10 1Psicologia, políticas públicas e práticas sociais: experiências em pesquisas participativas 
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Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.10 no.1 São João del-Rei jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Sobre o pesquisar uma pesquisa: notas metodológicas acerca das experimentações de uma abordagem metodológica participativa

 

Researching a research: methodological notes about experiences in a participative methodological approach

 

Pesquisando una pesquisa: notas metodológicas sobre experiéncias de una abordagem metodológica participativa

 

 

Alice Grasiela Cardoso Rezende ChavesI; Simone Mainieri PaulonII

ICCBS - Centro de Ciências Biológicas e da Saúde/Departamento de Psicologia, Univates - RS. Endereço: alicegrasiela@hotmail.com
IILaboratório Interdisciplinar de Políticas Públicas PPG Psicologia Social, PPG de Saúde Coletiva UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul Endereço: simone.paulon@ufrgs.br

 

 


RESUMO

Experimentar um processo de pesquisa participativa põe em relevo termos que ganham destaque pelo efeito de estranheza que vão produzindo na equipe de pesquisadores e demais participantes de uma pesquisa. Este artigo diz respeito a uma pesquisa que teve como objetivo acompanhar a experiência de participar de uma investigação avaliativa e participativa em saúde, tratando-se, então, de uma pesquisa sobre outra pesquisa. Os procedimentos metodológicos utilizados foram registros em diário de campo, grupo focal e de enunciação. O uso de tais ferramentas possibilitou movimentos de análises coletivas dos dados produzidos, trazendo consigo uma série de desafios, incluindo um processo desinstitucionalizante da própria função de pesquisador. Tais análises apontaram na direção de que à medida que a metodologia participativa foi se constituindo, o exercício da participação operou como um potente dispositivo, possibilitando aberturas para a invenção de modos outros de pesquisar.

Palavras-chave: Pesquisa; Metodologia; Participação.


ABSTRACT

Try a process of participatory research highlights terms that are highlighted by the effect of strangeness going on producing team of researchers and other participants in a survey. This article refers to a study that aimed to monitor the experience of attending an evaluative and participatory health research, treating itself, therefore, research on other research. The methodological procedures used were records in a field diary, focus groups and enunciation. The use of such tools gave support to possible movements of collective analysis of the data produced, bringing with it a number of challenges, including a process of deconstruction own search function. Such analyzes pointed toward that as participatory methodology was constituted, exercise participation operated as a powerful device, allowing openings for the invention of other modes of search.

Keywords: Research, Methodology, Participation.


RESUMEN

Pruebe con un proceso de investigación participativa términos resaltados que se destaca por el efecto de extrañeza va a producir equipo de investigadores y otros participantes en una encuesta. Este artículo hace referencia a un estudio que tuvo como objetivo monitorear la experiencia de asistir a una evaluación e investigación participativa en salud, el tratamiento de usted, entonces, la investigación sobre otra investigacione. Los procedimientos metodológicos utilizados fueron los registros en un diario de campo, grupos de enfoque y la enunciación. El uso de tales herramientas hice posibles movimientos de análisis colectivo de los datos producidos, trayendo consigo una serie de desafíos, incluyendo un proceso desinstitucionalizante de la función de búsqueda propia. Tales análisis apuntaban a que a medida que la metodología participativa se constituyó, ejercer la participación operado como un dispositivo de gran alcance, permitiendo aberturas para la invención de otros modos de búsqueda.

Palabras claves: Investigación; Metodología; Participación.


 

 

O ponto de partida deste artigo é uma pesquisa multicêntrica que teve por objetivo principal a proposição de avaliar os processos de formação de apoiadores institucionais e seus efeitos na produção de saúde, nos territórios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Tal investigação consistiu em realizar uma pesquisa-intervenção a partir de uma orientação metodológica baseada em uma avaliação participativa, na qual as funções de avaliadores que, tradicionalmente, eram designadas a especialistas, por vezes identificados às instituições acadêmicas, por outras aos gestores, foram exercidas de um modo mais abrangente. Em outras palavras, uma perspectiva metodológica que tinha como intencionalidade o deslocamento da posição dos sujeitos envolvidos de meros fornecedores de dados para uma posição de lateralidade em relação aos demais atores, passando, a partir disso, a interferir e compor atuações mais protagonistas no processo investigativo.

Nesse sentido, buscava-se a superação da simples identificação do ponto de vista dos pesquisados, avançando em direção a uma participação definida como a efetiva inserção destes em ações mais complexas, propositivas e, por que não dizer, protagonistas no processo da pesquisa. Propunha-se uma metodologia, portanto, que em vez de avaliar sobre, avaliaria com os apoiadores que participaram dos processos de formação-intervenção.Desse modo, a equipe de pesquisadores deveria ser composta não somente por pesquisadores acadêmicos como também pelos próprios apoiadores formados nos cursos em avaliação.

Estes apoiadores eram trabalhadores de serviços da rede pública de saúde dos três Estados mencionados, com diferentes formações profissionais e que participaram do processo de formação com o intuito de constituir habilidades para intervir sobre problemas de gestão e processos de trabalho em saúde. Além de serem informados acerca da realização da pesquisa, também foram convidados a participar dela.

Na composição desse contexto, algumas questões insistiam. Quais conjunturas justificariam a execução de uma pesquisa avaliativa participativa? Como, de fato, é experimentado o exercício da participação em um processo de pesquisa participativa? Que desafios metodológicos ela convoca à equipe de invetigadores?

