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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.71 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2019
https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i2p.163-178
ARTIGOS
Produção da Psicologia no Brasil sobre mulheres rurais: revisão sistemática
Psychology publications about rural women in Brazil: a systematic review
Producción de la Psicología en Brasil sobre mujeres rurales: revisión sistemática
Brisana Indio do Brasil de Macêdo SilvaI; Jorge Fernando de Carvalho Leite BarrosII; Sandra Elisa de Assis FreireIII; Fauston NegreirosIV; João Paulo MacedoV
IMestranda em Psicologia. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Piauí (UFPI). Parnaíba. Estado do Piauí. Brasil
IIMestrando em Psicologia. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Piauí (UFPI). Parnaíba. Estado do Piauí. Brasil
IIIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Piauí (UFPI). Universidade Federal do Piauí (UFPI). Parnaíba. Estado do Piauí. Brasil
IVDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Piauí (UFPI). Universidade Federal do Piauí (UFPI). Parnaíba. Estado do Piauí. Brasil
VDocente. Bolsista Produtividade/CNPQ. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Piauí (UFPI). Universidade Federal do Piauí (UFPI). Parnaíba. Estado do Piauí. Brasil
RESUMO
O presente estudo tem como objetivo investigar as produções científicas na área da Psicologia no que diz respeito às mulheres em contextos rurais no Brasil. Realizada nas bases da BVS-Psi, SciELO, PePSIC, LILACS, BDTD, Portal CAPES, com os seguintes descritores de busca: "psicologia" AND "mulheres" AND "rural". Foram selecionados 22 estudos (14 artigos e 8 teses/dissertações). Os estudos versam sobre: a) movimento social e participação política; b) jovens mulheres e ruralidade e c) condições de vida, saúde mental e suporte psicossocial.
Palavras-chave: Psicologia; Mulheres; Rural.
ABSTRACT
The present study aimed to investigate scientific publication in Psychology regarding women in the rural context in Brazil. The search included the databases BVS-Psi, SciELO, PePSIC, LILACS, BDTD, Portal CAPES using the search terms "psychology" AND "women" AND "rural". Twenty two studies were selected (14 journal articles and 8 thesis/dissertations). The studies were about: a) social movement and political participation; b) young women and rurality and c) living conditions, mental health and psycho-social support.
Keywords: Psychology; Women; Rural.
RESUMEN
El presente estudio tiene por objetivo investigar las producciones científicas en el área de la Psicología en lo que se refiere a las mujeres en contextos rurales en Brasil. Llevadas a cabo en las bases de la BVS-Psi, SciELO, PePSIC, LILACS, BDTD, Portal CAPES, con los siguientes descriptores de búsqueda: "psicología" AND "mujeres" AND "rural". Se seleccionaron 22 estudios (14 artículos y 8 tesis/disertaciones). Los estudios versan sobre: a) movimiento social y participación política; b) jóvenes mujeres y ruralidad y c) condiciones de vida, salud mental y apoyo psicosocial.
Palabras clave: Psicología; Mujeres; Rural.
Introdução
Os contextos rurais, enquanto espaço de construção social, vem passando por inúmeras transformações econômicas, ambientais e socioculturais advindas do avanço do capitalismo contemporâneo. A fim de interpretar o lugar do rural na formação e na evolução do Brasil, Wanderley (2011) realizou um balanço sobre os estudos rurais, desde 1960 até meados de 2010, totalizando 267 publicações de diferentes áreas do conhecimento, sobretudo, das ciências sociais - Sociologia, Antropologia, Geografia, Agronomia e Economia. Tais estudos contam com influência de autores como: Nazareth Wanderley, Ricardo Abramovay, Sonia Bergamasco, José Graziano Silva, Maria José Carneiro, José Eli da Veiga e José de Souza Martins, para citar alguns.
