15 4Concepções da deficiência em Moçambique: embates entre versões ocidentais e contemporâneasPsicólogo escolar: fortalecendo a participação da família na escola 
Home Page  


Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.4 São João del-Rei oct./dez. 2020

 

Reflexões sobre o estágio de Psicologia Social: narrativas de diferentes enfoques do processo de formação

 

Reflections on the Internship of Social Psychology: Narratives of Different Approaches in the Psychology Course

 

Reflexiones sobre la pasantía de Psicología Social: narrativas de diferentes enfoques en la carrera de graduación de Psicología

 

 

Rita de Cássia Maciazek-GomesI; Geruza Tavares D'AvilaII; Daniela Barsotti SantosIII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Norte (FURG)
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte (FURG)
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte (FURG)

 

 


RESUMO

Apresentamos algumas reflexões oriundas de nosso trabalho como professoras em um curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Nossas vivências na coordenação e orientação de estágios em Psicologia Social, em reuniões com supervisores locais e em sala de aula, nos instigaram a problematizar a formação de psicólogas/os, numa dimensão ético-política, diante das novas demandas das políticas públicas. Por meio de nossas observações e discussões, pudemos perceber questionamentos dos/as estudantes sobre sua formação, além de desconfortos em relação às práticas psicológicas observadas nas primeiras incursões em seus locais de estágio. As narrativas dos/as supervisores/as locais trouxeram demandas aos/às estagiários/as que repercutiram tanto nas práticas no cotidiano dos serviços como na formação em Psicologia. Ao acompanhar e refletir sobre o estágio em Psicologia Social, a partir de diferentes enfoques do processo de formação, produzimos uma rede de conversação coletiva atenta aos saberes e práticas presentes na articulação entre Psicologia e políticas públicas.

Palavras-chave: Formação do psicólogo. Psicologia Social. Políticas públicas.


ABSTRACT

We present some reflexions based on our experience as professors in the undergraduate course of Psychology in a university in Brazil. Our experiences as coordinators, supervisors, and professors in Social Psychology internships in three integrated scenarios as the meetings with the students, the discussions with the service's supervisors and in the classroom instigated us to problematize the psychology training. Considering new demands of Public Policies in an ethical-political dimension. Through our observations and discussions, we perceived from students at their first internship experiences questions about their academic education as well strangeness by some psychological practices observed. The narratives of the service's supervisors brought demands to the trainees that resonated the services daily practices as well the psychologists training. By accompanying and reflecting on the Social Psychology internship from different approaches of training process, the collective produced a conversation network of knowledge and practices in articulation between Psychology and Public Policies.

Keywords: Psychologist education. Social Psychology. Public policies.


RESUMEN

Presentamos algunas reflexiones de nuestro trabajo como profesores en un curso de psicología de una universidad federal brasileña. Nuestras experiencias, en la coordinación y orientación de pasantías en Psicología Social, en reuniones con supervisores locales y en el aula, nos instigaron a problematizar la formación de psicólogos, en una dimensión ético-política, dadas las nuevas demandas de las Políticas Públicas. A través de nuestras observaciones y debates, pudimos percibir preguntas de los estudiantes sobre su educación, así como la incomodidad en relación a las prácticas psicológicas observadas en las primeras incursiones durante sus pasantías. Las narrativas de los supervisores locales trajeron demandas a los alumnos que tuvieron repercusiones no solo en las prácticas diarias de los servicios, sino también en la formación en psicología. Al acompañar y reflexionar sobre la pasantía en Psicología Social, desde diferentes enfoques del proceso de capacitación, construimos una red de conversación colectiva atenta al conocimiento y las prácticas presentes en la articulación entre Psicología y Políticas Públicas.

Palabras clave: Formación del psicólogo. Psicología Social. Políticas públicas.


 

 

Introdução

Neste artigo, apresentamos discussões sobre a dimensão ético-política na formação em Psicologia, tendo como eixo de reflexão as práticas relacionadas ao estágio em Psicologia Social em uma universidade federal do extremo sul do Brasil. O estágio pode ser considerado como parte fundamental do percurso acadêmico dos/as universitários/as, propiciando aos/às estagiários/as o contato com a realidade do trabalho em cada área de formação, conforme a Lei n. 11.788 (2008). Neste texto, interessa-nos o estágio no ensino superior, especificamente, o estágio obrigatório no curso de Psicologia.

