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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.4 São João del-Rei oct./dez. 2020
Formação acadêmica e atuação do psicólogo nos Centros de Referência de Assistência Social
Academic formation and psychologist´s performance within the Social Assistance Centers
Formación académica y actuación del psicólogo en los Centros de Referencia de Asistencia Social
Amanda Carollo Ramos da SilvaI; Luciana AlbaneseII
IMestra em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Dinâmica dos Grupos pela Sociedade Brasileira de Dinâmica de Grupos. Psicóloga graduada pela Universidade Estadual de Londrina
IIDoutora e pós-doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). Mestra em Psicologia Social. Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Paraná. Professora titular aposentada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná
RESUMO
Este artigo investigou relações entre formação acadêmica em Psicologia e demandas de trabalho de psicólogos na Assistência Social. Desenvolveu-se revisão de literatura sobre o histórico da Psicologia no Brasil, a formação acadêmica e a atuação do psicólogo na Assistência Social e resgataram-se resultados de uma pesquisa realizada com profissionais de Centros de Referência de Assistência Social (Cras). Os materiais analisados foram produzidos a partir de um grupo de reflexão e examinados segundo o referencial da Análise Institucional do Discurso. Evidenciou-se estar a Psicologia em fase de construção de sua prática nessa política, pautando-se ainda em modelos utilizados em outros contextos - particularmente, o clínico. Tal fato sinaliza o descompasso vigente entre formação acadêmica, demandas concretas e desafios nesse campo. Torna-se importante, então, proceder a revisões curriculares articulando teoria e prática, ampliar a discussão sobre atuação interdisciplinar e redimensionar o conceito de subjetividade, com vistas a ratificar a posição da Psicologia como ciência e profissão comprometida com questões sociais.
Palavras-chave: Psicologia Social. Assistência Social. Formação do psicólogo.
ABSTRACT
This article investigated the relationship between academic formation in Psychology and work demands in Social Assistance. It was presented a literature review about Psychology history in Brazil, academic formation and performance of psychologists in Social Assistance. It was also presented results from a research developed with professionals that work at CRAS. The research data were produced from a reflection group and the speeches were analyzed according to the Institutional Discourse Analysis. It was revealed that Psychology is building its professional practice in Social Assistance. Professionals are still guided by models from other contexts, especially the Clinical. These facts indicate a gap between academic formation, concrete demands and challenges in this field. It becomes important to proceed the curriculum review, connecting theory and practice, increase the discussion about interdisciplinary performance and reset the subjectivity concept, in order to ratify the Psychology position as a science and profession committed to social issues.
Keywords: Social Psychology. Social Assistance. Psychologist formation.
RESUMEN
Este artículo investigó las relaciones entre formación académica en Psicología y demandas de trabajo de psicólogos en la Asistencia Social. Se presenta una literaria de historia de Psicología brasileña, formación académica, actuación del psicólogo en Asistencia Social y algunos resultados de una encuesta realizada con profesionales que trabajan en CRAS. Los materiales analizados fueron producidos en un grupo de reflexión y los discursos analizados siguen el marco del Análisis Institucional del Discurso. Se evidenció que la Psicología atraviesa una etapa de construcción de su práctica profesional en este campo, basándose en modelos de otros contextos. Este hecho señala el desajuste entre formación académica, demandas encontradas y desafíos del área. Este estudio evidencia la importancia de revisión curricular para articular teoría y práctica, ampliar la discusión de la actuación interdisciplinar y reajustar el concepto de subjetividad, confirmando la posición de la Psicología como ciencia y profesión comprometida con el ámbito social.
Palabras-clave: Psicología Social. Asistencia Social. Formación del psicólogo.
Introdução
Os psicólogos, cada vez mais, têm ampliado os campos de sua atuação, deixando de atuar unicamente nos espaços em que historicamente vinham se inserindo - clínica, escola e organizações. A implantação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), em 2005, e a publicação da Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (NOB-RH/Suas), em 2007, foram os marcos da entrada do profissional na área da Assistência Social (Brasil, 2005b, 2007). A partir de então, o psicólogo passou, formalmente, a compor as equipes técnicas dos serviços ofertados pela Política de Assistência Social. A abertura desse campo para a Psicologia trouxe um novo cenário para os profissionais, que passaram a atuar em uma área até então pouco explorada, com referências técnicas e práticas diversas das usuais.
O papel do psicólogo no Suas está em construção. Diferentemente da prática clínica, em que o trabalho é comumente individual e particularizado, na política de Assistência Social, o psicólogo tem como principal atuação o acompanhamento psicossocial de famílias (orientação, encaminhamentos, cadastro em programas sociais, visitas domiciliares, entre outros). Outra diferença marcante entre as duas práticas é a clientela. Enquanto a Psicologia Clínica ainda se volta para um público com maior poder aquisitivo, no Suas, o psicólogo lida com usuários1 que estão em situação de vulnerabilidade social, decorrente da pobreza e da fragilização de vínculos e pertencimento social. As demandas subjetivas com que se depara são complexas - as questões a serem trabalhadas esbarram nos aspectos material, educacional e habitacional - e exigem do profissional uma intervenção fora do escopo da clínica tradicional.
A legislação e documentos publicados pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e pelos Conselhos Profissionais orientam o trabalho, mas não estabelecem diferenças entre a atuação do psicólogo e a do assistente social - ambos os profissionais são enunciados como técnicos de nível superior. Apesar de não haver distinção definida, para a Psicologia, em geral, "direcionam-se demandas que dizem respeito às questões emocionais e às relações familiares, ficando para o serviço social as questões de encaminhamentos, acesso e orientações sobre direitos, benefícios e documentos" (Andrade & Romagnolis, 2010, p. 612).