Tais indagações forjadas no âmbito de uma pesquisa multicêntrica incluindo quase 40 pesquisadores, distribuídos em três comitês estaduais diferentes, agregaram elementos disparadores de um movimento cartográfico que conspirou para a invenção de um outro problema de pesquisa. O presente artigo toma, então, a experimentação da participação em um processo de pesquisa em Saúde Coletiva como fio condutor e problematiza a capacidade de incluir diferentes saberes e horizontalizar posições pressupostas de poder que o exercício metodológico permitiu ao grupo envolvido na investigação.

Entretanto, de início, é preciso frisar que partimos da premissa de que um problema de pesquisa não existe em si mesmo, não está à espera de ser descoberto pelo olhar e ação investigativos do pesquisador. Em vez disso, um problema de pesquisa é engendrado. Como diria Manoel de Barros (2010, p. 345): "tudo que não invento é falso". E tal invenção inicia quando colocamos sob suspeita todo e qualquer entendimento consensual, as concepções tacitamente compartilhadas, às quais estamos acostumados.

Tal posicionamento estaria ainda ancorado na noção de que ao tomarmos desejo como "o conjunto de afetos que se transformam e circulam em um agenciamento de simbiose, definido pelo co-funcionamento de suas partes heterogêneas" (Deleuze & Parnet, 1998, p. 57), o nosso interesse pelas coisas seria marcado pela afetividade (Veyne, 2008). Criamos, assim, aquilo que nos instiga investigar.

Partindo-se desses entendimentos, acreditamos que o modo de pesquisar não se separa de um plano de criação.

Nesses termos, ao entrar em contato com as orientações metodológicas da pesquisa multicêntrica acerca da formação de apoiadores institucionais, a equipe de pesquisadores foi acometida por uma inquietação acerca do tema da participação. Este insurgiu-se no plano dos acontecimentos, produzindo perturbações, irrompendo como linha-condutora, desintegrando os regimes de entendimento vigentes. Dessa maneira, desencadeou-se um movimento instigante de busca pelos sentidos conferidos à participação em tempos de democracia midiática, como também pelo modo como o participar constitui-se numa prática e não apenas numa intencionalidade, numa retórica vazia, numa prescrição metodológica. Esse mesmo movimento de busca invocou à adoção de um olhar estrangeiro, um olhar flutuante para as coisas em nosso entorno, num inquietante convite ao desmantelamento do já-sabido: por que mesmo desenvolver uma pesquisa com metodologia participativa? Como e por que incluir na equipe de pesquisadores os apoiadores formados nos cursos em avaliação?

A esse respeito, no 5º mês de execução da pesquisa multicêntrica, um incômodo foi gerado entre os pesquisadores a partir da constatação de que àquela altura ainda não haviam sido constituídas instâncias específicas de participação. Ou seja, não tinham sido criados espaços de interlocuções efetivos com os apoiadores que participaram dos processos de formação em avaliação. Esse elemento disparador aguçou o interesse de alguns pesquisadores pela experimentação da participação em pesquisas avaliativas em saúde, ao apontar a emergência de uma diferença desestabilizadora, colocando sob suspeita a aparente homeostase em que se desenvolvia a investigação multicêntrica.

A identificação de tamanha fragilidade na estrutura de um projeto que, desde a sua concepção, fora planejado por todos que nele se envolveram para incluir os apoiadores, sinalizou a nossa dificuldade em fazer operar a dimensão participativa, configurando a pesquisa multicêntrica como um instigante campo a ser investigado.

Nessa direção, toda a movimentação ocasionada pela experimentação da função pesquisadora, por meio do cotidiano constituído em reuniões, capacitações, leituras, oficinas metodológicas, foi transformando aquelas inquietações iniciais, expostas anteriormente, em indagações que passaram a atuar como objetivos-guias condutores de um outro processo investigativo distinto da pesquisa multicêntrica, que culminou na constituição de um outro campo de pesquisa, tema do presente artigo. Foram eles:

- Quais as instâncias de participação dessa pesquisa multicêntrica e de que modo elas propiciaram o exercício participativo?

- O que tornou tão difícil experimentarmos de fato a participação numa pesquisa cuja aposta metodológica incidia na dimensão participativa como seu método de produção?

- No habitar do paradoxo constituído pelo cenário da sociedade de controle, em tempos de democracia midiática e na aposta da prática da participação como um dispositivo de mudanças, é possível produzir sentidos contra-hegemônicos para a prática da participação?

Tomando, então, a pesquisa multicêntrica como um lócus eminente para acompanhar a prática da participação em movimento junto a um coletivo de investigadores no campo das políticas públicas, as indagações acima enunciadas funcionaram como questões-guia que ajudaram a analisar os modos pelos quais esse caráter participativo foi se realizando e quais sentidos de participação foram sendo produzidos no percurso da investigação.

Assim, o presente artigo traz algumas considerações referentes não somente à experiência de participar de um processo de investigação participativa, mas sobretudo acerca das orientações metodológicas de uma pesquisa sobre uma outra pesquisa, cujo objetivo geral consistiu em cartografar o que se realizou como experiência de participação, entre uma intencionalidade - a proposta de uma pesquisa participativa -, e a efetivação de um processo de pesquisa avaliativa em saúde.

