Arquivos Brasileiros de Psicologia
ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.73 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2021
https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2021v73i1p.5-18
ARTIGOS
Internet, subjetividade e juventude: fortalecimento de vínculos na periferia cubatense1
Internet, subjectivity and youth: strengthening bonds in the periphery of the city of Cubatão/SP
Internet, subjetividad y juventud: fortalecimiento de vínculos en la periferia cubatense
Danilo de Miranda Anhas
Doutor. Universidade Federal de São Paulo. São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil
RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar sentidos e significados dos usos da internet e das redes sociais, sobretudo WhatsApp, Facebook e YouTube, atribuídos por jovens de uma comunidade da periferia de Cubatão/SP e participantes do movimento hip hop. Buscou-se compreender como as redes sociais virtuais (re)configuram a construção de vínculos afetivos e comunitários entre os jovens. Trata-se um estudo de abordagem qualitativa, com referencial teórico na Psicologia Social Comunitária e que se utilizou de observações online e offline, além de entrevistas semiestruturadas com oito jovens e uma liderança comunitária. Os resultados indicam que a internet e as redes sociais podem favorecer e apoiar a construção e o fortalecimento de vínculos afetivos, de amizade e comunitários entre os jovens, engendrando outras formas de reconhecimento, possibilidades e referências para suas vidas.
Palavras-chave: Internet; Juventude; Comunidade; Subjetividade.
ABSTRACT
This paper aims to analyze meanings and meanings of the uses of the internet and social networks, especially WhatsApp, Facebook and YouTube, attributed by young people from a low-income community in the city of Cubatão/SP and by participants of the hip-hop movement. We seek to understand how virtual social networks (re) configure the construction of affective and community bonds among young people. This is a qualitative study, with a theoretical reference in Community Social Psychology, which uses online and offline observations, as well as semi-structured interviews with 08 young people and 01 community leadership. The results indicate that the Internet and social networks can favor and make the construction and strengthening of social benefits, friendship and social protection among young people, creating other forms of recognition, possibilities and references for their lives.
Keywords: Internet; Youth; Community; Subjectivity.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo analizar los sentidos y los significados de los usos de Internet y las redes sociales, especialmente Whatsapp, Facebook y YouTube, atribuidos por jóvenes de una comunidad en las afueras de Cubatão/SP y participantes del movimiento hip hop. Intentamos entender cómo las redes sociales virtuales (re) configuran la construcción de vínculos afectivos y comunitarios entre los jóvenes. Se trata de un estudio de abordaje cualitativo, con referencial teórico en la Psicología Social Comunitaria y que se utilizó de observaciones online y offline, además de entrevistas semiestructuradas con 08 jóvenes y 01 liderazgo comunitario. Los resultados indican que Internet y las redes sociales pueden favorecer y apoyar la construcción y el fortalecimiento de vínculos afectivos, de amistad y comunitarios entre los jóvenes, engendrando otras formas de reconocimiento, posibilidades y referencias para sus vidas.
Palabras clave: Internet; Juventud; Comunidad; Subjetividad.
Introdução
Inovações tecnológicas sempre são acompanhadas de inúmeros sentimentos e percepções pela sociedade. A internet e as redes sociais virtuais são um exemplo recente de como tais adventos mobilizam diferentes pensamentos e afetos entre os indivíduos. Toda essa gama de percepções e afetos torna-se ainda mais emblemática em contextos de fragilização e contratualização de vínculos humanos (Dardot, & Laval, 2016) e declínio do mundo e do homem públicos (Sennett, 2018) no capitalismo e neoliberalismo.
Em um mundo globalizado cada vez mais conectado, uma das grandes preocupações refere-se à privacidade. Indubitavelmente a tecnologia e a internet criaram e alteraram formas de sociabilidade e de vivenciar a própria privacidade, facilitando a vigilância constante dos indivíduos e borrando as fronteiras entre o público e o privado (Bruno, 2013). Todavia, esse processo é histórico e o declínio da privacidade e do mundo público não está diretamente ligado à tecnologização da vida (Thibes 2017), mas sim a sucessivas transformações no tecido social, passando por questões éticas e de valores morais.
O mesmo se pode dizer dos vínculos. Embora autores como Bauman (2008) atribuam a fragilização e a liquidez dos encontros e relacionamentos humanos à tecnologia e à internet, outros autores salientam o impacto que as redes sociais virtuais e a participação na web podem ter na formação, manutenção e fortalecimento dos vínculos.
Estudos como os de Suárez-Balcázar e García-Ramírez (2003) apontam como a utilização da internet, no que tange à busca de informações, pode contribuir para a transformação e organização comunitárias. Castells (2013) enfatiza, por exemplo, como movimentos sociais no início do século XXI puderam se organizar através da internet na luta por democracia ao redor do mundo. Lévy (2010) é um autor que também ressalta o papel importante exercido pela cibercultura no aprendizado para uma vida democrática.