A ideia popular a respeito da atuação do psicólogo é a de que o profissional faz psicoterapia e aplica testes. Na Política de Assistência Social, tais atividades não são previstas. Segundo Yamamoto e Oliveira (2010), a atuação do psicólogo no Suas exige a criação de novos conhecimentos e novas posturas para lidar com o contexto em que está inserido. A Psicologia, de acordo com tais autores, deve ajustar-se para que o trabalho nessa política adquira as especificidades necessárias e se diferencie da atuação em outros campos. No entanto, como não há um direcionamento claro do fazer da Psicologia na Assistência Social, o profissional faz uso da prática que supostamente tenha melhor domínio (Macedo et al., 2011)
A construção da imagem que os profissionais configuram de si pode ser entendida como um processo que envolve não apenas a atuação, o fazer cotidiano, mas também a formação acadêmica e a representação social da profissão. Tendo isso em vista, o objetivo deste artigo consiste em evidenciar, no discurso de psicólogos inseridos em Centros de Referência de Assistência Social (Cras), as relações estabelecidas entre a atuação profissional e a formação acadêmica em Psicologia. Os psicólogos saem das universidades percebendo-se preparados para atuar na Assistência Social? De que modo a graduação influencia o trabalho e a escolha do profissional pelo Suas? Como reconhecem e operacionalizam seu papel nessa área?
Na intenção de refletir sobre essas questões, apresenta-se um breve histórico da Psicologia no Brasil, estudos sobre a formação acadêmica e a atuação do psicólogo na Assistência Social. Na sequência, apresentam-se alguns resultados, pertinentes a essa temática, de uma pesquisa realizada com profissionais que atuam em Cras em uma capital da região Sul do Brasil. Espera-se, como contribuição, promover a discussão sobre a formação profissional e fomentar reflexões sobre a atuação do psicólogo em contextos diversos dos usuais, especialmente nos quais a interdisciplinaridade é premissa.
De uma Psicologia elitista e individual rumo a uma Psicologia voltada ao compromisso social: breve histórico da Psicologia e formação acadêmica
A Psicologia foi regulamentada como profissão em 1962. Dois anos depois foi sancionada lei regulamentar atribuindo funções específicas para a categoria, entre elas: diagnóstico psicológico, orientação e seleção profissional, orientação psicopedagógica e solução de problemas de ajustamento. O psicólogo também poderia atuar na direção de serviços de Psicologia em órgãos públicos ou privados ou na assessoria técnica destes, na docência de disciplinas de Psicologia, na supervisão de profissionais e discentes, realização de perícias e pareceres psicológicos (Souza, 2011).
Naquele mesmo ano, 1964, instalou-se no Brasil a ditadura militar e esse fato histórico "rebateu no processo de formação e exercício profissional e impediu que a temática social fosse inserida nos currículos" (CFP, Cfess, 2007, p. 20). A história da Psicologia foi marcada por despolitização, alienação e elitismo, o que favoreceu a configuração da imagem do psicólogo que "só faz Psicoterapia". O psicoterapeuta, realizando um trabalho individual, na clínica, não seria "ameaçador", considerando o contexto político vivenciado no período. Segundo Souza (2011), a produção de conhecimento e a construção das ciências sempre estiveram submissas à política, à ideologia e à economia. Com a Psicologia não foi diferente. Ao psicólogo cabia a clínica individual, avaliação psicológica, acompanhamento de dificuldades escolares e atividades de consultoria e recrutamento e seleção. Adequava-se, assim, às necessidades políticas vigentes (Scarparo & Guareschi, 2007).
Segundo Bock (2009), a Psicologia pouco tem contribuído na transformação das condições de vida desiguais do Brasil. A tradição dessa ciência é marcada pelo compromisso com o interesse das elites, sendo uma profissão voltada "para o controle, a categorização e a diferenciação" (Bock, 2009, p. 16). A Psicologia se instituiu como uma ciência e profissão conservadoras isenta de um debate de transformação social. De acordo com Furtado (apud Bock, 2009), o conhecimento psicológico não é colocado a serviço de uma mudança social.
Fazendo um resgate histórico da Psicologia no país, desde a colonização do Brasil, as ideias psicológicas emergentes (produzidas pela Igreja e por intelectuais) tinham o caráter de controle de comportamentos e de condutas morais: o domínio dos indígenas; o controle das mulheres e das crianças. No século XIX, com a mudança de Colônia para Império, também houve a mudança do interesse aos quais as ideias psicológicas atendiam: a higienização da sociedade, isso porque objetiva-se um coletivo livre de desvios e desordem (Bock, 2009). Já no século XX, com a industrialização, a Psicologia foi requerida para a seleção de trabalhadores e, com as guerras, para o desenvolvimento de testes psicológicos. No âmbito da Educação, surgiram teorias do desenvolvimento, que embasavam o trabalho pedagógico (Bock, 2009).
