Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.10 no.1 São João del-Rei jun. 2015
ARTIGOS
Psicologia, políticas públicas e práticas sociais: experiências em pesquisas participativas1
Psychology, public policies and social practices: experiences in participatory research
Psicología, políticas públicas y prácticas sociales: experiencias en investigación participativa
Magda DimensteinI; João Paulo MacedoII; Jáder Ferreira LeiteIII; Maria Aparecida de França GomesIV
IProfessora Titulardo Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).Endereço: mgdimenstein@gmail.com
IIProfessor Adjunto da Universidade Federaldo Piauí - Campus Parnaíba. Endereço:jpamacedo@ufpi.edu.br
IIIProfessor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Endereço: jaderfleite@gmail.com
IVPsicóloga da Secretaria Estadual de Saúde Pública do RN e Docente da Universidade Potiguar (UnP). Endereço: cidafrance@gmail.com
RESUMO
As pesquisas participavas surgiram como alternativa aos modelos tradicionais de investigação. Pressupõem a participação de diversos atores, o redirecionamento do foco sobre o outro para pesquisar com o outro, objetivando criar novos campos de sentido e possibilidades de intervenção na realidade, além do compromisso de analisar as implicações do pesquisador e demais atores envolvidos no processo. Trata-se este artigo de um ensaio teórico-metodológico em torno das experiências desenvolvidas com pesquisas participativas no âmbito das políticas públicas. Primeiramente, abordamos os princípios fundantes da pesquisa participativa. Em seguida, destacamos as práticas de investigação participativa desenvolvidas no âmbito das políticas públicas. Finalizamos discutindo a instituição pesquisada e problematizando o lugar da psicologia e sua forma de produzir conhecimento no contexto das políticas de bem-estar social.
Palavras-chave: Psicologia; Metodologia; Pesquisa interventiva.
ABSTRACT
Participatory research emerged as an alternative to traditional models of doing research. It requires the participation of various actors, as well as the focus of redirection on the other, for research with others, aimed at creating new sense fields and possibilities of intervention in reality, and a commitment to examine the implications of the researcher and other actors involved in the process. This article is a theoretical and methodological essay on the experiences developed with participatory research within public policies. At first, we make an approach about the founding principles of participatory investigations. In the following section, we highlight the participatory 1 Trata-se de uma versão modificada do capítulo "Artimanhas e tessituras para uma universidade em movimento: experiências de pesquisa em saúde". In Scarparo H. B. K. (Org.). Gestão em saúde: experiências de campo e pesquisa em inserção social (p.17-39). Porto Alegre: Sulina, 2013.research practices developed within public policies. We conclude by discussing the research institution and arguing the place of psychology and the way we produce knowledge in the context of social welfare policies.
Keywords: Psychology; Methodology; Participatory research.
RESUMEN
La investigación participativa surgió como alternativa a los modelos tradicionales de hacer investigación. Se trata de un modelo de investigación que asume la participación de otros actores en toda la investigación, es decir, no buscar sobre el otro, sino entre sí con el fin de crear nuevos campos de significado y las posibilidades de intervención en su realidad, más allá de poner en el análisis de las implicaciones de la investigadora y otras partes interesadas. Y en esto trabajo se propone un ensayo teórico-metodológico en torno a las experiencias desarrolladas en el contexto de las políticas públicas. Primero cubrimos los principios fundacionales de la investigación participativa. A continuación, resáltelas prácticas de investigación participativa que hemos desarrollado en el contexto de las políticas públicas. Terminamos la discusión mediante la colocación de la entidad objeto de la investigación crítica y cuestionar el lugar de la psicología y de su modo de producción de conocimiento en el contexto de las políticas de bienestar social.
Palabras clave: Psicología; Metodología; Investigación intervencionista.
Trata-se este artigo de um ensaio teórico-metodológico em torno das experiências desenvolvidas pelo grupo de pesquisa com pesquisas participativas no âmbito das políticas públicas. Nosso objetivo é explorar alguns marcadores ético-políticos, conceitos e ferramentas que consideramos imprescindíveis para afirmar uma proposta de pesquisa implicada: a) com a participação de outros atores no processo de investigação; b) com a abertura de novas zonas de sentido e possibilidades de ação/intervenção dos participantes da investigação em sua própria realidade; c) com a problematização das relações existentes entre o pesquisador, o ato de pesquisar e as práticas sociais que se engendram nesse processo.
Estruturamos nossas reflexões abordando inicialmente os princípios fundantes da pesquisa participativa, em especial daquelas de base interventiva, de modo a explorar o seu potencial para o campo das políticas públicas. Em seguida, destacar as práticas de investigação participativa que temos desenvolvido no âmbito das políticas públicas, com estudos voltados para o cotidiano dos serviços e das equipes nos dispositivos de saúde mental e coletiva, como também em contextos comunitários e áreas de assentamentos rurais e/ou populações quilombolas, focando nos movimentos coletivos, formação de militantes e nas relações de gênero como regimes de produção subjetiva nesses espaços sociais. Finalizamos a discussão colocando em análise a instituição pesquisa e problematizando o lugar da Psicologia e sua forma de produzir conhecimento no contexto das políticas de bem-estar social.