Azevedo (2010), em sua pesquisa de inspiração na filosofia dos afetos de Baruch Espinosa, afirma que a internet pode favorecer bons encontros e potencializar afetos, contribuindo para a (res)significação de vivências objetivas e subjetivas. A autora também indica o potencial da internet na criação de vínculos de amizade (Azevedo et al., 2016).
Embora sejam estudos de natureza distintas, Aderaldo (2013) evidencia através de seu estudo etnográfico, o quanto coletivos de produção de vídeos em São Paulo, utilizando-se da tecnologia e da imagem, são capazes de construir outras concepções de periferia. Ferigato, Silva e Gozzi (2017) apontam que, através da cibercultura e suas novas formas de sociabilidade, grupos marginalizados têm conseguido produzir concepções outras acerca da inclusão e exclusão sociais, reconfigurando-as.
Os estudos de Boyd (2017) e Dias (2016) indicam o papel preponderante que as redes sociais virtuais exercem na construção de uma identidade, no caso dos adolescentes e jovens. Além desse aspecto importante da internet na constituição subjetiva e identitária de adolescentes e jovens, cabe dizer ainda que estes são os maiores utilizadores da web no Brasil. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgada pelo Portal G1, 85% dos 116 milhões de brasileiros conectados à internet tinham na faixa de 18 a 24 anos de idade (Gomes, 2018).
Estudo etnográfico de Pereira (2016) descreve como os jovens das periferias paulistanas utilizavam as redes sociais. Efetuar o download de músicas funk, jogos e chats eram as formas predominantes de uso. Um interessante resultado concerne ao modo como os jovens incorporavam a seus repertórios os conteúdos online, reencenando em grupo, por exemplo, acontecimentos dos vídeos que viralizavam nas redes.
Algumas pesquisas têm focado também nos riscos oriundos da utilização da internet e das redes sociais. É o caso de uma pesquisa sobre sexting. O sexting é o ato de enviar fotografias da própria nudez e/ou vídeos com o intuito de flertar ou consumar uma relação afetivo-sexual. Embora consista em um ato de experimentação da própria sexualidade e do corpo, pode acarretar consequências negativas, sobretudo para jovens do sexo feminino (Alonso-Ruido, Rodríguez-Castro, Lameiras-Fernández, & Martínez-Román, 2018). Ademais, as fotografias conhecidas como selfies tornaram-se extremamente populares. Nas fotografias os jovens têm expressado e reproduzido alguns valores da sociedade capitalista e de consumo como, por exemplo, a felicidade e a autenticidade (Germano, Carneiro, Pontes, Silva, & Gomes, 2018).
Em vista dos argumentos apresentados, este artigo tem como objetivo apresentar e analisar sentidos e significados da internet e redes sociais, sobretudo WhatsApp, Facebook e YouTube, atribuídos por jovens de uma comunidade da periferia cubatense e participantes do movimento hip hop. Argumenta-se que a internet pode favorecer e apoiar a construção e o fortalecimento de vínculos comunitários e afetivos entre os jovens, engendrando outras formas de reconhecimento, possibilidades e referências para suas vidas.
Método
Este estudo de doutoramento abordagem qualitativa tem como referencial teórico a Psicologia Social Comunitária (Bock, 2011; Lane, 2004; Martín-Baró, 2017; Montero, 2006; Sawaia, 2007). Esta vertente baseia-se no materialismo dialético e enxerga o homem como produto e produtor de sua realidade. Desse modo, esta pesquisa é norteada pela visão de mundo que enxerga indivíduo e sociedade não dissociados: "O mundo psicológico é um mundo em relação dialética com o mundo social" (Bock, 2011, p. 23).
O estudo se inspira também na etnografia postulada por Simões (2012; 2017). O autor propõe uma visão de complementaridade e convergência entre o online e o offline. Assim, a delimitação do objeto nos permite localizá-lo no tempo e no espaço. Dessa forma, há sempre, quando se trata de estudos offline, um referente territorial concreto e espacial. Destaca-se ainda o caráter híbrido entre online e offline, referente às convergências das media online, que muitas vezes acabam por influenciar as configurações das práticas offline. Diferentes tecnologias e media são integrados e muitas vezes absorvem elementos offline e vice-versa. Entretanto, isso não quer dizer que todos os elementos da vida tenham sido absorvidos ou por um ou pelo outro, mas são ainda distintos em muitos casos (Simões, 2012; 2017).