O recorte histórico, aqui apresentado, reflete como aconteceu o desenvolvimento da Psicologia como uma ciência e profissão voltada para controlar, higienizar e categorizar. Somente na década de 1970 têm-se os primeiros registros do uso da Psicologia em comunidades. E, a partir do final dos anos 1980, com a entrada do psicólogo no serviço público de saúde, é que este passou a se voltar a um projeto de compromisso social. De acordo com Amendola (2014), a transferência de psicólogos dos consultórios para outros segmentos de atendimento à população, como o terceiro setor e o serviço público, ocorreu, entre outros fatores, devido à restrição do mercado psicológico privado e ao aumento de profissionais disponíveis. Por ser relativamente recente, o debate da relação entre Psicologia e Políticas Públicas precisa ainda avançar - - a própria graduação em Psicologia deixa a desejar nesse quesito. A formação do psicólogo ainda é distante da realidade brasileira: não há uma formação sólida em Psicologia Social (Calegare, 2010) e existem poucos projetos de extensão que aproximem a Psicologia das comunidades (Guedes et al., 2009).
De acordo com Dimenstein (2000), os cursos de Psicologia negligenciam o conhecimento de aspectos sociais, históricos, políticos e ideológicos, que definem tanto a prática do psicólogo quanto a realidade em que atuam. O estudante, assim, tem uma formação profissional acrítica e apolítica, próxima aos valores hegemônicos da ideologia individualista e distante do social. Os currículos privilegiam o modelo clínico liberal e a psicoterapia individual, limitando o entendimento do que é a atuação do psicólogo e a representação que a sociedade tem do profissional. Esse fato "[...] constitui num entrave para o exercício de atividades em novas áreas que envolvem atividades para as quais o psicólogo não foi preparado [...]" (Dimenstein, 2000, p. 104), sendo assim, os profissionais, em sua maioria, reproduzem acriticamente métodos e procedimentos.
Fica evidente o descompasso entre formação e atuação de psicólogos nos diversos contextos, posto que os profissionais são formados e ficam restritos a modelos descontextualizados - isto é, independentemente do ambiente do trabalho, o psicólogo leva consigo o atendimento clínico e individual como modelo de atuação (Scarparo & Guareschi, 2007). Souza (2011) afirma não ser necessário rejeitar a clínica, mas superar o olhar individual, incluindo a concepção social na formação dos profissionais.
Para Martínez (apud Bock, 2009), algumas características importantes para atuar como psicólogo são: sensibilidade humana e social, sentido de justiça, solidariedade e capacidade de assumir posições. A formação acadêmica, no entanto, preocupa-se com a apropriação de conteúdos curriculares e habilidades, e pouco com a formação do psicólogo como sujeito, uma vez que, na academia, em geral, não se utilizam estratégias que promovam o desenvolvimento de recursos subjetivos para uma prática socialmente comprometida (Bock, 2009).
Há a valorização do psicólogo enquanto profissional liberal e autônomo, e essas características definem a profissão para o público externo (Dimenstein, 2000), por isso, e pelas razões já citadas, possivelmente, o trabalho na área social não tem sido a escolha mais frequente entre os profissionais (Scarparo & Guareschi, 2007) - no entanto, é uma área que vem se ampliando e absorvendo cada vez mais psicólogos. De acordo com Reis e Guareschi (2010), os profissionais optam pelas políticas públicas mais pela dificuldade em montar e sustentar um consultório e pela escassez de vagas do que por encantamento pela atuação ou pelo real compromisso da Psicologia com o coletivo.
Ferrarini e Camargo (2012) realizaram um estudo com estudantes de graduação a fim de investigar os sentidos da Psicologia. Para os futuros profissionais, há uma consciência da redefinição da profissão de um serviço centrado em atendimento individual para a atuação em outros contextos, como escola, organizações e comunidades. O psicólogo passa a ser visto intervindo em questões sociais, atuando em equipes multidisciplinares, na prevenção, e tendo como clientela a população usuária dos serviços públicos. Apesar disso, os estudantes reconheceram que a formação acadêmica não oferece subsídios para articular teoria e prática ou para a atuação no contexto social.
Percebe-se que há uma contradição entre o discurso acadêmico e a inserção profissional dos psicólogos recém-formados. Os graduandos se sentem inseguros quando têm que intervir em situações práticas e, muitas vezes, não recorrem à teoria como referência, mas sim à experiência pessoal ou ao bom-senso. Tal situação sugere que as abordagens estudadas na graduação não têm sido levadas para a prática, como orientadoras da atuação profissional (Ferrarini & Camargo, 2012), pois o curso de Psicologia tem se orientado mais para o discurso da Psicologia e pouco para o fazer da Psicologia (Ferrarini, Camargo & Bulgacov, 2014). Pela fala dos próprios graduandos, revela-se uma dúvida sobre a identidade profissional e o lugar da profissão, "ficando a impressão da Psicologia como um lugar de incertezas, como um 'lugar do não saber' e, a prática psicológica, como um 'não saber o que fazer'" (Ferrarini & Camargo, 2012, p. 717).
Nos setores públicos, a fragilidade da formação é observada. Há uma demanda de trabalho no âmbito das políticas sociais, para as quais os profissionais não se sentem preparados. A atuação só é possível se o profissional for receptivo a outros saberes, aos imprevistos e à aprendizagem continuada. É necessário deixar os modelos convencionais de atuação, transformando as práticas unidisciplinares em relações interdisciplinares. Assim, o profissional "assume autoria da construção da sua prática profissional, revisando conceitos e marcas identitárias" (Scarparo & Guareschi, 2007, p. 107).
Enfim, o histórico da Psicologia a fez uma ciência direcionada para a clínica individual e pouco voltada para o social. Apesar de as demandas de trabalho estarem reconfigurando as práticas, grande parte dos cursos de Psicologia mantém uma estrutura curricular tradicional (Calegare, 2010), assim, os profissionais sentem-se despreparados e questionam sua posição nas instituições.
