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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.73 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2021
https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2021v73i1p.137-153
ARTIGOS
Relações de autoria e audiência na pichação urbana: uma perspectiva dialógica1
Authorship and audience relations in graffiti: a dialogical perspective
Relaciones de autoría y de audiencia en el grafiti urbano: una perspectiva dialógica
Rodrigo de Oliveira MachadoI; Adolfo PizzinatoII
IPós-Doutorando em Psicologia. Universidade Federal de Sergipe. Aracaju. Estado de Sergipe. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
RESUMO
O presente artigo buscou compreender as relações de autoria e audiência vinculadas à pichação na cidade de Porto Alegre. Através do entendimento da pichação como uma forma de apropriação do espaço urbano que se configura como ato comunicacional, apoiado em uma perspectiva teórica bakhtiniana e do self dialógico, foram entrevistados seis pichadores e seis transeuntes. Posteriormente as entrevistas foram analisadas através da Análise Crítica do Discurso. As posições do eu identificadas no discurso dos transeuntes demonstrou a monologização discursiva quanto ao caráter jurídico-punitivo dos atos de pichação. Por sua vez, os pichadores apresentaram a emergência de vozes do outro, assumindo assim uma posição de alteridade frente ao seu ato de pichar. As ideologias que sustentam ambos os discursos se constituíram em generalizações da relação eu-outro marcadas pelo conflito de "noção pessoal de sociedade".
Palavras-chave: Pichação; Dialogismo; Self dialógico.
ABSTRACT
The present article sought to understand the relationships of authorship and audience linked to graffiti in the city of Porto Alegre (Brazil). By understanding the graffiti as a form of appropriation of urban space that is configured as communicational act, supported on a Bakhtinian theoretical perspective and the dialogic self, six taggers and six bystanders were interviewed. Later, the interviews were analyzed through Critical Discourse Analysis. The positions of "I" in the speech of passersby demonstrated monologized discourse on the legal-punitive acts of graffiti. In turn, the taggers showed the emergence of voices on the other, thus assuming a position of alterity front of his act of tagging. The ideologies that support both speeches constituted on generalizations of self-other relationship marked by the conflict of "personal notion of society".
Keywords: Graffiti; Dialogism; Dialogical self.
RESUMEN
En este artículo se trató de entender las relaciones de autoría y de audiencia relacionadas con el grafiti en la ciudad de Porto Alegre. A través de la comprensión del grafiti como una forma de apropiación del espacio urbano que se configura como un acto comunicativo, apoyado por una perspectiva teórica de Bakhtin y del self dialógico, se entrevistaron a seis artistas grafiteros y seis transeúntes. Posteriormente, las entrevistas fueron analizadas a través del Análisis Crítico del Discurso. Las posturas del yo identificadas en el discurso de los transeúntes demostraron la monologización discursiva sobre el carácter legal-punitivo de los actos de grafiti. A su vez, los grafiteros presentaron el surgimiento de las voces del otro, asumiendo así una posición de alteridad frente a sus actos de grafiti. Las ideologías que apoyan ambos discursos estaban constituidas por generalizaciones de la relación yo-otro, marcadas por el conflicto de "noción personal de la sociedad".
Palabras clave: Grafiti; Dialogismo; Self dialógico.
Introdução
O uso dos espaços urbanos como suporte material e relacional na prática da pichação é uma característica visual das principais cidades do mundo, também reproduzida amplamente nas cidades brasileiras. A relação do poder público com esse modelo de intervenção no espaço urbano está marcada pelo discurso da ilegalidade e vandalismo, sendo ancoradas em leis adotadas pelo Estado e manchetes da mídia.
Ainda que se parta da premissa que essa visão sobre a pichação seja a que prevaleça entre os citadinos, especialmente quando a propriedade privada e o mobiliário urbano figuram como telas para essas ações, ao se tratar de um ato comunicativo, outros significados podem compor o repertório interpretativo desses atos. O esclarecimento dos significados que permeiam a relação da pichação pode ser analisado ao menos por dois grupos de atores: transeuntes e pichadores. Em ambos os casos existem uma profusão de ideias preconcebidas pelo senso comum e poucas investigações empíricas que tratem do tema, logo, trazer esse tópico desde uma perspectiva de ato comunicacional pode auxiliar a compreender o fenômeno da pichação de maneira mais abrangente.
Desta maneira, partindo do princípio psicolinguístico de que todo ato comunicativo supõe uma relação de autoria-audiência, a presente pesquisa se desenvolveu com vistas a explorar as possibilidades dos atos comunicacionais da pichação na cidade de Porto Alegre. Orientados por supostos teóricos e metodológicos do conceito do self-dialógico (Hermans; Kempen, & Van Loon, 1992) - que proporciona compreender as diversas posições do eu (I) nas relações humanas -, buscou-se que os pichadores expusessem sobre a sua posição de autor e pretensa audiência, ou seja, que posteriormente se transpusessem para a posição de um outro (others) que observa a pichação. A mesma abordagem foi utilizada com pessoas que circulam pela cidade, onde em um primeiro momento foram convidadas a se posicionar como audiência da pichação para em seguida ocupar a posição de autoria daquela apropriação na urbe.
A seguir, apresentam-se alguns elementos teóricos que contribuíram na construção dessa pesquisa: a relação da pichação com a cidade e dos citadinos com o local em que moram; a perspectiva bakhtiniana e do self-dialógico que permitem compreender este fenômeno desde uma vertente da psicologia cultural. Este conjunto de teorias serviram de base para alcançar o objetivo de compreender formas e relações de autoria e audiência vinculadas à pichação na cidade de Porto Alegre.