O estudo realizado em um coletivo de hip hop em uma comunidade da periferia cubatense, no litoral de São Paulo, buscou seguir as recomendações do autor supracitado e olhar os fenômenos observados online e offline como complementares. Isso significa dizer que ambos são interdependentes, coadunando-se à visão da Psicologia Social que enxerga indivíduo e sociedade como não dissociados, mas constituindo um ao outro.
Dessa forma, as observações online e offline foram registradas em diários de campo no período de um ano, de 2017 a 2018. Foram observadas as interações dos jovens no grupo de WhatsApp criado pelos participantes do estudo do movimento hip hop, no qual o pesquisador foi adicionado ao longo do trabalho de campo. Também foram observadas postagens realizadas por esses jovens em seus perfis no Facebook. Além disso, foram feitas nove entrevistas semiestruturadas (oito jovens do movimento hip hop e uma adulta trabalhadora de uma instituição religiosa) que buscaram compreender os modos de vida dos jovens na comunidade e suas percepções quanto à internet e as redes sociais. Buscou-se apreender os sentidos atribuídos pelos jovens a essas questões.
Cabe dizer que esta pesquisa obedeceu aos procedimentos éticos referenciados pela Resolução nº 466 de 2012, tendo sido aprovada (CAAE: 58914316.4.0000.5505) pelo Comitê de Ética vinculado à universidade.
Para Rey (2012, p. 21), o sentido é "[...] uma síntese de outra ordem ontológica da multiplicidade de aspectos que caracteriza a vida social e a história de cada sujeito e espaço social concreto". Ou seja, o sentido é a expressão do objetivo na subjetividade, que "[...] fundamenta uma concepção histórico-social da subjetividade, a qual rompe com qualquer reminiscência de mentalismo ou subjetivismo" (Rey, 2012, p. 21).
Os resultados foram analisados segundo a Hermenêutica de Profundidade proposta por Thompson (2011) que consiste em três patamares interligados: a) análise sócio-histórica, que visa a descrever e compreender o contexto no qual a pesquisa foi realizada; b) análise formal, na qual busca-se a descrição e a análise dos sentidos contidos nos discursos; e c) interpretação/reinterpretação, que consiste na discussão dos resultados, partindo do pressuposto que os sujeitos possuem uma interpretação da realidade e o pesquisador a reinterpreta com base em teorias.
Análise sócio-histórica
A pesquisa foi realizada em uma comunidade da periferia de Cubatão, no litoral de São Paulo. O bairro foi construído sobre uma região de mangue e teve um aumento significativo de sua população a partir da industrialização pela qual o município passou a partir dos anos 1950. Muitos moradores ainda vivem em palafitas sobre o mangue, em uma região bastante precária. A industrialização atraiu e ainda atrai muitos trabalhadores de outras regiões do país em busca de emprego, principalmente, na construção civil e indústrias petroquímicas (Anhas, & Castro-Silva, 2017).
Cubatão tem aproximadamente 128.748 habitantes, segundo o IBGE (2018). A comunidade onde foi realizado o estudo tem, aproximadamente 30 mil habitantes, embora não existam dados oficiais em nível municipal e estadual que retifique este dado fornecido pela Unidade de Saúde local. Esta situação parece corroborar o quanto o Estado é ausente nessa comunidade.
A presença do Estado é sempre sentida pela população quando da presença da polícia no bairro, que invade as casas das pessoas em nome do combate ao crime e ao tráfico de drogas. As crianças e jovens precisam se deslocar ao bairro vizinho, de classe média e distante 4km, para poder estudar, pois não existem escolas de nível fundamental e médio na comunidade. Têm, desse modo, o direito à educação prejudicado.
O direito à saúde é relativamente impedido, pois a Unidade de Saúde, que possui três equipes de saúde da família não consegue dar conta das demandas. É o único equipamento de saúde no local. O direito à cultura e ao lazer é também impedido, uma vez que não há equipamentos de socialização como, por exemplo, praças, teatro, parques, dada a vocação industrial historicamente consolidada e construída no município.
Apesar disso, na comunidade há equipamentos advindos da luta por melhorias de condições de vida, encabeçada por lideranças comunitárias. Os jovens deste estudo realizam suas atividades em um Centro Comunitário, construído nos anos 1980, e que marca uma trajetória de reivindicações dos moradores por mais direitos na comunidade.
A origem do grupo remonta a 2013 e foi iniciativa de moradores do bairro apaixonados pela dança e pelo hip hop com o intuito de propiciar outras referências na vida de crianças e jovens. O intuito era claro: tirá-los da rua através da cultura. Contudo, algumas situações de alunos que se envolveram com o crime e o tráfico fazem parte da história também, evidenciando uma realidade contraditória.