De acordo com Blume (2004), foi com a sociologia rural norte-americana, entre a década de 1920 a 1930, que o rural tornou-se objeto de estudo no campo sociológico. Os primeiros estudos assumiam uma visão dualista sobre rural e urbano/campo e cidade. O rural era visto como lugar de atraso e de retrocesso. Já em meados de 1950 a 1970, com a modernização tecnológica do campo, o meio rural passou a ser visto como sinônimo de agrícola. Tal enfoque teórico resultou em mudanças nos estudos realizados em contextos rurais. Antes centrados na dicotomia campo-cidade, esses passam a se deter nas características psicossociais e comportamentais dos agricultores.
Com a crise da sociologia rural, no final de 1970, surge uma nova abordagem de análise conhecida como sociologia da agricultura. Nessa perspectiva, o rural, enquanto espaço físico e geográfico, deixa de ser adotado como foco analítico. Passa-se a colocar em análise os processos sociais advindos na/da agricultura, no intuito de evidenciar as contradições da relação capital versus trabalho, e a diferenciação social e econômica das classes (Blume, 2004). Os eixos investigativos desse período centraram-se nos temas: "condições sociais e econômicas de existência da agricultura familiar", "políticas públicas e crise agrícola mundial", "relações de trabalho na agricultura"; "reestruturação das economias capitalistas, o comércio de commodities agrícolas", "análise das classes sociais na agricultura"; "problemática ambiental", dentre outros (Schneider, 1997, p. 249).
Nesse tocante, os estudos da sociologia da agricultura ampliaram as compreensões sobre o meio rural para além das práticas agrícolas, em uma análise pluralista, que se estende até os dias atuais. No entanto, destaca-se que nenhuma dessas representações supracitadas sobre o meio rural foram, em sua totalidade, superadas. Essas continuam influenciado os estudos acadêmicos, em âmbito mundial e nacional (Blume, 2004).
Wanderley (2011) sinaliza que o debate sobre o rural e ruralidade não apresenta uma homogeneidade. Conforme a autora, a produção de conhecimento sobre o mundo rural no Brasil, ao longo desses anos, perpassou por diversas temáticas: a) dicotomia rural versus urbano; b) relações sociais do trabalho; c) situação agrária; d) modernização da agricultura; e) desenvolvimento rural; f) acumulação do capital; g) políticas de financiamento rural e de incentivos fiscais; h) êxodo rural; i) condições de trabalho e de vida; j) lutas sociais e pela terra; l) movimentos sociais; m) assentamentos rurais; n) campesinato; o) família rural; p) gênero e geração; q) pobreza rural e políticas sociais; r) sustentabilidade ambiental, dentre outros.
Por muito tempo, os estudos rurais no Brasil estiveram voltados à dicotomia rural-urbano/campo-cidade e as questões referentes à agricultura (Wanderley, 2011). Somente a partir de 1990 observa-se a produção de novas temáticas que buscam (re)pensar o rural sob novas configurações sociais, pautando-se em discussões sobre espaço, território, sociabilidade, gênero, geração, etnia, raça, modos de vida e de trabalho (Morais, & Vilela, 2013).
Em relação à aproximação da Psicologia com os estudos rurais, Silva e Macedo (2017), ao investigarem a produção acadêmica da Psicologia sobre contextos rurais, sinalizam que, entre os anos de 1990 a 2015, foram publicados 77 estudos em periódicos científicos nacionais e internacionais, que versam, em sua maioria, sobre:
trabalho rural, a organização dos trabalhadores rurais e seus efeitos em torno das categorias na Psicologia social a partir da dualidade rural-urbano: identidade, relações grupais, socialização e modos de vida no campo, organização política e comunitária, produção de sentidos, processos de subjetivação, representações sociais, percepção, atitudes, valores, crenças, dentre outros (p. 824).
Além disso, apontam que a Psicologia deve avançar em estudos sobre:
relações de gênero e de gerações; modos de subjetivação, processos psicossociais e identitários; processos sociais e culturais; concentração fundiária; lutas sociais e a questão da terra; movimentos sociais rurais; processos sociais na transformação da realidade agrária; organizações sociais de classe; diferentes matrizes teóricas que refletem sobre a diversidade do campesinato; contradições do modelo produtivista de modernização da agricultura; multifuncionalidade da agricultura familiar; categorias: infância, adolescência, juventude e velhice; sexualidades; violências; drogas; famílias rurais; pobreza rural; religião; desenvolvimento rural sustentável; processos de assistência técnica e de extensão rural (p. 826).
