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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.61 n.3 Rio de Janeiro dez. 2009

 

ARTIGO

 

Explorar com crianças - reflexões teóricas e metodológicas para os pesquisadores

 

Explore with children - Theoretical and methodological issues for researchers

 

 

Christiana Cabicieri ProficeI; José Q. PinheiroII

IUniversidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Bahia, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva discutir diferentes concepções teóricas e metodológicas que orientam as pesquisas que envolvem crianças. Em um primeiro momento, nos detemos na apreciação dos referenciais conceituais tradicionalmente adotados pela Psicologia do Desenvolvimento para, em seguida, refletir acerca de um modelo investigativo mais compatível com a especificidade infantil. Estes dois caminhos são entrecruzados por uma terceira via crítica, que nos orienta na contextualização dos estudos do desenvolvimento infantil e das relações sociais estabelecidas entre crianças e adultos. Buscamos aproximar perspectivas biológicas e socioculturais por intermédio da Psicologia Ecológica e tecemos considerações para uma abordagem participativa, holística e interdisciplinar das pesquisas com crianças.

Palavras-chave: Pesquisa com crianças; Psicologia Ecológica; Interdisciplinaridade.


ABSTRACT

This paper presents and discusses different theoretical and methodological approaches that guide research involving children. First it considers conceptual frameworks from developmental Psychology and then it discusses a research model more compatible with the specificity of children. These two paths are crossed by critical approach, which help us in the contextualization of the theories of child development and social relationships between children and adults. We try to approach biological and socio-cultural trends in child development through the Ecological Psychology in order to promote a participative, holistic and interdisciplinary research with children.

Keywords: Research with children; Ecological Psychology; Interdisciplinarity.


 

 

EXPLORAR COM CRIANÇAS

Cada vez mais as pesquisas com crianças se distanciam de padrões conceituais e metodológicos rígidos e fechados em direção a uma maior abertura para abordagens ambientais (BROFENBRENNER; MORRIS, 1998; DERNICK; WAPNER, 1988; PINHEIRO, 1997; SUNDSTROM ET AL., 1996), holísticas (ClARK, 2001; DARBYSHIRE; MACDOUGALL; SCHILLER, 2004; 2005; MAGNUSSON, 1995; MOORE; MC ARTHUR; NOBLE-CARR, 2008) e interdisciplinares (NUNES; MOURA, 1998; PROUT, 2002; SOUZA, 1996). Acreditamos que esta mudança de perspectiva, sobretudo nas interfaces da Psicologia do Desenvolvimento com as demais disciplinas científicas, seja motivada por duas razões principais. Em primeiro lugar, destacamos que desde a Ecologia Psicológica de Kurt Lewin (1933/1967), há oitenta anos, os estudos do desenvolvimento infantil são atravessados pelo referencial ecológico que, por sua vez, aporta uma concepção multidimensional dos contextos de desenvolvimento da infância. Uma segunda razão nos parece ter sua origem no reconhecimento da limitação adulta e de seus aparatos investigativos na aproximação e compreensão do que é significativo para as crianças, o que motiva a busca por um modelo de pesquisa mais sintonizado com a especificidade perceptiva e expressiva infantil. Diante deste quadro, acreditamos que as pesquisas com crianças envolvem dois desafios de partida: compreender o contexto ecológico dos participantes e formular estratégias de aproximação que acessem os significados por eles produzidos.

Neste artigo buscamos enveredar por estas duas trilhas: uma de tonalidade teórica, a partir da apreciação dos referenciais conceituais adotados pelos estudos sobre crianças, e a outra de vertente metodológica, a partir da reflexão sobre um modelo investigativo mais compatível com a especificidade infantil. Esses dois caminhos são entrecruzados por uma terceira via crítica, aberta pela História Social da Infância e pela Nova Sociologia da Criança, que nos orienta na contextualização dos estudos do desenvolvimento infantil e das relações sociais estabelecidas entre crianças e adultos.