Nesta linha, a investigação de que trata este artigo refere-se ao desejo de pesquisar, mas também a uma pesquisa desejante implicada, entre outras, com a instituição pesquisa. À sua temática, encontra-se articulado um trabalho do desejo de pesquisadores de, concomitantemente, produzir com e sobre os desejos investigativos de outros sujeitos, também pesquisadores, envolvidos com a pesquisa multicêntrica.

Vale registrar que à medida que a ação de conhecer é sempre guiada pelo corpo daquele que percebe, vive e experimenta uma situação, é com ele que se acompanha processos. Desse modo, com a criação dos objetivos-guia, tomava corpo um outro processo investigativo que atravessava a pesquisa multicêntrica e junto com ele formavam-se também os corpos dos pesquisadores envolvidos naquele campo investigativo. Corpos concebidos, para além de definições biologicistas, "como uma interface que vai ficando mais descritível quando aprende a ser afectada por muito mais elementos" (Latour, 2007, p. 39). Ou, em outras palavras, uma concepção, na qual:

o corpo é definido pelos afetos, pelos encontros que se têm com entidades humanas e não humanas. O corpo é definido pelas paixões de que é capaz. O corpo não é ancoragem de algo superior - uma alma imortal, o universal, ou o pensamento - mas uma trajetória dinâmica na qual nós aprendemos a nos tornar sensíveis àquilo de que o mundo é feito. É preciso falar do corpo no mundo, sem desconectá-lo daquilo que o constitui (Pozzana, 2013, p. 332).

Adotando como base tais concepções, podemos dizer que os corpos dos pesquisadores constituídos no e pelo campo investigativo mencionado, diferentemente do que apregoa a tradição racionalista e cartesiana que o separam da ação do conhecer, configuraram-se como eminentes ferramentas de pesquisa.

Face a essa constatação, colocamos os nossos corpos-pesquisadores disponíveis aos encontros, como uma interface aberta às afetações produzidas com os demais atores, sem perder de vista que numa cartografia "não há nada em cima - céus da transcendência -, nem embaixo - brumas da essência. O que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando por expressão" (Rolnik, 2011, p. 66).

Convém ressaltar que os olhares lançados sobre as experiências vividas e apresentadas neste trabalho não têm a pretensão de estabelecer relações de causa e efeito nem mesmo produzir efeitos de verdade. São oriundos de pesquisadores implicados com as diversas instituições que atravessaram o presente campo investigativo e que, por essa razão, deixaram-se interrogar com o que foram se deparando nos encontros produzidos. São, por isso, olhares criados em composição, dentre outros elementos, com registros de diário de campo.

E essa forma de escrita pessoal é restrita ao presente. Mesmo com uma pequena defasagem, escrevemos sempre no momento, onde vivemos ou onde pensamos. Não se trata de uma escrita feita após o impacto dos acontecimentos, mas estando ainda sob o efeito de tal impacto. Aceitamos, portanto a espontaneidade, eventualmente a força dos sentimentos, a parcialidade de um julgamento, em resumo, a falta de distanciamento. (Hess & Weigand, 2006, p. 18)

Enfim, são olhares de pesquisadores(as) ainda sob o efeito de estranhamento e desterritorialização de um processo de pesquisa, bem como da própria função de pesquisador. Ou seja, olhares de pesquisadores(as) em processo de experimentação...

 

Por entre os traçados do desenho metodológico de uma pesquisa sobre outra pesquisa

O processo metodológico é o de alquimia mesmo, resultando daí, uma bricolagem diferenciada, estratégica e subvertedora das misturas homogêneas típicas da modernidade. (Corazza, 2002, p. 122)

Como pesquisar uma pesquisa? Como inventar um processo investigativo por dentro de um outro no qual também nos encontramos implicados?

De antemão, foi preciso um mergulho nas intensidades, no qual a escolha dos procedimentos metodológicos foi definida por uma imersão na experiência da investigação multicêntrica. Longe de um padrão fixo de utilização de tais procedimentos, o modo de produção de dados foi guiado pelo próprio problema e por suas modulações ocorridas no transcorrer da pesquisa da pesquisa.

Cabe aqui um breve assinalamento quanto ao uso do termo produção de dados, que logo pareceu ao grupo de pesquisadores mais condizente com seu processo de relação com o campo de investigação e conhecimentos do que as usuais expressões coleta e/ou levantamento de dados. Essa escolha está relacionada ao que Kastrup (2010) designa por política cognitiva, ou seja, o modo a partir do qual concebemos e estabelecemos conexões com o conhecimento, com o mundo e conosco mesmo.

Em contraposição a uma política cognitiva representacional que exclui a experiência do pesquisador do ato de investigar e conhecer a realidade, porque supõe que haja uma espécie de "real" que antecede às formulações designadas a explicá-lo (Bujes, 2007), as pesquisas aqui relatadas entendem que "sujeito e mundo são inventados no processo investigativo, marcados pelo inacabamento e pela experimentação" (Pozzana, 2012, p. 332).

Partindo-se dessas considerações, a aposta do presente trabalho incide na noção de que, em vez de representação da realidade, o conhecimento é criação fruto de um movimento em que o saber engendra-se em conjunto com o agente da ação do conhecer. E, nessa perspectiva,

os objetos do mundo social em sua constituição, que nos acostumamos a ver como naturais, não estiveram aí desde sempre, imutáveis, pairando num limbo, à espera que viéssemos resgatá-los e falar sobre eles [...]. Não basta que deles tomemos consciência - tais objetos não preexistem em si mesmos; é necessário, para que eles "surjam", que sejam inventados, engendrados, a partir de um complexo feixe de relações (Bujes, 2007, p. 25).