Para os autores, o debate sobre ruralidade é algo urgente e necessário à Psicologia, enquanto ciência e profissão, a julgar: a) pela diversidade e pluralidade de questões que permeiam o universo rural; b) pela maior presença de psicólogos inseridos nos serviços de atenção primária e psicossociais em municípios de pequeno, médio-porte e em áreas rurais; e c) por se trata de um tema pouco discutido no processo formativo em Psicologia.
Desse modo, diante da multiplicidade de temáticas que permeiam os estudos rurais, destacamos a relação entre ruralidade e gênero, ainda pouco discutida na/pela Psicologia. Gomes, Nogueira, e Toneli (2016), ao realizarem levantamento sobre as produções acerca de gênero e ruralidade na área das ciências humanas, sociais e da saúde, entre os anos de 2000-2014, identificaram que, do total de 108 artigos, somente sete eram da Psicologia. As temáticas identificadas no estudo, de modo geral, foram: "gênero e relações familiares", "gênero e trabalho"; "gênero e participação política"; "gênero e saúde"; "gênero e ruralidade" (p. 117).
Para as autoras, as relações de gênero se dão no âmbito das relações familiares, de trabalho, de classe, da saúde, do corpo e da sexualidade e dentre outros e atravessam, sobretudo, os modos de vida das mulheres rurais. Assim, ao se deterem nos estudos que tratam sobre os modos de vida de mulheres em contextos rurais (internacionalmente e nacionalmente), apontam para discussões sobre: a) relações de classe e gênero relacionadas ao âmbito familiar, comunitário, de trabalho, em meio a demarcação de papéis sociais atribuídos ao ser mulher e ao ser homem; b) perpetuação dos discursos tradicionais sobre o corpo e a sexualidade da mulher e do homem; c) cuidado e atenção com a saúde das mulheres rurais; d) acesso e uso da água, delegada à figura feminina; e, por fim, e) participação das mulheres nas atividades e ações de desenvolvimento rural e no protagonismo político (Maciazeki-Gomes et al., 2016).
Estudar mulheres em contextos rurais requer que se coloque em análise os múltiplos marcadores sociais que incidem em seus modos de vida - gênero, classe, sexualidade, idade e dentre outros - em um campo de intersecções, que na sua coexistência produzem desigualdade, opressão, dominação, exclusão e violência, ou seja, produzem interseccionalidades. Nesse tocante, Sardenberg (2015) ao estudar gênero e interseccionalidades aponta que "precisamos pensar em instrumentos conceituais que nos permitam identificar e analisar como estruturas de privilégio e opressão se intercruzam em diferentes níveis e se manifestam na vida cotidiana das mulheres e na construção de suas identidades" (p. 59).
Diante o exposto, a fim de compreender as particularidades que perpassam o cotidiano das mulheres em contextos rurais, e como a Psicologia tem se debruçado sobre esses diversos marcadores sociais, o presente estudo tem como objetivo investigar as produções científicas na área da Psicologia que abordam o tema mulheres em contextos rurais no Brasil.
Método
Trata-se de uma revisão sistemática da literatura, de natureza exploratória, de publicações científicas na área da Psicologia que abordam o tema "mulheres em contextos rurais". Buscou-se seguir as recomendações propostas no documento PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses) (Moher et al., 2015), que objetiva padronizar a divulgação de revisões sistemáticas e meta-análises.
O levantamento dos artigos, referente ao assunto estudado, foi realizado em sete bases de dados: Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia (BVS-Psi), Scientific Electronic Library Online (SciELO), Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PePSIC), Literatura Latino-Americana em Ciências da Saúde (LILACS), Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e Portal de teses/dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A seleção dessas bases de dados ocorreu em virtude de indexarem estudos em Psicologia e serem bases reconhecidas cientificamente. Foi utilizada a seguinte estratégia de busca: "psicologia" AND "mulheres" AND "rural". A busca foi realizada por meio do acesso do sítio eletrônico das bases de dados por dois juízes independentes, em abril de 2018.