Um desses novos campos de atuação demandados ao psicólogo é a Assistência Social. A seguir será abordada a prática do profissional de Psicologia em Centros de Referência de Assistência Social (Cras), um dos equipamentos executores dessa Política Pública.
Atuação do psicólogo na Assistência Social
Na Política de Assistência Social, de acordo com as Referências Técnicas de Atuação do(a) Psicólogo(a) no Cras/Suas, publicada em 2008 pelo Conselho Federal de Psicologia, o psicólogo "tem como finalidade básica o fortalecimento dos usuários como sujeitos de direitos e o fortalecimento das políticas públicas" (CFP, 2008, p. 22). Em seu exercício profissional no Cras, o psicólogo tem como objetivo último a prevenção de situações de risco e superação da vulnerabilidade social. Sua atuação deve ter como foco a promoção de vida, priorizando as potencialidades e valorizando os aspectos saudáveis dos usuários e do território; sem, entretanto, deixar de considerar os aspectos ligados às vulnerabilidades. A efetivação dessas premissas deve ocorrer por meio do trabalho realizado no fortalecimento dos vínculos familiares e na promoção de autonomia e empoderamento dos sujeitos, a partir da intervenção do profissional pelos serviços, programas e projetos ofertados pela Proteção Social Básica, pautados no compromisso ético e político de garantia de direitos.
O psicólogo deve propor atividades no âmbito social, pautando-se na compreensão subjetiva dos fenômenos coletivos. O profissional realiza atendimentos individuais e coletivos às famílias - a escuta qualificada às demandas dos usuários é ofertada e, a partir dela e do diagnóstico do território, é que as ações de enfrentamento às desigualdades e de fortalecimento da cidadania devem ser propostas (CFP/Cfess, 2007). O psicólogo não deve patologizar ou categorizar "as pessoas atendidas, mas buscar compreender e intervir sobre os processos e recursos psicossociais, estudando as particularidades e circunstâncias em que ocorrem" (CFP, 2008, p. 22).
Com a NOB-RH/Suas e a Resolução n. 17/2011 do Conselho Nacional de Assistência Social, fica estabelecido que psicólogos e assistentes sociais, entre outros profissionais, compõem as equipes do Suas. A previsão é que ambos trabalhem de forma conjunta, objetivando uma atuação interdisciplinar que atenda às demandas individuais e coletivas, respeitando, porém, as especificidades de cada profissão. Por outro lado, mesmo apresentando pressupostos teórico-políticos diferentes, Psicologia e Serviço Social podem dialogar de modo a se complementarem para o enfrentamento das situações cotidianas que se apresentam no exercício profissional. O CFP (2008) prevê que a relação do psicólogo "com a equipe e o usuário deve pautar-se pela parceria, pela socialização e pela construção do conhecimento, respeitando o caráter ético, conforme determina o Código de Ética Profissional do psicólogo" (CFP, 2008, p. 33).
Alguns estudos vêm focalizando a atuação do psicólogo no Suas. Araujo (2010) observou que os psicólogos atuantes nessa área percebem que suas práticas e funções ainda estão em processo de construção. Observou igualmente uma tensão entre psicólogos e assistentes sociais, ora por estes ocuparem uma posição privilegiada, restando ao psicólogo um lugar de coadjuvante no serviço, ora pelo estranhamento de quando o psicólogo assume uma atividade que idealmente seria de domínio do assistente social. Silva (2011), ao estudar a atuação do psicólogo no 3º setor, identificou que o profissional assistente social é o principal responsável pelas ações realizadas, sendo o psicólogo acionado quando aquele não consegue solucionar determinada situação. O psicólogo ocuparia, então, uma posição emergencial, sendo convocado no momento em que o assistente social não consegue, individualmente, dar encaminhamento ao caso. Ficam, pois, explicitadas a existência de um jogo de poder, no qual o assistente social seria o monopolizador das ações, dificultando a efetivação de um trabalho interdisciplinar, e a recorrência do psicólogo a modelos clínicos para atuação nesse contexto.
Os dados trazidos por Araujo (2010) e Silva (2011), de que os psicólogos estariam em uma posição preterida na atuação na Política de Assistência Social, corroboram com o ponto levantado por Souza (2011) de que a intervenção da Psicologia sempre esteve marcada por uma presença secundária e submissa, contribuindo para o trabalho de outras profissões. Oliveira, Dantas, Solon e Amorim (2011) também confirmam o dado trazido por Yamamoto, Camara, Silva e Dantas (2001) e Silva (2011) em relação à prática clínica do psicólogo no contexto da Assistência Social, sendo esta relacionada ao mesmo tempo à zona de conforto do profissional e à garantia de uma especificidade da equipe. Na pesquisa realizada com psicólogos atuantes em equipamentos da região metropolitana de Natal/RN, constatou que, embora venham executando as atividades previstas pela Política, o fazem de forma não planejada, descontínua e descontextualizada, tendo o atendimento individual como referência.