Alguns princípios fundantes das pesquisas participativas
As pesquisas participativas são originárias das ciências humanas e surgem como alternativa crítica à tradicional forma de fazer pesquisa, a qual dissocia a atividade de conhecer da realidade onde se realiza; que separa sujeito e objeto do conhecimento e, por fim, nega a complexidade e tudo aquilo que se refere a um campo de incertezas, ao contraditório, ao múltiplo. Tais pressupostos se sustentam no paradigma moderno de vontade da verdade e da manutenção de certa neutralidade, que encontra no método científico o "instrumento por excelência para a explicitação das verdades do mundo" (Paulon & Romagnoli, 2010, p. 87).
A partir da modernidade, as abordagens empíricas, amparadas pela pesquisa experimental, passaram a ser o parâmetro científico para as formas de conhecer e pesquisar. Entretanto, após a segunda Grande Guerra ocorreram algumas rupturas no campo da ciência em termos da verdade sobre o método, a exemplo da crítica ao cientificismo positivista tão presente nas ciências humanas. Assim, a realidade anteriormente compreendida a partir de elementos objetivos, com explicações causais e passíveis de generalização, passa a ser compreendida desde muitas perspectivas a partir do surgimento de alternativas teórico-metodológicas no campo da produção do conhecimento, a exemplo da fenomenologia, do existencialismo e da pesquisa-ação (Aguiar & Rocha, 2007). Assim, surgem outros objetos e métodos de pesquisa tais como a consciência - objeto de investigação das pesquisas fenomenológicas e o conhecimento das multideterminações sociais de certos fenômenos -, objeto da pesquisa-ação (Paulon & Romagnoli, 2010; Aguiar & Rocha, 2007).
Para essas autoras, apesar das diferenças entre as formas de compreender e explicar o mundo, bem como em termos da maneira de como fazê-lo, há alguns dispositivos conectores entre a pesquisa experimental, a fenomenologia e a pesquisa-ação, que as coloca em um mesmo plano de compreensão. Os principais conectores seriam o realismo, a busca pela representação e a vontade de verdade que tais modelos buscam em seus programas de pesquisa e intervenção sobre a realidade investigada (Rocha & Aguiar, 2003; Paulon, 2005; Aguiar & Rocha, 2007; Moraes, 2010; Paulon & Romagnoli, 2010).
Mesmo com diferenças marcantes entre uma e outra perspectiva, especialmente em termos conceituais e metodológicos, para o conjunto de autores anteriormente referidos, tanto a pesquisa experimental quanto as de base fenomenológica, bem como algumas modalidades da pesquisa-ação partem da ideia de que o mundo e sua forma de acessá-lo deve ser "preciso, delimitado e definido" para ser "plenamente conhecido por um sujeito do conhecimento" (Moraes, 2010, p. 33). Para lograr êxito, o pesquisador precisa cumprir alguns parâmetros para executar tal tarefa. Primeiramente, é preciso que ele seja neutro, comedido e experiente, portanto competente o suficiente para abordar o real com a distância necessária para garantir a precisão e o rigor que um trabalho de pesquisa exige. Segundo, o modo de intervir se faz sobre o outro. É o pesquisador quem sabe a finalidade e o caminho da investigação, portanto tenta seguir rigorosamente o previamente estabelecido, mesmo na pesquisa-ação, que apesar de considerar a participação de outros atores, ainda assim, a ação da pesquisa é sobre esse outro que participa (Aguiar & Rocha, 2007; Paulon & Romagnoli, 2010).
Na crítica desses modelos, discussões no campo das ciências humanas, a partir de Stengers (2002) e Prigogine (1996), têm se ocupado de explorar outras verdades, ou melhor, outras versões sobre a realidade, sobre o sujeito do conhecimento e sobre seus modos de pesquisar e intervir no mundo. Nesse sentido, é preciso considerar que não existe somente uma realidade, ainda mais sendo esta anterior e independente do sujeito do conhecimento. As realidades são múltiplas, heterogêneas, complexas, portanto são construídas pelas práticas e relações com o mundo. É nesse sentido que Moraes (2010) é categórica quando refere que "as práticas são performáticas, isto é, fazem existir realidades que não estavam dadas antes e que não existem em nenhum outro lugar senão nestas e por estas práticas" (p. 35).
Para essa autora, tal como a virada (ou giro) cultural e linguístico que abriu novas possibilidades do conhecer, estamos vivendo na atualidade uma virada da prática. Nesse aspecto, diferente dos marcos do realismo euro-americano que fundamenta as pesquisas experimentais, fenomenológicas e determinadas modalidades da pesquisa-ação, a prática é colocada em primeiro plano. O pensamento e o conhecimento advêm do "atrito, do embate com o mundo, com os outros e com o campo de pesquisa" (Moraes, 2010, p. 26). Assim, são as práticas cotidianas que fazem com que a realidade seja delimitada e definida desta ou daquela forma. Não há, portanto, realidade dada a priori, ela "é construída e performada nas e pelas práticas" (Moraes, 2010, p. 35).
