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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.3 São João del-Rei jul./set. 2017
ARTIGOS
Representações sociais da psicologia sobre os(as) usuários(as) do Cras: uma perspectiva relacional
Psychology's social representations of Cras' users: a relational perspective
Representaciones sociales de la psicologia sobre los usuários del Cras: uma perspectiva relacional
Vinicius Tonollier PereiraI; Pedrinho GuareschiII
IMestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra)
IIDoutor em Psicologia Social pela University of Wisconsin at Madison. Professor convidado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA)
RESUMO
Este estudo é parte de uma pesquisa de dissertação que investigou as representações sociais de profissionais da Psicologia que atuam em Centros de Referência de Assistência Social (Cras) sobre os(as) usuários(as) desse serviço, considerado a porta de entrada do Sistema Único de Assistência Social (Suas). O objetivo do presente artigo é apresentar representações sociais que remetem a potencialidades dos(as) usuários(as) dos Cras. Foram entrevistadas 21 profissionais. Os resultados apontam para a existência de uma perspectiva relacional entre os(as) destinatários da assistência social, na visão das entrevistadas, já que elas são capazes de estabelecer um ambiente de solidariedade e apoio, mesmo vivendo em contextos adversos, bem como a presença de uma força e potência de vida. A partir disso, problematiza-se também a própria Psicologia, que pode avançar ao incluir as dimensões relacional, ética e política em seu escopo de atuação.
Palavras-chave: Psicologia Social. Representações sociais. Assistência Social. Cras.
ABSTRACT
This study is part of a master degree research that investigated the social representations of psychology professionals working in Social Assistance Referral Centers (Cras) about the users of this service, considered the gateway of the Universal System of Social Assistance (Suas). The aim of this article is to present social representations that refer to the potentialities of Cras users. Twenty one professionals were interviewed. The results point to the existence of a relational perspective among the recipients of social assistance, from the standpoint of the interviewees, since they are able to establish an environment of solidarity and support despite adverse circumstances. Strength and life power are present as well. The field of psychology itself is problematized considering it may advance when it encompasses relational, ethical and political dimensions within its action scope.
Keywords: Social Psychology. Social representations. Social assistance. Cras.
RESUMEN
Este estudio es parte de una investigación de maestría que investigó las representaciones sociales de los profesionales de la psicología que trabajan en los Centros de Referencia de Asistencia Social (Cras) sobre los usuarios de este servicio, considerado la puerta de entrada del Sistema Universal de Asistencia Social (Suas). El objetivo de este artículo es presentar representaciones sociales que se refieran a las potencialidades de los usuarios de Cras. Veintiún profesionales fueron entrevistadas. Los resultados apuntan a la existencia de una perspectiva relacional entre los receptores de asistencia social, desde el punto de vista de las entrevistadas, ya que pueden establecer un ambiente de solidaridad y apoyo a pesar de las circunstancias adversas. La fuerza y el poder de la vida también están presentes. El campo de la psicología en sí mismo está problematizado considerando que puede avanzar cuando abarca dimensiones relacionales, éticas y políticas dentro de su alcance de acción.
Palabras clave: Psicología Social. Representaciones sociales. Asistencia social. Cras.
Introdução
O advento do Sistema Único de Assistência Social (Suas) inseriu definitivamente a Psicologia no campo da assistência social, já que a presença de profissionais psicólogos é prevista e inclusive obrigatória, em alguns casos, na composição das equipes dos dois principais serviços de proteção social que estruturam essa política: o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
Como articuladores(as) da política de assistência social, os(as) psicólogos(as) têm posicionamentos e acabam compromissados - ou não - com a busca de transformações sociais e com os direitos humanos. Assim como a sociedade, a Psicologia se encontra em meio a forte tensionamento de ideias sobre os destinatários dessa política: construções estigmatizantes, que reduzem as questões sociais ao nível individual, dentro de uma lógica de funcionamento neoliberal e individualista, coexistem com concepções paralelas que apontam perspectivas relacionais, comunitárias e plurais. Isso se reflete diretamente na práxis da Psicologia na assistência social, como defendem Yazbek et al. (2010): por um lado, há trabalhos ainda presos a rotinas burocráticas, que não investem na mudança e na ruptura com práticas conservadoras e tradicionais, e que não raro atribuem aos sujeitos a culpa por mazelas sociais; e, por outro, há serviços mobilizados para um trabalho inovador e progressista, com abordagens críticas, com estratégias coletivas de enfrentamento e atenção às situações territoriais vividas pelos sujeitos. No centro da questão estão as próprias representações que embasam determinadas formas de ação. Assim, para além das possibilidades de práticas já previstas pela Psicologia no Suas, entre as quais podemos apontar aquelas destacadas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2008; CFP, 2012), são as próprias representações sociais compartilhadas pelos(as) profissionais que delineiam formas de ação que se deslocam entre os polos acima apresentados.
Neste artigo, são apresentadas e problematizadas representações que se aproximam de uma perspectiva relacional (Guareschi, 2004), na qual o ser humano não se reduz a um indivíduo que nada tem a ver com os outros, mas, ao contrário, é alguém que implica necessariamente outros. Nessa lógica, os(as) usuários(as) dos Cras acabam tornando possíveis redes de solidariedade, de resiliência e de potência de vida, como se verá nos resultados e nos campos temáticos representacionais que compõem este artigo. Ao perceber isso, a própria Psicologia pode também se transformar, fazendo com que o campo da assistência social seja profícuo para avanço na vida desses(as) usuários(as) e também da Psicologia como ciência e profissão.