Sobral e Lima (2013), por meio de estudo realizado com psicólogos que atuam em Cras no Sergipe, apontam uma dissociação entre as práticas declaradas por esses profissionais e a imagem que se tem do que outros psicólogos fazem nesse mesmo local de trabalho. Quando falam de si, os psicólogos afirmam estar atuando conforme atividades previstas para o contexto da Assistência Social, contudo, ao falarem dos colegas que atuam em outros equipamentos, relatam que estes ainda têm um viés clínico. Foram também entrevistados usuários atendidos por psicólogos nos Cras, para os quais esses profissionais estão lá para solucionar problemas emocionais, utilizando a palavra como meio de ação: a imagem é a de um orientador ou conselheiro. Os autores concluem, portanto, que as práticas realmente efetivadas relacionam-se à representação social da profissão: há uma divergência entre o que está previsto nos manuais para atuação do psicólogo no Suas e o que dela espera a sociedade.
A pesquisa de campo
O presente estudo insere-se numa pesquisa mais ampla cujo objetivo geral foi analisar os modos de subjetivação no discurso de psicólogos atuantes em Cras, investigando que imagens de si e da prática profissional eram configuradas. O método eleito consistiu na Análise Institucional do Discurso (AID), proposta por Marlene Guirado (2010). Nessa proposta, que encontra no pensamento foucaultiano uma importante interlocução, a subjetividade é compreendida como produto de uma relação de tensão entre assujeitamento e resistência na ordem dos discursos socialmente instituídos. Para a AID, a subjetividade não constitui uma essência, e sim um efeito das relações discursivas, ou, em outras palavras, das relações de poder que se dão no discurso. Assim, mais do que se falar de um sujeito, cabe atentar aos modos de subjetivação. Compreender a subjetividade relaciona-se, pois, à forma que os sujeitos objetivados como tal apropriam-se dessa objetivação (Ribeiro apud Guirado & Lerner, 2007). Para tanto, o que o método propõe é que se atente aos jogos de relações, interlocuções e posições que se fazem ver no discurso, sem desconsiderar a implicação do próprio pesquisador nesse contexto (Valore, 2007, apud Guirado & Lerner, 2007).
Os materiais analisados foram produzidos por um grupo de reflexão em cinco encontros, dos quais participaram três psicólogas e três assistentes sociais, que atuam em Cras de uma capital da região Sul do Brasil. Apesar de o foco estar relacionado ao profissional da Psicologia, foram também convocadas assistentes sociais, pois ambos os profissionais têm atuado nas mesmas equipes e espaços. Além disso, considerando-se os pressupostos da AID, imaginou-se que o encontro discursivo entre duas categorias profissionais distintas poderia ser uma produtiva oportunidade para se investigar o objetivo proposto, na medida em que - supôs-se - o discurso do psicólogo também se afirma enquanto tal em relação (de oposição, igualdade, complementaridade, etc.) ao discurso de outros profissionais.
Os temas tratados nos encontros foram: chegada dos participantes no Suas e formação profissional; conceitos que permeiam a atuação dos técnicos nos Cras (família, empoderamento, vulnerabilidade social, interdisciplinaridade, Psicologia e Assistência Social); prática profissional de psicólogos e assistentes sociais e a relação destes com a equipe; construção da imagem de si na atuação. Cabe destacar que a pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa e todos os cuidados éticos foram tomados.
A seguir, em consonância com o propósito deste artigo, serão apresentadas as análises especificamente pertinentes à relação entre a formação acadêmica e a atuação profissional dos psicólogos participantes da pesquisa. Para tanto, selecionaram-se os extratos discursivos que melhor ilustram a temática em questão. As expressões em itálico objetivam destacar alguns trechos relevantes para a análise.
Resultados e Discussão
Sobre a relação entre a graduação em Psicologia e a atuação no Cras, uma das participantes coloca:
E [...] fica tudo muito confuso. Porque a gente aprende muito forte sobre isso [Psicologia Clínica] na faculdade e chega ali [no Cras] você tem que encaminhar, encaminhar, encaminhar... (Psicóloga 1, grifos nossos)
[...] a gente é bem pobre de Psicologia Social lá na universidade. E daí, eu acabei fazendo essa pós que me ajudou bastante, né... (Psicóloga 1, grifos nossos)
A formação acadêmica dos psicólogos, para a participante, privilegia a área clínica, sendo falha em conteúdos de Psicologia Social. E isso causa estranheza quando se parte para a atuação na área da Assistência Social, pois o que foi aprendido na faculdade não pode ser aplicado no cotidiano de trabalho. Tal fala vai ao encontro do que afirma Calegare (2010): há uma lacuna na formação em Psicologia Social nos cursos de graduação.
Ressalta-se que em ambos os trechos a participante utiliza a expressão "a gente", ou seja, não fala apenas por ela, fala pela classe dos psicólogos. Ao se posicionar, está legitimando a verdade de que psicólogos não são formados para atuar com as classes menos favorecidas. A Psicologia, profissão historicamente elitizada, é farta em conteúdos de Psicologia Clínica, e carente em assuntos de Psicologia Social. Desse modo, a formação em Psicologia Social equipara-se à sua clientela: ambas pobres.
Pesquisadora: E pensando na atuação mesmo de vocês no Cras... Quais as referências que vocês utilizam no trabalho? É... referências teóricas...
Assistente Social 1: MDS [Ministério do Desenvolvimento Social]. Cartilha.
Psicóloga 1: A primeira coisa que a gente lê é o Protocolo [do Cras] quando chega, né...
Psicóloga 2: Na verdade, pra mim foi bem difícil, né... até pela formação, pelo trabalho na saúde... É, então, assim, entender... até pela falta de experiência mesmo na área, experiência teórica mesmo. Porque, como eu disse, a gente tinha muito pouco [de Psicologia Social na faculdade]... É... Então, assim, pra mim... as primeiras questões, assim, foram pra prestação de concurso mesmo, você correndo atrás de referencial teórico pra poder dar conta daquela listinha pequena [tom irônico].