Dessa forma, não há sujeito e muito menos práticas neutras e a priori. Pesquisamos não sobre o outro, no sentido de tomá-lo apenas como objeto ou como respondente de nossas questões de pesquisa, ou como "participante" de determinadas etapas de uma investigação. Pesquisamos sobre os efeitos, sobre as possibilidades que se abrem e que fazem variar as certezas, as verdades, as versões criadoras de realidades tanto para o pesquisador e colaboradores da pesquisa quanto para as práticas sociais que se engendram nesse processo (Aguiar & Rocha, 2007; Moraes, 2010; Paulon & Romagnoli, 2010). Nesse aspecto, a intervenção não é apenas sobre o outro, mas com o outro. Tal proposta metodológica propõe outra "distribuição da capacidade de agir (intervir): aquele que é interpelado participa ativamente do dispositivo de intervenção" (Moraes, 2010, p. 30). Assim, a pesquisa constitui um dispositivo que possibilita que a intervenção leve à transformação não apenas do interrogado ou respondente da pesquisa, mas também daquele que interroga (Passos, Kastrup & Escócia, 2009).
A partir desses princípios, entendemos as pesquisas participantes como uma postura do pesquisador que não está apenas preocupado em reunir os clássicos elementos de um "plano" de pesquisa de modo a garantir a participação de outros atores na atividade de investigação e produção de conhecimento em uma dada realidade. Seu objetivo é sempre fazer conectar tais elementos - etapas, ferramentas, posições e conhecimentos - um ao outro e perscrutar seus efeitos de diferenciação e variação nos participantes da pesquisa; efeitos esses que também se processam sobre a figura do pesquisador quando realiza o seu plano de pesquisa ou nas relações que se constroem e se movimentam entre ambos, pesquisador e colaboradores, diante de um campo problemático.
Dessa maneira, entendemos os planos de pesquisa mais do que meros procedimentos de investigação. Eles refletem uma postura ético-política diante do trabalho de pesquisa e aos muitos elementos com os quais nos encontramos no ato de pesquisar, bem como diante da vida (Rocha, 2006; Paulon, 2005). Portanto, podem ter caráter ativo (político) de modelação das ontologias definidoras de realidades e das condições de possibilidade com que encontramos e conhecemos o mundo (Mol, 2007).
Pesquisar em saúde coletiva e saúde mental
Desde a implantação do SUS há mais de 25 anos, o campo da saúde pública no Brasil tem vivido inúmeras transformações. Orientado por princípios e diretrizes tais como a universalidade, equidade, integralidade, descentralização, participação popular e a organização da rede de serviços de modo regionalizado e hierarquizado, o SUS, ao longo desse percurso de consolidação, vem alcançando grandes conquistas e enfrentando inúmeros problemas no que diz respeito à mudança das práticas de saúde e dos modos de organização e gestão dos serviços, problemas que desafiam gestores, trabalhadores, acadêmicos e a população de uma forma geral. Com base em autores do campo, Lima (2009) aponta outros aspectos de difícil enfrentamento: os limites da formação para abarcar as diversidades que compõem o SUS e "a pouca potência para transformar os modelos hegemônicos, muito mais vinculados a interesses outros - como os das corporações profissionais, da indústria de equipamentos médicos e farmacêuticos - do que às necessidades dos usuários" (p. 790).
Nessa direção, tem-se buscado propor novas questões que confrontem as formulações já estabelecidas e as tendências alinhadas ao ideário neoliberal, revigorando a dimensão reflexiva, crítica e propositiva do projeto político e social da Reforma Sanitária. Conh (2009), preocupada com o enfraquecimento dessa dimensão nos últimos anos, alerta para o fato de estarmos sendo aplacados pela dimensão eminentemente técnica de gerência dos serviços e deixando de lado a dimensão política, social e civil de conquista da democracia, de fortalecimento coletivo e de pensar a saúde como questão social.
Outros questionamentos estão atualmente sendo agregados por parte de um coletivo que compreende que "O SUS, como aposta ético-política, é um instrumento de luta, no campo da saúde, em relação às formas de autoritarismo e às práticas de captura da vida no capitalismo contemporâneo" (Pasche, Passos & Barros, 2009, p. 491). Trata-se da Política Nacional de Humanização/PNH, que de forma transversalizada, visa ao desenvolvimento da corresponsabilidade e qualificação dos vínculos interprofissionais e destes com os usuários na produção de saúde. Um dos aspectos mais destacados na PNH é que para operar tais transformações nos modos de cuidar e gerir, o SUS demanda mutações subjetivas e outros modos de ser trabalhador. Além disso, pede uma formação contextualizada, um conhecimento interdisciplinar e a produção de práticas multiprofissionais voltadas às necessidades da população usuária. Requer ainda a necessidade de estarmos alertas aos especialismos, às naturalizações e dicotomias entre formação e atuação e um esforço permanente de ruptura com a lógica que persegue verdades inquestionáveis, modelos padronizados e estereotipados.
Dessa maneira, algumas formulações têm buscado recolocar os problemas no âmbito do SUS, qualificando-os em uma complexa teia de determinação que envolve elementos macro e micropolíticos, na perspectiva de pensar saúde como produção de subjetividade. Há um compromisso de afastar-se de uma racionalidade científica, de uma visão tecnocrática de integralidade predominante na saúde centrada na mera articulação entre os serviços e os diferentes níveis de atenção e voltar-se para uma dimensão mais ampliada que incorpora a complexidade subjetiva dos atores envolvidos. Além disso, de resistir aos modelos de atenção reducionistas, centrados na doença e em políticas públicas articuladas por programas que a priori excluem a complexidade da saúde, das relações sociais e a pluralidade dialógica do campo.