O estágio em Psicologia segue as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Conselho Nacional de Educação (Resolução n. 5, 2011) para a graduação nessa área e está organizado em estágios básicos e específicos supervisionados. Aqui nos reportaremos à experiência do estágio supervisionado específico em Psicologia Social.1 Nesse curso de graduação, o estágio em Psicologia Social vem sendo operacionalizado por meio da inserção de estagiários no âmbito das Políticas Públicas (PP), o que requer (re)pensar a dimensão ético-política, seja na Assistência Social (Crepop, 2013), seja na Educação (Crepop, 2019a), seja na Saúde (Crepop, 2019b), entre outras.

Nas últimas décadas, as PP vêm se constituído num relevante campo de atuação para a Psicologia (Silva & Carvalhaes, 2016), depois da reabertura política do país pós-1985 (Yamamoto & Oliveira, 2010). Em 2014, o Dieese (2016) realizou pesquisa sobre a inserção dos/as psicólogos/as no mercado de trabalho brasileiro, identificando que 74,8% deles/as encontram-se em atividades nas áreas de "educação, saúde e serviços sociais" (Dieese, 2016, p. 26). Com a criação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), em 2005, a inserção da Psicologia na Política Nacional de Assistência Social (Pnas) se constitui em importante campo de atuação profissional (Cordeiro, Svartman & Sousa, 2018). No Suas, a Psicologia passa a fazer parte das equipes multiprofissionais do Sistema de Proteção Social Básica e do Sistema de Proteção Social Especializada (Pnas, 2004), compondo ações nos Centros de Referência em Assistência Social (Cras) e nos Centros de Referência Especializado em Assistência Social (Creas), sediados em cada município brasileiro.

Na saúde, a atuação da Psicologia se dá nos níveis secundários e terciários de atenção, e mais recente na Atenção Primária (Boing & Crepaldi, 2010; Crepop, 2019b). Com a implantação da Política Nacional de Atenção Básica (2017), as práticas da Psicologia na Atenção Básica estão previstas para as equipes multiprofissionais do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB). Por outro lado, a atuação dos psicólogos na Política Nacional de Educação também supõe uma série de desafios a superar, a começar pela contratação de psicólogas/os nas escolas (Crepop, 2019a).

Assim sendo, concordamos com Gomes e Gonçalves (2018) sobre a necessidade de problematizar a inserção e a atuação das/os psicólogas/os. Em nosso caso, torna-se necessário problematizar, também, a formação em Psicologia na interface com as Políticas de Assistência Social, Educação e Saúde que constituem os estágios em Psicologia, no curso de graduação em que trabalhamos. Dessa forma, nosso objetivo no presente relato de experiência é problematizar a formação de psicólogas/os, numa dimensão ético-política, diante das novas demandas das PP. Tais reflexões são oriundas de nosso trabalho como professoras em um curso de Psicologia, em que desempenhamos funções na docência em sala de aula, coordenação geral e orientação de estágios em Psicologia Social. O artigo está estruturado da seguinte forma: apresentaremos de forma breve algumas sínteses sobre a dimensão ético-política na formação em Psicologia e a prática das/os psicólogas/os, seguida do método utilizado no estudo, os resultados e a discussão e, finalmente, nossas considerações finais e referências.

A dimensão ético-política e a formação de psicólogas/os

Como podemos definir dimensão ético-política relacionada à formação em Psicologia? Para começar, num aspecto mais geral, podemos definir ética como uma dimensão valorativa dos fenômenos e dos próprios seres. Como nos explica Guareschi (2005, p. 12), "A missão da ética, como filosofia, é oferecer à prática critérios fundados na razão, garantindo uma prática sensata". Segundo Guareschi (2005) podemos relacionar ética e política e, assim, o exercício profissional do psicólogo também pode ser configurado como uma ação política.

Décadas depois da regulamentação da profissão - com o estabelecimento de normativas como o Código de Ética Profissional e a criação dos Conselhos Regionais (CRP) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP), por exemplo, novas demandas exigem da Psicologia uma outra maneira de desenvolver os serviços prestados, de repensar os referenciais e ferramentas utilizadas, especialmente, ao atuar nas novas PP. Nesse sentido, é que a inserção e atuação da Psicologia com as PP exige a (re)composição de uma formação implicada com questões sociais,2 econômicas e políticas.

