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Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.3 São João del-Rei jul./set. 2017

 

ARTIGOS

 

Os eternos estrangeiros: contato, campo afetivo e representações sociais de ciganos entre não ciganos da grande Vitória/ES

 

The eternal foreigners: contact, affective field and social representations of gypsies among non gypsies in the metropolitan region of Vitória/ES

 

Los extranjeros eternos: contacto, campo afectivo y representaciones sociales de gitanos entre no gitanos en la región metropolitana de Vitória/ES

 

 

Mariana BonomoI; Grecy Kelle de Andrade CardosoII; Jéssica Maria Gomes FariaIII; Julia Alves BrasilIV; Lídio Souza (in memoriam)V

IDocente do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, com Graduação, Doutorado e Pós-Doutorado em Psicologia pela Ufes.
IIMestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, com Graduação em Psicologia pela Ufes.
IIIGraduanda em Medicina pelo Instituto Metropolitano de Ensino Superior de Ipatinga-MG (2014-atual).
IVInvestigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (UM)/Portugal. Doutora em Estudos Culturais, na especialidade de Comunicação e Cultura, pela Universidade do Minho, com graduação e Mestrado em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo.
VDoutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo.

 

 


RESUMO

Este trabalho investigou a elaboração do objeto social 'ciganos' entre não ciganos da Grande Vitória/ES, a partir da dimensão afetiva e dos níveis de contato em relação ao grupo cigano. Participaram do estudo 56 pessoas, com idades entre 18 e 45 anos, que apresentaram tanto sentimentos positivos quanto negativos em relação aos ciganos. Para o tratamento dos dados, coletados por meio da aplicação de questionário, utilizou-se o software EVOC e a Análise de Conteúdo Categorial. Os resultados informam que o posicionamento afetivo se organiza, principalmente, a partir das dimensões positiva 'curiosidade' e 'respeito', e negativa 'insegurança' e 'desconfiança'. Associado a esse campo de ambiguidades, entre os elementos centrais das representações de ciganos encontram-se significados como 'nomadismo' e 'cultura diferente', além de estereótipos negativos e termos que descrevem a dimensão figurativa do objeto social. Discute-se a função das representações encontradas na manutenção do preconceito e da discriminação social contra esse grupo.

Palavras-chave: Ciganos. Dimensão afetiva. Estereótipos. Representação social.


ABSTRACT

This study investigated the construction of the social object 'gypsies' among non-gypsies in the metropolitan region of Vitória/ES, based on the affective dimension and the levels of contact towards the gypsy group. Fifty-six (56) individuals aged between 18 and 45 participated in the study. They presented both positive and negative feelings towards gypsies. The data were gathered through questionnaires, and then treated using the software EVOC and Categorical Content Analysis approach. The results showed that the affective field is organized mainly based on the positive dimensions 'curiosity' and 'respect', and the negative ones 'insecurity' and 'suspicion'. Associated to this field of ambiguity, among the central elements of the representations of gypsies, we found meanings such as 'nomadism' and 'different culture', as well as negative stereotypes and terms that describe the figurative dimension of the social object. This study discusses the function of these representations in the maintenance of prejudice and social discrimination against this group.

Keywords: Gypsies. Affective dimension. Stereotypes. Social representation.


RESUMEN

Este trabajo investigó la elaboración del objeto social 'gitanos' entre los no gitanos de la Gran Vitória/ES, a partir de la dimensión afectiva y de los niveles de contacto con relación al grupo gitano. Participaron en el estudio 56 personas de 18 a 45 años de edad que presentaron tanto sentimientos positivos como negativos con relación a los gitanos. Para el análisis de los datos, recogidos por medio de cuestionarios, se utilizó el software EVOC y el Análisis de Contenido Categorial. Los resultados informan que la posición afectiva se organiza, principalmente, a partir de las dimensiones positivas 'curiosidad' y 'respeto'; y negativas 'inseguridad' y 'desconfianza'. Asociado a este campo de ambigüedades, entre los elementos centrales de las representaciones de gitanos, se encuentran significados como 'nomadismo' y 'cultura diferente', además de estereotipos negativos y términos que describen la dimensión figurativa del objeto social. Se discute la función de las representaciones encontradas en el mantenimiento del prejuicio y de la discriminación social contra este grupo.

Palabras clave: Gitanos. Dimensión afectiva. Estereotipos. Representación social.