Vale ressaltar que este estudo é parte de uma pesquisa mais ampla (Pereira & Guareschi, 2013), que investigou as representações sociais de profissionais da Psicologia sobre os(as) usuários(as) do Cras. Os resultados aqui discutidos apontam para uma única dimensão, composta de representações mais relacionais. Entretanto, coexistem outras representações que inclusive apontam para uma perspectiva mais individualista, que culpa os(as) usuários(as) por sua condição social de vulnerabilidade, colocando na origem disso suas próprias inadequações. Nessa perspectiva, por exemplo, atribui-se suas mazelas e condição de vulnerabilidade social aos seus modelos de família, tidas como desorganizadas (Pereira & Guareschi, 2017) ou a uma suposta condição de passividade e acomodação dessas pessoas, o que impediria mudanças de vida (Pereira & Guareschi, 2014). Assim, percebe-se que são heterogêneas as representações sobre os sujeitos destinatários da política de assistência social e que essas diferentes visões definem diferentes práticas de trabalho. Contudo, no presente artigo, discutem-se apenas os elementos de uma representação social definida como relacional, em uma perspectiva socialmente abrangente.
Assistência social e psicologia
Pode-se considerar que o Brasil afirma os direitos sociais tardiamente, a partir das lutas de democratização que culminam na Constituição de 1988, inspirada no conceito de Estado de Bem-Estar Social, que consiste na expansão dos gastos nas áreas sociais e nas políticas universais (Couto, 2010). No país, as políticas sociais se caracterizaram ao longo do tempo por sua fragmentação e pouca efetividade, subordinadas aos interesses econômicos dominantes, incapazes de interferir na desigualdade e pobreza que marcam nossa sociedade. Tratando-se da assistência social, o quadro é ainda pior, marcado historicamente como uma "não política" (Couto, Yazbek & Raichelis, 2010).
Porém, ainda que garantida, a materialização da assistência social como política pública se deu de forma lenta. Em 1993 foi sancionada a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas) e só mais tarde, em 2005, surgiu o Sistema Único de Assistência Social (Suas). Seu grande objetivo é que a assistência social deixe de ser caracterizada por ações imediatistas e focais para ser uma política de cidadania, pactuada pelo Estado por meio das três esferas do governo e a sociedade civil, assegurando um padrão de vida mínimo à população (MDS, 2004).
Assim, com a constituição do Suas, houve a formação de uma ampla estratégia no enfrentamento à pobreza, às vulnerabilidades e ao risco social em que vivem milhões de brasileiros. Para tanto, a proteção social oferecida pelo Suas se dá por meio de dois níveis: o da Proteção Social Básica (PSB), enfoque deste estudo, e a Proteção Social Especial (PSE). A PSB se caracteriza pela sua ênfase preventiva, objetivando evitar as situações de risco, desenvolvendo potencialidades e fortalecendo vínculos comunitários e familiares. A execução da PSB se materializa nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), unidades públicas estatais e de base territorial, localizados geralmente nas áreas de maior pobreza e vulnerabilidade social, próximo dessas populações. Assim, o Cras funciona como porta de entrada para o Suas (MDS, 2004). É previsto que cada Cras tenha uma equipe de referência, que depende do porte do município e do número de famílias referenciadas. Recomenda-se que cada Cras tenha, além de assistentes sociais, preferencialmente, psicólogos. Nos de pequeno porte, esse profissional é recomendando, sendo que nos de médio e grande porte e nas metrópoles sua presença é obrigatória (MDS, 2006). Conforme o Censo Suas de 2009, 5.870 psicólogos atuavam em Cras naquele ano, sendo o segundo profissional de ensino superior de maior presença na PSB (MDS, 2011). Em 2011, já existiam 7,6 mil Cras no país, cobrindo 99,5% dos municípios, o que evidencia a alta capilarização desse dispositivo pelo território nacional e a maciça presença de psicólogos nesses serviços. Em um levantamento recente, Macedo, Sousa, Carvalho, Souza e Dimenstein (2011) afirmam que em 2011 existiam 8.079 psicólogos atuando em Cras no Brasil.
No Suas, especificamente, exige-se da Psicologia ampliação dos seus focos típicos, a fim de promover mudanças políticas e de cidadania. Com isso, se quer uma prática que supere a psicologização dos problemas sociais, ultrapasse a dimensão disciplinadora de culpabilização, rompa com referenciais teóricos do tipo "disfuncionais" e que compreenda os fenômenos a partir de uma perspectiva social mais ampla (Teixeira, 2010).
Algumas pesquisas na interface entre Psicologia e assistência social revelam que uma mudança paradigmática se encontra em movimento, dividida ora entre práticas inovadoras e/ou progressistas, ora conservadoras e/ou tradicionais, como mostram os trabalhos de Fontenele (2008), Senra (2009), Castro (2009), Andrade (2009), Mota (2010) e Pereira e Guareschi (2013). O ponto positivo é que essa mudança parece estar ocorrendo, trazendo o otimismo de novas perspectivas.