Para Yamamoto e Oliveira (2010), os psicólogos brasileiros passaram a ocupar espaços implicados com os territórios quando um modelo de Welfare State se torna possível, em que pesem muitas contradições. A presença de psicólogos nas PP foi marcada pelas lutas pela democratização do país, que foi acompanhada de novas questões para a área, relacionadas à formação e no repensar a atuação profissional, contemplando uma perspectiva crítica e comprometida com as PP (Gonçalves, 2010; Souza, 2010). A atuação no âmbito das PP marca a complexidade das ações impostas no cotidiano dos dispositivos e dos diferentes territórios, que, para além da formação específica de núcleo da Psicologia, exige competências e habilidades para atuação em equipe multiprofissional, numa perspectiva interdisciplinar e intersetorial.

Nesse processo de mudanças, o Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop), em diálogo com profissionais de diversas regiões do Brasil, tem contribuído para esse debate. Ao considerarem as especificidades de cada PP, propõem informações sobre o trabalho no campo e fornecem elementos teóricos-metodológicos para a prática profissional por meio das publicações das Referências Técnicas para atuação de psicólogas/os. Nessas referências, encontramos a dimensão ético-política como o primeiro eixo a ser considerado para a participação das/os psicólogos nas PP (Crepop, 2013; 2019a; 2019b), o que nos inspira a pensar em parâmetros para a formação e para a prática nos estágios.

Sobre os estágios em Psicologia, Pereira, Oliveira, Machado, Vieira, Miranda, Cunha, e Flor (2018, p. 222) caracterizam-no como o intercruzamento teórico-prático, consistindo "um espaço de elaboração emocional, intelectual e reflexiva precioso, uma oportunidade para se construir caminhos de um exercício profissional comprometido com a realidade social vigente, ancorado nos conhecimentos acadêmicos adquiridos". Ademais, essas autoras partem da Psicologia Social do Trabalhocomo direção teórica, entendendo a necessidade de questionamento quanto às práticas e ações dos profissionais da Psicologia, pois estas apontam para um projeto de profissão, o qual é alicerçado sob determinadas bases teóricas.

Dessa forma, apesar de o estágio em Psicologia estar alicerçado sob as normativas anteriormente elencadas, consideramos a necessidade de problematizá-las e repensar o estágio inserido num projeto de educação voltado para atender ao mercado de trabalho, além de considerar o estágio na sua contribuição para a sociedade, tal como apontam Pereira et al. (2018). As autoras, alicerçadas em Istvan Mèszáros, cuja análise pondera as relações entre educação e trabalho no modo de produção capitalista, consideram repensar a formação e a prática do psicólogo questionando a "quem a técnica de fato serve, se ela promove passividade ou empoderamento, se gera reprodução ou transformação das relações, das hierarquias, das desigualdades" (Pereira et al., 2018, p. 219).

Como psicólogas sociais, consideramos que o profissional deve se posicionar nas diversas comunidades e instituições das quais faz parte e atua, de uma forma mais horizontal, assim como Spink (2008, p. 76) sugere: "Declarar-se parte de um campo-tema é demonstrar a convicção ética e política de que, como psicólogos sociais, pensamos que podemos contribuir e que estamos dispostos a discutir a relevância de nossa contribuição com qualquer um, horizontalmente e não verticalmente".

A partir dessa busca por um posicionamento mais horizontal, com estagiários e com profissionais que atuam nas PP e com os supervisores daqueles estagiários, nos impõe exercitar a dimensão ético-política a todo instante em nosso trabalho docente. Nele, compreendemos que ocupamos um espaço na divisão social do trabalho, sobretudo, ao pensarmos a posição do país numa perspectiva do capitalismo internacional. Assim, entendemos a categoria trabalho "como questão central na organização social, pois define as relações sociais, altera a composição geográfica, como, por exemplo, por meio da urbanização e exploração do campo, e é, também, um fator constituinte da identidade" (Pereira et al., 2018, p. 220). É a partir daí que questionamos nosso lugar e do estágio no curso e na universidade em que trabalhamos: a quem, e de que forma, está atendendo a formação em Psicologia? Há uma inter-relação entre teoria e prática? A formação se disponibiliza em dialogar com a singularidade dos sujeitos e as diferentes perspectivas que compõem o processo de formação?

