades distintas, que apareceram em diferentes frequências, de acordo com a idade. Inspirados nessa pesquisa, Gordon et al. (2004) compararam relatos de crianças de 4 a 8 anos e de 9 a 12 anos sobre a quem eram gratas antes e depois do atentado de 11 de setembro, nos Estados Unidos. Os resultados sugeriram que as crianças de 9 a 12 anos têm mais gratidão às pessoas do que as de 4 a 8 anos, que seriam mais gratas a objetos materiais, o que aponta para uma diminuição do egocentrismo e aumento de interesse pelas relações interpessoais das crianças maiores. As crianças mais velhas também incluíram mais temas em seus relatos, o que pode ser atribuído à sua maior habilidade de escrita. Os resultados também indicaram uma diferença de gênero, tendo os relatos das meninas apresentado mais temas do que os dos meninos. As meninas mostraram-se mais gratas às pessoas, enquanto os meninos, a objetos materiais. Esses dados podem ser interpretados como uma tendência das meninas a passar mais tempo com as pessoas, a ocupar-se de temas sobre relacionamentos, a ter mais intimidade nas relações e a valorizar mais as amizades, enquanto os meninos seriam mais competitivos.
No Brasil, encontrou-se apenas uma pesquisa com crianças e adolescentes, sendo que esses viviam em situação de risco pessoal e social. Paludo (2008) investigou a disposição para experienciar gratidão em 856 crianças e adolescentes de 7 a 16 anos, em diferentes contextos de risco, utilizando uma versão reduzida da escala Gratitude Questionnaire - 6 (GQ6), traduzida e adaptada para o português. Os resultados mostraram que o afeto positivo contribuiu significativamente para o aumento da expressão da gratidão, não tendo, os estressores e as condições de vida, afetado a disposição para a gratidão. O fato de possuir um familiar doente ou deficiente mostrou contribuir para a experiência da gratidão, talvez porque o ente cuidado manifeste gratidão e estimule o cuidador a sentir gratidão, pois a literatura sugere que a gratidão inspira o benfeitor a agir pró-socialmente - portanto, a sentir gratidão (MCCULLOUGH et al., 2001). Não foram encontradas diferenças de sexo na disposição para a gratidão.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante realizarem-se mais pesquisas sobre a gratidão, em virtude de ser um sentimento socialmente desejável. A gratidão não apenas estimula o comportamento moral; pode também ser importante na própria constituição da moralidade.
Com relação à gratidão no desenvolvimento infantil, Froh et al. (2008) acreditam que muito resta a ser feito ainda nesse terreno. Gordon et al. (2004) ressaltaram que a necessidade de pesquisas sobre a gratidão em crianças é uma prioridade crítica. As perguntas sobre se a gratidão é inata, se se manifesta de diferentes maneiras de acordo com a idade e o sexo, se pode ser estimulada e de que forma influencia o funcionamento psicológico seguem sem respostas. Elucidar questões referentes à gratidão ao longo da infância pode auxiliar a compreender melhor esse fenômeno e a criar estratégias que fomentem esse tipo de sentimento nos indivíduos em formação.
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Endereço para correspondência:
Maria Adélia Minghelli Pieta
E-mail: mpieta@terra.com.br
Lia Beatriz de Lucca Freitas
E-mail: lblf@ufrgs.br
Submetido em: 15/10/2008
Revisado em: 10/01/2009
Aprovado em: 07/01/2009