Por isso, dentro desse processo de mudança paradigmática, acaba sendo decisiva a forma como os(as) profissionais concebem os(as) usuários(as) da política de assistência social, justificando uma vez mais o fio condutor deste estudo, pois isso pode ser duplamente vantajoso, tanto por dar visibilidade a quem são esses(as) usuários(as) na perspectiva dos(as) psicólogos(as) entrevistados, como também desvelar em que pressupostos se ancoram esses(as) próprios(as) profissionais e que modos diferentes de fazer Psicologia estão aí implicados. Na busca dessa compreensão, serão utilizadas as representações sociais, teoria e fenômeno esboçados a seguir.
Representações sociais
Para Jovchelovitch (2008), as representações sociais (RS) são tanto uma teoria que se interessa pela forma como os saberes são produzidos e transformados na interação social, em especial os saberes da vida cotidiana, como um fenômeno, compreendendo ideias, valores e práticas inseridos num contexto comunicativo e que constroem a realidade social.
É em relação às RS como fenômeno que este trabalho se debruça, já que os valores, as ideias, os (pré)conceitos e inclusive as práticas dos profissionais da Psicologia em relação aos usuários constituem representações sociais amplas sobre esses sujeitos, o que, em última instância, acaba determinando de alguma maneira a própria atuação com essa população, legitimando uma vez mais a importância deste estudo.
Na tentativa de uma definição, Moscovici (2003) indica que as representações sociais fazem parte do cotidiano e compõem todas as relações e comunicações, constituindo mesmo a realidade da vida das pessoas. Nessa perspectiva, não há algo "lá fora" a ser conhecido, mas é por meio das representações que se constrói o mundo. Para o autor, as RS são tanto simbólicas como reais; tanto afetivas como cognitivas. São, ao mesmo tempo, produtos e produtoras da comunicação, habitando um mundo comum compartilhado pela linguagem, possibilitando a todos que se orientem e se comuniquem; qualquer informação que circule está 'contaminada' de RS, pois elas constituem a atmosfera dinâmica do social. São capazes de produzir convenções e prescrições, já que têm grande poder de influência por serem socialmente criadas e compartilhadas, mas são, por outro lado, sempre singularmente internalizadas e recriadas por cada um. Sua finalidade maior é tornar a comunicação não problemática, isto é, reduzir o "vago" por meio do entendimento entre as pessoas, orientando-as em suas ações na vida cotidiana. Elas circulam no social, são semelhantes a teorias, redes móveis de ideias, metáforas, imagens, crenças, comportamentos simbólicos, ordenadas ao redor de crenças centrais mais estáveis. Porém, não se deve pensá-las dentro de um campo equilibrado, mas, ao contrário, constituem um campo de luta de ideias e de batalhas ideológicas.
Método
Este artigo é parte de uma pesquisa de dissertação, que, como já dito, procurou investigar quais são e como se revelam as representações sociais de profissionais da Psicologia que atuam em Cras sobre os(as) usuários(as) desse serviço.
Participantes
Para a construção desta pesquisa, foram realizadas entrevistas abertas com profissionais de Psicologia que atuam em Cras, a fim de melhor explorar as diferentes representações acerca do tema. Inicialmente foram definidas as cidades onde aconteceria a pesquisa, sendo selecionados todos os municípios da região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, mais alguns municípios de menor porte da região central, a fim de garantir uma maior heterogeneidade de realidades. Feito isso, os serviços foram contatados pelo pesquisador, sendo escolhidos aqueles de mais fácil acesso dentro de cada município. As entrevistas foram realizadas entre março e julho de 2012. No total, participaram do estudo 21 psicólogas. No decorrer do artigo, nas citações de suas falas, elas serão chamadas abreviadamente de P1 (participante 1), P2, P3 e assim sucessivamente, até a P21. As entrevistadas são oriundas de 20 Cras diferentes, de nove cidades da região metropolitana de Porto Alegre e cinco da região central do Rio Grande do Sul, totalizando 14 municípios. Destes, de acordo com a classificação do Suas (MDS, 2004), dois são de pequeno porte I (até 20.000 habitantes), três de pequeno porte II (de 20.001 a 50.000), dois de médio porte (50.001 a 100.000), seis de grande porte (100.001 a 900.000) e uma metrópole (mais de 900.000). A média de idade delas ficou em 32,5 anos, tendo a mais velha das participantes 58 anos e a mais nova 24. O tempo médio de anos transcorridos desde a conclusão de graduação era de 7 anos, sendo o maior tempo de 27 anos e o menor de 1 ano e 6 meses; 14 delas se formaram em universidades particulares e 7 em universidades federais. O tempo total de trabalho em Cras era em média de 1,8 anos. O maior tempo de trabalho em Cras foi de 6 anos e 6 meses, e o menor de 4 meses. O tempo médio de carga horária semanal de trabalho foi de 30 horas, sendo as maiores de 40 horas e a menor de 16, discrepante dos dados do Censo Suas 2009 (MDS, 2011), que trazem que 51% dos profissionais de ensino superior cumprem 40 horas semanais. Quanto ao vínculo empregatício, a maioria, 13 delas, eram servidoras estatutárias, enquanto 8 tinham contratos temporários, realidade melhor que apresentada pelo Censo Suas 2010 (MDS, 2010), que indica que apenas 35,6% dos servidores com ensino superior nos Cras do país são concursados.