Problematizar essas questões nos leva ao encontro das narrativas construídas por meio das trocas com os/as estagiários/as, com os/as supervisores/as locais e com os/as orientadores/as acadêmicos/as, em suas distintas experiências, de modo a contemplar diferentes perspectivas da formação. As narrativas expressam a possibilidade do compartilhamento da experiência, mais do que o simples repasse de informações. Nesse sentido, a narrativa da experiência está implicada com os efeitos daquilo que é produzido na relação com o outro (Maciazeki-Gomes, 2017). Nessa perspectiva, narrar diz de um autonarrar-se, de produzir em coletivo narrativas possíveis de serem compartilhadas no cotidiano.

 

Método

Trata-se de um relato de experiência voltado para nossas vivências na coordenação geral de estágios, orientação de estágios em Psicologia Social e em sala de aula, na disciplina Tópicos do Estágio em Psicologia Social (Teps) em uma universidade federal, situada no extremo sul do Brasil. O município onde desenvolvemos o presente relato tem características da colonização portuguesa e população estimada em 211.005 pessoas, em 2019 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2020).

O curso de Psicologia oferta 35 vagas ao ano e o estágio obrigatório ocupa um lugar destacado nos dois últimos anos de formação: o estágio em Psicologia Social constitui uma das ênfases do Curso de Psicologia. Na organização curricular, as práticas dos estágios específicos têm início no penúltimo ano do curso. Nesse momento, os/as estudantes já cumpriram os pré-requisitos em termos de componentes curriculares em seu Quadro de Sequência Lógica (QSL), previsto para formação em Psicologia.

Podemos caracterizar o estágio em Psicologia Social como uma prática ampla e voltada, principalmente, para as áreas de Saúde, Educação e Assistência Social, o qual coloca em ação uma rede de profissionais psicólogos/as nos municípios3 em que atuam - os/as supervisores/as locais, os/as quais são acompanhados/as pela universidade, especialmente, nas figuras dos/as orientadores/as acadêmicos/as e da coordenação geral de estágios, cuja função é justamente mediar todos/as os/as sujeitos envolvidos/as ao longo do ano em que é realizado o estágio.

Entre os dispositivos que recebem estagiários estão os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do município e da região, o Hospital Universitário, o Núcleo Ampliado em Saúde da Família (Nasf), o Centro POP, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), além de Projetos universitários realizados em Instituições de Longa Permanência para Idosos (Ilpis), uma escola municipal e serviços na área assistência estudantil universitária, de atendimento a crianças e adolescentes, de prestação de assistência jurídica e de consultoria em direitos humanos.

O estágio corresponde a 360 horas anuais de atividades teórico-práticas, sendo 240 horas realizadas pelo/a graduando/a nos diversos dispositivos sob a supervisão local de um/a psicólogo/a, o que corresponde a uma carga horária de 8 horas semanais. As demais 120 horas correspondem aos encontros de orientação acadêmica que são oferecidos por parte do quadro docente, que, em sua maioria, é responsável por locais específicos em parceria com as/os supervisoras/es locais. Os encontros de orientação acadêmica acontecem na Universidade, em modo individual ou em pequenos grupos. Alguns docentes ainda exercem a função dupla de supervisão local e acadêmica nos locais que não dispõem da atuação de psicólogos/as.

A coordenação geral de estágio desenvolve articulações entre a academia e os campos de estágio. Entre as atividades estão a realização de visitas periódicas aos dispositivos e conversas com as/os supervisoras/es locais. A coordenação de estágio, também, organiza um encontro semestral com a participação das/os orientadoras/es acadêmicas/os e as/os supervisoras/es locais para discutir o andamento, planejamento e ajustes das atividades de estágio.

Em composição à vivência dos estágios em Psicologia Social, é oferecida uma disciplina integradora, realizada ao longo de dois semestres, totalizando 60 horas/aula. A disciplina Teps se diferencia da orientação acadêmica do estágio, pois configura um espaço distinto, que é grupal e que reúne todos/as que realizam estágio, mesmo que sob diferentes perspectivas teóricas e lugares de atuação.