 

 

Introdução

Evidências baseadas na análise das línguas faladas pelo conjunto de etnias que constituem os que hoje são genericamente denominados de ciganos indicam que eles seriam originários da Índia, tendo sua diáspora iniciada por volta do ano 1000 da era cristã (Moonen, 2012). No Brasil, os primeiros ciganos teriam chegado por volta de 1574, quando foram degredados de Portugal com outros europeus (Moonen, 2012). Apesar da inexistência de dados oficiais acerca da população cigana em território nacional, estimativas não oficiais sugerem que existam de 500 mil a um milhão de ciganos no país, dos quais a grande maioria estaria em situação de miserabilidade, pobreza e exclusão social (Moonen, 2013).

Nas últimas décadas, os estudos internacionais e nacionais sobre os ciganos vêm sendo intensificados por pesquisadores, ciganos e não ciganos, historiadores, antropólogos e ciganólogos, que têm revelado novas informações acerca da história e da diáspora ciganas (Andrade Júnior, 2013; Blasco, 2002; Moonen, 2012; Reyniers, 2013; Silva, 2014; Teixeira, 2008). Alguns estudos evidenciam, por exemplo, o nomadismo e o processo de territorialização dos grupos ciganos (Costa, 2005; Divino Vaz, 2009; Medeiros, 2016; Silva, 2012; Vanelli, 2010), questões relacionadas à saúde (Almeida, Barbosa & Pedrosa, 2013; Dion, 2008; Silva & Lima, 2016) e à educação (Candeias, 2016; Martins, 2011; Simões, 2010; Tamas, 2001), bem como às práticas de anticiganismo que têm orientado relações de conflito entre ciganos e não ciganos em diversos territórios do mundo (Borges, 2007; Fonseca, 1996; Loveland & Popescu, 2016; Moonen, 2012, 2013; Roman, 1986; Scholz, 2007).

Para além de diferentes contextos históricos e geográficos, observa-se que as representações sociais dos ciganos têm se apoiado, principalmente, em estereótipos negativamente valorados, culminando na caracterização dos ciganos como ladrões, sujos, enganadores e portadores de maldições, significados esses que têm sustentado diversas formas de preconceito e práticas discriminatórias contra membros dessa etnia (Bonomo, Faria, Souza & Brasil, 2012; Bonomo, Trindade, Souza & Coutinho, 2008; Bonomo et al., 2011; Carvalho, Lima, Faro & Silva, 2012; Fazito, 2006; Fonseca, Marques, Quintas & Poeschl, 2005; Lima, Faro & Santos, 2016; Moonen, 2012; Moscovici, 2009; Pivetti, Melotti & Bonomo, 2017; Strausz, 2014). De maneira geral, os estudos demonstram que, ao longo de sua história, os ciganos foram perseguidos, torturados, banidos e excluídos pelas localidades e lugares em que estiveram. Segundo Teixeira (2008, p. 11), "toda história dos ciganos é, na verdade, uma viagem nas línguas, nas estéticas, nas políticas antivagabundos e antiartistas, nas religiões, nas concepções de mundo, com os quais vários grupos ciganos, sucessiva e contraditoriamente, tiveram contato".

Na última década, alguns estudos vêm sendo desenvolvidos no Brasil, na tentativa de compreender a elaboração do campo estereotípico associado aos ciganos, por meio da investigação de como é construído esse objeto social e o que se sabe a seu respeito. Nessa perspectiva, no campo das Ciências Sociais, Ferrari (2006) investigou o lugar dos ciganos em obras literárias produzidas no Ocidente e seus resultados demonstraram que o cigano era retratado como estrangeiro, um ser ambíguo, em relação ao qual se sente temor e fascínio. Já no campo da Psicologia Social, Bonomo e colaboradores (2008, 2011, 2012) investigaram as representações sociais de ciganos entre não ciganos capixabas, focalizando os sentimentos e representações associados a esse grupo étnico (Bonomo et al., 2008, Bonomo et al., 2011, Bonomo et al., 2012), enquanto Lima (2011) e Carvalho e colaboradores (2012) analisaram as representações sociais de ciganos entre não ciganos em Sergipe a partir das experiências de contato. Os resultados evidenciados nesses estudos demonstram que as representações sociais acerca dos ciganos são repletas de misticismo e de estereótipos negativos a eles associados.

De acordo com Pereira (2002), estereótipos são o conjunto de crenças e atributos socialmente compartilhados sobre um grupo, ignorando a variabilidade individual e eliminando a história do indivíduo para revesti-lo de significados depositários, construídos no processo de estereotipização. Nessa perspectiva, os indivíduos passam a ser avaliados e representados não apenas pelas suas características individuais, mas por referências anteriores, formuladas sobre as categorias às quais são associados. Assim, os estereótipos podem ser positivos, negativos ou neutros, e, dessa forma, são capazes de modular e fomentar a produção de preconceito, e, consequentemente, a discriminação social (Pérez-Nebra & Jesus, 2011).