A presença única de mulheres está em consonância com os dados de Macedo et al. (2011), que indicam que do total de 8.079 psicólogos(as) que atuavam em Cras no Brasil em 2011, 89,6% eram mulheres, evidenciando a preponderância do público feminino. Isso tem a ver com a maior presença feminina do que masculina nos cursos de Psicologia, e também nos de serviço social, que fazem com que a assistência social seja uma política predominantemente feita por mulheres. No Rio Grande do Sul, segundo os mesmos autores, em torno de 400 psicólogos(as) atuam em Cras, sendo relevante que se tenha entrevistado cerca de 5% desses(as) profissionais, embora não se esteja interessado nos números de opiniões nem em generalizações absolutas dos achados. Essa significância apenas indica, para os propósitos deste texto, que se tem uma boa gama de representações a explorar.
Procedimentos para a entrevista
Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Antes das entrevistas, as participantes tomaram ciência do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assinando-o ao concordar em participar da pesquisa, sendo informadas da possibilidade de desistência a qualquer tempo. Um tópico-guia auxiliou na entrevista, tentando, contudo, mantê-la o mais livre possível. O tópico-guia foi composto por cinco itens: 1. Quem são os usuários do Cras e como caracterizá-los; 2. Como são as famílias usuárias do Cras e como caracterizá-las; 3. Como é a vida desses sujeitos (em termos de rotina e cotidiano, o que ia sendo explorado a partir de mais perguntas de acordo com o que era trazido pelas entrevistadas); 4. Que aspectos dos usuários podem ser vistos como obstáculos para a efetivação das propostas do Cras/Suas e quais são eles; e 5. Aspectos dos usuários que podem ser vistos como positivos e que contribuam para a efetivação da proposta do Cras/Suas e quais são eles.
A definição por 21 entrevistas obedeceu ao critério de saturação indicado por Bauer e Aarts (2008), no qual as entrevistas vão sendo realizadas, produzindo diferentes representações e um bom volume de dados, até que a inclusão de novos participantes não acrescente mais tantos dados inéditos ou significativamente relevantes, produzindo, em sua maioria, discursos recorrentes. Ou seja, mais entrevistas não levariam necessariamente a um entendimento mais detalhado, existindo uma confiança gradativamente crescente do pesquisador na compreensão do fenômeno à medida que vão sendo realizadas as entrevistas, dentro também do tempo disponível para tanto. Bauer e Aarts (2008) indicam que o número entre 15 e 25 entrevistas individuais é o máximo possível para uma criteriosa análise, o que está de acordo com este estudo.
Procedimentos para análise das entrevistas
Posteriormente, todo o material levantado nas entrevistas foi submetido à análise de discurso, conforme proposta por Gill (2008). Para ela, não há uma receita delimitada para tanto, mas sim etapas que podem ser mais ou menos estruturadas. Segundo a autora, o primeiro passo é a transcrição das entrevistas, a partir dos registros literais das falas. A manutenção dos registros literais das fontes no decorrer do trabalho - em vez da seleção de pequenos recortes que apenas legitimam o que diz o autor - foi uma proposta mantida nesta pesquisa, baseada na ideia de que o registro literal indica confiabilidade, como afirmam Gaskell e Bauer (2008), já que dão margem para diferentes interpretações, permitindo ao leitor que aceite ou refute os pontos de vistas explorados.
Após a primeira parte, Gill (2008) relata que se inicia a análise propriamente dita, por meio de uma leitura que seja capaz de tornar o familiar estranho, a partir de um espírito cético, atento ao contraditório e ao detalhe. Feito isso, passa-se à codificação, em um movimento de mergulho no material que, dessa vez, torne o conteúdo familiar, para que seja possível a organização em campos temáticos, mais gerais no início. Em seguida, acontece uma análise mais profunda, em que se refinam as primeiras análises. Embora o material seja categorizado, não significa que ele não suporte contradições e fragmentos. Pelo contrário, já que as representações sociais são totalmente afeitas à ambivalência.
Vale lembrar que a análise de discurso é uma maneira de ler o texto, existindo outras. A partir dela se tem uma interpretação cuidadosa do material, sendo que a validade reside na descrição minuciosa e honesta do pesquisador sobre seus passos, como se tenta fazer aqui.
Resultados
Os resultados estão organizados em três campos temáticos, que têm como sentidos centrais, respectivamente, a solidariedade, a resiliência e a potência de vida. Eles foram construídos a partir das categorias produzidas na pesquisa, estruturadas a partir da teoria das representações sociais (RS). Conforme Jovchelovitch (2008), as RS são produzidas no cotidiano. Sendo assim, as RS dos(as) psicólogos(as) sobre os(as) usuários(as) do Cras se formam mesmo no contato com eles(as), no dia a dia do serviço, na experiência da vida vivida. São essas representações que emergiram da pesquisa, permitindo a construção de um grande campo de sentidos demarcadamente positivo sobre os usuários (embora também coexistam campos com sentidos negativos), que vê nos(as) usuários(as) potencialidades no enfrentamento do cotidiano adverso e das vulnerabilidades sociais que enfrentam.
Em relação aos campos temáticos, o primeiro destaca a solidariedade e o apoio mútuo existente entre os(as) usuários(as), que mesmo vivendo em contextos vulneráveis ajudam muito uns aos outros. O segundo aborda a resiliência dos(as) usuários(as), que resistem e conseguem superar situações de vida adversas. Por fim, são apresentados aspectos dos(as) usuários(as) que remetem à força de vontade e à potência de vida, já que são pessoas capazes de se movimentarem em busca de outras condições de vida.