A Biologia Organicista e a Criança Universal

As teorias tradicionais do desenvolvimento postulam uma evolução cognitiva universal que se dá no sentido do progresso de modos rudimentares de percepção da realidade, característicos da infância, para a apreensão racional madura, própria do universo adulto. Nesta direção, a Psicogenética Construtivista de Piaget (PIAGET, 1933/1967; 1946/2002; 1947/2005; 1970; PIAGET; INHELDER, 1967) assume o papel de principal modelo teórico para o desenvolvimento, concebendo um modelo de criança universal que, independente de seu contexto cultural, desenvolve-se na interação com o ambiente, esta última sempre mediada pelos processos cognitivos e representativos (DI STEFANO; DONGHI, 1998). O construtivismo piagetiano traz da Biologia Evolutiva os princípios de assimilação e acomodação que funcionam como os promotores da adaptação psicológica. Segundo Piaget (1970, p. 706-707, tradução nossa), as assimilações, tanto no sentido biológico como psicológico, são diferentes das associações empíricas e se definem como "integração de elementos externos em estruturas completas ou em desenvolvimento de um organismo". A adaptação, biológica ou cognitiva, "consiste em um equilíbrio entre assimilação e acomodação" (PIAGET, 1970, p. 708, tradução nossa). Porém, orientada por sua Biologia Organicista, a Psicogenética Evolutiva postula que as acomodações encontram limites nas próprias possibilidades da estrutura, "uma associação é sempre acompanhada por uma assimilação da estrutura prévia" (PIAGET, 1970, p. 708, tradução nossa). Nesta apreensão, os esquemas cognitivos universais são estruturas internas dos organismos que assimilam e se acomodam eles organizam a ação ao mesmo tempo em que são produtos da autorregulação e da generalização. A organização representa a tendência do funcionamento cognitivo a formar estruturas e se constitui como totalidades orgânicas que apresentam relações peculiares entre suas partes (VALENTINI, 1998).

Na Psicogenética Evolutiva a ontogenia recapitula culturalmente a filogenia que nos fez evoluir de primatas e primitivos a homens racionais e civilizados e a infância é assemelhada ao período selvagem ou subdesenvolvido da humanidade. O que sustenta estas aproximações entre a filogenia e a ontogenia é uma concepção da evolução como progresso linear hierarquicamente organizado (BURMAN, 1994). A cognição universal da abordagem psicogenética se desenvolve conforme uma sequência de estágios, determinada por sua própria natureza e, neste sentido, podemos reconhecê-la como herdeira da criança natural romântica. Conforme a tradição romântica de pensamento, a criança é dotada de uma natureza própria que é corrompida ou transformada pelo convívio com o mundo adulto (BURMAN, 1994; ROUSSEAU, 1762). Na visão romântica, a infância antecede a humanidade e, por esta razão, a criança natural tem uma forma de pensar e sentir que lhe é própria e que deve ser cultivada em nome de uma civilização menos decadente que a proporcionada pelas sociedades modernas. Na abordagem psicogenética, a interação entre a criança e o ambiente é sempre mediada e jamais direta, o sujeito epistêmico, diferente do sujeito experimental, é mais um conhecedor universal do que um conhecedor particular. No interacionismo piagetiano, o indivíduo é um organismo representante da espécie humana, o que faz com que esta abordagem não privilegie as mudanças sociais e históricas.

Contudo, em sua epistemologia genética, Piaget (1970) estabelece uma continuidade teórica entre o pensamento infantil e o científico. Para o autor, a cognição se desenvolve como um sistema epigenético que proporciona a adaptação do organismo ao ambiente e a adaptação da inteligência ao curso de sua própria estruturação por meio dos processos de assimilação e acomodação. Para conhecer um objeto, o sujeito deve agir sobre ele, transformando a si próprio e ao objeto. Na ação, o sujeito e o objeto se fundem e o conhecimento surge a partir dessa interação indiferenciada tão característica do pensamento infantil. Progressivamente, essas ações primitivas se transformam em operações e se tornam ações interiorizadas. No curso do desenvolvimento, as assimilações e as acomodações buscam um equilíbrio e apenas a descentralização do pensamento possibilita o conhecimento adequado ou objetivo (PIAGET, 1970).

A Biologia Contextual e a Criança Sócio-histórica

Como referência metateórica que sustenta o pensamento ecológico, a Teoria da Evolução de Darwin, formulada no final do século XIX, explica a ligação entre todos os seres vivos e os relaciona em termos de uma longa e contínua ramificação e diferenciação entre as espécies (DARWIN, 1859/2005; ODUM, 1988). Como vimos, a assimilação do evolucionismo na Psicologia do Desenvolvimento tradicional enfatiza a uniformidade e a universalidade, apesar da teoria de Darwin conceber o mesmo peso à variabilidade e à diferenciação nos processos de evolução (FOLEY, 2003). Deste modo, a utilização do raciocínio evolutivo para a Psicologia do Desenvolvimento aponta não apenas para um cenário de linearidade e constância de contextos ancestrais, mas também para a dinâmica das inovações decorrentes das interações ambientais em tempo real (BJORKLUND; PELLEGRINI, 2000).