A produção das informações levantadas em nosso relato de experiência decorreu do registro das observações de aulas e reuniões, conversas fortuitas, anotações em Diário Pedagógico e grupos de discussão, ou ainda conversas informais entre nós professoras em momentos pós-supervisão e algumas aulas da disciplina de Teps. O acompanhamento de distintos momentos nos permitiu ter uma perspectiva mais ampliada do andamento do estágio, ensejando que pensássemos juntas como encaminhar demandas trazidas pelos/as estagiários/as e pelos/as supervisores/as locais. A partir dessas experiências, além de termos desempenhado o papel de docentes, neste artigo o papel de pesquisadoras se coloca como imperativo, em que consideramos importante a noção de "microlugares" e de um reposicionamento do/as pesquisadores/as como parte do cotidiano, tal como recomenda Spink (2008). O autor salienta que a noção de microlugares impõe alguns desafios para o "pesquisador conversador" no cotidiano, pois ao mesmo tempo em que precisa aprender a observar esse lócus de produção e negociação de sentidos, também há necessidade "de aprender a fazer isso como parte ordinária do próprio cotidiano, não como um pesquisador participante e muito menos como um observador distante, mas simplesmente como parte" (Spink, 2008, p. 72).

Logo, trata-se de compor práticas que contemplem a diversidade de atores, sendo que o foco não está mais sobre o estudo do outro, mas com o outro (Dimenstein, Macedo, Leite & Gomes, 2015). Por meio de nossas redes de conversação pudemos perceber os questionamentos dos/as estudantes relacionados à própria formação, além dos desconfortos com as práticas psicológicas observadas a partir das primeiras incursões em seus locais de estágio. Por outro lado, acompanhamos os/as supervisores/as locais e as demandas que se colocavam para os/as estagiários/as, o que supunha repercussões da ação dos/as estagiários/as nos locais onde desempenhavam suas atividades. Vale ressaltar que nossas reflexões e análises estão situadas como representantes do processo formativo em Psicologia. Nessa perspectiva, nos interessa acompanhar e refletir com as diferentes narrativas que compõem uma formação ético-política em Psicologia Social relacionada à atuação nas Políticas Públicas.

Assim, organizamos nossas narrativas a partir de três perspectivas: a) do diálogo com os estagiários, seja nas supervisões, seja na coordenação dos estágios, seja, ainda, ao longo da socialização de parte desses diálogos na disciplina de Teps; b) do diálogo com os/as supervisores/as locais dos/as estagiários/as; e c) dos possíveis diálogos que se encontram na fronteira entre os/as estudantes e os/as supervisores locais dos estágios, isto é, na relação entre Universidade e os dispositivos concedentes de estágio.

Diferentes narrativas produzidas sobre o estágio em Psicologia Social

Apresentamos nossos resultados por meio das diferentes narrativas que nos chamaram atenção ao longo do ano. Importante esclarecer que a possibilidade de (re)pensar nossa atuação enquanto docentes numa universidade pública foi possível devido à análise do cotidiano, em que nos colocamos como parte de um sistema mais amplo, como preconiza Spink (2008).

O acompanhamento dos/as estagiários/as

Os graduandos recebem, ao fim do terceiro ano de formação, informações sobre os locais de estágio em uma roda de conversa com estagiários que se encontram na finalização de suas experiências, acompanhados da coordenação dos estágios que auxilia a conversa. Esse é um momento ansiado pelos/as graduandos/as, que têm a oportunidade de saber mais detalhes sobre o local de interesse com o compartilhamento de expectativas e impressões das vivências. Cada dispositivo oferece suas vagas, de acordo com a disponibilidade do serviço e/ou das/os supervisoras/es locais. Na sequência, são realizados encontros, em sua maioria, de entrevistas em grupos que têm por objetivo fornecer mais esclarecimentos sobre o trabalho no local, conhecer o interesse dos discentes sobre a atuação na área, bem como de negociar a disponibilidade de horários para a realização do estágio. Alguns que realizaram atividades práticas de outras disciplinas ou estágios básicos no local reafirmam o interesse em continuar para a vivência do estágio. Depois da definição dos locais, os/as futuros/as estagiários/as firmam a documentação em termo de compromisso entre a Universidade, a instituição e o discente. Ao término dos ritos burocráticos, os/as estudantes iniciam suas primeiras incursões nas áreas, acompanhados/as das supervisões, orientações e encontros da disciplina Teps.

A disciplina de Teps visa integrar os estudos e as vivências dos diferentes locais de estágio em Psicologia Social, refletir sobre os saberes e práticas que embasam o trabalho em Psicologia Social, compor práticas a partir das diretrizes preconizadas pelo Sistema Conselho relativas à atuação em Psicologia nas políticas públicas; estudar as ferramentas de análise e intervenção institucional e operacionalizar processos de análise e diagnóstico institucional no local de estágio.