"Eles conseguem se ajudar": relações de solidariedade
Nesse primeiro campo temático, as psicólogas entrevistadas destacam o sentimento comunitário compartilhado pelos(as) usuários(as), que faz com que se interessem uns pelos outros, organizados(as) em gerar esse apoio mútuo, como destacam as seguintes falas:
E uma coisa bem interessante que tem nesse público assim é que eles conseguem se ajudar com coisas muito básicas assim. "Eu não tenho arroz, mas meu vizinho que tem tão pouco quanto eu me ajuda". Então são coisas que eles, entre eles né, se ajudam de alguma forma assim. E se uma ganha alguma coisa, já fala para a outra e a outra vem buscar. (P4)
Ou ainda:
Muitas famílias, um amor assim pelos outros, que tu vê assim, "ah o fulano não está bem, quem sabe tu não vai lá conversar com o fulano, vai faz uma visita". [...] Pessoas assim como se fossem mobilizadores, sabe? Então tem uma coisa acontecendo lá e eles vêm "ah fulano não tá bem, que tu pode fazer"? (P15)
Observa-se nos sentidos produzidos pelas falas que a solidariedade é um elemento bastante presente no mundo da vida dos(as) usuários(as), já que é comum que se ajudem e contem uns(umas) com os(as) outras(as), mesmo que todos(as) vivenciem de algum modo situações de vulnerabilidade. Isso causa até espanto entre as profissionais, pois mesmo em situação difícil, em casos de extrema pobreza, na qual não é fácil nem manter a si próprio, ainda assim procuram dar suporte e assistência a amigos e vizinhos, perpassando a ideia de existência de valores comunitários que surpreendem as entrevistadas.
Muitas vezes pessoas assim que não têm recursos na hora, que acontece certas tragédias, eles se ajudam né, então tem essa característica também, núcleo de vizinhos, do bairro. Não é uma coisa geral, mas em alguns pontos tu vê isso aí, que eu acho muito positivo. Esses tempos, no serviço de convivência e fortalecimento de vínculos, a mãe com deficiência né, a tia, irmã da mãe, não queria assumir as crianças e quem foi lá assumir foi uma vizinha. Então isso aí na verdade chega a ser até nobre, uma vizinha carente ajudando porque a outra precisa, enfim. Então tu vê a rede de apoio funcionando, da vizinhança, tanto que às vezes é a vizinhança que denuncia certas questões. (P19)
Talvez seja nesse campo temático que fique mais evidente o quanto os(as) usuários(as) do Cras e da assistência social compartilham, de fato, valores mais relacionais.
A gente vê que algumas comunidades têm a união, têm aquele cuidado com o filho do outro, têm alguns núcleos que têm isso ainda. Então é isso que a gente está buscando, este sentimento comunitário. [...] Que essas questões comunitárias possam ser ampliadas como algo positivo. Acontece alguma coisa e eu tenho ainda com quem contar. (P13)
Por isso, pode-se dizer que esses sujeitos formam, de fato, na perspectiva de Guareschi (2004), uma comunidade, pois o que constitui verdadeiramente um grupo de pessoas é a existência de relações entre seus membros, como ocorre com esses sujeitos.
Além disso, em tempos de "falta de ética" - aliás, a inexistência de ética só seria hipoteticamente possível se alguém vivesse sozinho, porém, como o ser humano vive em sociedade, é impossível não ser ético, e o que há é uma boa ou uma má ética -, a dimensão relacional abre a possibilidade de inclusão do outro e, sendo ética a relação, ela só é possível em relação aos outros. Ou seja, em relações de solidariedade, mesmo que não garantida, a possibilidade de uma boa ética está sempre potencialmente presente, pois de antemão já considera a perspectiva do outro, mostrando que nesse cenário existem muitos elementos daquilo que Guareschi (2004) define como cosmovisão comunitarista solidária. Assim, pode-se concluir que essa é uma visão de mundo que está presente entre os(as) usuários(as), mas que também é compartilhada por várias entrevistadas, na medida em que reconhecem essa perspectiva relacional como existente, difundida socialmente e que compõe o tecido social.
Quanto aos cuidados com essa dimensão solidária, dois pontos podem ser considerados. O primeiro é que a ideia de apoio mútuo não pode substituir a proteção e a garantia de direitos do Estado. Por conseguirem se auxiliarem, não quer dizer que essas pessoas têm suas necessidades mínimas atendidas. Ao contrário, convivem diariamente com a violação de seus direitos. O segundo ponto tem a ver com as orientações da política de assistência social, que em muitos de seus documentos e orientações reforça a importância do fortalecimento de vínculos comunitários e familiares, pressupondo assim que estes seriam frágeis ou inadequados, como bem discutem Rodrigues, Guareschi e Cruz (2013). Porém, nesta pesquisa, essas pré-concepções que se subentendem dos documentos do Suas não se confirmam, pelo contrário. Por isso, deve-se cuidar para que o trabalho no Cras - especialmente para a Psicologia - não seja o de ajustar ou normatizar a vida desses sujeitos em modelos supostamente ideais, mas sim considerar os modos múltiplos de subjetividade, relação e apoio que esses sujeitos conseguem estabelecer entre si.