Os sistemas vivos são complexos e a complexidade é uma noção negativa que nos conduz a uma percepção global da interação entre a criança e seu ambiente (Atlan, 1979). Um sistema vivo, aberto, como organismos ou ecossistemas, é suscetível a perturbações ou ruídos que desencadeiam processos auto-organizativos que, por sua vez, garantem a continuidade de seu funcionamento, gerando diminuição de redundância e aumento da complexidade. Para Atlan (1979, p. 78. tradução nossa) "a complexidade é uma desordem aparente na qual há razões para supormos uma ordem oculta; ou ainda, a complexidade é uma ordem da qual não conhecemos o código". Neste sentido, conhecer um elemento de um fenômeno complexo nos facilita o conhecimento acerca dos demais elementos envolvidos, o que reduz a incerteza e nos permite a percepção de uma ordem (ATLAN, 1979). O desenvolvimento, como sistema dinâmico e complexo, produz o mais a partir do menos, por meio de seus processos auto-organizativos e emergentes (SMITH; THELEN, 2003). O desenvolvimento, como processo encarnado em uma história pessoal e social, é também o produto emergente das "interações locais e descentralizadas que acontecem em tempo real" (SMITH; THELEN, 2003, p. 343).

Os organismos ou pessoas são sistemas complexos abertos para ambientes também complexos e dos quais fazem parte em determinado nível hierárquico. Nesta direção, a teoria dos sistemas dinâmicos pode ter uma utilização tanto conceitual como instrumental para a Psicologia do Desenvolvimento, já que trata da natureza epigenética dos processos ontogenéticos. O desenvolvimento ocorre pela emergência e dissolução de padrões de estabilidades dinâmicas em um processo que nada se assemelha a uma marcha linear na direção da maturidade (SMITH; THELEN, 2003). Como um sistema complexo, o desenvolvimento evolui em diferentes níveis e escalas temporais e podemos observá-lo apenas no seu decorrer em um contexto histórico que o influencia e é por ele influenciado.

Dentre as teorias psicológicas que se debruçam sobre o desenvolvimento infantil, a referência sócio-histórica de Vigotski e de seus colaboradores da escola russa é reconhecida como aquela que mais valoriza os aspectos interativos do contexto social (ROGOFF, 2004; VEER; VALSINER, 1996). Para Vigotski, tanto a história do homem como o desenvolvimento infantil operam como uma complexa interação de fatores filogenéticos e ontogenéticos e não por simples recapitulação dos primeiros pelos segundos (VIGOTSKI, 1998; VIGOTSKI; LURIA, 1939/1987). A criança como um ator social, e não apenas como um organismo que se desenvolve, participa ativamente do ambiente sócio-histórico, por intermédio de mediadores culturais como a linguagem (DI BLASIO, 1995). Esta perspectiva, assim como o construtivismo piagetiano, pressupõe uma realidade externa e a priori da percepção e do próprio sujeito, seja ela de ordem física ou simbólica. Nos contextos interativos que funcionam dialeticamente, a pessoa ingressa no fluxo contínuo da transformação histórica e, por meio dele, se singulariza tornando-se parte da duração, sendo ao mesmo tempo agente e produto da mudança. Desta forma, a criança participa do mundo social a partir da inibição das funções primitivas e da elaboração de formas complexas de adaptação. A cultura é o próprio processo de evolução,

[...] inserindo-se no seu ambiente, a criança começa logo a se transformar e a mudar: isto acontece muito cedo porque a situação cultural já pronta cria nela determinadas formas de adaptação que há muito foram criadas pelos adultos que a rodeiam (VIGOTSKI; LURIA, 1939/1987, p. 168, tradução nossa).