A partir da década de 1960, na eclosão de movimentos sociais e políticos que reivindicavam direitos retirados pela ditadura vigente no Brasil, o picho se destacava por frases de ordem de caráter político e pelo uso de letras no formato ao que se está habituado a ler (linhas retas, tipo bastão). Na atualidade o tag reto é aquele que ocupa esse papel de protagonista nas paredes das cidades brasileiras. Este modelo de picho se caracteriza por letras pontiagudas e angulares que buscam ocupar os espaços de forma a se vincularem aos ângulos oferecidos pelo suporte urbano em que é realizado (Lassala, 2010). Devido às características do tag reto, o qual se inspira na forma de escrita árabe com o seu entrelaçamento de letras e do alfabeto gótico com signos em formatos côncavo e convexo, se observa a dificuldade na leitura por aqueles que não picham (Canevacci, 2004). A Figura mostra o formato referenciado por Canevacci e que é comumente encontrada nas fachadas de São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre (Diniz, Ferreira, & Alcântara, 2015).
Assim, as diferenças entre essas duas formas de pichação se concentram principalmente no conteúdo inscrito e na inteligibilidade. Enquanto o estilo político prioriza frases de protesto ou denúncias e é facilmente compreendido por qualquer pessoa alfabetizada, o tag reto se caracteriza por ser a assinatura do pichador e de seus coletivos dirigida explicitamente a privilegiar a compreensão daqueles que são iniciados nesse formato, ou seja, uma comunicação com dois níveis de audiência inteligível previstos. A escassa literatura sobre a pichação não permite que se trace comparações entre aqueles produzem o picho político (mais compreensível a população - formatos como palavras e frases de ordem/motivação política) e os que picham no formato tag reto (nome dado a caligrafias particulares de certos coletivos), entretanto se nota que este último formato está associado a uma população específica, adolescentes e jovens adultos de origem pobre (Pereira, 2007; Spinelli, 2007).
Outra característica que se destaca ao revisar a literatura acerca da pichação é a ausência de diferenciação desta com o graffiti. Ainda que sejam práticas eventualmente confundíveis e sem maiores distinções em produções internacionais, as diferenças quanto à estética e conteúdo de cada movimento são marcadas pela maioria dos transeuntes (Pizzinato, Tedesco & Hamann, 2016; Sthal, 2009). A diferenciação entre pichação e graffiti costuma estar associada à carga valorativa em que cada qual é percebido, onde o primeiro estaria mais relacionado com "ideologias" enquanto o segundo se vincularia com conotações "artísticas" (Andreoli, & Maraschin, 2005, p. 94; Pizzinato et al. 2017).
O estudo de tais signos espalhados pela cidade, desde um entendimento de inspiração na obra do linguista russo Mikhail Bakhtin, postula que o locutor é apenas mais um personagem nessa trama. A voz do autor está ao mesmo tempo em qualquer e em nenhum lugar, pois se cria apenas no encontro entre obra e audiência, na criação desse tripé de campo intersubjetivo, onde a obra com seus atributos incita uma criação de significado, a qual só é possível na medida em que a audiência entra em contato com a obra. Sendo assim o autor não está propriamente na obra, ele surge da obra e da audiência, na relação intersubjetiva desse encontro (Amorim, 2002). As palavras de Bakhtin se aproximam bastante do que poderia ser a descrição do que é uma pichação, reforçando este caráter comunicacional a qual ela se encontra balizada:
Toda enunciação monológica, inclusive uma inscrição num monumento, constitui um elemento inalienável da comunicação verbal. Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as (Bakhtin, 2010, p. 101).
Na mesma linha de compreensão, um dos pioneiros da Psicologia Social moderna, Mead (1934/1962), refere-se que o ato social de se comunicar pode se configurar como participativo ou não participativo. O autor entende que a participação está vinculada não à interação entre duas pessoas que se comunicam, e, sim ao compartilhamento de significado de ambas sobre o que se comunica. No exemplo da pichação, aquelas pessoas que entendem o significado do que está escrito estabeleceriam uma comunicação considerada participativa e, por sua vez, os que não compartilhem de tal significado estariam em uma comunicação não participativa se comunicam com ela ainda que possam não partilhar o significado desta com aquele que a emitiu.
O diálogo estabelecido nesse espaço urbano, assim como em qualquer outro espaço, remonta a importância da palavra e do enunciado nesse processo. O enunciado se encontra em um "terreno compartilhado", entre o sujeito que fala e aquele que ouve, ou, entre o que escreve e aquele que lê. Nesta relação, na qual a palavra se origina não apenas em quem fala, mas também naqueles que antes já o fizeram, inscrevendo um campo de comunicação e, ainda para àqueles a que ela se destina, sempre o enunciado terá consigo os resquícios do entorno histórico-cultural que lhe circunscreve (Bakhtin, 2010).
Nesse tipo de análise, o outro, está incluso nesse diálogo com o eu e remete à alteridade como fenômeno indispensável para o processo comunicacional e identitário. Através dessa compreensão, onde não existe um eu a priori e desvinculado das relações com os outros em determinados momentos históricos, a definição do eu só se torna possível no encontro com a sua antinomia, o outro. Nesta relação, em que o contraste predomina, se articulam subjetividades singulares, concebidas na coletividade, ao mesmo tempo em que se habilitam diferentes possibilidades de vir a ser (Machado, & Zanella, 2019; Zanella, 2005).
Na mesma direção, os conceitos de dialogicidade e polifonia da obra bakhtiniana oferecem suporte teórico para formar um novo paradigma de relações identitárias do homem, afastando-se de uma concepção de uma identidade coesa, estável e única. A dialogicidade corresponde ao entendimento que existe um diálogo interno entre as diversas vozes sociais internalizadas no sujeito, sem a imissão de qualquer uma delas, e em que pode ocorrer uma constante alternância de posicionamentos. A polifonia, por sua vez, se refere às diferentes vozes sociais que interagem no sujeito e estão presentes nas articulações de significados em relação entre o eu e o outro, que devido ao seu caráter dialógico estará sempre em um processo evolutivo, marcado pela inconclusibilidade e inacabamento (Bakhtin, 2002). As diversas vozes que se deslocam entre uma série de posições através das relações dialógicas auxiliam na compreensão de um self (eu) não mais unificado e monológico, mas sim dotado de uma multiplicidade de vozes e posições.