No campo da Psicologia Social, apesar da visão nuclear sobre o preconceito como fenômeno da ordem da violência, diferentes perspectivas conceituais marcam distintas formas de análise sobre esse processo psicossocial, fundamentadas em referências paradigmáticas com diferentes ênfases sobre a relação indivíduo-sociedade (Álvaro & Garrido, 2006; Farr, 2008).

Para Allport (1954), importante referência nos estudos sobre preconceito ainda na atualidade, em uma perspectiva mais centrada no indivíduo, o preconceito seria uma atitude hostil contra um indivíduo apenas porque ele pertence a um grupo desvalorizado socialmente. Logo, o preconceito étnico pode ser considerado uma espécie de antipatia, baseada numa generalização falha e inflexível, que pode ser sentida e/ou expressa a um grupo ou a cada indivíduo em particular.

Já no campo das relações de poder em jogo nas interações sociais, autores como Lima e Vala (2004) alertam que os preconceitos foram sofrendo mudanças a fim de se camuflarem e de se adaptarem ao sistema contemporâneo de relações entre categorias, pretensamente reguladas por princípios de igualdade e respeito à diversidade. Com isso, as formas de expressão do preconceito no contemporâneo se tornaram mais sutis, devido a mudanças históricas e culturais que pressionaram a formulação de sua manifestação em função do sistema normativo vigente, reconfigurando-se em formas veladas, que ainda continuam a alimentar práticas de exclusão e de discriminação social (Santos, Gouveia, Navas, Pimente & Gusmão, 2006).

Seguindo o eixo de análise sobre o preconceito como fenômeno que emerge nas relações de conflito entre categorias sociais no contexto da formulação de representações sociais e das relações entre grupos sociais, Tajfel (1983) e Moscovici (2003, 2009) integram níveis de análise que destacam a dimensão societal e das relações intergrupais (Doise, 2002a; 2002b), perspectiva em que se insere o presente trabalho.

Sobre a dimensão das relações intergrupais, Tajfel (1982, 1983) destaca o fato de que a mera divisão de pessoas em diferentes grupos levaria a avaliações enviesadas sobre esses grupos e seus membros. Portanto, o reconhecimento da existência de outros grupos poderia gerar um processo de comparação entre "nós" e "eles", dinâmica por meio da qual os indivíduos tenderiam a ser mais solidários com membros de seus grupos e mais hostis em relação a outros grupos. Esse processo psicossocial, conhecido como diferenciação intergrupal, seria um dos principais fatores que propiciariam o surgimento de fenômenos sociais como a formação de estereótipos e de preconceitos.

Moscovici e Perez (1997), em análise sobre a produção de estereótipos e preconceitos no contexto dos processos de desumanização e animalização sobre o grupo cigano, chamam atenção para o fato de que os grupos se desenvolvem no interior de formações sociais, políticas e econômicas em interface com ideologias, que produzem a legitimação de hierarquias identitárias na configuração de representações sociais hegemônicas, sobretudo em relação a grupos minoritários. A ontologização, como crença de que determinados grupos humanos são menos humanos do que outros (Pérez, Moscovici & Chulvi, 2002), se reflete na elaboração de categorias estigmatizantes e no extremo da alteridade negada, justificando violências de diferentes ordens àqueles que, segundo o pensamento social, não estariam protegidos por valores sociais de defesa dos direitos humanos.

Ainda no que tange à produção de estereótipos e preconceitos em relação aos ciganos, percebe-se que, por terem sido historicamente vinculados a um conjunto de estereótipos predominantemente negativos, os ciganos foram identificados como ameaça, sendo considerados sujos e imorais (Teixeira, 2008). Nesse sentido, os estereótipos que geralmente são associados aos ciganos costumam se manifestar em frases como "os ciganos são ladrões", "as mulheres ciganas são trambiqueiras", "as crianças ciganas são sujas e não gostam de estudar". O preconceito, por sua vez, como dimensão que envolve afeto, pode aparecer em expressões como "tenho medo de ciganos", "odeio ciganos" ou "não confio em ciganas", enquanto a discriminação social se traduz em práticas, como a proibição da entrada de ciganos em lugares públicos, a recusa de matrícula de crianças ciganas nas escolas, o incêndio de acampamentos e casas ciganos, e até mesmo o extermínio de membros desse grupo (Moonen, 2012, 2013; Teixeira, 2008). Os apontamentos apresentados revelam as contribuições da Teoria das Representações Sociais para a análise desse fenômeno.