O grupo, apesar disso, consegue atrair a participação de jovens e dar a possibilidade de usufruir de algum lazer e diversão, sendo um ponto de encontro entre jovens da comunidade. Os espaços criados permitem interação e sociabilidade entre os praticantes que compartilham interesses em comum e constroem vínculos de amizade.
Participam do grupo, atualmente, 25 pessoas. A faixa de idade costuma variar de 12 a 25 anos e a maioria daqueles que frequentam o grupo são meninos, correspondendo a 19 garotos.
No grupo é possível aprender sobre o beat box, dança, rap, música. Os jovens que ensinam os outros jovens tiveram a iniciativa e o esforço de aprender grande parte do que sabem sozinhos ou com os antigos professores que pertenciam ao grupo. Alguns aprenderam a arte através da internet, principalmente por meio de vídeos do YouTube, como será descrito e analisado na discussão.
Resultados e Discussão
A inserção e a participação do pesquisador no cotidiano das atividades promovidas para e por jovens na comunidade permitiram a criação de vínculos afetivos com esses indivíduos. A criação dos vínculos favoreceu ao pesquisador a observação das atividades e participação dos jovens online e offine, sobretudo no WhatsApp e no Facebook. Desse modo, alguns resultados foram obtidos em contextos online de observação enquanto outros foram construídos com base em observações off-line, como propõe Simões (2012; 2017).
No caso específico da comunidade estudada, a questão da aprendizagem é um dos sentidos atribuídos pelos jovens do movimento hip hop, sobretudo pelo professor de beat box. Beat box é a arte de reproduzir vocalmente sons da percussão. O jovem em várias situações do trabalho de campo referiu sempre ter gostado de rap, devido a influências do seu irmão mais velho. Em várias conversas informais, revelou que desejava aprender beat box, pois era a expressão do hip hop com a qual mais se identificava. Aprendeu beat box através de vídeos tutoriais no YouTube e fóruns específicos do campo, onde pôde conhecer outros praticantes da arte de outras localidades, inclusive.
Eu comecei a ver os vídeos tutoriais e falei "mano, que isso cara?". Antes de eu vir dar aula com o Professor de break dance, eu falei "não, eu quero ficar um pouquinho mais bom, eu quero ficar um pouco melhor pra pode chegar lá e...". Mas eu não aguentei, cara. Eu falei "não, eu vou pegar o que eu já sei e já vou lá porque sozinho é embaçado, cara". Eu quero mais pessoas interagindo comigo. Eu num aguentei o fato de aguentar mais um pouco "ah, vou ficar um pouco melhor pra chegar lá..." Não, eu fui do jeito que eu tava e vou evoluir junto com os meninos. Isso é bacana. Então, tipo, eu vi tanto a minha evolução quanto a deles, entendeu? Porque eu fui na pressa mesmo, eu não aguentava mais ficar sozinho lá, só eu dentro do meu quarto com meu notebook e fone de ouvido. Eu queria interagir. Eu queria a reação (Entrevista professor de beat box, 22 anos).
A aprendizagem do beat box proporcionou a interação do jovem com outros jovens do movimento hip hop, por meio da qual pôde compartilhar o que sabia através da internet e obter novos conhecimentos. Dessa forma, a aprendizagem favoreceu ao professor de beat box ser reconhecido de um modo diferente ao modo como geralmente são reconhecidos os jovens da comunidade. O fato de ser negro e morar em uma comunidade noticiada com frequência pela mídia local como violenta devido à ação do tráfico de drogas e o histórico processo segundo o qual jovens e negros são associados ao crime e à violência (Trassi, & Malvasi, 2010), faz com que muitos jovens sejam cotidianamente enquadrados pela polícia sem nenhuma razão em operações frequentes no bairro.
Teve uma vez, cara, que eu tava ali na calçada, fazendo um beat com um parceiro meu e chegou a polícia na favela. Os cara sempre me param, me enquadram. Meu amigo e eu ficamos com medo, levantamos e decidimo voltar pra casa. Só que no caminho a gente continuou fazendo o beat, só que baixinho. Mesmo assim os polícia pararam a gente. A gente teve medo. Mas só que dessa vez enquadraram a gente nem nada, eles elogiaram e falaram pra gente seguir em frente. Foi mó alívio. Os caras reconheceram a gente pela arte (Fala reconstituída em Diário de Campo, 09.08.2017, Professor de beat box, 22 anos).
Ser identificado e reconhecido de outro modo por um agente do Estado reforçou seu interesse pelo hip hop. O reconhecimento passa pelo sentimento de ser visto como gente e como cidadão (Melo, 2014), processo construído através das aprendizagens e conhecimentos propiciados pelo ato de navegar na internet. O reconhecimento passa não só pela esfera da cidadania, mas também pela intersubjetividade e afetividade, uma vez que, conforme dito pelo professor em falas anteriores, ele pôde interagir com outros jovens e ser afetado positivamente nessa relação.