As construções teóricas bakhtinianas, principalmente a polifonia, e as relações postuladas por outro dos pioneiros da psicologia, William James, entre o eu (I) e o mim (Me), embasaram a criação de um modelo identitário que conjuga a existência dessas diversas vozes e as suas posições na relação espaço-tempo. Assim, o conceito de self dialógico surge como modelo compreensivo do ser humano, o qual seria composto por uma multiplicidade de "eus", onde cada um responde a vozes sociais específicas, e se posicionam de diferentes maneiras de acordo com as relações de poder e dominância construída entre tais vozes. A voz do outro ocupa essas posições no self multivocal através da imaginação, e desta forma não é a presença física que permite o diálogo com elas, e sim as interações sociais que essa alternância de posições, intituladas de I-Positions, proporciona (Hermans 1999; 2002; Hermans et al., 1992; Hermans, Rijks & Kempen, 1993).
Embora essas posições do eu contemplem a relação dialógica e alternância de posições, é possível, devido às relações de poder e valência atribuída a cada voz, a anulação do caráter dialógico e a permanência de um processo monológico (Hermans, 1996; 2002). Os dogmas, que são as "verdades", ou seja, as ideologias legitimadas pela sociedade, servem de exemplo desse processo, onde posições contrárias são subjugadas frente a premissa que detém maior valência e assim rompe com a possibilidade de ocupação das posições por outras vozes. Em contraposição, o modelo monológico não permite esses diversos posicionamentos do eu na sua relação com o outro, pois este outro se encontra "coisificado" e não tendo a sua voz considerada em um possível diálogo.
A tensão provocada pela relação entre o ser e o vir a ser, presente na perspectiva de pesquisa do self dialógico, pode gerar modificações quanto aos significados que as pessoas detêm acerca de si ou questões sociais (Valsiner, 2012). A própria origem desse modelo conceitual, que advém da experiência clínica em psicologia, promove que a alteridade, que sustenta o processo de pesquisa, habilite que posições que antes não foram ocupadas dialoguem com o eu.
Considerando esse panorama analítico, foram realizadas entrevistas com os transeuntes e pichadores que buscaram, além da coleta de informações acerca de suas percepções sobre as pichações, que o processo comunicacional de alteridade autor/audiência também fosse mais explicitado. A metodologia adotada (fotos utilizadas como suporte e elaboração das perguntas) considerou elementos que pudessem facilitar tal dinâmica, como descrito a seguir.
Método
Abordagem metodológica com o grupo de pichadores
Tendo em vista a dificuldade de acesso ao grupo de pichadores, devido ao caráter transgressor dos atos e, por isto, a busca pelo anonimato daqueles que participam do movimento do picho, fez-se necessária uma abordagem inicial dentro de uma perspectiva etnográfica. O processo de aproximação aos entrevistados esteve marcado pelo tempo do grupo de pichadores em aceitar um não membro em parte das atividades que realizavam, logo o primeiro contato foi estabelecido por redes sociais e, posteriormente, para eventos organizados pelos praticantes do picho para divulgar os DVDs que editavam e vendiam para os próprios integrantes das festas. Estes eventos de divulgação dos DVDs foram o principal espaço de interação entre pesquisador e pichadores e todo o processo de acompanhamento da prática dos pichadores teve duração de aproximadamente 12 meses. Esta pesquisa que teve início em 2011, e tem seguimento até os dias atuais, integra uma série de investigações que contemplam o espaço urbano como palco comunicativo para analisar diferentes intervenções na cidade (Oliveira-Machado & Pizzinato, 2015; Pizzinato et al., 2016).
Especificamente, o material gerado a partir dessa inserção entre os pichadores foi resultado de anotações em diário de campo e entrevistas realizadas junto a eles (Oliveira-Machado & Pizzinato, 2015). As seis entrevistas realizadas foram aprofundadas na direção das posições do eu e das ideologias que sustentam tais posições (Hermans, 2002). Neste artigo preponderam as entrevistas, embora algumas observações do diário de campo sejam utilizadas para complementar as análises.
Abordagem metodológica com o grupo de transeuntes
Quanto à abordagem dos transeuntes, a opção encontrada foi realizar a entrevista em locais públicos, onde sempre com o amparo de fotografias de pichações (estilo tag reto e política) e graffiti, tentou-se que os participantes deslocassem a sua posição para, pelo menos, uma das três formas de apropriação.
Embora a delimitação desse estudo seja acerca da pichação, o graffiti foi colocado entre as fotos e, por consequência, entre as perguntas realizadas a posteriori, devido à constatação da sua intensa relação com o picho no imaginário popular (Pizzinato et al., 2017).
As perguntas dirigidas para incitar essa transição das posições do eu mantiveram uma linha em que o roteiro inicial teve poucas modificações e com uma duração de aproximadamente 10 minutos. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o número 11/05376, sendo todos os trâmites éticos adotados no decorrer da investigação com pichadores e transeuntes.
Análise dos dados
Posterior à realização das entrevistas, a primeira etapa esteve dedicada a transcrever seguido por uma leitura detalhada de todas as entrevistas e o agrupamento das respostas por temas, considerando os referenciais semânticos utilizados, e os posicionamentos de cada participante.
Por fim, a Análise Crítica do Discurso forneceu subsídios metodológicos para compreender as ideologias presentes no discurso dos participantes. A escolha por esse modelo de análise se deve ao entendimento que a opção por determinada posição do eu, de acordo com a teoria do self-dialógico, estará sempre vinculada com relações de dominação e valência associada a estas. Desta forma, a análise crítica compreende que o discurso tem caráter construtivo da realidade social e, através da sua análise, é possível vislumbrar as relações de poder, ideologias e desigualdade que permeiam o tecido social (Dijk, 2012). As categorias de análise utilizadas foram as propostas por Dijk (1996) que servem para desvelar as ideologias nos discursos são referentes a(s): autoidentidade, atividades, propósitos, normas e valores (nós/eles), posições e relações (nós/eles) e de recursos. Entre tais categorias o conjunto de dados apresentado neste artigo estão vinculados à autoidentidade, normas e valores, assim como posições e relações (nós/eles).