Teoria das representações sociais e sua abordagem estrutural

As representações sociais consistem em um conjunto de crenças, socialmente elaboradas e compartilhadas, com o objetivo de identificar um objeto e, assim, construir uma realidade comum (Jodelet, 2001). Elas assumem um papel fundamental na dinâmica das relações e das práticas sociais, respondendo a quatro funções que as sustentam, quais sejam: a) função de saber: permitem compreender e explicar a realidade, de forma que os atores sociais adquiram conhecimento prático sobre o objeto de representação; b) função identitária: contribuem na elaboração da identidade social e das relações entre grupos sociais; c) função de orientação: a representação atua como guia de comportamentos e práticas sociais; e d) função justificadora: permitem a justificativa das tomadas de posição (Abric, 1998).

Em torno das proposições moscovicianas iniciais (Moscovici, 2003), foram sendo tecidas diferentes abordagens, cada uma focalizando um aspecto particular da chamada Grande Teoria (Sá, 1998). Dentre elas, destacam-se a abordagem processual (Jodelet, 2001), a abordagem sociodinâmica (Doise, 2002a; 2002b) e a abordagem estrutural das representações sociais (Abric, 2003a), essa última assumida como referencial teórico-metodológico no desenvolvimento do presente estudo. Nessa abordagem, as representações sociais são constituídas por um conjunto de informações, crenças e atitudes acerca de um objeto social, que se organizam a partir de um duplo sistema, composto por um núcleo central e um sistema periférico (Abric, 1998, 2003a).

No sistema formado pelo núcleo central, encontram-se os componentes mais rígidos, estáveis, coerentes e consensuais das representações, estando relacionados às condições sociais, históricas e ideológicas; portanto, está ligado à memória coletiva e à história dos grupos sociais (Abric, 1998). Ele é resistente a mudanças, sendo pouco sensível ao contexto social e material imediato. Além disso, assume duas funções: uma geradora, que cria ou transforma os demais elementos da representação, dando-lhes sentido e valor, e uma função organizadora, que unifica e estabiliza a representação (Abric, 1998; Sá, 2003). Dessa forma, ele confere estabilidade à representação social e organiza seus elementos (Abric, 2003a).

Já o sistema periférico, por sua vez, constitui um complemento essencial ao sistema central, na medida em que seus elementos são mais concretos e com significados menos flexíveis, sendo, portanto, pertinentes a situações mais particulares (Wachelke & Camargo, 2007). O sistema periférico também é funcional, sensível ao contexto imediato, flexível à integração de experiências e histórias individuais às representações compartilhadas (Abric, 1998; Sá, 2003), bem como admite contradições e a incorporação de novos elementos no campo representacional (Wachelke & Camargo, 2007). Por meio da dinâmica integrada do núcleo central e do sistema periférico, as representações sociais são, simultaneamente, estáveis e móveis, rígidas e flexíveis, consensuais e marcadas por diferenças individuais (Abric, 1998), admitindo, portanto, ambiguidades, como a esfera afetiva abordada neste estudo (Campos & Rouquette, 2003; Rimé, 2008; Spink, 1993; Wachelke, 2012).

Segundo Campos e Rouquette (2003), quando uma situação é fortemente carregada de emoções, a estrutura da representação pode ser alterada por aquilo que é vivido no plano dos afetos. Desse modo, um ou mais elementos centrais podem aglutinar em torno de si termos carregados mais afetivamente, processo que se reflete na compreensão de que o núcleo central é constituído tanto por uma partilha histórica de valores (Abric, 2002) quanto por uma partilha histórica das emoções associadas aos objetos sociais (Campos & Rouquette, 2003).

Em relação aos ciganos, é possível verificar que as representações sociais associadas a esse grupo étnico vêm sendo, historicamente, apoiadas e intensificadas por estereótipos e sentimentos negativos. Segundo Bonomo e colaboradores (2012), tanto a formação do campo representacional quanto da dimensão afetiva, relacionados aos ciganos, têm se apoiado em ambiguidades, que, simultaneamente, os descrevem como um povo alegre, com danças e roupas coloridas, despertando sentimentos de curiosidade, ao mesmo tempo em que são retratados como um grupo que rouba, trapaceia e roga praga, provocando sentimentos de insegurança e de medo entre não ciganos.