Em face de tais assinalamentos, consideramos que em vez de colhidos ou coletados, os dados são produzidos, criados, construídos. Afinal, "se há dado, este se constitui na experiência e não pode ser concebido antes do ato de experimentar" (Passos & Eirado, 2010, p. 126).

Nesta perspectiva de relação intensiva com o conhecimento, um instrumento de pesquisa ganha especial relevância: o dispositivo diário de campo.

Na tentativa de dar contorno às intensidades, inquietações, desassossegos e afetos que vínhamos experimentando, passamos a registrar num diário de campo a apreensão e escuta das cenas e discursos, dos fluxos circulantes, das pontas do processo da pesquisa multicêntrica, relacionados ao tema da participação.

Além de captar, no dia a dia, as percepções, experiências vividas e os diálogos com os demais envolvidos no processo investigativo do projeto multicêntrico, também foram registradas "as sobras" das ideias que nele ocorriam, como frases soltas aparentemente desconectadas do contexto em que foram enunciadas. Eram também registrados os encontros e observações marginais, engendrados em regiões fronteiriças, produzidos nos intervalos de reuniões, oficinas e eventos, que também constituíram o campo do presente processo investigativo.

É importante assinalar que, tais registros tiveram a função de dispositivo, não propriamente para apresentar dados nem mesmo resultados finais. Mas, operaram como disparadores de desdobramentos do processo investigativo ao qual estávamos inseridos. Em outras palavras, os registros no diário discorreram sobre a vivência do campo e, desse modo, indicaram vestígios não só de como a pesquisa multicêntrica vinha ocorrendo, como também o modo como a pesquisa sobre a pesquisa foi sendo produzida.

Nessas circunstâncias, o diário de campo configurou-se como um potente instrumento de produção de dados do coletivo de pesquisadores. Os registros eram, muitas vezes, utilizados em reuniões de análise de dados e em momentos de escrita para sistematizar informações produzidas em campo. Hess e Weigand (2006, p. 17) já haviam assinalado que "o objetivo do diário é de guardar uma memória, para si mesmo ou para os outros, de um pensamento que se forma ao cotidiano na sucessão das observações e das reflexões". Assim, aquilo que, num primeiro momento, parecia apenas uma prática diarística, foi-se configurando como um instrumento do grupo de pesquisa e instaurando a dimensão coletiva transindividual.

Sobre esse aspecto:

Há uma processualidade na própria escrita. Um processo aparentemente individual ganha uma dimensão claramente coletiva quando o texto traz à cena falas e diálogos que emergem nas sessões ou visitas ao campo. Quando há uma equipe que trabalha junto, após ser elaborado por um membro, o relato é apresentado ao grupo em reuniões, ganhando a contribuição dos demais participantes (Barros & Kastrup, 2010, p. 71).

Nesse viés, os dados produzidos com a escrita do diário de campo incluíram dimensões e aspectos relativos tanto aos pesquisadores quanto aos demais participantes do presente processo investigativo. A partir da escrita diarística, engendrou-se uma conjuntura na qual se criou um plano em que as posições de pesquisadores e pesquisados se dissolveram como entidades definitivas e pré-constituídas. Acompanhamos, nesse processo, a coemergência do objeto e do sujeito da pesquisa que se apresentaram em sua provisoriedade (Barros & Passos, 2010; Hess & Weigand, 2006).

Foi possível, ainda, por meio da escrita do diário e do uso que ele passou a ter para o grupo de pesquisa, pôr em análise, conjuntamente com os demais envolvidos, as relações estabelecidas com as diversas instituições que atravessavam o campo investigativo. Ou seja, analisar as posições em que nos encontrávamos e quais relações de saber-poder foram constituídas no jogo de interesses e forças presentes na superfície de inscrição desta pesquisa sobre a outra pesquisa. Enfim, foi possível pôr em análise as implicações que mantivemos com e na própria pesquisa (Paulon, 2005; Monceau, 2008).

É necessário frisar que a implicação não diz respeito à noção de comprometimento, motivação ou relação pessoal com o campo de pesquisa/intervenção, ao contrário, explorar a implicação é falar das instituições que nos atravessam. Atravessamento que [...] vai muito além da nossa percepção subjetiva, da nossa história individual e dos julgamentos de valor destinados a medir a participação e o engajamento em determinada situação. A implicação denuncia que aquilo que a instituição deflagra em nós é sempre efeito de uma produção coletiva, de valores, interesses, expectativas, desejos, crenças que estão imbricados nessa relação (Romagnoli, 2014, p. 47).

Em outros termos, a escrita diarística foi um instrumento valioso para fazer da análise de implicação um processo intermitente ao longo de toda a investigação. Tal condição contribuiu, sobremaneira, para o acompanhamento do que vinha sendo produzido ao longo da pesquisa da pesquisa, ao pôr em evidência atravessamentos que não estariam tão facilmente visíveis. "Afinal, o que a gente vê não é onde a gente está e de onde a gente está não dá pra gente se ver", como afirmou Maraschin.