Resultados e discussão
Eixo - Transeunte-audiência e autoria
Durante as entrevistas tornou-se evidente que algumas expressões se repetiam ao longo das entrevistas. Os termos escolhidos para adjetivar cada uma das intervenções sugerem a expressão de uma posição discursiva dominante e também de determinadas ideologias que a sustentam.
Nos trechos a seguir, são destacadas as palavras endereçadas ao pesquisador quando este questionou acerca do significado das apropriações para os entrevistados:
E1: O que essas imagens representam pra ti?
T1: Algumas mais estéticas e outras querendo passar algumas mensagens.
E: E tu acredita que a intenção do autor era passar essa ideia que tu teve?
T12: A pichação acho que não tinha muito objetivo (tag reto). Nessa aqui acredito que sim, a ideia é passar uma coisa mais de revolução (pichação política). Nessa aqui acho que é mais estética, acredito que não tenha muito objetivo (graffiti).
E: O que essas imagens representam pra ti?
T2: Vamos ver... aqui pra mim é, sei lá, um lado artístico da pessoa (graffiti). Isso pra mim aqui é vandalismo (tag reto). E aqui, um modo de protesto. Não certo, mas... não deixa de ser um modo de protesto (pichação política).
E: Não certo?
T2: É, eu acho que não. Só que provavelmente ele não deve ter autorização pra fazer isso nesse muro. Se ele tiver, aí já é diferente.
A associação entre essas palavras denota o subsídio ideológico para defesa e acusação da presença dessas formas de apropriação na cidade. Enquanto o graffiti se vincula a uma concepção de arte, e assim se legitima frente aos cidadãos através de determinada condição estética, o picho é associado à noção de vandalismo ou sujeira e dessa forma se justifica o seu local de não aceitação por parte dos entrevistados (autores, 2017).
A associação atual entre a arte formalmente legitimada e o graffiti pode ser compreendida pelo fenômeno de assimilação deste pela grande mídia, onde, desde o início da década de 1990, vem sendo substancialmente reconhecido por setores tradicionais da arte institucionalizada, como é o caso das galerias de arte (Schlecht, 1995). A transformação do graffiti em produto consumido por uma população que anteriormente estava distante das suas raízes, marcado pelo ato transgressivo, ajusta-se a uma série de produtos culturais (rap, funk e outros) que advém de classes com menos poder econômico e se tornam elementos que transitam entre as fronteiras com outros grupos sociais .
A estética enquanto forma de percepção traz junto de si uma coletânea de ideias, pensamentos, imagens, sentimentos e recordações que estão maculadas na trajetória de vida de quem as percebe, assim como as "concepções e valores oriundos da bagagem cultural disponível ao indivíduo e do seu ideológico-estético em particular" (Sánchez-Vázquez, 1999, p. 140; Pizzinato et. al, 2017). Bakhtin (2008) destaca que o autor-criador, ao recortar e isolar determinados elementos da realidade, os quais sempre são derivados de escolhas dentre um emaranhado de relações axiológicas, está colocando o seu viés valorativo em todos os detalhes que compõem a criação. A assunção de olhares estéticos que se homogeneízam em torno de algumas práticas reforça as fronteiras que se estabelece entre determinados produtos culturais.
E: O que essas imagens representam pra ti?
T3: Essas duas ou todas, eu tem que olhar pra... três. Ahh... eu vejo três imagens diferentes. Uma eu entendo que seja arte. Esses graf... de grafiteiro, né, que eu acho bem legal. Essa que eu acho, tipo, anarquia (tag reto). Pra mim, não me serve. Eu acho assim ó, suja a cidade. E essa que eu vejo como um protesto, pela frase que tá escrita, né. Duas frases. "Ditadura que"... nossa, isso faz tanto tempo também. Mas memória, verdade e justiça eu acho bem legal isso aqui que eles escreveram. Bem significativa.
T3: Eu acho que esse tipo de pichação que tem uma frase com... que faz algum nexo, eu acho sim. Ele passa uma mensagem que ele é contra o sistema, né. Aqui. Essa é bem clara. Nessa daqui é uma arte, mas como eu não entendo muito de arte, eu acho legal, mas, talvez, a intenção dele seja uma, mas pra quem tá olhando tu não consegue entender muito o que ele quer dizer, né. Bem legal.
O respaldo "artístico institucional", oferecido como delimitador entre pichação de tag reto e graffiti, apresenta-se como a ideologia que detém a função monologizadora do discurso, resultando dessa forma na dificuldade do entrevistado em transitar para outras posições do eu. O último trecho assinalado acima demonstra a contradição do falante quando ao justificar que o graffiti é compreensível por ser arte, ao mesmo momento, ressalta que não consegue entender aquilo que está colocado a sua frente por não deter o conhecimento necessário sobre arte. Ao finalizar a frase diz "Bem legal" declarando a sua aprovação a intervenção, mesmo que está seja balizada pela sua incompreensão da mesma. Bourdieu (1991) assinala que as propriedades específicas de produtos culturais se devem mais as condições sociais de sua produção, especialmente, da posição daquele que é o seu autor neste meio, do que de outros elementos que conformam o produto final. As relações de censura e expressividade de determinada intervenção no espaço urbano também respondem a essa posição específica em que a obra é criada.
Dessa forma a censura seletiva de algumas práticas cumpre a sua função social de criar e manter as distinções sociais e interpessoais (Valsiner, 2012). Esse circuito imposto pela censura, delimitando formas corretas e validadas de expressão, afeta diretamente a maneira como a pessoa sente, pensa e se comunica. Assim, para além do entendimento da preferência e rejeição dos entrevistados pela pichação e graffiti cabe compreender que essas relações de autoria e audiência estão inscritas em um plano ideológico que já preconiza o "não diálogo", ou seja, a tentativa de transição para a posição do outro se configura como um rompimento com tal censura. Em outros termos a monologização quanto às respostas dos candidatos pode ser analisado como reflexo da apropriação destes por determinadas regras/censuras interpostas na cultura em que vivem.