Diante de tais considerações, este estudo tem por principal objetivo investigar as representações sociais de ciganos entre sujeitos não ciganos, uma vez que a identificação dos processos e conteúdos constitutivos do campo representacional não cigano acerca da etnia cigana apresenta-se como fundamental para a compreensão das práticas sociais direcionadas a essa categoria social, geralmente fundamentadas em preconceito e discriminação social.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo 56 estudantes universitários, de instituições de ensino pública e privadas da Grande Vitória/ES, que associaram aos ciganos sentimentos positivos e negativos, simultaneamente. Os sujeitos apresentaram idades entre 18 e 45 anos, sendo a maioria desses participantes do sexo feminino (44 sujeitos).

A amostra que compõe a presente investigação foi selecionada a partir de estudo preliminar em que foram identificados três clusters de sujeitos segundo a dimensão afetiva associada aos ciganos, quais sejam: (i) sentimentos positivos ('tranquilidade', 'afeição', 'admiração' e 'empatia'), (ii) sentimentos negativos ('mal-estar', 'aversão', 'antipatia' e 'medo') e (iii) sentimentos positivos e negativos, simultaneamente ('curiosidade', 'solidariedade', 'indiferença' e 'desconfiança', por exemplo). Dessa forma, a amostra analisada no presente estudo é constituída somente pelos sujeitos do terceiro grupo (sentimentos positivos e negativos).

Instrumento e procedimento de coleta de dados

Com a devida autorização das instituições de ensino superior da Grande Vitória/ES, foram aplicados questionários contendo os seguintes núcleos de informações: dados socioeconômicos; técnica de evocação livre para o termo indutor 'ciganos', com questões exploratórias com o objetivo de contextualizar os termos evocados; questões de múltipla escolha, visando conhecer o campo afetivo relacionado ao objeto de representação; e perguntas sobre experiências de contato com os ciganos.

Procedimento de análise dos dados

Para tratamento dos dados provenientes da técnica de associação livre (Abric, 2003a), utilizou-se o software EVOC - Ensemble de Programmes Permettant L'analyse des Évocations (Vergès, Scano & Junique, 2002), que procede à análise das palavras evocadas em função de critérios como frequência e ordem de evocação, permitindo um levantamento dos elementos que mais provavelmente se associam ao termo indutor. A partir do processamento dos dados, os elementos apresentam-se organizados de forma hierárquica, de modo a identificar aqueles que, possivelmente, constituem o núcleo central e as periferias próxima e distante da representação social do objeto analisado (Pereira, 2002). Ressalta-se que, apesar de alguns estudos recentes (e.g. Wachelke, 2009) salientarem o uso da ordem de importância das evocações, fornecida pelos indivíduos, optamos por utilizar neste estudo a ordem de evocação, conforme a proposta inicial da análise prototípica (Vergès, 1992), visto que consideramos que tal análise auxilia na manutenção de maior espontaneidade às respostas dos participantes.

Para melhor aproveitamento dos dados, utilizou-se como recurso complementar a Análise de Conteúdo Categorial-temática (Bardin, 2002), que permite a descrição sistemática e quali-quantitativa dos dados.

 

Resultados e discussão

Considerando que o campo afetivo apresentado pelos sujeitos da representação se organiza a partir de elementos de valoração tanto positiva quanto negativa associados aos ciganos (ou seja, um mesmo participante apresentou sentimentos positivos e negativos em relação ao objeto de representação - "Diante de ciganos, sinto medo, admiração, nojo e curiosidade"), esse estudo teve por objetivo investigar as representações sociais do objeto 'ciganos' para população não cigana da Grande Vitória/ES. Desse modo, tendo em vista a natureza descritiva e exploratória do trabalho desenvolvido, os resultados obtidos são apresentados em três seções principais: a) níveis de contato com os ciganos, b) posicionamento afetivo em relação aos ciganos, e c) campo representacional.

Contextualização do campo de estudo: níveis de contato com os ciganos

Na região onde o estudo foi desenvolvido, os ciganos estão presentes nas praças das principais cidades do estado, em bairros da periferia dos centros urbanos e têm diversas rotas, percorrendo áreas do interior e do litoral do Espírito Santo (Bonomo, Souza, Brasil, Livramento & Canal, 2010). Os resultados obtidos referentes ao tipo de contato dos respondentes com membros da etnia cigana informam que quase a totalidade de participantes já viu algum/a cigano/a pessoalmente (f=54), porém a maioria nunca conversou (f=34), teve amizade (f=54) ou realizou qualquer tipo de negociação com eles (f=52), tais como barganha ou mesmo leitura de mão. Já em relação ao nível de contato indireto, ou seja, o nível de acesso a informações acerca da cultura cigana, metade dos sujeitos já assistiu a filmes e/ou novelas que retratavam algum/a cigano/a e apenas um quarto da amostra mencionou já ter lido algum tipo de informação sobre eles. Logo, é possível perceber que apesar da maioria dos participantes já ter visto algum/a cigano/a, o nível de contato e conhecimento dos sujeitos da representação sobre o grupo parece ser ainda incipiente, lacuna que pode ser reposta pelos clássicos estereótipos constitutivos do pensamento social hegemônico, conforme significados apresentados no campo representacional (Tabela 2).