A proposta de reordenação dessa lógica de trabalho e de organização da assistência em saúde é a que também orienta os processos de transformação da assistência psiquiátrica em curso no País. O campo da saúde mental e o processo de reforma psiquiátrica têm sido focos de nossas investigações e militância nos últimos anos. Nossas pesquisas estão ancoradas na base teórico-metodológica já explicitada, buscando não só dar visibilidade a um conjunto de forças que buscam reduzir a experiência da loucura a uma patologia ou doença mental, analisando discursos, práticas e instituições que operam no sentido do seu controle, tutela, normatização e medicalização, mas também fomentando a invenção de novos saberes e dispositivos em direção à desinstitucionalização da cultura manicomial, que vai muito além do âmbito restrito de serviços e práticas profissionais e diz respeito aos modos de vida tecidos no cotidiano. Desse modo, as lutas que travamos como coletivo de trabalho ocorrem em diferentes planos, na concretude do presente, na materialidade dos discursos e práticas que forjam verdades amplamente divulgadas e consumidas e que atualmente estão cada vez mais interessados na chamada "normalidade".
Portanto, produzir saúde mental e saúde coletiva exige mudanças nos processos de subjetivação, pois os princípios do SUS só se encarnam na experiência concreta de sujeitos concretos que se transformam em sintonia com a transformação das próprias práticas de saúde e dos seus modos de existir. Consequentemente, exige, do ponto de vista acadêmico, formas diferenciadas de pesquisar e produzir interferência no modo cotidiano de fazer saúde nos mais diferentes contextos. É sobre esse território específico de pesquisa e intervenção que trataremos a seguir.
Valises Tecnológicas2 do pesquisador: experiências de campo e pesquisa com inserção social
No âmbito do SUS nossas investigações têm levado em conta temas/problemas que envolvem desde a avaliação das políticas públicas no setor saúde; estruturação dos serviços e equipes que compõem a rede de atenção psicossocial; organização do processo de trabalho, integralidade e continuidade do cuidado, novas tecnologias (ferramentas) de cuidado na atenção primária; ações de suporte à crise; participação e controle social, até aspectos da educação permanente em saúde. No âmbito rural, nossas pesquisas estão voltadas à problematização das políticas sociais no campo, ao processo saúde-doença em moradores de assentamentos de reforma agrária e comunidades quilombolas, bem como à organização comunitária. São temas que pedem investigações e análises implicadas, exigindo reflexão crítica e imersão teórica e prática que indagam o instituído e nos lançam no campo das experimentações sobre o que temos feito de nós mesmos na atualidade (Foucault, 2005).
Os resultados de tais pesquisas já foram amplamente divulgados no meio acadêmico. As ferramentas comumente usadas nas investigações com inserção social de cunho qualitativo (observação, entrevistas, diário de campo, fotografia, grupo focal, rodas de conversa, etc.) em articulação com instrumentos próprios da pesquisa orientada pelo enfoque quantitativo (escalas de diagnóstico em saúde mental, medida de apoio social, questionários estruturados) foram aqueles por nós utilizados na maioria dos trabalhos. Valorizamos a perspectiva da triangulação metodológica e, conforme Camargo Jr. e Bosi (2011), insistimos na complementariedade de ferramentas de análise multidimensionais que valoriza a compreensão dos complexos processos subjetivos e simbólicos dos atores sociais. Segundo esses autores
Métodos devem ser recrutados de acordo com as necessidades do fazer científico, e não o contrário, o que implica considerar a natureza e as especificidades dos objetos, ou seja, reconhecer o escopo de cada metodologia, seu alcance e suas limitações. (Camargo Jr. & Bosi, 2011, p. 1187)
Nesse sentido, queremos destacar neste artigo as ferramentas relacionais que caracterizam o modo como lidamos como campo e instrumentos de pesquisa. Nossa intenção é problematizar as relações existentes entre o pesquisador, o ato de pesquisar, os sujeitos da pesquisa e as práticas sociais que se constituem nesse processo, conforme referimos anteriormente. Em nossa experiência como pesquisadores passamos a considerar pelo menos três atitudes em termos dos planos de investigação: ativação dos processos de problematização, de desindividualização e de experimentação no fazer pesquisa (Barros, 2009). A problematização é um princípio que se pretende além da mera coleta de dados na perspectiva que figura o realismo euro-americano, o qual entende as coisas e o mundo como sendo anteriores e independentes do sujeito do conhecimento e de suas ações, tendo o pesquisador a dever de identificar as funções ou relações que representam a realidade e a torna inteligível (Moraes, 2010). Ativar processos de problematização é, por sua vez, produzir intercessores (questões, pensamentos, práticas, etc.) para que os próprios participantes da investigação possam deslocar suas certezas, verdades e construir novas interpretações da vida. O processo não é apenas reflexivo. A intenção é que a pesquisa possa tornar-se uma "máquina" de decomposição e recomposição de sentidos e práticas no cotidiano.