A abordagem junto à população geral demonstrou que quando as pessoas tinham a possibilidade de escolha entre os três tipos de apropriação a sua eleição de via legitimada de comunicação se destinava ao graffiti. Como segunda opção ficou a pichação com escritas políticas, enquanto o tag reto não teve nenhuma identificação afiliativa.
Os motivos relatados para a escolha pelo graffiti apresentaram duas posições discursivas predominantes. A primeira se baseou no "poder estético" que o graffiti teria para gerar um embelezamento e transformação da cidade através das cores e formas, enquanto a segunda posição se caracterizou pela escolha do graffiti devido à contrariedade a pichação.
Conforme expresso no trecho abaixo, se verifica que a ênfase nesse embelezamento da cidade está vinculada não somente ao conteúdo, mas também devido à cor utilizada na sua realização.
T6: O que eu gostaria de fazer seria o graffiti. Passar uma mensagem boa, positiva, ou fazer alguma coisa colorida, alguma coisa viva, né, que realmente embelezasse a cidade. Que passasse uma coisa boa pras pessoas que observam né, que passam.
O discurso que argumenta a posição de autoria do graffiti, além de se valer do embelezamento dessa forma de apropriação, focaliza na aversão à pichação e o prejuízo visual que ela proporciona. Na fala escolhida para exemplificar tal posicionamento destaca-se a visão do entrevistado de um sujeito (o pichador) alheio a sociedade, o qual ao pichar está construindo um movimento apolítico e que exporia somente os seus "problemas" que também não estariam relacionados com a sociedade.
T4: O graffiti, com certeza, né. A pichação em si, ainda mais sem nenhum cunho de protesto, de alguma coisa, né, pichação por si só, do... caracterizando vandalismo eu acho que tem que ser por lei punido. Tem que pegar essas caras e fazerem eles pintarem e embelezar toda a cidade, o cara que suja. Sou um cara totalmente contra e averso a qualquer tipo de pichação. Acho que é uma manifestação que não tem caráter político nenhum, não tem, né... é só da expressão do indivíduo, ou seja, os problemas dele sendo exposto pra sociedade como um todo. Acho um egoísmo da parte dele e... é, denegri. Eu sou totalmente contra.
Embora o graffiti seja o tipo de apropriação urbana escolhida pela maioria dos entrevistados, e a cor da produção tenha sido ressaltada como fator essencial, percebe-se que o conteúdo dos desenhos também segue algumas regras. Quando um dos entrevistados se colocou como autor e situou a "sociedade" como sua audiência, nota-se a manutenção de regras sociais e a busca de uma posição de não enfrentamento ao Estado.
T5: O que não poderia ser grafitado, por exemplo, assim, é uma ofensa ao estado, né. Ou ofensa ao governo. Apologia a crime, apologia a droga, apologia ao crack. Isso mesmo que quisesse grafitar numa parede aí, fazer o desenho da folha de uma maconha ali, ou um cara cheirando uma cocaína, mesmo que fosse bem bacana assim, bem colorido, isso aí é extremamente proibido, né. É prejudicial a sociedade.
Em ambas as posições, de autoria e audiência, se perceberam a preponderância de discursos baseados em ideologias reiteradamente reproduzidos pela grande mídia. A compreensão do graffiti como embelezador da cidade e da pichação reduzido como ato de vandalismo, além de representar uma posição dominante em relação a outras possibilidades de posicionamento, é calcada no distanciamento do outro. A dificuldade de transitar por posições do eu diferentes daquelas que está acostumado se mostrou a principal característica dos entrevistados.
Eixo - Pichadores-audiência e autoria
Nas entrevistas com os pichadores, ao contrário das realizadas com os transeuntes, foi possível aprofundar as posições de autoria e audiência, além de abordar itens que não haviam sido previstos com antecedência, como relações de gênero. As entrevistas, que ocorreram em dois momentos distintos durante o lançamento de dois DVDs, tiveram a participação de seis pichadores. Os DVDs2 que estavam sendo vendidos no local apresentavam as ações de pichadores das principais capitais do sul e sudeste brasileiro.
Quando solicitado aos pichadores que se posicionassem como a audiência das suas apropriações do espaço urbano foi possível observar que esta posição em alguns casos se converteu na palavra "sociedade". Assim, ao direcionarem a sua posição do eu como aquele que visualiza a sua pichação eles não o realizaram como se fosse uma pessoa específica, mas sim como um termo generalizado, ou difuso, que é a noção de sociedade. Essa "sociedade" possui uma série de características que a revestem ideologicamente com a função de guia para distinção entre o nós (pichadores) e o eles (a sociedade). A partir dessa relação, onde ideologia e contra ideologia se debatem ocorre a justificação dos atos de pichar, ou seja, da própria existência dessa forma de apropriação do espaço urbano. O trecho a seguir cede subsídios para corroborar com tal análise:
P13: Eu acho que a pichação ainda é muito malvista pela sociedade. Porque não é todo mundo que é obrigado a aceitar a nossa intervenção, mas justamente nossa essência tá nisso, porque a gente vive na sociedade onde tudo é cada vez mais privado, tudo é privatizado, você não pode nada, então pichação é a resistência mesmo da liberdade de expressão. Acho que o caminho dela é se manter na transgressão, sem apaziguamentos, entendeu? [...] Como é aquela frase "se calarem as vozes dos profetas, até as pedras falarão", acho que é isso, a galera não tem voz, pra ser notado vai e escreve a voz do povo nos muros com a pichação, então eu acho que nunca vai deixar de ter e o caminho dela é esse mesmo, se manter nessa direção, sem apaziguamentos e se tiver algum reconhecimento, que seja por isso.