Cabe ressaltar que os jovens professores do movimento utilizam a internet para aprender mais sobre o hip hop e suas diversas manifestações, transmitindo esse conhecimento para seus alunos. São chamados de professores, pois são os jovens fundadores do movimento da comunidade e que estão há mais tempo no grupo.
Olha, o meu maior foco na internet sempre foi utilizá-la pra ajudar no meu, nas minhas vontades, né. É como, por exemplo, eu gosto muito de rap. Eu sempre busco muito conhecimento sobre rap, sobre como, não sobre a história do rap, mas sobre como fazer, como produzir, como, enfim, entre outras coisas que eu faço na própria dança... Assisto a muitos vídeos referente à dança, referente ao hip hop que é contexto que eu tô integrado. Então eu uso a internet como ferramenta de aprendizado, né, pra mim poder, é, poder passar o meu conhecimento que eu aprendo lá adiante (Entrevista professor de break, 23 anos).
Assim, os conhecimentos obtidos na web fortalecem os encontros do grupo no Centro Comunitário, indicando uma complementaridade e convergência entre o online e o offline. A internet e o conhecimento obtido através dela dão sustentação ao grupo assim contribuindo para sua existência e constante inovação das atividades promovidas (break dance, beat box, grafite, batalhas de rimas), tendo como um dos focos principais "tirar o jovem da rua".
Porque o que eu fazia era só ficar na rua o dia inteiro, o dia inteiro na rua jogando bola com os moleque, num fazia nada, empinava pipa, jogava bolinha de gude... Então, assim, minha mãe não gostava disso, né, que ela não gostava muito e falava pra mim fazer alguma coisa de útil na vida. Então, entrei no hip hop, aí eu fiquei (Entrevista B-boy, 18 anos).
Ao apoiar a criação de outras referências e possibilidades a estes jovens, a internet parece ser também um espaço estratégico de catarse e bom humor para lidar com os constrangimentos cotidianos no que tange, sobremaneira, ao direito ao lazer e à cultura. Na comunidade e na cidade de Cubatão, de uma maneira geral, há poucos espaços onde os jovens e os demais moradores possam ter esses direitos contemplados. "Estamos esquecidos aqui na comunidade", postou (Diário de Campo, 20.01.2018) uma vez o jovem professor de beat box no Facebook, referindo justamente à ausência do Estado na comunidade.
Em suas postagens no Facebook os jovens compartilham muitos memes relacionados às suas experiências na comunidade. Kellner (2011) estuda sobre a cultura midiática, levando em consideração que esta trabalha muito com recursos audiovisuais. Para ele, as mídias condensam um pensamento mais geral impresso na sociedade. Entretanto, a mídia também ajuda a criar visões sobre o mundo (como se comportar sendo uma mulher ou homem, um jovem, como se vestir, que tipos de músicas se escutar, que tipos de livro se ler, quais obras de arte se admirar, a quais espetáculos comparecer etc.). Atuando por meio da imagem e do som, as mídias possuem uma incrível capacidade de atrair a atenção das pessoas, afetando seu comportamento, criando identificações a partir da produção de desejos.
As imagens nos memes permitem, em certa medida, a reflexão sobre a própria realidade. Um dos jovens, apesar de não ser o alvo direto dos enquadres feitos pela polícia por ser branco, utiliza os memes como alteridade em relação a seus amigos que convivem cotidianamente com essa realidade. No meme (compartilhado por ele da página "Não deixa o rap morrer"), há três rapazes negros sendo enquadrados por um grupo de três policiais brancos. Por trás dos policiais um jovem negro passa despercebido, pois está disfarçado usando uma máscara de um rapaz branco. O jovem ao compartilhar o meme expressa através deste a ambiguidade e a complexidade do social e forma como é afetado por ela.
Assim, o jovem expressa a realidade em que vive no seu post, indicando certa solidariedade e empatia. Este dado corrobora a tese de Azevedo (2010) de que a internet propicia a circulação de afetos, ou seja, o afetar e ser afetado. Nesse sentido, aquilo que afeta o jovem em sua realidade é refletido através do meme no ambiente virtual, pois a concepção que separa o real do virtual é artificial e falsa.
Em estudo etnográfico nas escolas, Pereira (2016) notou que os jovens incorporavam em seus comportamentos e práticas o que viam na televisão (em programas como o Pânico na TV e JackAss) e também nos vídeos que viralizavam nas redes e eram compartilhados por milhares de pessoas. Os jovens reencenavam os acontecimentos dos vídeos, repetindo as frases e os trejeitos dos personagens envolvidos. Estes resultados são semelhantes ao dessa pesquisa, já que muitos memes passavam a fazer parte do vocabulário dos jovens.