No construtivismo sócio-histórico, o processo geral de desenvolvimento parte de processos elementares, que são de ordem biológica, e alcança as funções psicológicas superiores, que são de origem sociocultural (VIGOTSKI, 1998, p. 61). As raízes biológicas constituem a pré-história da humanidade, a transição entre o arranjo orgânico da pessoa e as aquisições culturais configura a história natural do signo. Este processo é denominado de internalização e opera da seguinte forma, "uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente" (VIGOTSKI, 1998, p. 75). O homem corporal e mental é produto da filogênese e da ontogênese, ainda que, como assinalamos antes, Vigotski não as trate em termos de recapitulação. Por meio da internalização, os signos internos se configuram como representações mentais que substituem os objetos do mundo real (OLIVEIRA, 1992). Para Vigotski, a capacidade em lidar com as representações possibilita ao homem libertar-se do espaço e do tempo atual. Nesta direção, as representações mentais da realidade exterior se constituem como as principais mediadoras da interação entre a pessoa e o ambiente.

A abordagem sócio-histórica abre caminho para a desnaturalização da criança e de seu processo de desenvolvimento que passa a ser visto cada vez mais como dependente do contexto cultural. Neste sentido, o ambiente sociocultural é determinante tanto para o desenvolvimento cognitivo como também para as teorias que o explicam.

A História das Infâncias Socialmente Construídas

As teorias de desenvolvimento e as recomendações culturais referentes aos cuidados infantis se apoiam em moralidades dominantes socialmente construídas (ARIÈS 1973/1981; BOYDEN; LEVISON, 2001; BURMAN, 1994; HENDRICK, 1992; PROUT, 2002; 2008). A infância, tal como a concebemos hoje, é um fenômeno contemporâneo e instável, distante da regularidade e linearidade dos modelos conceituais que a explicam (PROUT, 2002). Conforme Ariès (1973/1981), do meio do século XVII a meados do XIX se produziu um sentimento de infância ausente da mentalidade medieval e que se caracteriza pela dominância da moralidade religiosa no trato das crianças em um contexto de alta mortalidade infantil. Depois da Primeira Guerra Mundial, ocorrida no início do século XX, a Medicina assume a tarefa moral do cuidado com as crianças, que antes era de predominância religiosa. A orientação médica se instala com o intuito de aumentar a expectativa de vida e a queda na mortalidade infantil, ainda que no início da industrialização o número de mortes de crianças tenha aumentado (BURMAN, 1994).

Entre os anos 1930 e 1950 se enuncia uma orientação moral diferente, com ênfase nas necessidades e no desenvolvimento natural e emocional da criança, que se desdobra em práticas pedagógicas mais lúdicas e menos punitivas. A partir dessa mudança, a preocupação do que a criança vai se tornar no futuro orienta tanto o plano científico como o senso comum. De acordo com a leitura de Burman (1994), as imagens mutantes da infância refletem as tensões sociais amplas vividas pelos Estados modernos industrializados. Esta dinâmica histórica do ordenamento social engendra modelos de infância contrastantes que convivem e se complementam, criando continuidades que atravessam épocas distintas e que lutam pelo status de modelo da criança universal. Mais recentemente, a referência ecológica alcança a Psicologia do Desenvolvimento e lança um novo plano para observação e compreensão da criança. Nesta visão, sua participação no contexto é ativa e envolve diferentes níveis ecológicos, desde os mais proximais aos mais amplos.

A Psicologia Ecológica e a Criança Ambiental

O pensamento ecológico, encarregado do estudo dos seres vivos e de suas interações com o ambiente, teve sua aplicação estendida da Biologia para os demais ramos científicos, gerando não apenas abordagens mais holísticas do desenvolvimento, como também uma espécie de preocupação com o meio ambiente nas mais diversas disciplinas (Odum; Odum; Odum, 1995). Com a ecologização é possível não somente a ampliação do contexto de observação e investigação, mas também o despertar de uma consciência ambiental. Os cientistas ecologicamente sensibilizados ingressam em uma revisão crítica da ciência, sobretudo em relação ao seu padrão mecanicista e instrumentalista responsável pelos atuais problemas ambientais em escalas locais e globais (CAPRA, 2008; LEAKEY; LEWIN, 1997). Uma nova atitude ambiental passa por uma ecosofia, ou seja, pela articulação entre os três registros ecológicos, o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana (GUATTARI, 1995).