Interessante notar que as participantes citam como referência para o trabalho documentos técnicos específicos da área de Assistência Social. As psicólogas não se referem a abordagens ou teorias psicológicas, parecendo não levar em consideração as contribuições das linhas teóricas ou de outras áreas da Psicologia para os atendimentos no Cras. Esse dado corrobora com o estudo de Ferrarini e Camargo (2012) com graduandos de Psicologia: os profissionais, muitas vezes, não têm articulado as teorias estudadas na graduação com a prática profissional.
As participantes tiveram um contato mais próximo com a área social e com os referenciais teóricos nos estudos de preparação para o concurso público, por meio de pós-graduações ou na própria atuação. A busca por cursos complementares, visto como comprometimento, parece ter sido uma tentativa de suprir a falta de embasamento teórico para atuação no Suas. Conforme aponta Calegare (2010), uma boa formação, seja na graduação, seja em pós-graduações em Psicologia, propicia sustância à atuação do profissional comprometido com a transformação social. No caso das psicólogas participantes da pesquisa, foram os cursos de especialização que asseguraram uma maior segurança para a realização do trabalho no Cras.
Com relação ao ingresso na área de Assistência Social, as participantes justificam:
Pra mim foi o que surgiu. [...] tava procurando emprego e foi o primeiro que deu certo... Não conhecia muito da área... mas eu acabei gostando. (Psicóloga 1, grifos nossos)
[...] eu saí prestando todos os concursos que apareciam [...] e foi aqui me chamou. [...] eu tinha curiosidade de conhecer a cidade, e eu não conhecia, outra também de conhecer a área social, então, casou tudo e deu certo de eu vir. (Psicóloga 3, grifo nosso)
Pode-se pensar, por meio do discurso das psicólogas, que a entrada dessas profissionais na Assistência Social se deu como uma oportunidade de colocação profissional ou por curiosidade sobre a área social, e não pelo desejo genuíno de atuar na área. Tal fato também é confirmado por outra participante.
Aí, ok, fiz um concurso pra prefeitura, eu não lembro de ter feito concurso pra FAS [gestora municipal da Assistência Social]. E aí, quando a FAS me chamou, eu ainda levei um susto. A menina falou: "Você fez concurso para a FAS." E a minha primeira pergunta foi: "Fiz? Não lembro". Eu não lembro de ter feito este concurso. Enfim, daí eu fui pra FAS. (Psicóloga 2)
A participante coloca-se numa posição de não escolha pela Assistência Social, A escolha foi pela prefeitura. De acordo com Scarparo e Guareschi (2007) e Reis e Guareschi (2010), a área social está se ampliando e absorvendo psicólogos, apesar de não ser a opção mais desejada entre os profissionais. Isso pode ser identificado no discurso das participantes, que ingressaram na Assistência Social não necessariamente em razão de um compromisso de transformação social, mas principalmente pela necessidade de estarem inseridas no mercado de trabalho.
Sobre a atuação da Psicologia na Política de Assistência Social, mais especificamente em Cras, destaca-se a fala: "[...] você não sabe por que você tá ali, o que você tem que fazer..." (Psicóloga 2).
Apesar de a psicóloga afirmar ter sido bem-acolhida pela equipe, não estava claro como deveria ser seu trabalho naquele equipamento. Seu relato, sobre esse momento inicial na Assistência Social, permite-nos pensar sobre como a recente entrada dessa categoria profissional no Suas é geradora de dúvidas, ante ao desconhecido ou idealizado, e não se encontra bem-amparada. Não só o território de atuação era desconhecido pelas participantes, como o papel no CRAS também poderia ser considerado desconhecido. E isso pode ser remetido, entre outras questões, à formação acadêmica em Psicologia, insuficiente no preparo de profissionais para atuar na área social.
[...] cada um que passou por aqui fez de um jeito. Então, você não tem diretriz [...] A gente precisa de capacitações específicas, né, para o trabalho técnico, né, não é para a gestão, não é para entender a Política. [...] Na parte técnica, eu acho que a gente não tem uma supervisão, a gente não tem um direcionamento técnico, a gente não tem nada que dê esse embasamento, principalmente na Psicologia. [...] Porque, de fato, fica muito no pessoal, né. Eu entendo dessa forma, eu atuo dessa forma, a Fulana entende de uma forma, atua de uma forma, a Sicrana também. Então, assim, não tem um consenso, não tem um cabedal teórico para você falar assim: "É por aí que a gente tem que trabalhar, né..." Posso divergir desse autor ou do outro, mas não tem uma linha específica de atuação. (Psicóloga 2, grifos nossos)
[...] é como se não tivesse um parâmetro e... não tem nada, fica tudo muito solto. (Psicóloga 1)
Mas, assim, falta o direcionamento técnico da atuação mesmo de psicólogo. (Psicóloga 3, grifos nossos)
Na visão das participantes, a atuação do psicólogo não é bem-definida, não havendo modelos ou direcionamento técnico. Cada profissional atua conforme o seu entendimento, dando um caráter pessoal ao modo de se trabalhar. Segundo o estudo de Ferrarini e Camargo (2012) com graduandos, estes identificam a Psicologia como um lugar de incertezas, de dessaber e da prática como um "não saber o que fazer", recorrendo ao bom-senso, muitas vezes, e não a teorias como referencial. Conforme analisado, essa situação não é pertinente apenas aos estudantes de Psicologia. As profissionais, que atuam no Cras, também compartilham desse sentimento. "Falta, falta, faltam modelos, faltam vínculos, falta uma série de coisas. E aí, como que a gente vai fazer isso? Com base em que ideia a gente vai fazer isso?" (Psicóloga 2). "Quando é que a gente vai ter esta estrutura mínima do que é o serviço, e aonde a gente se insere nele?" (Psicóloga 2).