Entretanto, como salienta Pereira (2016), a reprodução desses conteúdos nem sempre era crítica e acabava por reificar preconceitos concernentes a gênero, sexualidade e raça, por exemplos. Nesta pesquisa, os posts e memes que mais ilustraram essa situação referem-se ao funk.
Os jovens da comunidade estudada são geralmente identificados como funkeiros e muitos deles não compartilham dessa característica. Embora seja um gênero musical que mobilize bastantes moradores em torno dos bailes funk, os jovens do hip hop compartilhavam memes e frases em repúdio ao gênero funk nas suas redes sociais. Dessa forma, ao utilizar a internet os jovens parecem buscar certo tipo de distinção social pelo gosto (Bourdieu, 2013), desejando uma identificação segundo outros elementos e atributos aparentemente não predominantes na comunidade como, por exemplo, ouvir K-Pop, rap e assistir a animes japoneses.
Dessa forma, os jovens são capazes de encontrar e conhecer outros jovens que compartilham os mesmos gostos e interesses, satisfazendo a necessidade de pertencer a um grupo, corroborando o que diz Lévy (2010), ao descrever a cibercultura, ao afirmar que as pessoas na internet não se reúnem em torno de relações institucionais, mas ao redor de interesses em comum e compartilhamento do saber e da aprendizagem cooperativa. Salienta-se ainda que a internet teve um papel preponderante, como diz Ventura (2009) na difusão e popularidade do hip hop.
Os sentidos atribuídos à internet também passam pelos riscos oriundos de sua utilização. Na visão de um dos jovens, os riscos se referem ao fato de que na web pode-se simular identidades e enganar as pessoas. Atribui-se, assim, aos responsáveis a obrigação para que haja um uso consciente da rede, o que corrobora com a visão dos autores (García, López, & Jiménez, 2014).
[...] os pais, os responsáveis pelos adolescentes precisam vigiar bastante sobre o que eles utilizam na internet, porque, é, agora tem uma grande, uma vasta gama de assuntos que a internet abrange. Um dos mais acessados é a pornografia pelos jovens e isso fere bastante, né, a moral do jovem e como ele vai agir futuramente perante a sociedade. É, também, esses atos ilícitos, como eu tinha citado anteriormente, né, como praticar o bullying. Então na internet ninguém é ninguém. [...] Então você pode praticar o que você quiser que você não pode praticar na vida real. Então é nisso que precisa se atentar bastante nesse assunto, porque é uma área na qual as pessoas podem ferir outras indiretamente (Entrevista professor de break, 23 anos).
Segundo Dias (2016), um dos aspectos positivos da internet é justamente o de propiciar a experimentação de outras identidades e a exploração de outras possibilidades subjetivas. Tais possibilidades são facilitadas pela internet. Contraditoriamente, isso se torna um risco na visão de alguns jovens, sobretudo quando há exposição a conteúdos impróprios para determinadas idades e quando há exposição indevida da própria intimidade. Como alerta Bruno (2013), parte da interação na web exige a exposição voluntária de dados pessoais, histórias e registros do cotidiano.
No caso abaixo, a mãe de uma jovem expõe uma situação que se refere aos nudes cada vez mais comuns entre os adolescentes e jovens como forma de experimentação da própria sexualidade (Alonso-Ruido et al., 2018). O envio de nudes ou sexting, como tem sido chamado, consiste, segundo os autores citados, no ato de enviar fotografias e/ou vídeos com o intuito de flertar ou consumar uma relação afetivo-sexual.
A mãe fundamenta seu discurso na religião e na moral, denotando preocupação com a reputação da filha, na época com dezoito anos de idade, e que enviou nudes para outro jovem em quem tinha interesse afetivo e sexual. Ademais, fundamenta seu discurso mediante um contexto comunitário em que há muitas gravidezes na adolescência (Anhas, & Castro-Silva, 2017) e onde as mulheres sofrem violências das mais diversas (Moura, & Castro-Silva, 2017). Denota assim uma percepção crítica dos poderes que oprimem, principalmente as mulheres.
O garoto conversando com minha filha, tá? (fazendo a voz do rapaz): "E aí, você é muito bonita, eu te conheço faz tempo, mas pô, eu queria conhecer você mais intimamente, você pode mostrar os seus seios pra mim?". Ela tirou uma foto e mandou pra ele. (ele falou) "Eu queria ver mais um pouco. Você pode mostrar suas partes íntimas?". Ela tirou sem calcinha e mandou pra ele. [...] Dei um cacete nela, falei um monte de coisa pra ela. Falei pra ela "você quer ser vagabunda? Isso é coisa de vagabunda". Ela disse "eu não sou vagabunda". Isso é coisa de vagabunda, ficar mostrando... É vagabunda que não ganha dinheiro, porque vagabunda que é vagabunda recebe. Faz as coisas, mas é paga, tá? Eu falei um monte pra ela, ela chorou, ela chorou, ela chorou (Entrevista liderança comunitária, 50 anos).