Conforme a descrição do P1, a sociedade, isto é, uma das audiências da pichação, não apoia o seu exercício devido a essa forma de apropriação buscar transgredir com a ordem social estabelecida. Quando se observa algumas das palavras e expressões utilizadas fica mais evidente o quanto esse discurso polariza os lados entre pichadores e sociedade. Por exemplo, o termo "apaziguamento", e a sua negação como postulada por P1 remetem à concepção de que os dois lados encontram-se travando uma guerra e, que para além do formato escolhido de apropriação do espaço urbano, o importante nessa disputa é a manutenção da sua verdadeira arma, neste caso, o ato transgressivo.
Em outro trecho sublinhado, P1 utiliza as seguintes palavras "se calarem as vozes dos profetas, até as pedras falarão". O recurso que o pichador trouxe para compor o seu discurso se classifica como uma metáfora e, conforme Fairclough (2008), serve para distanciar o sujeito que fala do conteúdo que é trazido. Em outros termos, ao escolher essa metáfora para corroborar com a ideologia central do seu discurso, estruturada entre nós e eles, o entrevistado buscou se distanciar da posição em que colocava os pichadores (os profetas) e a sociedade (as pedras). Na sequência dessa metáfora P1 se posiciona, e aos demais pichadores, como a "voz do povo" e, ao utilizar essa expressão, ele se reposiciona como integrante e representante do povo, o qual não faria parte da representação de "sociedade" que ele construiu discursivamente.
Durante a entrevista com outro pichador a utilização de um formato de pergunta diferente revelou posições do eu, em relação à audiência, com especificidades daqueles que tem o seu prédio pichado. A transcrição a seguir apresenta tais posicionamentos:
E: Como tu acha que o cara que abre a janela sente, pensa?
P2: É um jogo, tu coloca cerca elétrica na tua casa, tu deixa 360 dias ligado, mas vai ter um dia que tu não vai deixar, vai ter um dia que tu vai te esquecer, tu saiu com a tua mulher, com as tuas filhas pra tomar uma cerveja e vai esquecer ela, mas o pichador tá ali, pra te mostrar "o mano, viu se eu quisesse?". A pichação é tipo "se eu quisesse", "se eu quisesse eu roubava tua baia", "se eu quisesse eu levava tudo". Já tiveram várias janelas que nós entramos em prédios comerciais, já roubamos, mil, 2 mil, 3 mil reais. Semana passada eu roubei mil reais de uma janela, porque tava aberta, viu se eu quisesse! Só que eu queria, tava precisando e peguei. É tipo um "se eu quisesse" pra ti te ligar, como a sociedade é frágil em qualquer momento, então tem o "eu sou foda", "sou polícia", "tenho cerca elétrica em casa, ninguém vai me roubar", vai ter um dia que tu vai te esquecer, mano. [...] E o pichador tá lá pra te mostrar "acorda, mano", "mano, não dorme", "mano, não rateia, porque nós vamos estar aí". É isso que eu acho que a pessoa que mora no 10° andar, vai colocar a cara pra rua e vai ver a pichação na janela dela... é isso que eu penso. E o morador pensa "pra que os moleques fazem aquilo, eles só fazem pra mostrar pra nós que nós ratiamos4".
O primeiro ponto a se destacar do trecho acima é o uso do pronome "tu" para se dirigir a esse outro. A escolha desse pronome no início da sua resposta e a continuidade do uso até citar o morador do "10º andar" marca a forma como ele se relaciona com o seu interlocutor direto, neste caso o entrevistador, e o reconhecimento daquele que lhe pergunta como um outro, isto é, aquele que visualiza a pichação. Ao final da frase ele tenta se posicionar como o morador do prédio que é pichado e o dota de uma voz reflexiva - "pra que os moleques fazem aquilo, eles só fazem pra mostrar pra nós que nós ratiamos". Embora esse movimento de transição de posicionamento seja elaborado por P2 se notabiliza que existe uma continuidade da voz pertencente aos "avisos" dos pichadores, exemplificadas pelo "mano, não rateia, porque nós vamos estar aí", ou seja, ainda que a tentativa de se reposicionar como outro tenha ocorrido persistiu uma monologização discursiva. Quando são analisados os adjetivos que P2 faz uso para caracterizar a "sociedade" se tornam perceptíveis termos vinculados ao consumo, ao ter (segurança, dinheiro), e a prepotência (eu sou foda) e que nenhum destes itens, que, por fim, valora o outro, podem protegê-lo daquilo que o combate, o eu.
A estratégia de combate ao status quo também é adotada por outro pichador, membro de um coletivo intitulado "Muralha Rubro Negra" em que os integrantes se identificam como anarquistas, e que relata utilizar a pichação como forma de exercer a sua visão política. Através da sua fala é possível visualizar quais os elementos ideológicos que subsidiaram a sua aproximação de uma pichação com mensagens políticas, porém com estilo de escrita similar ao tag reto.
E: Tá, então vocês usam várias letras, de vários grupos, de várias pessoas que fazem pichação para formatar a forma de vocês fazerem?
P3: Não, a gente percebeu neles, a gente não fez uma fusão. A gente percebeu neles uma forma de comunicar suburbana, undergrownd, vileira e isso nos interessa, então a linguagem pra comunicar com o povo é esse povo... é fazer pichação, é fazer a letra com R e A do mesmo estilo do picho, fazer protesto com o mesmo estilo da letra, pra provar pra sociedade que os jovens e a periferia estão com razão. E aí se posicionar sobre a Copa, sobre a Yeda5, sobre qualquer assunto as pessoas vão entender e vão ver que aqueles guris tão riscando para serem ouvidos, é isso que a gente quer, a gente quer ser ouvido. Aí a gente mescla a linguagem do mural, que tem uns canetões, umas figuras mais simplificadas. Inclusive eu dou aula de artes, sou formado em artes, o "X" faz teatro, o "Y" é motoboy, a gente tinha catador, tinha estudante, tinha trabalhador e todo mundo compõe esse grupo e a gente se aproxima com a linguagem da rua, com o elemento da visualidade, da estética, com o risco reto, com a coisa da transgressão, que tem a ver com o risco e com o graffiti autêntico e a gente coloca o elemento da política, de denunciar.