O início na disciplina integradora foi marcado por uma apresentação da descrição dos locais de estágio de cada estudante - ou grupo de estudantes que realizavam estágio no mesmo dispositivo. Assim, na primeira parte do semestre, foi sugerido aos estudantes que realizassem uma descrição reflexiva de seus locais de estágio para que pudessem organizar, posteriormente, um planejamento de suas intervenções. Essa tarefa consistiu no estudo teórico, na inserção, familiarização, caracterização, análise e registro em Diário Pedagógico das especificidades de seu local de estágio e sistematização e socialização dessas informações para os demais colegas e professoras. Resguardadas as especificidades dos diferentes locais de estágio, a tarefa contemplou três eixos direcionadores: 1. Caracterização do local de Estágio. 2. Análise do que está previsto nas PP e o que é realizado no cotidiano do dispositivo. 3. Análise dos saberes e práticas que constituem as intervenções da Psicologia no local.

Quanto à caracterização dos locais de estágio, a ideia foi apresentar os serviços disponibilizados, conforme nome, localização, proposta do serviço, os/as profissionais que atuam e o público-alvo atendido. Além disso, apresentar a descrição das instalações físicas, como acontecem os encaminhamentos para atendimento, a relação com outras instituições e/ou serviços e com a comunidade, explicitando como se dá (ou não) o trabalho em rede. Também consideramos importante conhecer a história e a proposta do serviço e sob quais condições foi criado: por quem e para atender a quais necessidades.

Num segundo momento, deu-se a análise do que está previsto nas PP e o que é realizado no cotidiano do dispositivo. Constitui-se como fundamental conhecer as diretrizes das PP brasileiras relacionadas à proposta do serviço, como, a política de saúde mental, de álcool e outras drogas, dos direitos humanos, educação e assistência social, problematizando o que está previsto na legislação, na proposta do dispositivo e o que se passa no cotidiano do serviço. Não se trata, aqui, de apontar "culpados", mas de um exercício para compreender o funcionamento e as dinâmicas do serviço e, por vezes, as distâncias entre o que está previsto e o que é realizado.

Finalmente, propusemos a análise dos saberes e práticas que constituem as intervenções da Psicologia no local partindo da análise da atuação da/o psicóloga/o no serviço, em observância às diretrizes das PP nacionais, mapeada no momento anterior, e das orientações para atuação da/o psicóloga/o do CFP e do CRP, em especial, os documentos produzidos pelo Crepop, os quais comentamos anteriormente, partindo das análises de Gonçalves (2010) e de Yamamoto e Oliveira (2010). A sequência dessas atividades propiciou a reflexão sobre as seguintes questões: "Quais as principais lacunas encontradas na efetivação do trabalho? Quais os principais problemas encontrados? Como demarcar problemas e mapear linhas possíveis para seu enfrentamento?" (Diário Pedagógico, março de 2018).

A realização da atividade propiciou aos/as estudantes uma primeira aproximação, estudo e discussão sobre a constituição do serviço, sua relação (ou não) com os demais serviços, do ponto de vista setorial e/ou intersetorial. A historicização do processo de implantação e implementação das PP norteadoras das ações contribui para análise crítica da ampliação da inserção e complexidade da atuação da Psicologia nos diferentes níveis de atenção propostas. Convém relembrarmos Spink (2008) quando o autor nos convida a pensar a atuação do psicólogo social como parte do cotidiano, partindo de seus saberes específicos, mas com uma postura horizontalizada em relação aos demais agentes desse processo.

A socialização dessas informações, durante a disciplina integradora do estágio em Psicologia Social, contribuiu para um aprofundamento reflexivo e crítico das informações apresentadas a partir das discussões levantadas, bem como possibilitou uma aproximação com os outros serviços, onde os demais colegas realizam estágio. Para alguns estudantes, o formato de apresentação a partir de slides em recursos multimídia restringiu o caráter participativo da atividade, limitando, de alguma forma, suas reflexões. Pereira et al. (2018) também chamam a atenção para os registros das experiências de estágios como importantes para a formação em Psicologia, mas com o cuidado para que não se tornem meras descrições das vivências. Esses pontos foram discutidos junto com a turma e se decidiu organizar atividades que pudessem propiciar uma maior interatividade e espontaneidade entre os participantes.