 

Entre focos e enunciados

"Se a escolha metodológica [...] fica na dependência das questões formuladas" (Corazza, 2002, p. 122-123), se a metodologia deve ser construída no processo de investigação e de acordo com as necessidades colocadas pelas perguntas elaboradas, por que não experimentar a metodologia participativa também na presente pesquisa?

Na busca por procedimentos metodológicos nos quais pesquisados e pesquisadora protagonizassem, conjuntamente, a produção de dados da presente investigação, mais uma questão se fez presente: quem seriam os sujeitos-participantes dessa investigação?

Se o objetivo era investigar o que se realizava como experiência de participação, num processo de pesquisa avaliativa em saúde, seria conveniente acompanhar os movimentos da equipe de pesquisadores da investigação multicêntrica. Especialmente, em ocasiões nas quais os pesquisadores acadêmicos contracenassem com as pesquisadoras integrantes do grupo de interesse da pesquisa, a saber, as apoiadoras que participaram do processo de formação que estava sendo avaliado. A partir dessas considerações, os pesquisadores e as apoiadoras passaram a constituir o grupo dos sujeitos-participantes da pesquisa da pesquisa. Desse modo, foram escolhidas ocasiões em que a maioria, senão todos os participantes da investigação multicêntrica, encontravam-se presentes, configurarando-se como momentos estratégicos para as experimentações destinadas à investigação acerca da dimensão participativa.

Levando-se em conta que a busca pelo procedimento metodológico tinha como intuito não apenas produzir mais dados, mas provocar movimentos de análises junto aos sujeitos-participantes, duas ferramentas mostraram-se estratégicas: o grupo focal e o grupo de enunciação.

A primeira assim se configurou por caracterizar-se em encontros grupais entre pessoas que compartilham interesses em comum, nos quais os dados vão sendo produzidos no decorrer de um processo de interação em que os comentários de uns podem suscitar diferentes posicionamentos em outros (Miranda et al., 2008; Dal'igna, 2012).

Por meio da realização de tal grupo foi possível verificar o modo como os participantes construíam suas opiniões, avaliavam as experiências, definiam uma questão problemática e expressavam a articulação entre sentimentos e sensações com determinado fenômeno. Além disso, foi possível, ainda, perceber como conflitos e controvérsias vinham à tona e eram resolvidos pelo grupo, viabilizando também uma análise do modo como as relações interpessoais iam se constituindo quando em contato com o tema em discussão.

As falas de cada participante foram sendo formuladas em composição com as dos demais integrantes do grupo, não na direção de um consenso ou de uma uniformidade nas opiniões expressas. Mas, mantinham entre si uma espécie de correlação. Fosse para contrapor, confirmar, questionar ou acrescentar algo, os comentários emitidos possuíam uma interdependência com falas precedentes. Isso não só permitiu como também contribuiu para a produção compartilhada de análises dos conteúdos evocados por meio das questões propostas.

A realização do outro procedimento - o grupo de enunciação - foi inspirada na estratégia proposta pelos analistas institucionais denominada de restituição (Lourau, 1993). Tal técnica consiste em se centrar numa tarefa de análise coletiva da situação presente, em função das diversas implicações de cada um com e na pesquisa. Não significa confissão privada ou pública de um ou outro pesquisador, mas um movimento necessariamente coletivo para retomar os acontecimentos, em geral excluídos, deixados à sombra, comumente silenciados, sem perder de vista que:

A restituição não é um gesto caridoso, gentil; é uma atividade intrínseca à pesquisa, um feedback tão importante quanto os dados contidos em artigos de revistas e livros científicos ou especializados. [...] Se a população estudada recebe essa restituição, pode se apropriar de uma parte do status do pesquisador. Se tornar uma espécie de "pesquisador-coletivo", sem a necessidade de diplomas ou anos de estudos superiores, e produzir novas restituições [...]. Isso seria, efetivamente, a socialização da pesquisa (Lourau, 1993, pp. 56).

Coimbra e Nascimento (2007) acrescentam que se trata de um dispositivo socionalítico, por meio do qual se põe em análise as implicações e sobreimplicações de todos os participantes de um trabalho. Nesse sentido, desnaturaliza-se o lugar sagrado do especialista, à medida que este deixa de ser considerado imune aos efeitos da análise e isento das ações de interferência no campo em que se encontra. Desse modo, a utilização desse dispositivo contribui para a desconstrução da concepção positivista de neutralidade científica, realçando o aspecto político de toda e qualquer prática.

Face às descrições anteriores, essa ferramenta parecia estratégica, na medida em que tornaria possível a experimentação de uma metodologia participativa na qual pesquisados e pesquisadora estariam lado a lado no processo da investigação, investidos da função de analisar os dados que haviam sido produzidos por eles mesmos.

Por outro lado, sua designação causava um certo incômodo. O que havia sido perdido para que agora fosse restituído? Haveria mesmo algo a ser devolvido, restaurado? Ou tratar-se-ia de um movimento de produção coletiva da pesquisa, que se daria no plano de imanência, no qual não existiria um a priori que devesse ser apresentado, mas dispositivos analisadores que ao serem enunciados provocariam o agenciamento coletivo de outras enunciações?

Na composição entre esse último questionamento e a proposição de Lourau (1993, p. 52), na qual ele afirma que, numa restituição "deve-se enunciar 'coisas', e não denunciar outrem", passamos a utilizar em lugar do termo Restituição, a expressão Enunciação.