Outro aspecto fundamental é não desconsiderar as relações de grupo já existentes entre indivíduos e coletivos, situados em um determinado contexto. Trata-se de partir dos processos que comumente envolvem pessoas e coletivos, não na perspectiva de reuni-los, produzindo uma unidade homogênea, mas para implicá-los na ação crítica e questionadora de certos contextos ou problemas, coletivizando assim o modo como eles próprios, sujeitos e coletivos ali envolvidos, percebem, organizam e agem em sua vida cotidiana (Rocha & Aguiar, 2003; Paulon, 2005, Aguiar & Rocha, 2007; Barros, 2009). Tais processos de crítica e desindividualização do cotidiano visam alcançar uma terceira atitude que é experimentar, a partir dessas práticas, novas formas de perceber determinada realidade e a si próprio. A ideia é que a partir desse tipo de exercício possam ser criados planos de análise e crítica que podem circunscrever as variações quanto às certezas, verdades e referências que configuram nosso saber-fazer profissional e nossa relação com o mundo (Rocha & Aguiar, 2003; Rocha, 2006).
O propósito da construção desses planos de análise e ação é sempre pelo seu desmonte, ou seja, pela desconstrução permanente dos comportamentos, ideias e "hábitos cristalizados num processo permanente de aprendizagem e desaprendizagem" com o campo das práticas e com as novas realidades que pretendemos construir (Rocha, 2006, p. 170). Assim, como princípio máximo, nossas valises tecnológicas possibilitam pesquisar os efeitos, as possibilidades que se abrem e que fazem variar as certezas, as verdades, as versões criadoras de realidades tanto para o pesquisador quanto para os colaboradores da pesquisa.Com isso, situamo-nos na perspectiva que Hartz (2009) indica acerca das metodologias qualitativas de pesquisa de quinta geração, que além de considerarem a participação dos sujeitos em todas as etapas, se comprometem a "ajudar os grupos sociais a melhor compreender os próprios problemas e as possibilidades de modificá-los a seu favor" (s/p).
Pesquisando processos de saúde em contextos rurais
Ao longo de nossas proposições investigativas temos produzido uma aproximação aos contextos rurais, especialmente com comunidades oriundas da reforma agrária. Nessa aproximação, um conjunto de desafios emerge, tendo em vista que, tradicionalmente no campo "psi", a produção de conhecimento tem se voltado para os espaços urbanos.
Um primeiro desafio se traduz na superação de nosso imaginário social povoado pela ideia de que o rural e o urbano são realidades separadas e polarizadas, em que o primeiro se representa como atrasado, residual, e o segundo, avançado e modernizado. É forçoso reconhecer que as investidas do capitalismo mundial integrado também atingiram os espaços rurais e produziram uma série de problemas sociais, culturais e econômicos para as populações do campo. Tal processo faz com que campo e cidade estejam interligados e atravessados por dilemas que os atingem mutuamente, promovendo, inclusive, alterações em ambos, embora guardando especificidades.
Decorre daí o segundo desafio que é dar visibilidade à produção de uma desigualdade gritante dos processos sociais, culturais e políticos que atingem esses espaços. Assistimos a uma predominância da aplicação de políticas públicas em que os atores urbanos são mais atingidos, produzindo um isolamento nas áreas rurais de acesso a tais políticas. Embora esse cenário venha se modificando, ainda é notório o descompasso na oferta de um conjunto de serviços às populações do campo. Nossas pesquisas que envolvem famílias moradoras de assentamentos rurais têm apontado essa fragilidade de acesso às políticas, em especial, às políticas de saúde. Não raro, os habitantes dessas áreas dispõem de pouco ou nenhum recurso no tocante aos cuidados em saúde, às redes de suporte social e à possibilidade de resolutividade de suas demandas. O isolamento e dificuldades de transporte e acesso aos serviços, a precariedade da oferta de cuidados à comunidade respondem, em grande medida, pelo insucesso de efetivação e de cobertura das políticas de saúde nos territórios rurais.
Um terceiro desafio, de natureza teórico-metodológica, diz respeito a considerar as particularidades que constituem os contextos rurais. No tocante às áreas advindas de luta por terra e mobilizadas por movimentos sociais com fins de reforma agrária (os assentamentos rurais), é imprescindível reconhecer os efeitos políticos e subjetivos deflagrados mediante a inserção dos trabalhadores rurais nesses espaços de luta. Desse modo, discutir os processos históricos, sociais, culturais e políticos em torno da questão agrária no Brasil é fundamental para possibilitar a produção de um conhecimento em sintonia com os dispositivos que modulam o meio rural.
Nos estudos do grupo de pesquisa que envolvem os assentamentos rurais e comunidades rurais tradicionais, temos dado foco no campo da saúde mental em interface com a atenção psicossocial, estratégias de cuidado, condições de vida, trabalho e relações de gênero. Nesse âmbito de relações, perseguimos um enfoque interdisciplinar com áreas do conhecimento que dialoguem com essas questões, tais como a Antropologia, Sociologia Rural e Saúde Coletiva. Para tanto, temos buscado utilizar ferramentas de produção de dados que permitam um franco diálogo com essas singularidades, que possibilitem aos atores sociais uma participação na construção de conhecimento, seja por meio de suas produções discursivas, seja pelo acompanhamento de suas práticas cotidianas, entendidas a partir de Certeau (1996), para quem a questão central no que concerne a tais práticas está em demonstrar que na construção do cotidiano os indivíduos não estão meramente na condição de reprodutores de padrões socioculturais vigentes, mas em meio a uma multiplicidade de táticas que burlam as formas tradicionais de orientação do poder.