"Apesar de todo o sofrimento, vão se virando": relações de resiliência
O conceito de resiliência, na Psicologia, significa a capacidade de enfrentar e superar adversidades com relativo êxito. Parece haver certo consenso que se trata de um fenômeno complexo, que envolve fatores de risco e proteção, não sendo um atributo estático, individual ou de personalidade, mas dinâmico e variável, correspondente à relação estabelecida entre os sujeitos ou grupos e as adversidades (Pinheiro, 2004; Brandão, Mahfoud & Gianordoli-Nascimento, 2011). Nesse campo temático, algumas psicólogas entrevistadas caracterizam os(as) usuários(as) do Cras como resilientes, na medida em que possuem boa capacidade de resistir e superar adversidades, o que em alguns casos é apontado como um exemplo de vida para elas próprias, como exemplificam as duas falas a seguir.
Alguns até espantosamente eu vejo resiliência neles. Não todos, mas alguns são resilientes, porque apesar de todo o sofrimento, com formas básicas, como vender verduras, vender aipim, fazem cursos, ou aqui, ou às vezes já tem um trabalho de fazer chinelas, sapatos, então vão se virando, né, vão aprendendo, e nesse sentido têm uma força interior, alguns [...]. Muitas mulheres são as que trabalham. Tu vê algumas resiliências, algumas que conseguem lidar sozinhas com a família, muitas vezes perpassando toda a questão de violência. (P19)
Eu te digo assim que eles dão lição de vida pra gente, né. Porque quando eu vim trabalhar no Cras, eu que não conhecia a assistência social, né, tinha uma imagem de que eram pobres coitados, como é que vai se virar, sabe essa coisa mais pra esse lado assim, e eu percebi que eles te dão uma lição de vida, que eles te ensinam. Logo que eu entrei aqui eu comecei a trabalhar com mães que têm filhos com deficiência e eu vi que elas davam uma lição. Eu achei que ia ser um grupo em que todo tempo iriam chorar, reclamar da vida, e eu cheguei aqui e vi uma coisa totalmente ao contrário. Elas é que te dizem "não, não pode ser assim, bola pra frente". Então eu vejo assim que elas não só com aquela questão de sobreviver no meio da pobreza sabe, elas já criaram maneiras de desviar da falta de dinheiro, elas são bastante apegadas aos filhos, mesmo com todos esses problemas, elas gostam de levar na escola, de buscar. Então eu vejo que por esse lado assim elas me ensinam muito. (P5)
Nessas falas, percebe-se que a resiliência parece ser um elemento a ser destacado devido à interação entre os fatores de risco e os fatores de proteção, como mencionado na definição do conceito. As pessoas que acessam o Cras parecem estar expostas bem mais aos fatores de risco, devido ao contexto de vulnerabilidade e aos diversos fatores negativos associados a ele, que criam e potencializam inúmeros problemas - sofrimento, violência, não acesso a direitos, etc. -, mas que, mesmo assim, não são suficientes para "destruir" totalmente esses sujeitos, visto que enfrentam essas adversidades e conseguem até superá-las exitosamente, de maneira considerada exemplar pelas entrevistadas.
E o mais interessante, engendrando os sentidos deste campo temático ao anterior, é que os(as) usuários(as) não parecem fazer isso sozinhos(as), mas sim se ajudando mutuamente, em vez de apenas competir, como manda o ideal liberal individual.
Essa força dessas mulheres assim, que chegam até a gente, que uma estimula a outra, que daqui a pouco estão ali com uma analfabeta, mas que daí uma diz que fez o EJA, que conseguiu cuidar de todos aqueles filhos e que ainda faz festa. Eu acho que é uma coisa dessas mulheres, jovens [...] geração de 20, 30, 40, realmente assim admirável. (P11)
São pessoas que parecem valorizar, sobretudo, as outras pessoas, mostrando como a resiliência também pode ser compreendida numa perspectiva relacional, mais potente, na medida em que é socialmente construída e compartilhada.
Assim, o que parece ser central neste item do trabalho é a existência de adversidades específicas e ações de enfrentamento - inclusive conjuntamente - a elas, caracterização essa importante para que se avance para o terceiro campo.
"Eles dão o primeiro passo": potência de vida
Outra representação bastante difundida sobre os(as) usuários(as) se refere a um sentido de potência de vida, isto é, uma força de vontade que impulsiona essas pessoas a se motivarem, agirem e enfrentarem seus problemas: "Eles têm uma capacidade, uma plasticidade de mudar, de melhorar, de crescer, que muitas vezes eles mesmos não acreditam que têm essa capacidade. Então isso eu vejo como um ponto positivo" (P20).
O conceito de potência de vida pode ser entendido como uma força que se afirma na contramão da desqualificação da vida (Machado & Lavrador, 2009), no sentido de potencialidade exposto pelos próprios documentos da assistência social (MDS, 2004) e Cras (MDS, 2009), os quais enfatizam que, apesar dos problemas enfrentados pelos(as) usuários(as) em função do contexto de vulnerabilidade social em que vivem, muitas também são as possibilidades desses sujeitos e territórios.