De início, os participantes foram convidados a realizar uma análise coletiva do que já havia sido produzido no presente processo investigativo. Em seguida, foram apresentados ao grupo enunciados que traziam em sua formulação a dimensão polifônica com que os dados foram sendo produzidos. A esse respeito, os participantes foram informados de que a composição das sentenças incluiu o encadeamento de falas dos participantes expressas no grupo focal; trechos do diário de campo; questionamentos, inquietações e frases captadas/capturadas em conversas entre pesquisadores no cotidiano da pesquisa multicêntrica.

A ideia era que a análise ocorresse a partir da enunciação de alguns analisadores que fizeram aparecer, de maneira contundente, questões relativas à dimensão participativa da pesquisa multicêntrica e que lançaram um foco de luz em aspectos que, ao que parecia, estariam colocados à sombra. Nesse sentido, o critério utilizado para selecionar os dados a serem enunciados foi o de que eles se configurassem como analisadores, ou seja, que fizessem questões, que pudessem "fazer surgir, com mais força, uma análise" (Lourau, 1993, p. 35). Enfim, que pudessem provocar conversações, diálogos entre o que cada um vinha experimentando a partir do lugar no qual exercia sua função na pesquisa multicêntrica e o tema da participação. Desse modo, em suas formulações, as sentenças já traziam uma dimensão de análise do que fora produzido até então.

Ao passo em que as sentenças eram expostas, os participantes teciam comentários, posicionamentos, indagações e faziam correlações com suas experiências no cotidiano da pesquisa multicêntrica. As discussões foram se desenvolvendo de modo semelhante ao que ocorrera no grupo focal, no qual as falas dos participantes eram elaboradas e expressas numa espécie de interdependência de falas anteriores.

É importante destacar que, por meio do processo de análise coletiva, ocorrido nos grupos focal e de enunciação, foi possível pôr em questão, junto com os sujeitos-participantes, a relevância da pesquisa da pesquisa, a partir da avaliação da pertinência de seus objetivos-guia e dos dados, até então, produzidos. Tal direcionamento esteve afinado com a concepção de que:

Um pesquisador inarticulado é aquele que vai a campo para confirmar o que já sabia, para coletar o que procurava, para aplicar uma teoria. [...] O pesquisador articulado vai a campo e move-se com ele para aprender, há um cultivo mútuo entre ele e aquilo que se faz presente no campo. Aqui o manejo da investigação se faz inseparável do manejo convocado em campo. Não há nada de interessante em um sujeito "sozinho", um sujeito é interessante quando ressoa com outros, é colocado em ação por novas entidades cujas diferenças foram corporificadas (Pozzana, 2013, p. 333).

Sobre esse aspecto, por meio das discussões provocadas pelas questões e enunciados, os participantes dos referidos grupos tomaram o tema da dimensão participativa, não como consignas a que deveriam responder, mas como algo que lhes dizia respeito, que compunha as suas vivências no cotidiano da pesquisa multicêntrica. Tratava-se de um tema que pertencia a todos e exclusivamente a nenhum. Um tema comum, na medida em que a experiência de participação numa pesquisa avaliativa não se configurava como propriedade particular ou interesse privado de um pesquisador, mas como uma experiência pública já que vivida como pertencimento de qualquer um.

À medida que os integrantes daqueles grupos enunciavam suas percepções, questionamentos, suposições e análises, borravam-se os limites preestabelecidos entre participantes e pesquisadores, entre os diferentes saberes ali expressos. Desse modo, foi possível observar a criação de uma zona de indiscernibilidade por meio de uma aproximação entre o que fora vivido. Aquilo que era enunciado já não pertencia exclusivamente aos pesquisadores acadêmicos, aos pesquisadores integrantes do grupo de interesse da pesquisa ou mesmo a pesquisadores interessados pelo tema da participação. O que era enunciado dizia respeito à complexidade e à dimensão de heterogeneidade concernentes à questão investigada. Era, como Kastrup e Passos (2013) poderiam supor, a dimensão de coletivo extrapolando as fronteiras preestabelecidas na divisão dos saberes e dos lugares ocupados pelos participantes da pesquisa. Nesse contexto vale assinalar que,

coletivo, aqui, não pode ser reduzido a uma soma de indivíduos ou ao resultado do contrato que fazem entre si. É a rede de composição potencialmente ilimitada de seres tomados na proliferação das forças de produção de realidade. Lembramos mais uma vez que no plano de produção, plano coletivo das forças, lidamos com o que não é de propriedade de alguém ou de uma comunidade. No coletivo não há, portanto, propriedade particular, nada que seja privado, já que todas as forças estão disponíveis para serem experimentadas. É aí que entendemos se dar a pesquisa cartográfica: experimentação no plano coletivo, construção do comum, experimentação pública (Kastrup & Passos, 2013, p. 270).

Assim, a partir de uma abertura do padrão comunicacional, experimentada por aquele coletivo implicado no processo da investigação multicêntrica, a realização daqueles grupos fez emergir com mais força a dimensão participativa da pesquisa como um interesse comum. Nessa direção, pode-se ainda acrescentar que:

O interesse em uma pesquisa é mútuo, ele concerne tanto a pesquisadores quanto a pesquisados. Por isso se pode afirmar que a pesquisa é intervenção: porque ela gera articulação. Ao se articularem em um dispositivo de pesquisa, os participantes geram um reposicionamento de fronteiras. Tal articulação é, simultaneamente, a participação na pesquisa e a descrição desse reposicionamento. Ou seja, articular-se é participar ativamente na produção de conhecimento: a pesquisa é tanto mais articulada quanto mais participativa (Barros e Barros, 2013, p. 381).