Temos reconhecido que algumas estratégias e ferramentas comumente utilizadas em estudos de saúde, tais como surveys ou questionários autoaplicáveis podem representar dificuldades na aplicação, bem como na compreensão por parte dos integrantes do estudo. Tal material trata-se, em grande medida, de instrumentos traduzidos e validados de outros países, bem como são produzidos em realidades culturais distintas e remetidos a grupos humanos com mais instrução escolar. Historicamente, os dados sobre escolaridade em nosso país apontam para um maior índice de analfabetismo e/ou baixa escolaridade no meio rural, fator que produz algumas implicações no processo de produção de dados de pesquisa.
Nessa direção, Borges e Pinheiro (2002) destacam a importância de algumas alternativas para superação desses limites, a exemplo da entrevista, rodas de conversa e grupo focal, por permitirem uma maior aproximação do universo linguístico e das condições de vida dos participantes da investigação. Assim, temos feito uso dessas ferramentas participativas, já que elas permitem a criação de um espaço sistemático de escuta e trocas, bem como manejar temas que escapam a uma mensuração e se inscrevem no campo das subjetividades. Trabalhar de forma vinculada à demanda e à realidade dos participantes, criar um contexto de diálogo potencializando a participação a partir da redução dos fatores que entravam a comunicação no grupo e promover a reflexão sobre determinados temas, relacionando-a ao contexto de vida dos participantes e incentivando a ressignificação desses temas, essa é a meta dessas estratégias de pesquisa (Campos, 2000).
Outra possibilidade por nós adotada trata-se do recurso da etnografia (Angrosino, 2009), na medida em que ela consolida uma relação com o campo de pesquisa, permitindo um grau consistente de aproximação com o universo cultural e subjetivo dos participantes, suas falas, práticas cotidianas, projetos de vida. Aliada à observação participante, às entrevistas e ao grupo focal, podemos, nós pesquisadores em conjunto com os colaboradores da investigação, vislumbrar os impasses e embates vividos por um coletivo quanto às questões de saúde, condições de vida, gênero e trabalho, assim como seus modos de organização e suas estratégias de enfrentamento na organização do cotidiano.
Uso de imagens na pesquisa social
Visando desenvolver pesquisas no âmbito da produção de saúde de grupos e coletividades a partir de um enfoque qualitativo e multidimensional, do ponto de vista das ferramentas de coleta e análise, passamos a aliar a produção de narrativas à imagem. A utilização da fotografia para fins de produção de dados em pesquisa social tem sido geralmente produzida pelos pesquisadores. Produzir conhecimento a partir de imagens realizadas pelos colaboradores da pesquisa é ainda uma novidade no campo da psicologia, perspectiva que temos trabalhado nos últimos anos. A estratégia de ensaio fotográfico tal como a nomeamos possui como principal característica a produção e envolvimento direto do sujeito participante, a interação pesquisador/pesquisado, a qual facilita a apreensão de especificidades dos grupos e reflexões com as populações-alvo sobre suas condições de vida.
Essa estratégia de pesquisa está inspirada na produção de sentidos (Spink, 2000), na análise de fotografias (Kossoy, 2000) e no estudo autofotográfico (Neiva-Silva & Koller, 2002), mescla que deu origem ao ensaio fotográfico. De 1999 até 2012 foram realizados sete estudos com o envolvimento de mais de 80 participantes e doze pesquisadores, sendo produzidas centenas de fotografias, narrativas e reflexões (Gomes, 2002; Gomes & Dimenstein, 2005; Freitas & Vasconcelos, 2004; Freitas, 2010; Silva & Oliveira, 2011; Medeiros & Bezerra, 2011; Pereira & Sales, 2011; Penha & Lima, 2012).
As principais características desses ensaios fotográficos são: 1. Intensidade da participação tanto do pesquisador quanto do participante no processo de produção dos dados (ou afetação direta dos pesquisadores durante o processo de pesquisa); 2. Boa receptividade dos participantes à estratégia; 3. Análise a partir dos planos macropolíticos e micropolíticos; 4. Produção de conhecimentos culturalmente sensíveis; 5. Inclusão de grupos na produção ativa de sua realidade. Assim, fomentar o empoderamento e potencialização de redes de vida dos coletivos por onde circulamos tem sido nosso maior compromisso, pois como diz Deleuze (2009) "os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver" (p. 18).
Como são produzidas as imagens? Após a definição dos objetivos do estudo escolhemos o (s) signo (s) que irão nortear as fotografias. A escolha se dá em função do problema e dos objetivos da pesquisa. São signos que se sustentam a partir das questões iniciais que inquietam o pesquisador, assim como provocados pela literatura. Consideramos o tempo destinado ao trabalho de campo, o local da pesquisa e a quantidade de participantes como elementos que definem a escolha e a quantidade de signos a serem trabalhados. Para nós, o uso da fotografia como instrumento de pesquisa possibilita uma forma a mais de compreender o sentido dado ao cotidiano, pois, como nos diz Chalhub (2000), nem só de mensagens verbais vive o homem:
o corpo fala, a fotografia flagra, a arquitetura recorta espaços, a pintura imprime, o teatro encena o verbal, o visual, o sonoro, a poesia - forma especialmente inédita e linguagem- surpreende, a música irradia sons, a escultura tateia, o cinema movimenta etc. (p. 6)
Consideramos ainda com Silva (2000) que:
a imagem é sempre modelada por estruturas profundas, ligadas ao exercício de uma linguagem, assim como está vinculada a uma organização simbólica (a uma cultura, a uma sociedade). A imagem, porém, é também um meio de comunicação e de representação do mundo que tem lugar em todas as sociedades humanas. A imagem é universal, mas sempre particularizada. (p. 126)
Em outras palavras, as imagens feitas pelos colaboradores geram narrativas e se constituem numa fonte preciosa de informações sobre o sentido dado por cada sujeito à vida vivida, em sua singularidade. Longe de estarmos preocupados com desfechos objetiváveis, intencionamos conectar as interpretações que cada um produz, instigar estratégias de criação de si e do mundo, assim como a emergência de forças afirmativas capazes de enfraquecer os pensamentos mutilantes de qualquer transformação.