Para a seleção dos artigos, foram adotados os seguintes critérios de exclusão: estudos que não contemplavam temáticas em torno de mulheres e ruralidade; artigos em línguas estrangeiras e de outras áreas da saúde e sociais. Como critérios de inclusão, foram considerados artigos/dissertações/teses que: 1) abordasse a temática de mulheres em contextos rurais em interface com a Psicologia; 2) foram realizados no cenário brasileiro; 3) independentemente do ano de publicação e 4) estavam disponíveis on-line gratuitamente. Após a identificação dos estudos, foram excluídos os estudos duplicados entre as bases de dados e, posteriormente, foi feita a leitura dos resumos.
Tais critérios de exclusão e inclusão foram estabelecidos, em concordância entre os juízes, para a seleção dos artigos que compõem o corpus de pesquisa. Os estudos selecionados foram lidos na íntegra e, para a extração dos dados, foi considerado, o ano de publicação e a revista, programa de pós-graduação, local de realização do estudo, delineamento metodológico, instrumento de pesquisa, aporte teórico, objetivos e resultados.
Resultados e discussões
Foram identificados nas bases de dados 548 estudos (92 artigos e 456 teses/dissertações). Desses, nove foram excluídos por estarem duplicados e 517 removidos por não atenderem os critérios de inclusão. Resultando, ao final, uma amostra de 22 estudos selecionados (14 artigos e oito teses/dissertações), conforme ilustrado na Figura 1.
Considerando que não foi delimitado um recorte temporal para busca do material, o registro das publicações em periódicos na área de Psicologia sobre mulheres e ruralidade no Brasil data a partir do ano de 2004. Transcorrido dez anos após a primeira publicação, observa-se um incremento significativo de artigos científicos, com destaque para os anos de 2014, 2015, 2016, como podemos observar na Figura 2. Cabe ressaltarmos que, devido ao período de busca das fontes, as produções do ano de 2018 possivelmente não foram contempladas na íntegra, o que explica a inexistência de publicação no presente ano, sendo esta uma totalização parcial.
Em relação às teses e dissertações, o primeiro estudo acerca da temática ocorreu no ano 2001. É possível observar um incremento de trabalhos sobre mulheres rurais nos programas de pós-graduação, ao longo dos anos, de modo gradativo, como está ilustrado na Figura 3.
Os periódicos da área da Psicologia que mais têm publicado sobre a temática de mulheres em contextos rurais no cenário brasileiro são a Revista Psicologia & Sociedade (n = 3), seguida pela Psicologia Ciência & Profissão (n = 2), Psicologia em Revista (n = 1), Cadernos de Psicologia Social do Trabalho (n = 1), Estudos em Psicologia (n = 1), Revista Colombiana de Psicologia (n = 1), Fractal - Revista em Psicologia (n = 1), Psico (n = 1), Revista Subjetividades (n = 1) e Psicologia Escolar e Educacional (n = 1) e Pesquisas e Práticas Psicossociais (n = 1).
Referente às teses e dissertações, destaca-se o Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFRN (n = 3), seguido do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social/UFPB (n = 1), Programa EICOS do Instituto de Psicologia da UFRJ (n = 1), Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Rio (n = 1), Programa de Pós-Graduação em Ciências da Educação/UFRN (n = 1) e Pós-Graduação de Ciências Sociais/UFRN (n = 1).
Os aportes teóricos mais utilizados nos artigos, bem como nas teses e dissertações, são advindos dos pressupostos da teoria sociocultural, da psicologia social, da psicologia política, das teorias de grupos, das discussões em torno de gênero e dos determinantes sociais da saúde, usando mais de uma teoria. Esse viés sociocultural reflete o delineamento dos artigos/teses/dissertações, nos quais se sobressaem os estudos qualitativos (n = 17) com enfoque bibliográfico, etnográfico, seguidos de estudos mistos (n = 4) e de investigação-ação (n = 1). São estudos que fazem uso dos seguintes instrumentos de coleta: entrevista semiestruturada, observação de campo, reunião de grupos, análise documental, diário de campos, produções fotográficas, instrumentos como Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20) e questionário sociodemográfico, usando mais de um instrumento.