Em contraponto aos modelos teóricos da interação mediada entre a pessoa e o ambiente, a Ecologia conduz a modelos da interação direta, nos quais a pessoa é afetada e afeta diretamente o ambiente, sem a obrigatoriedade de um componente mediador. Esses modelos não negam a existência dos mediadores e das representações, mas os situa como consequência dos processos perceptivos e cognitivos que evoluíram com a humanidade (HASENLAGER, 2004). A Ecologia Psicológica de Kurt Lewin (1951/1965; 1933/1967) dirige sua atenção para a participação psicológica do ambiente no desenvolvimento e no comportamento humano. Segundo o teórico, "a influência ambiental somática, tanto como a psicológica, estão constantemente agindo sobre a criança como um todo" (Lewin, 1933/1967, p. 590, tradução nossa).  Nesta direção, Lewin propõe um afastamento da Biologia Mecanicista (Organicista) em direção de uma Física Orgânica dos campos de força. Para Lewin (1933/1967), é a partir da relação imediata do organismo com a situação concreta que se viabiliza o comportamento movido por insight. À Biologia Organicista, Lewin contrapõe a perspectiva de Jakob von Uexküll, na qual a situação física é tomada como fenômeno específico ou mundo funcional (Umwelten) (UEXKÜLL, 2004). Com a teoria ecológica dos sistemas dinâmicos tem início a construção de uma alternativa tanto para o objetivismo como para o subjetivismo nos estudos do desenvolvimento; o modelo sistêmico é adotado para o estudo da unidade do processo vital, descrito como "um sistema coerente em que sujeito e objeto se definem como elementos inter-relacionados em um todo maior" (UEXKÜLL, 2004, p. 20-21).

A partir desta perspectiva, o que se transforma no desenvolvimento da criança é seu espaço de vida que, inicialmente, é pequeno e indiferenciado e, progressivamente, passa a ser percebido como espaço efetivo. Por meio de sua extensão e diferenciação gradual, "um ambiente mais amplo e diferentes fatos assumem existência psicológica" (Lewin, 1933/1967, p. 594, tradução nossa). Com a experiência, o espaço-tempo da criança se amplia e os fatores psicologicamente críticos do ambiente operam no seu espaço de vida. Nesta concepção o ambiente da criança é quase físico e quase social, é um mundo de propriedades psicobiológicas críticas que compreende tanto objetos reais e palpáveis como aqueles irreais e imagináveis. No ambiente da criança, "a diferenciação de vários graus de realidade é bem menos marcada e as transições entre os níveis de realidade e irrealidade ocorrem mais facilmente do que nos adultos" (LEWIN, 1933/1967, p. 617, tradução nossa).

Na trilha da Ecologia Psicológica lewiniana, Bronfenbrenner (1978/2005; 1977; BRONFENBRENNER; MORRIS, 1998) estrutura sua Bioecologia do Desenvolvimento Humano. Para esta referência, ao se desenvolver a criança se torna isomórfica em relação ao seu ambiente social e o contexto ecológico precisa ser analisado como uma função da interação entre seus participantes. Com o objetivo de contemplar as distintas dimensões integradas envolvidas na interação entra a criança e seu ambiente, a partir da incorporação da contribuição sócio-histórica vigotskiana, Bronfenbrenner e Morris (1998) propõem um modelo de pesquisa denominado processo-pessoa-contexto-tempo (PPCT), partindo da concepção de um sistema de desenvolvimento integrado mobilizado por mudanças biológicas, temporais, culturais e sociais (DESSEN; GUEDEA, 2005; LORDELO, 2002; NARVAZ; KOLLER, 2004; VARIN, 1995).

Outra linha derivada do pensamento lewiniano consiste na Psicologia Ecológica, formulada e desenvolvida por James Gibson e Eleanor Gibson, que parte da inseparabilidade entre ação e percepção (BRUCE; GREEN, 1993; GIBSON, 1969; GIBSON; GIBSON, 1972/1991; HEFT, 2001; REED, 1993). Em um funcionamento imbricado, próprio dos seres vivos, a percepção incorpora e guia ações ao mesmo tempo em que as ações informam as percepções. Neste sentido, não há informações inatas, a adaptação da espécie em sua evolução e do indivíduo durante a sua vida se orienta pelo sucesso interativo com o ambiente. De acordo com Gibson e Gibson (1972/1991, p. 504, tradução nossa), "a informação acerca do mundo vem do mundo". Na Psicologia Ecológica do Desenvolvimento, a distinção entre percepção e cognição é, além de infrutífera, desnecessária. Para Gibson e Gibson (1972/1991, p. 616, tradução nossa), "nós percebemos para aprender, assim como aprendemos a perceber".