Psicologia e políticas públicas: pilares teóricos e metodológicos da pesquisa
Como vimos, nosso campo de problematizações se estende sobre um amplo território que diz respeito aos modos de vida contemporâneos. Diante das profundas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais que presenciamos, conhecer o impacto de tais transformações nos processos de subjetivação nos parece fundamental. Portanto, nosso interesse está focado na regulamentação da existência, nas formas e governos da vida, nos padrões subjetivos produzidos ao sabor dos fluxos e tecnologias disciplinares e biopolíticas na contemporaneidade.
Sabemos que tal discussão vai muito além daquilo que um campo específico de conhecimento pode oferecer, exigindo o diálogo interdisciplinar. Para tanto, buscamos apoio teórico e metodológico em estudiosos consagrados do campo da Filosofia, Sociologia e Psicologia que partem de uma perspectiva crítica em termos da noção clássica, substancializada e individualizada da subjetividade e compartilhamos da ideia de política e/ou processos de subjetivação não centrados em agentes individuais, nem grupais, mas atravessados por uma heterogeneidade de vetores que escapam a qualquer forma de modelização ou hierarquias. Assim, assumimos um ponto de referência para pensar tais processos que é ao mesmo tempo ético, estético e político, na medida em que mantêm um compromisso radical com o caráter processual da vida e com os processos criativos que buscam desconstruir as condições massificadoras e homogeneizantes da subjetividade contemporânea.
Nessa perspectiva, Rolnik (1998) indica que o mundo que habitamos hoje é um "oceano infinito, agitado por ondas turbilhonares - fluxos variáveis sem totalização possível em territórios demarcáveis, sem fronteiras estáveis, em constantes rearranjos" (p. 1). Nesse mundo contemporâneo, as subjetividades são "modulações metamorfoseantes num processo sem fim, que se administra dia a dia, incansavelmente" (Rolnik, 1998, p. 1). Tal autora avança indicando que apesar da velocidade com que tais fluxos e mudanças se fazem, estamos profundamente marcados por uma tendência à conservação, ao entrincheiramento, à manutenção das formas conhecidas, aos arranjos endurecidos, que nos dão a sensação de consistência subjetiva e definição identitária.
Vivemos em uma sociedade da normatização, regida por uma economia libidinal e política que busca a produção desse sujeito racional, autocentrado, autorreflexivo, que maneja formas de controle de si mesmo, tornando-se responsável por sua própria adaptação e manutenção do status quo (Kuster, 2009). São esses aspectos que vêm caracterizando cada vez mais o homem contemporâneo em tempos de liquidez: esvaziamento das questões que dizem respeito à esfera pública, estabelecimento frágil de vínculos ou uma fluidez destes, intolerância à alteridade/diversidade, aspectos que configuram o que Baptista (2000) chama por despolitização da produção da diferença no contemporâneo.
Destacamos, assim, que é impossível desatrelar a não potencialização de políticas mais equânimes e solidárias, via participação pública, que observamos hoje em dia, a uma "expropriação das redes de vida da maioria da população pelo capital" (Pelbart, 2003, p. 21), que na sua forma contemporânea, nômade e desterritorializada, inaugura novas modalidades de se viver, sentir, trabalhar, novas crenças e formas de sociabilidade. Em outros termos, no seio da sociedade mundial de controle, a fabricação de sujeitos capturados na sua força de invenção é a garantia de manutenção das iniquidades sociais, da exploração de uns sobre os outros, da desresponsabilização para com a vida e o coletivo. Isso indica que a intrínseca relação entre capitalismo e subjetividade produz formas de assujeitamento, formas de vida espetacularizadas, padronizadas, reproduzidas em clichês. Tais modelos subjetivos são estratégias de dominação invisíveis que afetam a todos nós, seja por cumplicidade, seja por composição com o sistema de valores e de exploração hegemônicos (Pelbart, 2003).
Analisar tais políticas de subjetivação contemporâneas e a produção, cada vez mais forte e sutil, de mecanismos de isolamento, controle, exclusão, desmobilização coletiva, patologização do cotidiano e sua consequente medicalização, torna-se o objetivo por excelência das propostas de investigação no âmbito das políticas públicas. Problematizar a construção e uso de conhecimentos, especialmente no campo "psi" que contribuem crescentemente para gerar e administrar os inadequados, os anormais, os inclassificáveis, os indomesticáveis, os desequilibrados, bem como a criação de instituições de correção, ressocialização, educação e cuidado que reproduzem a exclusão da diferença, é igualmente tarefa que nos propomos realizar. Nesse sentido, damos ênfase aos atravessamentos sociais, políticos, culturais, ideológicos, de gênero e etnia, etc., que perpassam o campo em que intervimos, nossa formação acadêmica e profissional, os processos de subjetivação e os dispositivos metodológicos que criamos e praticamos. Com base no pressuposto foucaultiano de que ciência e ação política caminham juntas, visamos à implicação dos profissionais para enfrentar/superar as velhas dicotomias entre prática profissional e militância e instigar seu compromisso com as lutas históricas e movimentos sociais.