Os estudos desenvolvidos abrangem diversas regiões do Brasil e abordam diversas realidades rurais. Nos periódicos, sobressaem os estudos realizados na Região Sul (Rio Grande do Sul = 7; Santa Catarina = 1), em seguida o Nordeste (Rio Grande do Norte = 3), Sudeste (São Paulo = 2) e Centro-Oeste (Minas Gerais = 2). Já nas teses/dissertações destacam-se a Região Nordeste (Rio Grande do Norte = 3; Paraíba = 1) e a Região Sudeste (Rio de Janeiro = 2), posteriormente a Sul (Rio Grande do Sul = 1), como ilustrado na Tabela 1.
No geral, os estudos versam a respeito de três categorias de análise: a) movimento social e participação política; b) jovens mulheres e ruralidade e c) condições de vida, saúde mental e suporte psicossocial.
Os estudos sobre movimentos sociais e participação política sinalizam que o envolvimento e o engajamento de mulheres rurais em movimentos sociais, em grupos de trabalho ou comunitário, constituem elementos de identidade política e coletiva; e que, diante das lutas por reconhecimento e por redistribuição econômica, as trabalhadoras rurais vivenciam mudanças sociais, materiais e subjetivas (Machado, 2006; Salvaro et al., 2013; 2014; Prado et al., 2004). Ao construírem a identidade política e coletiva de "mulheres agricultoras", "mulheres trabalhadoras rurais", "mulheres camponesas", elas passam a se constituir como novos sujeitos políticos, de direitos sociais e de sua própria existência, pois, ao passo que reivindicam seus direitos trabalhistas-previdenciários (salário-maternidade, auxílio-doença, aposentadoria), lutam também o seu direito de ser mulher. Trata-se, portanto, de uma luta de gênero e de classe (Salvaro et al., 2013).
O envolvimento e a participação política em movimentos sociais de luta pela terra por melhores condições de vida e de trabalho têm possibilitado às mulheres rurais assumirem diferentes papéis e atribuir diversos sentidos à vida, à militância, à luta, pois a práxis política é vivenciada "não apenas na relação com o movimento social, mas no emaranhado complexo de sua vida" (Rosa, & Silva, 2015, p. 47). Oliveira (2015) e Oliveira e Leite (2016), ao estudarem a produção de sentido sobre militância política de mulheres do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), destacam que os sentidos atribuídos pelas mulheres à militância foram de esperança, transformação, luta, conscientização, reconhecimento e contribuição.
Além do mais, os estudos retratam que a participação e a formação política têm possibilitado rupturas quanto aos papéis sociais atribuídos ao ser mulher, historicamente, ligados ao cuidado da casa e da família, sobretudo, à figura do marido; colocando em análise os lugares tradicionalmente demarcados do ser mulher no âmbito privado-público e as situações de submissão, opressão, violência, exclusão vivida por essas mulheres no cotidiano (Machado, 2006; Vasquez, 2009; Salvaro et al., 2013; 2014; Oliveira, & Leite, 2016; Rosa, & Silva, 2015; Maciazeki-Gomes et al., 2016).
Por muito tempo, as mulheres estiveram destituídas de seus direitos civis, políticos e econômicos. A noção de cidadania estava diretamente ligada à figura masculina, devido aos papéis sociais atribuídos a "ser homem" e ao "ser mulher", que não podiam ocupar posições iguais na sociedade. Essa diferença, historicamente, foi tida como algo natural, o que resultou na dominação e na submissão da figura feminina e a determinação de respectivos papéis sociais, atribuindo-se às mulheres os cuidados de casa e a tarefa de educar os filhos; e aos homens, as atividades relacionadas ao domínio público, à economia, à formulação das leis e à ciência (Cruz, 2014).