O entrevistado, que claramente não compartilhava de características identitárias com os demais pichadores ouvidos, demonstrou que a sua inserção na pichação ocorreu devido à concepção político-ideológica que assume. Durante o seu discurso se percebe distanciamentos e aproximações com a identidade de pichador, porém quando ele faz uso das palavras "aqueles guris" denotam-se a existência de uma relação eu-outro não percebida na fala dos demais entrevistados. A apreensão do tag reto como forma de comunicar demonstra ter duas audiências específicas nesse caso, sendo que a primeira é referente à população em geral com aspectos gráficos oriundos de um tipo de pichação não reconhecida pela maioria como política, assim pretendendo de certa maneira tornar difuso essa fronteira para os demais. A segunda audiência se refere aos outros pichadores, designado como o "povo", o qual através da pichação compreenderia o conteúdo das suas mensagens.
Nesse sentido, para Tajfel (1981), a identidade social pode ser produto do sentido de pertença a um grupo. Identificar-se com um grupo significa categorizar, diferenciar aos de dentro (nós) dos de fora (eles/elas). Portanto a definição que fazemos de nós depende daquilo que consideramos que nos diferencia dos demais. Mas o contrário também vale a definição que fazemos dos outros depende do que os diferencia de nós, ou do que nós os atribuímos ao nos diferenciarmos deles. Desta forma, as fronteiras dessa identidade social também podem se mover dependendo de quem o discurso se direciona, ou seja, o interlocutor pode influenciar na seleção discursiva que guiará o falante para a fronteira do nós (pichadores) ou eles (a sociedade).
Essa relação de autoria e audiência interna (Amorim, 2002), destinada aqui ao endogrupo, se manifesta de forma diferente no discurso dos demais entrevistados. A composição dessa interface no processo comunicacional entre pichadores - transeuntes e pichadores - pichadores é marcada por vários fatores que não estão somente vinculados ao estilo da grafia adotada e conteúdo manifestado.
Conforme alguns dos entrevistados, existem classificações informais realizadas pelo endogrupo e exogrupo que influenciam nas estratégias adotadas para pichar. O recorte a seguir explicita as ideologias que baseiam a noção de autoria para a maioria dos pichadores entrevistados:
E: O que tu busca quando tu coloca o teu nome lá em cima? O que tu espera?
P4: A valorização mesmo, pelo meu trabalho, pela minha força de vontade. Porque cada coisa que acontece com o mundo não é por acaso, se tá aí é porque é, se tu nasceu com o dom de escrever, tu tem que escrever, tu não pode ir contra o teu futuro e se o meu futuro é pichar, eu quero que todo mundo olhe, quando eu morrer pode ter certeza que todo mundo vai lembrar. Ontem morreu um gurizão da minha banda e ninguém lembrou, mas eu se morrer amanhã, vai aparecer no jornal, se eu cair de um prédio vai aparecer na TV. [...] Quanto mais alto, mais é a fama.
A busca pelo reconhecimento de outros pichadores e da população em geral é uma constante no discurso. Essa concepção de que através da pichação, do seu "trabalho" e "esforço" poderá ganhar notoriedade faz com que busque sempre o topo dos prédios. Assim, o tipo de local em que a pichação é desenvolvida também é fator importante para o autor. A coexistência no grupo de pichadores de diversas modalidades, como, por exemplo, "fazer" prédios, janelas, muros e outros, trazem junto de si uma carga valorativa que é levada em consideração nas relações interpessoais e de reconhecimento dentro do endogrupo. De acordo com a dificuldade e risco que o pichador tem para realizá-la, tais atributos auxiliam a levantar o seu "ibope", sua "moral" perante o grupo.
Embora esse movimento de autoria para o público interno seja relevante para a emergência desse eu, é através de ferramentas da sociedade geral, ou seja, do exogrupo, que o seu valor junto ao endogrupo aumenta. O "jornal" e a "televisão" aparecem no discurso acima como possíveis transmissores desse legado inscrito nas paredes, o qual remete ao conceito de agenda setting e a possível subversão desta pelos pichadores. A profusão de notícias sobre pichação teria assim o efeito de promover aqueles que os jornais situam como vândalos. Desta maneira, ao proliferar as suas inscrições pela cidade os pichadores estariam não somente se pautando na mídia, como também elevando o seu status junto ao endogrupo. Porém, os motivos que levariam a busca por tal reconhecimento, considerando os riscos em que se colocam, são outros indicadores da relação de autoria-audiência. A resposta de P1 fornece subsídios para compreender esse fenômeno.
P1: O que movimenta a galera em geral é um código existencial, de ser notado por alguma coisa, tem o pessoal de baixa renda, da periferia, que vão ter poucas oportunidades de ter visibilidade em alguma coisa, porque a gente vive numa sociedade onde os valores são materiais e na pichação o indivíduo encontra reconhecimento existencial, ele não precisa ter nada, só ele pegar a tinta, deixar a marca dele pela rua, que ele vai passar a ser admirado e respeitado pelo pessoal do movimento e isso muda a vida de muitos pichadores. Porque às vezes o cara não tem família, não tem reconhecimento nem da família dele, pra família dele, ele não é ninguém e chega na rua ele tem um conhecimento, tem um status. Então isso que realmente move a pichação, esse "código" existencial, do tipo "não, eu não sou só mais um", tem um valor, entendeu? Existe algum conhecimento entre nós, é uma sociedade alternativa, pode se dizer.
O entrevistado retrata um perfil de pichador que através do seu ato ascende socialmente, mesmo que está seja uma "sociedade alternativa". O "código existencial" que ele formula apresenta a busca pelo "status" de um eu não marcado pelo consumo, como regra na "sociedade geral", mas sim pela confirmação da sua marca (tag) na face daquela que a exclui.