Com a realização dos grupos anteriormente mencionados, foi possível colocar em análise as implicações dos participantes com aqueles procedimentos e a temática da humanização do SUS, sobre a qual versavam os cursos e a pesquisa que os avaliava, deixando emergir interesses diversos e embaralhar posições de saber-poder. As funções e relações que se estabeleciam ali entre os participantes puderam, a partir de um plano de imanência, constituir-se e/ou desconstruir-se. Nesse sentido, os grupos focal e de enunciação consistiram em procedimentos de análise dos lugares e funções que cada um exercia e as suas relações com o tema da pesquisa em execução.

Entretanto, fazer parte da equipe de pesquisadores de um processo investigativo participativo, requer que se esteja atento aos riscos da sobreimplicação.

 

Sobre participar de uma pesquisa participativa e os riscos de (sobre?) implicação

No processo de escrita sobre o que fora experimentado na presente investigação, mais especificamente ao que se refere aos grupos focal e de enunciação, fomos confrontadas com a constatação de que, nessas duas ocasiões, os participantes não haviam sido consultados acerca do desejo de terem ou não seus nomes divulgados no presente trabalho. Apesar de considerá-los sujeitos-parceiros do presente processo investigativo e de convidá-los a produzir e analisar de modo coletivo os dados da pesquisa, não havíamos colocado em discussão a famigerada "ética" da confidencialidade e, a par de toda discussão sobre a dimensão política do tema que estudávamos - protagonismo e participação cidadã em uma política pública brasileira - sequer a questão do anonimato foi alvo de negociação com o grupo de pesquisadores agora também "pesquisados". Convém ressaltar que, em se tratando de uma pesquisa cuja metodologia pretende ser participativa, suprimir os dados de identifcação dos envolvidos no processo investigativo, sem que eles possam manisfestar-se a respeito, configurar-se-ia como um procedimento incoerente com os preceitos desse tipo de abordagem metodológica.

De imediato surgiu a ideia de enviar um e-mail aos que haviam participado dos mencionados grupos no intuito de consultá-los acerca da divulgação de seus nomes neste trabalho. Com o envio do e-mail não só o incômodo gerado por aquele "lapso" seria apaziguado, como também estaria garantida a consonância entre a execução dos procedimentos metodológicos e as orientações teóricas adotadas na presente investigação.

Contudo, a possibilidade de lançar mão daquela aparente "solução" remeteu-nos a uma crítica feita por Lourau (1993, p. 73), na qual ele afirma que o fato da "vivência mais íntima do pesquisador se encontrar em contradição com seu texto institucional, ou com as suas posições públicas, é algo muito incômodo" e traz desacomodações insuportáveis à instituição pesquisa. Então, para que se preservem os segredos da produção intelectual, ou seja, o que realmente acontece na vivência de campo, como se fez a investigação, "é preciso salvar a imagem não contraditória do pesquisador e, consequentemente, da pesquisa. É preciso negar a contradição existente nele, em nós e em todos".

Negar aquela contradição significaria neutralizar a potência do analisador que ali se apresentava, desconsiderando que é sempre ele que dirige a análise (Lourau, 2004b).

Sobre essa premissa, corroboramos a proposição de Coimbra (1995, pp. 64-65) que, inspirada por conceitos das intervenções socioanalíticas, afirma que analisador "é aquele elemento que, introduzindo diversos tipos de contradição na lógica da organização, enuncia as suas determinações. [...] É o elemento de uma situação que, negando de uma forma ou de outra o instituído, faz com que ele fale". A autora ainda acrescenta que "os analisadores não vêm ao nosso encontro somente nos momentos e lugares em que somos instituídos especialistas da Análise Institucional, mas ao longo dos nossos dias e noites brancos ou negros".

Desse modo, desconsiderar aquele lapso seria desperdiçar a possibilidade de pôr em análise aquilo que o analisador introduzira, subtraindo-nos de seus efeitos. Nesse sentido:

Aquilo que habitualmente se considera escória das ciências - os inconvenientes e limites ao ponto de vista neutralista - deve ser, pelo contrário, colocado no centro da investigação. O importante para o investigador não é, essencialmente, o objeto que "ele mesmo se dá" (segundo a fórmula do idealismo matemático), mas sim tudo o que lhe é dado por sua posição nas relações sociais, na rede institucional (Lourau, 2004b, p. 85).

Partindo-se dessa perspectiva, era preciso trazer para o campo de análise aquele lapso juntamente com os elementos que comumente tomamos como negativos, como erros, desvios. Ou seja, sentimentos, percepções, ações e acontecimentos considerados como vetores impeditivos para que uma pesquisa seja bem sucedida (Coimbra & Nascimento, 2007).

Nesse movimento, a emergência daquele "esquecimento" trouxe algumas indagações: Será que, como ventríloquas, "fizemos falar" a instituição pesquisa positivista ancorada nos ideais de pureza, neutralidade e objetividade, conferindo aos sujeitos-participantes a condição de objetos convencionais de uma investigação? Quais relações estabelecíamos com a instituição pesquisa, incluindo questões como a elaboração da escrita acadêmica, e com as outras instituições que atravessavam aquele grupo de pesquisadores?