Nesse sentido, a participação política mobiliza nas mulheres discursos, lutas, ação política e processos de subjetivação na medida em que possibilita espaço de reflexão sobre a desigualdade e as relações de gênero que atravessam gerações e gerações. Por esse aspecto, a participação política constitui-se, assim, em um "dispositivo de subjetivação ao produzir elos entre público e o privado, ao pautar o privado como político, ao estruturar um discurso coletivo e ao abrir espaços para reinvenção dos modos de vida" (Maciazeki-Gomes et al., 2016, p.148).
Pertencer a algum movimento ou organização social e política, a exemplo da Comissão Estadual de Mulheres Trabalhadoras Rurais, Movimento de Mulheres Camponesas, MST, Cooperativas Rurais Virtuais, Rede de Intercâmbio de Mulheres Trabalhadoras Rurais, possibilita que mulheres reflitam sobre os papéis sociais que estão engendradas. No âmbito geracional, tais discussões também repercutem na visão de jovens assentadas sobre o "ser mulher" nas suas diversas esferas da vida: no âmbito familiar, nas relações sociais, na condição juvenil, na participação política, na sexualidade e nos projetos de vida e em suas perspectivas de futuro, conforme podemos observar nos estudos da categoria jovens mulheres e ruralidade.
Nesse tocante, Aguiar (2012) e Vieira (2004), ao estudarem jovens militantes do MST, na interface juventude, gênero e participação política, apontam que a inserção no movimento possibilitou às jovens militantes uma reflexão e postura crítica frente aos papéis sociais atribuídos ao feminino e ao masculino em seus contextos de interação. Além disso, ressalta-se que os papéis sociais atribuídos a um e outro ainda são marcados pela distinção de gênero, sobretudo ao que se refere à sexualidade. Destina-se aos homens uma maior autonomia, independência e possibilidade de lazer em comparação às mulheres, o que acaba influenciando na forma como vivenciam sua condição juvenil e relação afetivo-sexual.
Tais marcadores sociais acabam influenciando perspectivas de futuro, projetos de vida e profissionais das jovens mulheres rurais. Nesse âmbito, os estudos da categoria das jovens mulheres e ruralidade colocam em análise as intersecções entre juventude, feminilidade, ruralidade, classe, idade, que permeiam entre os discursos sobre casamento, constituição de um núcleo familiar, ingresso na universidade, projetos de vida e profissionais.
Pizzinato et al. (2015) evidenciam que os projetos de vida das jovens mulheres em âmbito rural, ora estão circunscritos em trajetórias educacionais e profissionais; ora permeados pelas perspectivas tradicionais de gênero. Além disso, sinalizam que as disparidades de gênero repercutem de modo diferente nas trajetórias de vida dos jovens, pois "enquanto que os homens ainda detêm poder decisório sobre os rumos da produção e são vistos como herdeiros naturais da propriedade [...], as mulheres, por sua vez, [...] tendem [...] ao casamento ou à formação educacional" (p. 251).
A escolaridade é apontada como possibilidade de ruptura dos modelos patriarcais e sexistas vigente na sociedade (Cesar, 2014; Pizzinato et al., 2015; 2016; 2017). Pizzinato et al. (2017), ao buscarem compreender os sentidos atribuídos pelas jovens mulheres à educação, retratam que a escolarização é vista por elas, desde a infância, como oportunidade de terem um futuro promissor. Muitas sonham em adentrar em um curso superior e, assim, conseguir oportunidades no mercado de trabalho. Tais perspectivas de futuro atravessam também as trajetórias de vida de seus pais ou responsáveis, que atribuem a escola a possibilidade de seus filhos terem outras oportunidades de emprego que não seja a atividade agrícola, vista como árdua e cansativa.