A Psicologia Ecológica alerta para a impossibilidade de um programa universal de desenvolvimento para a infância. Segundo Gibson e Gibson (1972/1991, p. 371, tradução nossa), "a contribuição do ambiente é tão importante que a aparência de estágios deve ser resultante do programa fornecido pela cultura para a educação infantil". Com a teoria das affordances, a Psicologia Ecológica enfatiza a mutualidade e reciprocidade da interação entre as criaturas vivas e seus ambientes. Conforme definiu James Gibson (1969, p. 558, tradução nossa),

[...] as affordances do ambiente são o que ele oferece ao animal, o que ele provê ou fornece, tanto para o bem como para o mal. (...) Elas implicam a complementaridade do animal com o ambiente.

A Psicologia Ecológica do Desenvolvimento é implicada com uma crítica à cristalização dos paradigmas que, segundo seus formuladores, lentamente tomaram o lugar dos problemas originais, criando, desta forma, um ciclo fechado de velhos problemas com novas fachadas (GIBSON, 1972/1991). Para se tornar ecológica, a Psicologia do Desenvolvimento deve abrir mão deste posicionamento naïf e historicamente alienado, permitindo assim a sua própria evolução.

Assim como a teoria das affordances, a teoria dos behavior settings de Barker e Wright também parte da ideia de uma interação não mediada entre a pessoa e o ambiente (BARKER; WRIGHT, 1955/1971; SCHOGGEN, 1989). As pessoas constituem parte do ambiente assim como o ambiente constitui parte das pessoas, e por isso devem se distinguir apenas como dois níveis de organização para o enfoque investigativo (HEFT, 2001). Enquanto os Gibsons, com a noção de affordances, chamam a atenção para a interação imediata do corpo (que inclui a mente) perceptivo e ativo no ambiente, Barker e Wright com os behavior setting destacam as interações que envolvem as pessoas, os objetos e os comportamentos nos espaços-tempos que se relacionam e que são os meios nos quais se imprimem a duração, criando marcas, dobras e fissuras. Também partindo da Ecologia Psicológica de Lewin, a teoria do behavior setting se aplica ao estudo dos ambientes ecológicos, seu foco é centrado no comportamento molar, ou seja, intencional e dirigido a um objetivo (SCHOGGEN, 1989).

Além de expor as diferentes dimensões ecológicas do contexto, a Psicologia Ecológica atualiza o caráter ativo da participação da criança em seu ambiente e, consequentemente, em seu desenvolvimento. A peculiaridade do ser infantil e de seu modo de conhecer não é mais vista como imaturidade ou distorção da realidade, mas revela o processo inventivo que orienta a cognição. 

A Criança Inventiva

Varela e seus colaboradores também partem da não identificação entre cognição e representação (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1993). Esta abordagem de base biológica não é objetivista nem subjetivista. Em seu entendimento,

[...] a cognição, longe de ser a representação de um mundo preexistente, é um acontecimento conjunto de um mundo e de um espírito a partir da história das diversas ações efetuadas por um ser no mundo (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1993, p. 35, tradução nossa).

Na Biologia da autopoiese,

[...] a superação do modelo de representação envolve, então, uma ampliação do conceito de cognição, transformando-o num sistema complexo em que a representação, incluída ao preço de seu enfraquecimento e mesmo de sua subversão, coexiste com os breakdowns (MATURANA, 1998, p. 145).

Como alternativa à representação, os formuladores da autopoiese apresentam a noção de enação definida como cognição encarnada e argumentam que

[...] a percepção consiste em uma ação guiada pela própria percepção e as estruturas cognitivas emergem dos esquemas sensório-motores recorrentes que permitem com que a ação seja guiada pela percepção (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1993, p. 235, tradução nossa).

Nesta abordagem não existe um plano ideal para organização dos elementos cognitivos disponíveis, mas apenas um plano de possibilidades que faz do organismo o sujeito e objeto da evolução e do desenvolvimento (ARENDT, 2000).