A força de vontade que alguns apresentam, né, eles pedem ajuda, eles querem muitas vezes modificar, saber que caminho utilizar. Eles têm essa vontade assim de sair daquela situação, pelo menos demonstram interesse em vir, procurar, pedir ajuda. Acho que isso é positivo, porque no momento em que eles percebem que aquilo não está bom e querem modificar já é meio passo, meio caminho pra conseguir reverter. (P21)
Esta categoria, embora parecida, se diferencia da anterior porque, enquanto lá é possível notar a existência de situações adversas que os sujeitos têm de enfrentar, nesse campo - embora não se possa descartar que também existam adversidades - considera-se que os sentidos parecem evidenciar muito mais uma potência de vida relacionada não só à superação das adversidades existentes, mas, para além disso, à construção de outras possibilidades de subjetivação e existência que estão aquém dos problemas vividos no cotidiano, como simbolizam os discursos de quatro diferentes participantes desta pesquisa: "Têm aqueles que te dão um ânimo, né? Tem usuários que são muito implicados, a gente tem mulheres que, bom, são poucas, mas as que estão aí são superengajadas, elas querem buscar, elas têm um desejo grande assim" (P10); "Acho que é força de vontade. [...] O resto vem de longe, como eu te falei, né, por vezes vem a pé de onde estão e são assíduas, sabe? Então eles têm bastante força de vontade, de estar conseguindo desenvolver bastantes potencialidades" (P5); "Eu acredito muito assim: esses benefícios que são oferecidos pelo Governo, pra muitas pessoas, eles são vistos como uma mola propulsora, né, do tipo 'ah vou buscar algo melhor pra mim'" (P7); e, por fim:
Uma coisa muito positiva assim é que os usuários, na medida em que eles estão tendo acesso aos serviços, aos direitos, a gente vê que eles não estão nessa vida porque eles querem, sabe? Eles realmente têm vontade de superar, têm motivação. [...] Elas entram, elas se abrem pra esse processo de mudança. (P2)
Compreende-se que essas falas, para além de apresentarem adversidades e modos de enfrentamento, mostram que muitas entrevistadas também percebem os movimentos desses sujeitos como uma busca por outras condições de vida, sejam elas quais forem, acreditando assim nas potencialidades dos(as) usuários(as).
Para Yazbek (1993), os pobres, os ditos desorganizados, também pensam, sonham, negam e aceitam sua condição, com uma resistência que é maior que a desesperança, embora seja fragmentada, episódica, mas que mostra aquilo que ela chama de "subalternidade inconformada" à exploração e à exclusão social, econômica e política, que mantém os sujeitos mobilizados para alterar uma condição histórica forjada pelo populismo e clientelismo baseados na bondade dos governantes e não na dignidade do cidadão.
Para Lasta, Guareschi e Cruz (2012), entre os desafios da Psicologia no Cras está a capacidade de poder pensar o sujeito psicológico para além de alguém a ser normalizado e institucionalizado pela política de assistência social, "sujeitos apropriados ao Estado" (p. 64) e definidos somente pela vulnerabilidade e pobreza, mas vistos como sujeitos potenciais, nos quais também existe vida, contradições, passividades e resistências. Isto é, que diferentes olhares possam ser lançados, capazes de ir para além de condições de carência e impossibilidades, mas que se interessem pela produção de possibilidades.
Tem muitos que mostram pra gente a força de vontade, sabe? Tem gente que agora mesmo que está frio, que vem sabe, vem "ah eu quero aprender, eu quero sair dessa situação". Tem muita gente que tem essa força de vontade. Eu acho que a coisa que a gente mais consegue perceber deles é essa força de vontade sabe. (P15)
Uma consideração importante a ser feita é que o combate à desigualdade social não se dá apenas pelo fomento de potencialidades individuais ou familiares, isto é, deve haver certo cuidado no entendimento deste campo temático, na medida em que ele evidencia potências de vida, mas que não significam que sejam suficientes para a superação de desigualdades, já que essas são resultados de processos sociais amplos, próprios ao capitalismo, como indicam Couto, Yazbek e Raichelis (2010). O que se pode, como mostra Sawaia (2012), é acreditar na potencialidade dos sujeitos em lutar contra determinadas condições de vida, resgatando-os das análises econômicas e políticas, pois, embora a desigualdade tenha certamente uma dimensão objetiva, inclui também uma perspectiva subjetiva, que é a das vivências, tanto do sofrimento como das potencialidades. Em outras palavras, o sujeito pode sofrer socialmente, mas também tem potencialidades de vida que o ajudam a enfrentar e superar certas situações, mesmo que estas não se originem nele.
Portanto, reitera-se aqui o quanto o Suas pode ser definido como uma estratégia de promoção da vida, pois busca estar conectado aos sujeitos e territórios. Ou seja, uma política que pretende não só ver as dificuldades, mas, para além disso, também as possibilidades na construção e invenção de outros/novos caminhos para uma vida mais digna. Para isso, é importante que a Psicologia possa permanentemente desnaturalizar certos preconceitos, sendo possível assim ver potencialidades onde comumente só se veriam problemas.
Considerações finais
Neste artigo foi possível apresentar e problematizar a existência de uma representação social relacional, engendrada a partir de um entendimento social amplo, em que é dado destaque para as potencialidades dos(as) usuários(as), em contraponto às visões culpabilizadoras e individualistas que também coexistam no campo da assistência social, a partir de três dimensões: solidariedade, resiliência e potência de vida.