Em relação à interface das condições de vida, saúde mental e suporte psicossocial, os estudos revelam uma alta prevalência de Transtorno Mental Comum (TMC) em mulheres com fatores associados à pobreza, ao casamento, violência de gênero, sobrecarga de trabalho e do cuidado com os filhos, apoio social. Para Zanello (2016), os papéis de gênero atribuídos, sobretudo, no casamento, constituem fator de proteção à saúde mental muito mais para os homens do que para mulheres. O cuidado com os filhos, marido, familiares, bem como a invisibilidade do trabalho doméstico têm levado muitas mulheres ao esgotamento físico e sintomas de sofrimento psíquico.
Chama a atenção os poucos estudos desenvolvidos sobre condições de vida, saúde mental e suporte psicossocial. O que nos convida a pensar a partir da Psicologia, enquanto ciência e profissão, que estratégias de cuidado e suporte psicossocial estamos ofertando e construindo diante o sofrimento mental dessas mulheres. Deve-se desenvolver estratégias que ultrapassem os aspectos biológicos de agravo mental, mas que abarquem aos aspectos sociais, ambientais e psicológicos, considerando que as áreas rurais sejam marcadas por inúmeras vulnerabilidades territoriais e acesso restrito aos serviços de saúde mental e oferta de profissionais especializados.
Em linhas gerais, os estudos têm denunciado as precariedades e vulnerabilidades que assolam a população rural, a falta de acesso a bens e serviços, as privações materiais e sociais; e sinalizam para o desamparo da rede e da oferta de cuidado para essas mulheres. Essas encontram-se sobrecarregadas com os cuidados de casa, dos filhos, do trabalho, muitas vezes em sofrimento psíquico diante das situações de violência, de opressão e submissão, e não têm encontrado um apoio ou suporte na rede de saúde ou socioassistencial (Costa et al., 2014; 2015; Costa, 2014; Pichelli, 2016).
Considerações finais
O presente estudo teve como objetivo investigar as produções científicas na área da Psicologia no que diz respeito às mulheres em contextos rurais no Brasil, no intuito de compreender as particularidades que perpassam o cotidiano das mulheres em contextos rurais, e como a Psicologia tem se debruçado sobre os marcadores sociais que perpassam o universo rural e feminino. Ao todo, foram totalizadas 22 produções que versam sobre movimento social e participação política (n = 9); jovens mulheres e ruralidade (n = 9) e condições de vida, saúde mental e suporte psicossocial (n = 4).
As análises das produções demonstram um interesse da Psicologia pela temática, sobretudo, nesses últimos anos, em função da expansão da atuação do psicólogo em contextos rurais; com destaque para as Regiões Sul e Nordeste. Em linhas gerais, os estudos evidenciam que a realidade das mulheres em contextos rurais é marcada por inúmeros determinantes que permeiam seus modos de vida e aspectos subjetivos, relacionados sobretudo as questões de gênero, de classe, geracionais, sexualidade que refletem em suas trajetórias de vida, de trabalho, em suas perspectivas de futuro, em sua ação política, em seu processo saúde-doença, em suas relações familiares.
Por fim, sinalizamos também para a necessidade de novos estudos que abordem discussões sobre Determinação Social da Saúde Mental, tendo em vista a diversidade de questões que permeiam o ambiente rural; bem como estudos voltados a violência doméstica, intrafamiliar, simbólica, sexual, institucional; ao apoio social; a qualidade de vida; ao uso do álcool e de outras drogas; oferta de cuidado e suporte psicossocial; e dentre outros temas que coloquem em análise os múltiplos marcadores sociais que incidem em seus modos de vida e venham a contribuir para atuação do psicólogo com as mulheres em contextos rurais.
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Endereço para correspondência:
Brisana Indio do Brasil de Macêdo Silva.
brisanaindio@gmail.com
Jorge Fernando de Carvalho Leite Barros
jorgecarvalhop2@hotmail.com
Sandra Elisa de Assis Freire
sandraelisa.freire@gmail.com
Fauston Negreiros
faustonnegreiros@ufpi.edu.br
João Paulo Macedo
jpmacedo@ufpi.edu.br
Submetido em: 07/05/2018
Revisto em: 09/11/2018
Aceito em: 15/12/2018