Como dito antes, o discurso da mãe é influenciado pela igreja. O jovem anteriormente citado também ressalta os riscos à moral do jovem quando este entra em contato com a pornografia na internet. Este tipo de discurso é também referido por Feltran (2018) ao postular os tipos mais predominantes nas periferias brasileiras: o religioso, o Estatal e do crime. Para o autor, esses discursos:
[...] se apresentam como independentes dos demais, embora na prática não o sejam, e no seu centro se tornam regimes normativos. Espraiam um "dever ser", um ideal de conduta esperado para a vida de todos. [...] O Estado espera que, nas periferias, todos sejam trabalhadores disciplinados e cumpram suas leis, por isso combate os fora da lei. O mundo do crime espera que, nas periferias, todos estejam em paz entre si, mas em guerra contra o sistema estatal. O mundo religioso espera que todos aceitem Jesus e atuem segundo seus mandamentos, mas faz alianças tácitas com os outros poderes, instrumentalizando-os sempre que possível para crescer (Feltran, 2018, p. 100-101).
O envio dos nudes e a própria utilização da internet escapam a esses discursos, rompe as fronteiras da comunidade e, por isso, gera tensões: "Eu não sou muito ligada nisso. [...] Acho. Porque a juventude de hoje tá assim agora: ou você cai de cara aí na internet ou você cai de cara no crime praticamente" (Entrevista B-Girl, 16 anos).
A internet contribui com a relativização dos discursos predominantes nas periferias, engendrando outras formas de experimentar e construir a própria subjetividade, possibilidades estas facilitadas a jovens de classes sociais privilegiadas e negadas historicamente aos jovens das periferias. As redes sociais ao colocar os usuários diante de outras referências, pode contribuir para a construção de outros sentidos e maior consciência dos poderes cotidianos que lhes oprimem, segundo Montero (2006), importante condição para a transformação da realidade.
Somado a estes fatos aparece a questão da vigilância na web, pois a internet amplia a comunicação e o monitoramento das atividades no mundo virtual. Corroborando com Boyd (2017), Bruno (2013) afirma que a exposição e a criação de uma figura pública através da internet envolvem sabedoria e astúcia por parte dos jovens e não descaso com a privacidade. Isso significa maior controle sobre o que desejam exibir de si mesmos e, por conseguinte, maior controle sobre a própria privacidade.
Castells (2003) disserta sobre a questão da privacidade e levanta um paradoxo interessante. A internet ao mesmo tempo que pode aumentar a sensação de liberdade, a diminui. O autor concordaria em muitos aspectos com as colocações de Thibes (2017) e afirmaria que a internet é capaz de aumentar a noção de liberdade dos indivíduos, associando a ideia de liberdade à possibilidade de os cidadãos poderem vigiar seus governos. Entretanto, o mesmo poder de vigilância teriam os governos e o mercado sobre os cidadãos.
Bruno (2013) afirma que os dados que circulam na internet e os rastros deixados pelos usuários através dos cookies, por exemplo, tornam possível para governos e mercados antecipar tendências, gerir interesses e mobilizar/manipular a opinião pública. Assim, indica que um dos caminhos necessários é a regulamentação e maior controle dos usuários sobre as informações que desejam ou não compartilhar no ambiente virtual.
Entretanto, isso não diminui a importância que adquire a vigilância nos tempos atuais. Os dados arquivados podem ser utilizados por agentes do Estado e do mercado de acordo com seus interesses como, por exemplo, observamos nas eleições gerais no Brasil em 2018. Atenta a isso, a mãe da jovem que enviou nudes exigiu dos pais do jovem uma atitude: "Falei 'você pega o computador do seu filho e manda ele tirar aquelas fotos da minha filha, porque se essas fotos se espalharem o negócio vai ficar feio pra ele'" (Entrevista liderança comunitária, 50 anos).
A preocupação da mãe era com a reputação da filha na comunidade e na igreja, pois a fofoca é um elemento que tem aparecido nas pesquisas realizadas nesse território desde 2012 (Anhas, & Castro-Silva, 2017). Para Fonseca (2004), a fofoca na medida em que pode afastar as pessoas do convívio em determinada comunidade, muitas inclusive mudando-se de certas comunidades, contribuindo com certa integração e identidade comunitárias, na medida em que cria histórias, memórias e um imaginário local em torno dos quais as pessoas se identificam e compartilham.