Ao passo que a Psicologia Cognitiva, apoiada na psicogenética das interações mediadas, se orienta pela analítica da verdade e se desenvolve para a busca de invariantes, uma ontologia do presente volta seu foco para a transformação (KASTRUP, 1999). Na cognição autopoiética dos biólogos Maturana e Varela, "o vivo não se define como sistema autorregulador com tendência ao equilíbrio, mas como sistema autopoiético que tem como produto essencial produzir a si mesmo" (KASTRUP, 1999, p. 113). Maturana (1998) não identifica os processos ontogênicos com os filogênicos; para o biólogo chileno, a diferença entre ontogenia e filogenia reside na dinâmica estrutural do organismo. Enquanto a filogenia, como história orgânica, pressupõe etapas reprodutivas, a ontogenia por sua vez deve alcançar a reprodução e, deste modo, o fenótipo ontogênico assume seu duplo caráter de constância e transformação (MATURANA, 1998).

A invenção de problemas coloca a cognição em devir e, deste modo, lhe concede mobilidade e autonomia. Para Kastrup (1999, p. 37), "o devir não é algo permanente. Isto significa que há um primado da transformação sobre o transformado, do movimento sobre o móvel, da mudança sobre os estados". O devir criança trata não de estágios fixos e previsíveis de desenvolvimento, mas de um modo de ser que nos permite pensar a criança a partir dela mesma e não de seu sucesso como futuro adulto (DELEUZE, 1997; KASTRUP, 1999; 2000; SCHÉRER, 2002). A criança cartógrafa conhece o mundo desprovida de um mapa. Este é traçado durante o trajeto, "o mapa exprime a identidade entre o percurso e o percorrido" (DELEUZE, 1997, p. 73).

Explorar com Crianças

Diante de um panorama conceitual orientado pela referência ecológica e, portanto, necessariamente holístico, ambiental e interdisciplinar, as pesquisas com crianças lançam muitos desafios para os pesquisadores. Na busca de novas abordagens, é crescente a presença de pesquisas exploratórias, mesmo em áreas nas quais se considera que o conhecimento esteja bem estabelecido (STEBBINS, 2001).  A pesquisa exploratória é capaz de renovar o campo já que lança um novo olhar sobre fenômenos aparentemente saturados pelos procedimentos de predição e controle tradicionais. Além disso, a constante transformação dos fenômenos sociais e psicológicos contemporâneos lhes aporta mudanças significativas sempre passíveis de exploração e de geração, por meio da indução, de novos conceitos e generalizações (STEBBINS, 2001). Além de atender aos interesses científicos do pesquisador, o conhecimento produzido pelas iniciativas exploratórias procura também ser relevante para o planejamento de políticas e ações sociais (MARSHALL; ROSSMAN, 1999).

A abordagem exploratória permite um avanço qualitativo a partir da diversidade de fontes de dados que devem ser produzidas, preferencialmente por meio de uma abordagem multimétodos que permita o acesso a diversos planos significativos de um mesmo fenômeno (CLARK, 2001; DARBYSHIRE; MACDOUGALL; SCHILLER 2004; GUNTHER; ELALI; PINHEIRO, 2008). É nesse momento que explorar fenômenos infantis pode se transformar em explorar com crianças, a partir da criação de um território comum de interesse e da invenção de questões compartilhadas. A exploração dos dados produzidos com as próprias crianças, seja a partir de entrevistas ou grupos focais, permite sua participação reflexiva e a elucidação de componentes subjetivos não contemplados por perspectivas lineares (MORGAN et al., 2002; YUNES; SYMANSKI, 2005). A abordagem centrada na criança e em seu modo de problematizar constitui uma crítica à tradicional exclusão da voz das crianças da esfera pública que encontra respaldo no argumento desenvolvimentista da infância como etapa incompleta do processo de racionalização e socialização (BURMAN, 1994; CHAWLA et al., 2006).

A Nova Sociologia da Infância propõe a participação e envolvimento das crianças nas estratégias de investigação. Nesta direção, os novos modelos de pesquisa com crianças devem reconhecer a natureza metamórfica da infância a fim de melhor estimar o impacto do estilo de vida moderno em seu bem-estar (DARBYSHIRE; MACDOUGALL; SCHILLER, 2005; MOORE; MC ARTHUR; NOBLE-CARR, 2008; PROUT, 2002; SOARES, 2006). Ao procurar superar as explicações universais e atemporais, o investigador deve embrenhar-se no campo e ouvir o que as crianças dizem e não apenas o que dizemos delas. Este novo modus de intervir-pesquisar encontra sua inspiração filosófica em Bérgson (1979), quando este esclarece que a liberdade do cientista consiste, justamente, na invenção de problemas (DELEUZE, 1999; KASTRUP, 1999). Como sugerimos, o devir criança, como potência de invenção de problemas, pode ser o espírito animador da investigação exploratória, a partir da demarcação de um território comum de interesses. O pesquisador, imbuído do devir criança, não se torna artificialmente infantil, ele busca uma sintonia com o modo de percepção e de expressão próprios da criança e inacessíveis por intermédio dos modelos investigativos tradicionais.