No segundo semestre, as atividades se voltaram às reflexões sobre as práticas em Psicologia realizadas nos diferentes dispositivos da rede. Para isso, no formato de roda de conversa, foram organizados encontros com profissionais dos locais onde são ofertados estágio - anteriormente mencionados - e também com psicólogos/as atuantes no setor organizacional de uma instituição pública e de uma empresa particular, numa Unidade Básica de Saúde (UBS) no sistema prisional, em um Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família (RMSF), na pró-reitoria de assuntos estudantis na atenção à saúde mental dos estudantes, realizada em outra universidade pública da região. A proposta das rodas de conversa foi pensar os desafios e as possibilidades da atuação da Psicologia, na interface com as PP, a partir do compartilhamento da experiência da atuação das psicólogas. Mais do que reforçar as dificuldades imersas ao cotidiano de trabalho, como o funcionamento burocratizado dos serviços, a infraestrutura precária, e falta de incentivos financeiros, tais conversas estiveram voltadas a pensar como-fazer, como compor estratégias e abrir possibilidades de escuta e acolhimento à diversidade dos sujeitos atendidos e a singularidade de cada caso.

No fim da disciplina, o fechamento e a avaliação das atividades de estágio ocorreram em grupo, momento em que os/as estagiários/as foram convidados a refletir sobre o seu percurso ao longo de um ano e sobre o processo de inserção, familiarização, realização do diagnóstico institucional e intervenções realizadas no local de estágio. Propusemos nesse encontro algumas questões: quais as contribuições da realização do estágio em Psicologia Social para minha formação? Como foram as práticas da Psicologia nas PP e o trabalho em rede, intersetorial e multiprofissional?

Nesse espaço, nas últimas aulas da referida disciplina, os/as estagiários/as relataram certo desconforto em relação às lacunas entre diretrizes preconizadas pelas PP e as práticas realizadas no cotidiano dos serviços. Os estudantes questionaram situações em que os saberes e fazeres da Psicologia, ainda, se operacionalizam a serviço da manutenção de práticas individualizantes, que desconsideram as dimensões sociais, econômicas, culturais, políticas e territoriais da população atendida, como também apontam Gomes e Gonçalves (2018) e Pereira et al. (2018), não contemplando, assim, a produção das condições de saúde e os determinantes sociais atrelados às histórias de vida. Também houve um espaço em que criticaram fazeres que se voltam à aplicação técnica de saberes psicológicos, saber de núcleo (Campos, 2000) em detrimento ao diálogo e atuação em conjunto com outros profissionais de diferentes áreas do conhecimento que atuam no mesmo dispositivo. Sinalizaram, ainda, os desafios presentes na implementação de um trabalho intersetorial que contemple a integralidade da atenção ao sujeito e sua família.

As narrativas dos/as supervisores/as locais e as repercussões da inserção dos/as estagiários/as nos dispositivos

Nos 13 anos de funcionamento do curso de Psicologia, vem se estabelecendo um modus operandi dialógico entre todas as partes envolvidas no estágio de Psicologia Social. Ao longo desses anos, pudemos acompanhar os/as estudantes do quarto ano do curso, nas reuniões com os/as supervisores/as locais e em visitas aos lugares onde são desenvolvidos os estágios. Em alguns dispositivos, o estágio ocorre desde a primeira turma de psicólogos/as formados na Universidade. Em outros locais, o estágio é mais recente, se constituindo, para alguns psicólogo/as, muitas vezes no início de suas atribuições no local, como a primeira experiência de supervisão. Ainda, tem-se a participação de supervisores locais que são egressos do curso. Para essas/es supervisoras/es locais, a narrativa denota certo estranhamento quanto à proposta e funcionamento do estágio em Psicologia Social, mesmo entre os egressos que buscam inteirar-se das mudanças ocorridas no curso, ao longo do tempo. Não obstante, também são mencionadas reflexões sobre a própria prática profissional, o reconhecimento de questões que são desafiadoras ao dispositivo e o quanto a presença do estagiário contribui para problematizar e repensar as práticas cotidianas.