Análise do conjunto de dados
A análise discursiva das falas de pichadores e transeuntes denota a tensão presente entre posições de eu que se antagonizam, ainda que integrem uma mesma organização tacitamente reconhecida e reconhecedora do alter. Tais posicionamentos, e o seu deslocamento em relação ao tempo e espaço, reforçam a presença de um arranjo dialógico na constituição identitária, ou seja, a manutenção de um conceito do eu contínuo que incorpora e supõe novas relações de alteridade constantemente, organizando a noção de self (James, 1890).
A "divisão de sociedades" que os pichadores citam serve de apoio para um entendimento dialógico do self. Embora estes busquem estabelecer de alguma maneira outras regras para contrapor a sociedade da qual não se percebem como sujeitos de plenos direitos, é com base em alguns dos principais preceitos ideológicos (por ex: a meritocracia e a produtividade) desta que eles constroem os seus "pilares societários" e mesmo assim não reconhecem tais ambiguidades na sua formulação. Esta análise, além de apontar contradições, se mostra útil na identificação da polifonia no self (multi-voicedness) e o processo dialógico deste com essas múltiplas vozes sociais (Hermans et al., 1992). A organização dessas identidades, de aspectos contraditórios, denota que as possibilidades de criação de um mundo simbólico que visa ser distinto do eixo ideológico majoritário da sociedade ainda se fundam dentro da noção simbólica de seu próprio ambiente, seja por antagonismos ou similaridades (Hermans, & Kempen, 1993).
No que se refere à análise do discurso monológico, se verifica que dentre o conjunto de respostas dadas pelos dois grupos participantes, o dos transeuntes apresenta maior homogeneidade e mais dificuldade em transitar para outras posições de self (Hermans, 2002) que incluam uma noção menos estereotipada dos pichadores. Neste caso observou-se que a maioria dos transeuntes entrevistados descrevia a pichação com o mesmo itinerário discursivo, ao mesmo tempo em que não vinculavam ao ato outras possibilidades significativas de existência que não a da delinquência.
As falas que ilustram este texto demonstram que embora os transeuntes e pichadores concebam uma posição do outro, estes não conseguem formar uma ação comunicativa participativa explícita, nos termos de Mead (1934/1962), especialmente em relação às pichações do estilo tag, inscritas pela cidade. Enquanto alguns pichadores reivindicam esse ato como um posicionamento político os transeuntes o compreendem como expressão de vandalismo, sem maiores aprofundamentos das suas motivações.
O material analisado apontou considerações semelhantes às propostas por Watzlawik (2014) que assinala as tensões concernentes às posições identitárias dos grafiteiros e dificuldade de apreender as motivações, ou ideologias específicas como fio condutor desta prática, e coloca assim uma pluralidade similar a que encontramos ao entrevistar os pichadores. Os discursos apresentados demonstram a variabilidade que cada um dos grupos detém sobre os mesmos espaços da cidade em que cada qual o tornou seu local de significado de maneira singular, conforme já encontrados em estudos que buscam entender a comunicação no ambiente citadino (Kharlamov, 2012; Zonta, & Zanella, 2019).
Considerações finais
A trajetória da pesquisa apresentada mostrou-se desafiadora tanto do ponto de vista das estratégias de aproximação do grupo de pichadores, como também dos demais aparatos metodológicos selecionados para alcançar os objetivos estipulados. Embora a concepção de diversas posições do eu e a tentativa de percebê-las dentro do discurso dos participantes tenham ressaltado o quanto as ideologias enraizadas dificultam o trânsito eu-outro, verifica-se nessa visão teórica o potencial não somente de pesquisa, mas, sobretudo, de provocar a emergência de uma pluralidade de vozes no indivíduo.
O intento de realizar uma investigação que considere a cidade como palco comunicativo, percebendo esta como ente não neutro e que, portanto, também se comunica, é um dos caminhos a explorar aquilo que poderia se definir como uma psicologia dialógica urbana. As compreensões elencadas no decorrer do estudo conferem a necessidade de estreitamento do diálogo entre grupos que por vezes vivenciam realidades bastante semelhantes, porém não reconhecem na voz do outro aquilo que também é seu.
As posições monológicas quanto à pichação e as intervenções do Estado sobretudo com medidas punitivas levantam questões de como esse tratamento é efetivo. A percepção da pichação para além de vandalismo poderia inclusive auxiliar em alternativar para abordar o tema. Este reconhecimento de um outro que busca comunicar algo através do picho passa pela instância em que posições de alteridade superem os valores morais que costumam resumir o debate a questão da pichação.
Entre as limitações encontradas neste estudo destaca-se o número de pichadores que aceitaram participar deste. Devido às características do ato da pichação, reconhecida como transgressão a lei, se verifica grande dificuldade dos pesquisadores em se aproximar e, posteriormente, receber o aceite dos pichadores em participar de um estudo científico.
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Endereço para correspondência:
Rodrigo de Oliveira Machado
rodrigomachado.psicologia@gmail.com
Adolfo Pizzinato
adolfopizzinato@hotmail.com
Submetido em: 27/08/2019
Revisto em: 27/02/2020
Aceito em: 29/03/2020
1 Os autores agradecem as colaborações dos revisores para a finalização deste artigo.
2 Os DVDs lançados em duas oportunidades diferentes foram: "100Comédia" e "Escritos Urbanos".
3 P: referente a pichador.
4 A gíria utilizada pelo entrevistado refere-se a ideia de errar.
5 Faz referência ao ex-governadora do estado do Rio Grande do Sul, a qual ficou reconhecida como uma governante alinhada a políticas neoliberais e que à época foi alvo de muitas pichações políticas, assim como ocorreu, posteriormente com a Copa do Mundo de Futebol de 2014, sediada no Brasil e com Porto Alegre como uma das cidades sede, como rememora o participante da pesquisa.