Alguns participantes do estudo parecem concordar que a internet contribui para o aumento da fofoca na comunidade, uma vez que a informação se espalha com bastante rapidez. Cabe ressaltar, que a maioria dos exemplos relativos à fofoca referem-se ao sexo feminino, reificando e naturalizando uma ideia socialmente construída que atribui às mulheres o comportamento da fofoca. Citando novamente Fonseca (2004), há que se pensar no elemento integrativo, disruptivo e também pedagógico da fofoca. No caso abaixo, a mãe diz que após uma adolescente comentar em um post do Facebook, a comunidade estava toda a saber e falar a respeito: "Eu falei 'pra você ver que um monte de gente viu, mas ninguém foi atrás dela'. Estava todo mundo fazendo a fofoca, todo mundo falando 'tu viu o que a Mari postou? Tu viu o que a Mari postou?" (Entrevista liderança comunitária, 50 anos).
Os moradores parecem reivindicar o direito à privacidade quando reclamam da existência de muita fofoca no local, aumentada, segundo a visão dos participantes do estudo, pela internet. A web aparece paradoxalmente como um instrumento que propicia, em alguns momentos, tal privacidade e vivências subjetivas que só seriam possíveis no ambiente virtual.
Como ressalta Thibes (2017), a privacidade é um direito oriundo das classes burguesas. Os barracos construídos próximos uns dos outros sem muros e as próprias invasões dos barracos pela polícia são apenas alguns exemplos de como essas pessoas têm expropriado o seu direito à privacidade.
A internet adquire certo sentido de privacidade, sentido este que convive com a existência da vigilância e da própria fofoca. Embora se possa experimentar modos de ser na rede, essas experiências podem vir a ser comprometedoras caso alguma informação seja mal interpretada ou algum elemento íntimo seja espalhado entre os moradores e usuários da web.
Considerações Finais
Em vista dos resultados, é possível indicar que a internet pode favorecer a construção e o fortalecimento dos vínculos afetivos, de amizade e comunitários. Os relatos trazidos por este estudo ajudam a expressar como os jovens da referida comunidade têm experimentado outras identidades e construído vínculos a partir das aprendizagens desencadeadas pela web, as quais têm propiciado outras maneiras de serem reconhecidos.
Os riscos advindos do seu uso, na visão dos participantes deste estudo, estão associados às vivências configuradas no contexto de exclusão social da comunidade. Cabe ressaltar, que há uma visão ideológica e histórica que associa juventude a riscos. Dessa forma, os discursos de alguns adultos e até mesmo de jovens no estudo, reificam um pouco essa visão. Contudo, tais discursos convivem contraditoriamente com outros que reforçam os aspectos positivos da utilização da web por parte desses jovens, por exemplo, a possibilidade de interagir com pessoas que compartilham os mesmos interesses.
Como se observou, algumas concepções de riscos oriundos da utilização da web são fundamentadas em uma perspectiva de cunho moral, a qual a web parece ajudar a relativizar no cotidiano desses jovens. Ou seja, a internet parece apoiar a criação de outras referências de vida para além daquelas observadas e vivenciadas na comunidade.
Cabe dizer, assim como se abordou na introdução deste artigo, que muito se associa atualmente a redução da privacidade e a exposição intensa da intimidade às possibilidades de constante interação trazidas pela web. Mas é importante refletir sobre como o direito à privacidade é cotidianamente violado pelos jovens do estudo, seja por agentes da segurança pública, seja pela própria geografia e arquitetura da comunidade, na qual as casas, muito próximas umas das outras, não possuem grades, nem muros ou cercas. Dessa forma, são necessários estudos que busquem investigar como os jovens das periferias têm utilizado as redes sociais para (re)configurar espaços de privacidade e intimidade.
Embora as relações na internet não sejam predominantemente institucionalizadas, há que se refletir também sobre a ausência do Estado no espaço virtual e a presença marcante de entes do mercado, ditando modos de ser na sociedade do consumo, muitas vezes reproduzidas pelos adolescentes e jovens. Ressalta-se a importância de regulamentação da internet e de ampliação de seu acesso, de modo a reforçar seu caráter democrático.
É preciso salientar ainda que este tipo de pesquisa, online e offline, impõe questões éticas importantes que precisam ser melhor exploradas em estudos futuros.
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Endereço para correspondência:
Danilo de Miranda Anhas
danilo-anhas@hotmail.coms
Submetido em: 10/03/2019
Revisto em: 07/11/2019
Aceito em: 10/10/2019
1 Artigo produto de pesquisa de doutorado (FAPESP 2015/26500-5).