Assim, procuramos abrir algumas possibilidades de reflexão e intervenção, inaugurar agenciamentos, rupturas, mutações, colocar a universidade em movimento por meio de inúmeras artimanhas e tessituras de redes complexas que articulam diferentes saberes e atores. Para tanto, identificar as estratégias de reativação vital, as linhas de êxodo, a insubordinação, os "modos de subjetivação emergentes, focos de enunciação coletiva, territórios existenciais, inteligências grupais que escapam aos parâmetros consensuais, às capturas do capital" (Pelbart, 2003, p. 22), é, em linhas gerais, o que nos interessa em nossas propostas de pesquisa participante.
Fazer da problematização o aspecto central do processo de construção do conhecimento, interrogar o instituído historicamente e desnaturalizar a realidade, que por ser sempre movente pede um conhecimento inventivo, conectado com as forças, vetores, direções e movimentos que estão em operação em determinada situação, é nossa estratégia metodológica. Nesse sentido, como já referido, entendemos que as metodologias de pesquisa que nos auxiliam nesse trabalho de análise, para além da dimensão técnica, implicam em opções teóricas, em uma postura ética e política, em uma visão de mundo. Não se trata de buscar verdades, mas de conhecer como os discursos e práticas são forjados. Discursos são compreendidos, segundo a perspectiva foucaultiana, como regras históricas, anônimas e coletivas, são práticas em operação. O que fazem as pessoas em determinadas condições sociais, que forças estão em jogo, quais as condições de produção de determinadas práticas? Portanto, a produção de conhecimento, tal como a entendemos, não está focada nos indivíduos, mas nos acontecimentos discursivos, ou seja, como e em que condições determinadas, práticas, saberes são produzidos, o que criam e que realidades produzem.
Nota-se claramente que tal perspectiva tem duas dimensões indissociáveis: pesquisa e intervenção. Exige atenção ao presente, ao cotidiano, a tudo aquilo que nos parece banal, pois estamos preocupados com os microfascismos que operam em nós (Fonseca et al., 2008). Trata-se, pois, de produzir conhecimento a partir de analisadores que desestabilizam as formas instituídas, realizando, ao mesmo tempo, análise e intervenção. Para tanto, nos inspiramos na proposta da pesquisa-intervenção, baseada na Análise Institucional. Tal proposta parte do pressuposto de indissociabilidade entre os planos político e subjetivo e da produção de conhecimento como produção de subjetividade, buscando romper com uma racionalidade científica norteada pela ideia de um sujeito epistêmico universal, que persegue verdades, neutralidades, padronização, objetificação, generalização e reprodução.
Além disso, procura trabalhar com a possibilidade de o pesquisador "contribuir efetivamente com os problemas de um coletivo pesquisado, ou seja, sua capacidade de dispor de instrumentos teórico-metodológicos em prol dos objetivos existentes no grupo sob o qual sua ação vai-se debruçar" (Paulon, 2005, p. 20). Assim, exige o desenvolvimento da referida postura ética, estética e política de acolher a vida em seus movimentos de expansão e invenção que atravessaram os encontros no campo de pesquisa. Implica, consequentemente, num constante esforço de desnaturalização e estranhamento dos objetos e fenômenos investigados (processos de subjetivação, loucura, movimentos sociais, saúde mental e coletiva etc.), já que suas composições seguem linhas de montagem e desmontagem ao sabor dos atravessamentos presentes no campo social.
Com base nessa perspectiva, procuramos desenvolver investigações no intuito de efetivamente contribuir com o que está sendo produzido como possibilidades para as vidas em jogo na realidade pesquisada, atentando para as redes invisíveis de subjetivação moral (lógica manicomial que atravessa o cotidiano). De acordo com o pensamento nietzschiano, essa lógica funciona no sentido do apequenamento da existência. Esgota a vontade de vida, empobrece a criação de valores, a invenção do novo, desestimula a ruptura com velhos contratos, a transgressão do instituído, impede projetos futuros. Ou seja, é uma lógica que visa "manter o tedioso repertório dos comportamentos prescritos pelos contratos sociais" (Paulon, 2002).
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Recebido em: 30/06/2014
Reformulado em: 14/12/2015
Aprovado em: 23/03/2015
1 Trata-se de uma versão modificada do capítulo "Artimanhas e tessituras para uma universidade em movimento: experiências de pesquisa em saúde".In Scarparo H. B. K. (Org.). Gestão em saúde: experiências de campo e pesquisa em inserção social (p.17-39). Porto Alegre: Sulina, 2013.
2 Termo utilizado por Merhy (2000). Representam, segundo o autor, "caixas de ferramentas tecnológicas, como saberes e seus desdobramentos materiais e não-materiais, que fazem sentido de acordo com os lugares que ocupam nesse encontro e conforme as finalidades que almeja" (p. 109).