Os dados encontrados por Carvalho e colaboradores (2012), em Sergipe, evidenciam essa esfera ao demonstrar que pessoas que residem distantes de territórios ciganos, ou seja, que têm menos contato e interação com o grupo, apresentam uma representação mais fortemente apoiada em estereótipos descritivos ('nômades', 'aparência física' e 'misticismo', por exemplo), ao passo que aqueles que vivem perto de acampamentos associaram aos ciganos significados mais negativos (tais como 'criminosos', 'briguentos' e 'diferentes'). Apesar da importância do contato para a redução do preconceito e da discriminação social, inúmeras pesquisas da área têm demonstrado que se em alguns casos a estratégia pode contribuir para a intervenção positiva nessas representações e interações sociais, em outros, em vez de combatê-los, pode servir para fortalecer e justificar a hostilidade contra determinados grupos e categorias sociais (Brown, 1997; Pereira, 2002; Pettigrew & Tropp, 2006). É nesse sentido que se torna saliente conhecer o que as pessoas pensam e sentem acerca do grupo, uma vez que tais dimensões são elementares na orientação do comportamento dos indivíduos e das práticas sociais cotidianas (Jodelet, 2001; Rimé, 2008).

Campo afetivo associado aos ciganos

Os resultados relativos aos sentimentos associados aos ciganos foram compostos por 14 termos diferentes (8 de conotação positiva e 6 negativamente valorados), com frequência maior ou igual a 5, totalizando um conjunto de dados com frequência absoluta de 275 associações (Tabela 1). Tais itens foram selecionados pelos sujeitos, dentre os 26 termos que constavam no questionário como opção de resposta em uma questão do tipo fechada múltipla.

 

 

Considerando a frequência dos sentimentos selecionados pelos participantes acerca de seu posicionamento afetivo com relação aos ciganos, 55,27% (152 associações) constituem a dimensão positiva do campo afetivo. Elementos como 'curiosidade', 'encantamento', 'admiração' e 'alegria' podem estar apoiados na ideia romantizada dos ciganos ou no interesse pelo diferente, esfera que também se traduz nos elementos 'respeito' e 'tranquilidade', enquanto a presença dos sentimentos 'solidariedade' e 'simpatia' podem ser indicadores de um contexto afetivo mais favorável a um contato positivo com o grupo (Rimé, 2008). Contudo, vale destacar que, dentre os itens disponíveis para essa questão, outros elementos que também traduzem uma atitude positiva e mais favorável em relação ao grupo, tais como 'confiança', 'afeição', 'segurança', 'bem-estar' e 'empatia', não foram selecionados.

No que se refere aos elementos que representam a polaridade negativa, por sua vez, entre aqueles que orientam a construção da representação dos ciganos como grupo ameaçador (Bonomo et al., 2011), destacam-se 'insegurança', 'desconfiança' e 'medo' (que equivalem a 30,18% do banco de dados total), além dos elementos 'nojo' e 'indiferença', que são mencionados com menor frequência.

Sobre o conteúdo apresentado, no intuito de evitar uma interpretação polarizada do campo afetivo, parece ser importante sublinhar que todos os participantes manifestaram uma tomada de posição afetiva tanto positiva quanto negativa em relação aos ciganos. De acordo com Rimé (2008), a dimensão afetiva configura-se como esfera elementar das relações sociais e da própria constituição da realidade social. O autor explica que o universo de significados e práticas compartilhados pelos indivíduos deve constituir-se como espaço de domínio e familiaridade, rejeitando aquilo que perturba ou é desconhecido, para fins de estabelecimento do critério de equilíbrio nas relações sociais. Contudo, como processo relacional, comporta ambiguidades e paradoxos que se refletem em dinâmicas aparentemente contraditórias, mas que podem evidenciar o esforço para ordenamento das relações sociais e diferenciação em relação aos 'outros', identificando quem faz parte e quem não faz parte dos espaços de reconhecimento e familiaridade, uma das funções elementares das representações sociais em interface com a dimensão social das emoções (Pombo-de-Barros & Arruda, 2010; Rimé, 2008).