Nos trechos anteriores, a participante coloca-se numa posição passiva no sentido de esperar um direcionamento externo do trabalho. Se faltam os referenciais, questiona como deve ser executado o trabalho e onde o profissional se insere. No entanto, mesmo com todas essas faltas, "[...] a gente vai fazendo, né, porque no fundo, no fundo a gente sabe aquilo que a gente tem que fazer [...] Você é... tenta criar, né, dentro desse monte de informação, você tenta criar um parâmetro" (Psicóloga 2, grifos nossos).
Apesar de ser consenso entre as participantes de que não há orientações claras, as profissionais executam o serviço porque no íntimo sabem o que têm que fazer. Há um contrassenso nas falas, pois se as profissionais sabem minimamente o que têm de fazer, é devido às referências existentes. Todavia, possivelmente, tais referenciais não estejam disponíveis da maneira esperada por elas, assim, a partir das informações acessadas, criam um escopo de atividades que seriam de competência da Psicologia, com o objetivo de suprir as lacunas identificadas. Nesse sentido, passam a ter uma posição ativa, de coconstrutoras da Assistência Social. Essa análise está consoante à de Scarparo e Guareschi (2007): diante da fragilidade da formação, os profissionais de setores públicos devem assumir a autoria da construção da prática profissional, sendo receptivos a outros conhecimentos.
O ingresso na instituição é acompanhado pelo recebimento da descrição de cargo. No caso das psicólogas, o documento é amplo, abrangendo atividades diversificadas. Apesar de ser previsto o atendimento psicológico, o formato clínico não é mencionado. As participantes entendem que trabalhar a subjetividade não é objetivo da Assistência Social, e aí surge a questão: "qual é a atuação do psicólogo que não trabalha com a subjetividade?", conforme trecho transcrito a seguir.
Psicóloga 2: [...] eu fui, gente, eu fui perguntar qual o meu limite pra não cair no atendimento terapêutico. Porque não sei. Eu sei que com uma orientação eu não vou mudar a vida daquela pessoa. Então, eu, na minha ignorância, vamos tentar montar um plano de ação. Primeiro que trabalhar subjetividade não é função da Ação Social. Começa por aí. E aí qual é a atuação do psicólogo que não trabalha com a subjetividade? (grifos nossos)
Psicóloga 3: [...] mas assim a confusão é tão grande que... [...] Quando eu entrei, a gente não podia, a orientação da gerência é que o psicólogo não podia atender de porta fechada, individual, porque tava fazendo terapia [...] Porque tá com a porta fechada é terapia?
Nessa fala está explícito que, para as participantes, a subjetividade é o objeto institucional da Psicologia e esta só pode ser trabalhada por meio da psicoterapia. Sendo a subjetividade supostamente negligenciada no Suas, a partir da visão dessas profissionais, elas questionam como se dará a atuação do psicólogo nesse contexto.
Aí eu virei pra coordenadora: "Que tipo de acompanhamento?" Porque se eu não posso trabalhar a subjetividade, se eu não sei o que foi trabalhado nesses grupos terapêuticos, que acompanhamento eu vou fazer com essa criança?
[...]
E aí o que que eles [instituição] entendem por atendimento clínico... é isso, você fechar a porta e escutar a pessoa, individualizado e com orientações específicas de subjetividade. (Psicóloga 2, grifos nossos)
Está naturalizada entre as profissionais e a sociedade, em geral, a associação entre Psicologia e clínica; consequentemente, a subjetividade legitima-se como objeto de trabalho do psicólogo. E, talvez, para as participantes, o fato de não ser manifesto o objetivo da Assistência Social em se trabalhar a subjetividade cause a sensação de falta de direcionamento do trabalho do psicólogo nessa área, gerando dúvidas em relação aos limites para que o atendimento não se torne psicoterapia. "[...] Tem toda uma vertente ali que a gente vai tá sempre pisando em ovos. 'Ah, isso é terapia ou isso não é...' [Risos]. E a gente ainda não tem uma coletivização pra dizer que a gente tá trabalhando com grupos. A gente cai na orientação individualista, então, fica complexo" (Psicóloga 2, grifos nossos).
Pode-se pensar que as hesitações das participantes em relação ao trabalho no Cras reflita uma situação não só pertinente a essa Política, mas a todos os campos não tradicionais da Psicologia, e nos quais o profissional se insere.
De acordo com a percepção das psicólogas, as atividades que desenvolvem condizem parcialmente com o preconizado pelas orientações técnicas, visto entenderem a importância de se priorizar o trabalho coletivo: "A gente ainda não tem uma coletivização pra dizer que a gente tá trabalhando com grupos. A gente cai na orientação individualista" (Psicóloga 2), sendo mantida a lógica do atendimento individual, ratificando o resultado apontado por Oliveira et al. (2011). Contradizendo tal pesquisa, no entanto, no que tange à manutenção do atendimento clínico, as participantes afirmam não atuar dessa forma, e sim no sentido de prestar orientações aos usuários e às famílias. Parece que há um conflito entre legitimar e desnaturalizar o fazer e o saber psicológico na Assistência Social. Não é previsto o atendimento clínico, que seria o natural para as participantes, e a consequência, de acordo com elas, seria a subjetividade ser deixada de lado.