Ao abrir espaço para a perspectiva relacional, a própria Psicologia passa a incluir a dimensão do outro, ou seja, a dimensão ético-política. Assim, em vez de práticas agenciadoras de subjetividades, pode-se ter uma Psicologia questionadora de suas próprias concepções e ações, vendo nos(as) usuários(as) possibilidades de ação e de vida, e não só vulnerabilidades.
Com isso, a Psicologia pode assumir o compromisso social de uma prática comprometida com a realidade do país, na defesa dos direitos e da emancipação humana, propondo ações a partir de compreensões críticas sobre aspectos sociais, econômicos, culturais e políticos (CFP, 2008). Essa perspectiva é reiterada por alguns autores. Yazbek (1993), por exemplo, aposta na criação de condições para que os(as) usuários(as) se constituam como sujeitos, não reduzidos ao direito à assistência, mas sim ao trabalho e a outros direitos garantidores de uma vida digna. Em relação a essa ideia, Susin e Poli (2012) trazem uma interessante problematização, ao propor a possibilidade de passagem do termo usuário(a), sobre o qual se entende um(a) destinatário(a) das políticas públicas, para o termo sujeito, que abrange a ideia de pessoas com voz e subjetividade próprias. Esse sujeito, mesmo "carregado" de significantes que o representam, nunca pode ser definido por completo. Ou seja, possui sempre um espaço potencial, não se deixando limitar nem se enquadrar em determinados estereótipos, aberto sempre a possibilidades.
A concepção relacional tem a ver também com as próprias definições da Política Nacional de Assistência Social (MDS, 2004). Logo no seu início, há a adoção da proposta de "uma visão social inovadora [...] pautada na dimensão ética de incluir 'os invisíveis', os transformados em casos individuais, enquanto de fato são parte de uma situação social coletiva" (p. 10), o que demonstra o quanto o texto pactua com os sentidos expostos neste trabalho. Em outra passagem, fica definido que seu objetivo é combater situações de fragilidades e riscos, ao mesmo tempo em que se valorizam as potencialidades para o desenvolvimento humano e social dessas famílias e comunidades, ou seja, abordando não só os problemas, mas também valorizando os aspectos positivos e possibilidades dos(as) usuários(as) entendidos como sujeitos.
Assim, o que se conclui é que, ao adotar uma perspectiva representacional relacional, os(as) profissionais parecem desenvolver aquilo que Yazbek (1993) define como assistência como "espaço de resgate do protagonismo dos subalternizados" (p. 54), que consiste no reconhecimento de que as ações assistenciais podem se constituir em estratégias para a garantia de direitos sociais dessa população, especialmente quando se aposta nas potencialidades. Nesse sentido, segue a autora, a assistência é "possibilidade de reconhecimento público da legitimidade das demandas dos subalternos e espaço de ampliação de seu protagonismo como sujeito" (p. 55). Portanto, se há, de um lado, uma maciça disseminação na sociedade de uma ideologia individualista, que atribui a culpa pela própria situação de vida aos indivíduos e suas inadequações, há, por outro, uma dimensão representacional que aposta no potencial relacional, em um entendimento ampliado das questões sociais.
Isso evidencia o quanto existem modos diferentes de se operacionalizar a Psicologia no mundo da vida cotidiana, o que acaba dependendo em grande parte das representações sociais adotadas e compartilhadas pelos(as) profissionais. Assim, tem-se tanto uma Psicologia que individualiza, culpabiliza e visa o ajustamento e a normatização dos(as) usuários(as), quanto uma Psicologia que aposta nas relações, nos aspectos positivos e na potência de vida desses sujeitos. Quando se entende o ser humano a partir das milhares de relações que estabelece, abre-se espaço para a inclusão das dimensões ética e política, por vezes minimizadas ou excluídas do escopo da Psicologia, mas que parecem ser vias importantes para o desenvolvimento de uma perspectiva que defende a garantia integral dos direitos dos(as) usuários(as) da assistência social.
Como limitação do artigo, deve-se admitir que os fenômenos representacionais são muito mais complexos do que o objeto de pesquisa construído a partir deles. Conforme Sá (1998), isso significa que necessariamente há uma simplificação quando passamos do fenômeno ao objeto de pesquisa, processo parecido que ocorre na formação das representações sociais, já que essas são também uma forma de simplificação da realidade, na medida em que funcionam como espécies de teorias. É justamente isso que torna possível a organização dos fenômenos e sua inteligibilidade, o que é crucial para a finalidade de pesquisa. Assim, quando se pesquisa no campo das representações sociais, o que se faz é uma aproximação da "realidade" estudada. Neste caso, ao se buscar que representações os(as) psicólogos(as) que atuam em Cras possuem sobre os(as) usuários(as) desse serviço, mais do que uma "definição" sobre quem são esses sujeitos, há uma elucidação também sobre quem são esses(as) profissionais(as), que representações possuem e o quanto isso provavelmente embasa suas ações nos locais de trabalho. Ou seja, ao se pesquisar sobre quem são os(as) usuários(as), pesquisa-se também quem são os(as) profissionais, e o quanto suas representações sustentam suas práticas, definem sua identidade e seus comportamentos, e, o mais importante, condicionam modos diversos de se fazer Psicologia na política de assistência social.
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Recebido em 20/02/2016
Aprovado em 13/10/2017