Representações sociais de ciganos

A partir da abordagem consensual das representações sociais, procedeu-se à análise do campo compartilhado dos significados associados ao objeto social 'ciganos'. Desta forma, o conjunto de dados que compõe o campo representacional referente às representações sociais de 'ciganos' é formado por 261 evocações, reunidas em 15 termos diferentes com frequência maior ou igual a 5, e com a média de ordem de evocação igual a 3.0, conforme pode ser verificado nos dados projetados nos quadrantes que compõem a Tabela 2.

O núcleo central forma e organiza o campo representacional e caracteriza o objeto, bem como tem a capacidade de orientar as ações do sujeito da representação (Abric, 2003a). Os elementos que possivelmente constituem o núcleo central do objeto analisado fazem referência à dimensão comparativa da cultura cigana como diferente da cultura dos participantes (cultura cigana vs. Cultura não cigana), mas, principalmente, apoia-se em significados que retratam a natureza do objeto por meio do 'nomadismo' e da esfera mágico-religiosa, com a presença dos elementos 'leitura de mão' e 'misticismo'. Estudos realizados em outras regiões e nacionalidades (Bigazzi, 2009; Carvalho et al., 2012; Fazito, 2006) encontraram resultados semelhantes, sinalizando a consensualidade desses significados à composição do objeto de representação 'ciganos'.

Vale ressaltar que o termo 'nomadismo' consiste no elemento mais evocado pelos participantes, dado que reforça a ideia dos ciganos como "eternos estrangeiros", prática que caracterizou a diáspora cigana pelas localidades e países em que estiveram em contato (Borges, 2007; Fonseca, 1996). Também a dimensão mágico-religiosa se apresenta como central para a representação social associada a esse povo, fortemente vinculada à ideia das ciganas que praticam a quiromancia, são videntes e preveem o futuro, noção que têm representado os ciganos na generalidade (Scholz, 2007).

Considerando que a zona de contraste tem a função de proteger o núcleo central (Abric, 1998), este quadrante foi formado por elementos que sugerem a composição de significados relacionados à: a) dimensão icônica, com a função de naturalizar o objeto por meio de elementos como 'acampamento' e 'dança/música', bem como por meio da ideia do povo cigano como alegre, que vive em grupo, canta, dança e festeja; e b) dimensão dos estereótipos negativos, que descrevem os ciganos como 'enganadores'. As representações sociais dos ciganos como ladrões, enganadores e não confiáveis acompanharam a diáspora cigana ao longo dos séculos e se mantêm ainda na atualidade como elementos que orientam o preconceito e a discriminação social contra essa etnia. Entretanto, alguns elementos presentes na zona de contraste também podem apontar para a existência de dissensos, de subgrupos que pensem diferente da maioria (Abric, 2003b), o que pode ser o caso, por exemplo, dos indivíduos que destacaram o termo 'marginalizados', indicando a possibilidade da presença de um subgrupo que pensa os ciganos a partir do lugar de marginalidade que lhe é conferido.

Do mesmo modo, na periferia próxima encontra-se o elemento 'vestimentas/adereços', que compõe a dimensão icônica das representações sociais de ciganos, reunindo elementos que descrevem as vestes típicas dos homens ciganos (como calças, camisas abertas, botinas ou pés descalços) e das mulheres ciganas (saias longas, vestidos rodados e coloridos, flores e adereços nos cabelos). Por fim, como dimensão que retrata a dinâmica mais contextual ou situacional do campo representacional, a periferia distante apresentou elementos que fazem referência a três dimensões: a) dimensão icônica, como extensão da periferia próxima, com elementos tais como 'barracas', 'ouro' e 'posses'; b) dimensão dos estereótipos negativos, com o termo 'sujos'; e c) modo de vida cigano, que se refere à representação acerca da organização desse povo por meio de grupos e da forte estrutura familiar, remetendo à ideia dos ciganos como grupo 'etnocêntrico' e mais fechado.

Tendo em vista o conjunto de resultados apresentado, abordado de maneira exploratória e descritiva, coloca-se em evidência a dinâmica do contato, da tomada de posição afetiva ambígua e do campo representacional marcadamente apoiado nos clássicos estereótipos difundidos acerca da categoria social cigana. De acordo com Pérez, Moscovici e Chulvi (2002), em análise sobre a produção de estereótipos e preconceitos em relação aos ciganos, o preconceito implica um julgamento antecipado que tem suas raízes nas concepções amplamente difundidas no pensamento social. As representações sociais permitem explicar a realidade social, contribuem para o estabelecimento de espaços de pertencimento, além de orientarem e justificarem comportamentos e práticas sociais (Abric, 1998; Jodelet, 2001). No entanto, fenômenos ou objetos sociais que não podem ser completamente traduzidos por essa dinâmica, ou seja, que permaneçam na esfera do estranho e do desconhecido, podem suscitar sentimentos de afastamento e insegurança, como evidenciado nos resultados apresentados.