Mais importante que alcançar as respostas a tais indagações, foi o movimento de problematização instaurado por elas. Por meio dessas perguntas, foi possível tornar visíveis as diferentes forças circulantes naquele plano de atuação, abrindo possibilidades de desarticulação de práticas e discursos instituídos, na direção da produção de outros dizeres e fazeres, mais arejados.

Com aquelas indagações, estavam ali apresentados alguns dos inúmeros desafios de se experimentar o pesquisar com e não sobre, de um outro modo de habitar e atuar no campo acadêmico. Um deles seria recusar os presumidos, os pressupostos. Ou seja, experimentar um processo de pesquisa avaliativa participativa não significa que estejamos imunes às forças do modo instituído de pesquisar, por exemplo dos cânones positivistas de neutralidade, objetividade e pureza, ainda tão entranhados em nossas práticas.

Ainda por meio das indagações dispostas, foi possível não somente pôr em análise os pertencimentos institucionais, os vínculos políticos, profissionais, históricos e até mesmo os afetivo-libidinais como também o modo como estabelecemos conexões entre eles e a instituição pesquisa.

O útil ou necessário para a ética, a pesquisa e a ética da pesquisa não é a implicação - sempre presente em nossas adesões e rechaços, referências e não-referências, participações e não-participações, sobremotivações e desmotivações, investimentos e desinvestimentos libidinais... -, mas a análise dessa implicação (Lourau, 2004c, p. 190).

E, nesse movimento de análise, foi cogitada uma possível sobreimplicação provocada pela proximidade do grupo com o qual realizávamos a pesquisa.

Sobre esse aspecto, em decorrência do fato de os sujeitos da presente investigação serem pesquisadores adeptos aos princípios da pesquisa participativa, tendo lido e discutido acerca da questão do anonimato e da possibilidade de abertura aos processos de negociação quanto à divulgação dos dados dos envolvidos, não atentamos para a necessidade de consultá-los a esse respeito. Era um outro presumido que ali se apresentava. Ao tomar como referência essa espécie de premissa, outras dimensões poderiam ser desconsideradas, impossibilitando que as multiplicidades se fizessem presentes.

Ainda no decorrer do processo de escrita, comentamos, em diferentes momentos, com alguns sujeitos-participantes da presente investigação sobre o que fora narrado. Eles argumentaram que ainda haveria tempo para a consulta e que o envio do e-mail não comprometeria a análise do que havia acontecido. Em vez disso, abriria a possibilidade para que eles pudessem se manifestar acerca da proposição.

De início, o envio do e-mail parecia configurar-se como uma espécie de remendo no que se refere aos procedimentos metodológicos da pesquisa da pesquisa, uma tentativa de consertar aquilo que não havia saído como o esperado. No entanto, ao levar em consideração as colocações mencionadas, por que não estabelecer uma conexão entre o que Corazza (2002, p. 106), denomina de "materiais aproveitáveis" e os "resíduos a serem dejetados" da pesquisa, subvertendo a mistura homogênea típica da modernidade? Por que não pôr a contracenar no mesmo palco as contradições, os erros, acertos e desvios?

Então, nesse processo de experimentações, assim como sugerem Deleuze (2010) e Lazzarotto (2012), abandonamos o ou, a dicotomia, o binarismo, deixando-nos conduzir pela convidativa conjunção e, que mantém sempre abertas as possibilidades de acolhimento das multiplicidades e enviamos o e-mail aos participantes dos grupos focal e de enunciação. Todos eles autorizaram a divulgação de seus nomes.

Por outro lado, convém considerar que a partir da experimentação da metodologia participativa houve uma intensificação no tocante ao exercício da participação, gerando um tipo de lateralidade entre nós, pesquisadoras, e os sujeitos-participantes, cuja aparência seria a da sobreimplicação, mas que talvez tenha se tratado de um mergulho no plano implicacional comum constituído no campo de pesquisa. E então, tornamos-nos participantes ao lado dos demais participantes. Há, não somente, um devir pesquisador dos participantes, mas há também um devir participante daqueles que pesquisam que abre confluência para a criação de híbridos que vão dissolvendo as fronteiras entre aquele que avalia e aquele que é avaliado, aquele que pesquisa e o que é pesquisado. Nesse caso, então, não se trataria de uma sobreimplicação, mas de uma implicação em sua radicalidade, uma radicalização do procesos implicacional produzida pela experimentação da abordagem metodológica participativa.

Por fim, ao nos submetermos - pesquisadoras e sujeitos-participantes, num processo de análise coletiva, foi possível perceber como uma pesquisa com metodologia participativa questionou os modos de se fazer pesquisa (os já instituídos). Ou seja, a dimensão participativa indagou a instituição pesquisa à medida que a participação operou como um potente dispositivo que fez ver e falar aquilo que se encontrava sobreposto sob as camadas do instituído. Nesse sentido, tornaram-se visíveis e dizíveis as relações de poder e a verticalidade de um processo de pesquisa. E, na medida em que todo o processo de pesquisa foi sendo posto em análise, foram viabilizadas aberturas para a invenção de um modo outro de pesquisar. Modo esse regido pela égide do plano de imanência, no qual os encontros produzidos no cotidiano criam movimentos-guia na direção de práticas de pesquisa mais comprometidas e coerentes com os sujeitos envolvidos numa investigação.

 

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Recebido em: 20/07/2014
Reformulado em: 31/01/2015
Aprovado em: 06/04/2015

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