A autopoiese é a marca do devir criança que atravessa e ultrapassa todas as formas culturais assumidas pela infância (MATURANA, 1998). O desenvolvimento, sob a perspectiva da diferença e da complexidade, escapa da rigidez paralisante dos estágios e fases teoricamente estabelecidos. A Biologia do conhecimento nos remete para a auto-organização do vivo que evolui em contínua recriação de acoplamentos nas redes complexas de que participa.  Reconhecer que nossa perspectiva adulta de mundo é diferente daquela das crianças não significa que elas são seres racionalmente inacessíveis, ao contrário, estimula o pesquisador a escutar o que as crianças dizem de nós, de nossos interesses e, sobretudo, das conclusões que geramos acerca delas. A pesquisa centrada na criança envolve aspectos éticos da interação entre os participantes da pesquisa, que ultrapassam os códigos formais de autorizações e protocolos e dizem respeito à franqueza dos objetivos e expectativas da investigação. Ou seja, incluir a criança no processo de pesquisa não é nos tornarmos porta-vozes de sua mensagem oprimida por meio de nossas conclusões, mas sim deixar com que o devir criança, a inventividade criadora e a clareza diante dos propósitos e intenções norteiem a interação entre seus participantes e definam seus interesses compartilhados durante a investigação. Explorar com crianças significa legitimar a inventividade como geradora de conhecimentos e compartilhar processualmente as perguntas e reflexões da pesquisa. Trata-se de estabelecer um plano, mesmo que provisório, para experimentação de híbridos de percepções e teorizações.

Trilhas a Serem Percorridas

Partimos da reflexão acerca de dois desafios colocados para os pesquisadores que conduzem investigações com crianças: o de compreender o seu contexto ecológico e o de formular estratégias de aproximação que acessem os significados por elas produzidos. Constatamos que é também incontornável uma reflexão acerca das infâncias social e cientificamente produzidas para que se efetue uma abordagem mais holística, ambiental e interdisciplinar. No plano teórico acreditamos que não há a existência de uma criança universal, ainda que universais possam ser vislumbrados no desenvolvimento infantil. Os estágios de desenvolvimento são esquemas socialmente construídos e que orientam a interação entre adultos e crianças. Isto não significa negar a existência de uma especificidade infantil em perceber e agir no mundo; talvez uma das principais contribuições da Psicogenética Evolutiva seja justamente a constatação desta diferença. Por sua vez, o referencial sócio-histórico traz como contribuição fundamental para a ecologização do desenvolvimento a força do contexto em suas dimensões psicobiológicas e socioculturais.

Contudo, mesmo reconhecendo as valiosas contribuições das abordagens psicogenéticas e sócio-históricas, os modelos de interação direta entre a criança e o ambiente nos parecem mais sintonizados, tanto com o referencial ecológico sistêmico como com a especificidade infantil em perceber e conhecer. Longe de obedecer a um plano de desenvolvimento preestabelecido, a criança inaugura seu próprio plano quando interage com seu ambiente e formula problemas que tornam essa interação cada vez mais complexa e ampliada. Nesta direção, o modelo exploratório se revela como indicado para uma abordagem crítica que busque rever as teorizações estabelecidas e formular novas generalizações, valendo-se do devir criança como uma potência investigativa presente na subjetividade de todas as pessoas e passível de ser aprimorada pelos pesquisadores. Acreditamos que entre as principais tarefas dos pesquisadores da área infantil está a proposição de uma conduta ética que possibilite a participação da criança não apenas pelas suas respostas a nossas perguntas, mas, sobretudo, a partir de seu modo de inventar problemas e desbravar novas trilhas de exploração.

 

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Endereço para correspondência
Christiana Cabicieri Profice
E-mail: christianaprofice@oi.com.br

José Q. Pinheiro
E-mail: pinheiro@cchla.ufrn.br

Submetido em: 18/05/2009
Revisto em: 02/08/2009
Aceito em: 03/09/2009

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