O medo e o afastamento do desconhecido, conforme discute Delumeau (2007), são geralmente provocados "entre pessoas que não se conhecem, ou que se conhecem mal, que vêm de fora, que não se parecem conosco e que, sobretudo, não vivem da mesma maneira que vivemos" (p. 46). Esse processo de distanciamento, portanto, reafirma as fronteiras de quem pertence ou não ao 'meu grupo' e de quem são os 'outros', os estrangeiros, demarcando dinâmicas identitárias que se constroem em (inter)relação com as representações sociais partilhadas pelos indivíduos de um grupo acerca desses 'outros'.

É nesse sentido que a dimensão constitutiva das representações, ao contribuir para a categorização de quem é estranho e de quem é familiar, em outras palavras, de quem faz e de quem não faz parte dos espaços de legitimidade e de reconhecimento, associa-se aos significados modulados pelas representações sociais da sociedade da qual os grupos fazem parte, que produz o sistema de crenças e influencia no tipo de relações estabelecidas entre os grupos sociais (Jodelet, 2001; Moscovici, 2003). Apoiados em tais pressupostos da teoria, evidencia-se nos resultados encontrados um campo afetivo compartilhado (Rimé, 2008), que atua na dupla tarefa de: tornar o estranho familiar, atendendo ao critério de equilíbrio para o estabelecimento das relações sociais, traduzido pelo pensamento social por meio dos clássicos estereótipos (Ver Tabela 2), especialmente pelo reduzido nível de contato e interação dos respondentes com membros de grupos ciganos; e manter o estranho na não familiaridade, marcado pela dinâmica da 'insegurança' diante de um grupo não confiável ('desconfiança'), que carrega uma representação hegemônica de cunho negativo, de uma 'cultura diferente' (Tabela 2) e não compartilhada pelos sujeitos da representação.

Manter o diferente nessa condição de não familiaridade pode ser interessante também para contribuir para o processo de identificação endogrupal e manutenção da distintividade positiva do próprio grupo, marcando sua diferença em relação ao exogrupo, já que "somos o que somos, porque eles não são como nós" (Tajfel, 1983, p. 388, grifo do autor). Se os 'outros', a exemplo dos ciganos, não são como nós e os mantemos em um lugar de estranhamento, garantimos a manutenção de sua condição depositária e sua construção social como eternos estrangeiros no universo das sociabilidades que reconhecemos como legítimas.

 

Considerações finais

Com o presente estudo, foi possível conhecer o campo compartilhado das representações sociais de ciganos, bem como aspectos relativos ao que se sente e o quanto se sabe sobre eles. Ampliar o conhecimento acerca desse grupo social é importante para que os sujeitos da representação possam refletir criticamente sobre suas crenças, seus sentimentos e suas práticas, visto que a reflexão crítica é considerada como "um dos instrumentos para a redução do preconceito e da discriminação" (Pérez-Nebra & Jesus, 2011, p. 232). O conhecimento, portanto, acerca de sua história e de seu modo de vida, pode se configurar como estratégia para desmitificar concepções e estereótipos negativos que lhes são comumente atribuídos, e que marcaram essa etnia em diferentes contextos históricos e geográficos.

Entre os limites do estudo desenvolvido e que podem permanecer como tarefas para novas investigações, ressalta-se a necessidade de ampliar a amostra de sujeitos e aprofundar a análise do fenômeno explorado por meio de estudos que visem investigar a correlação entre suas dimensões (níveis de contato e campos afetivo e representacional). Além disso, tendo em vista que as representações sociais de não ciganos sobre ciganos podem envolver alguns elementos de conotação negativa, que possam colidir com as normas sociais vigentes na sociedade, sendo socialmente indesejáveis, é necessário que haja pesquisas futuras que investiguem o não dito, aquilo que não é falado explicitamente, ou seja, a zona muda dessas representações (Abric, 2003b). Finalmente, considerando os efeitos das representações sociais de ciganos presentes no pensamento social, faz-se necessária a realização de estudos com os próprios grupos ciganos a fim de se avançar na compreensão dos processos de estigmatização desse povo ou sobre como lidam com essas representações sociais, que sustentam o preconceito e a discriminação social a que são historicamente submetidos.

 

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Recebido em 21/03/2015
Aprovado em 10/10/2017

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