A Psicóloga 2, ao se deparar com sua atuação no Cras, se questiona: "Gente, onde eu caí? Como que eu vou dar conta disso?" Ela mesma elabora e propõe resposta à questão:
Porque daí você vai, dá mais uma orientação, né... Mas assim o trabalho... aquela questão de pendurar o subjetivo pra mim é muito forte, né... Porque você não consegue num plano de ação, "Eu vou trabalhar esse subjetivo." Então, assim, você fica mascarando o subjetivo em forma de questões objetivas, né [...]. Então, a gente acaba coisificando o subjetivo, né... E aí você dá conta de pelo menos minimizar aquela repercussão que você causou num atendimento. (Psicóloga 2, grifos nossos)
Em sua atuação, as psicólogas fazem uma negociação entre o campo de trabalho, Assistência Social e seu suposto objeto institucional, subjetividade. Um dos instrumentos utilizados no trabalho com as famílias é o plano de ação, em que são estabelecidas estratégias, metas e contrapartidas, a fim de que o usuário supere vulnerabilidades. Nesse processo, questões subjetivas ficam camufladas em questões objetivas, ou seja, o subjetivo é reificado. As participantes posicionam que a perspectiva da Psicologia é mantida, considerando que a forma de se trabalhar a subjetividade é adaptada.
Ao referirem-se à atuação, as participantes utilizam de forma recorrente o termo encaminhar.
[...] E chega ali você tem que encaminhar, encaminhar, encaminhar... E você quer encaminhar... (Psicóloga 1, grifos nossos)
[...] Por isso que eu falei que ninguém sabe pra onde encaminhar, são situações graves que a gente não consegue... [...] E aí a gente tenta encaminhar não sei pra onde, aí a gente tenta passar pra outros serviços... (Psicóloga 3, grifos nossos)
Entende-se pelos trechos destacados que o encaminhar é o resultado do trabalho - o atendimento gera encaminhamento, e este pode ser pensado em comparação ao termo reter, típico do psicólogo, que, pela sua formação, desenvolveria um trabalho em médio/longo prazo. Parece haver entre as psicólogas uma tensão entre o desejo de reter o usuário - entendendo que seria possível trabalhar a subjetividade - e o dever de encaminhá-lo. As participantes não reconhecem a subjetividade como envolvida no ato de encaminhar.
Considerações finais
Pretendeu-se evidenciar, neste artigo, as relações entre formação acadêmica em Psicologia e demandas de trabalho a que os psicólogos vêm sendo solicitados, tendo como foco a inserção desse profissional no Cras.
O psicólogo, na Assistência Social é considerado um profissional da área social e sua atuação deve seguir os serviços previstos pela Política Nacional de Assistência Social e suas normativas. O psicólogo "tem como finalidade básica o fortalecimento dos usuários como sujeitos de direitos e o fortalecimento das políticas públicas" (CFP, 2008, p. 22). No exercício profissional no CRAS, tem como objetivos a prevenção de situações de risco e a superação da vulnerabilidade social. Nos documentos orientadores é repetido que o trabalho do psicólogo deve ser condizente com a Política Nacional de Assistência Social, mas não são apresentadas atribuições específicas para esse profissional.
As psicólogas participantes da pesquisa assumem a subjetividade como objeto da Psicologia, mas parecem não reconhecer que questões subjetivas possam ser trabalhadas em contextos díspares ao clínico. E isso pode ser relacionado à formação acadêmica que tiveram, sem realce para atuação na área social. A academia formou psicólogas clínicas, cuja clientela é composta por pequena parcela da população - a elite, que pode pagar pelos serviços. Não sendo previsto o atendimento clínico na Assistência Social, pode-se dizer que a Psicologia está em fase de localização de sua prática profissional nesse contexto e ainda não se apropriou, de acordo com posicionamento das psicólogas, de seu objeto na Assistência Social. Pode-se afirmar que as participantes não consideram que a graduação as preparou para a atuação nessa Política Pública, por isso investiram em formação continuada e especializações. Inclusive, a escolha (ou não escolha) pela área remete à imagem de si como profissionais, que começou a ser construída na graduação. Também está relacionada à representação social da profissão, marcada pela ideia do profissional autônomo, que atua na clínica fazendo atendimentos individualizados.
Tem-se que considerar que a Política de Assistência Social no Brasil é relativamente nova - o Suas foi implantado em 2005. É natural que os currículos do curso de Psicologia estejam em fase de adaptação. Assim, embora a amostra desta pesquisa seja limitada e não se tenha pretendido chegar a generalizações, confirmaram-se dados obtidos em outros estudos, o que nos exige sinalizar a importância da revisão dos currículos, no sentido de articular teoria e prática, de preparar os profissionais para atuação interdisciplinar e, sobretudo, de ratificar a posição da Psicologia como ciência comprometida com questões sociais. Proceder apenas à revisão curricular, contudo, não basta, é imprescindível que sejam promovidas discussões com os profissionais, estudantes, docentes e gestores de Políticas Públicas para sensibilização sobre o tema, visando ao avanço da atuação da Psicologia na Assistência Social.
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Recebido em: 28/5/2018
Aprovado em: 7/10/2020
1 Constitui o público usuário da Assistência Social: "cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos, tais como: famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social" (Brasil, 2005a, p. 33).