Desde um lugar de fora-dentro, o/a estagiário/a se constitui como alguém que faz parte da equipe, de modo temporário, que lhe permite fazer algumas considerações. Esse fora-dentro pode inferir a práticas descompromissadas, tendo por base leituras diagnósticas que não se disponham a pensar e fazer junto com os profissionais dos dispositivos. Por outro lado, também podem contribuir com modificações de algumas ações realizadas nos dispositivos e a busca por maior aprimoramento profissional dos trabalhadores. Há relatos das/os supervisoras/es locais em que a presença dos/as estagiários/as contribuiu para organização de atividades de atenção aos usuários e/ou qualificação profissional que puderam ser possíveis com suporte teórico-prático da Universidade. Nessa perspectiva, o processo de estágio diz da produção de relações que levem em conta as necessidades dos/as estagiários/as na relação com as necessidades mapeadas no local de estágio. Constitui-se numa trajetória que não está dada a priori, mas é construída numa rede de conversação no cotidiano, tal como preconizado nas referências técnicas para atuação dos psicólogos em diferentes PP (Crepop, 2013; 2019a; 2019b).

A presença de um/a estagiário/a de Psicologia no dispositivo demanda investimentos, numa relação dialógica entre a Universidade e serviços, E ainda, de modo especial, entre estagiários/as, supervisores/as locais, professoras e coordenação de estágio, de modo a priorizar uma organização de práticas que contemplem questões teóricas e reflexivas, em que a postura ética e política seja o eixo dessa rede de conversação, para que a presença de estagiários/as, nos diferentes locais, possibilite ganhos para os trabalhadores e para as pessoas atendidas pelo serviço. O enfoque, nesse sentido, vai para o comprometimento em fazer junto com, e não na produção de análises que se restringem a enfatizar os "erros" que acontecem no cotidiano de trabalho.

As narrativas dos psicólogos mais antigos relatam as mudanças que a formação e atuação em Psicologia tiveram nos últimos 40 anos. O processo de ampliação e implantação das PP, mais recentes, produzem tensionamentos e o repensar sobre atuação profissional da Psicologia. Impulsionam descolamentos das práticas psi associadas a posturas individualizantes (Yamamoto & Oliveira, 2010) para um enfoque do cuidado integral, territorializado, numa perspectiva multiprofissional e intersetorial.

Entre as dificuldades enfrentadas na manutenção de estagiárias/os, em alguns locais, pode-se citar a falta do profissional da Psicologia, ou ainda sua existência precarizada. Locais que, embora apontando a importância e a necessidade do trabalho da Psicologia, não conseguem manter relações trabalhistas dignas, que por sua vez geram rotatividade de profissionais e a vacância do cargo. Na tentativa de sanar essas dificuldades, em alguns momentos, os/as professoras/es organizam projetos de extensão e assumem as posições de supervisores locais e acadêmicos, simultaneamente.

Narrativas das orientadoras acadêmicas: interfaces entre a formação em Psicologia e as práticas profissionais na rede de atenção em saúde, assistência social e educação

Acompanhar os/as estudantes ao longo do ano foi acompanhar as mudanças das posturas teóricas e práticas que foram sendo produzidas. O início do estágio produziu uma série de expectativas e de ansiedades sobre como seria o estágio, o que se poderia fazer, o medo de errar. O contato com as outras pessoas, pacientes, usuários/as, trabalhadores/as não se dava mais como estudante, mas agora como estagiário/a de Psicologia. Ocupar esse "lugar" também passou a ressignificar sua atuação como "estudante de Psicologia" em transição para "estagiário/a de Psicologia".

No início, o sentir-se estagiário estava relacionado ao lugar físico onde estavam autorizados/as a estar, na parte de "dentro" das salas, ocupadas pelos/as profissionais da equipe, ou na parte de "fora", onde ficavam os/as usuários/as do serviço à espera de atendimento. Em um dos encontros, um grupo de estudantes que fazia estágio em um serviço de saúde narrou sua experiência ao fazer parte das atividades de acolhimento no serviço. A atividade, que previa estar sentado e conversando com os demais usuários na sala de espera, gerou desconforto e a vontade de ultrapassar a "portinha" que separava o balcão da recepção e dava acesso à "parte de dentro" do serviço. Na visão dos estudantes, o "atravessar a portinha" remetia a um sentimento de ser "promovido" a estagiário/a, conquistar um lugar diferenciado, ou seja, passar a fazer parte da equipe.

A partir dessa imagem, trabalhamos com a turma os sentimentos produzidos com a inserção no local de estágio, nesse exercício de tornar-se psicólogo/a. Afinal quais são os elementos que nos constituem com profissionais da Psicologia? O que faz um/a psicólogo/a no imaginário social? Ou ainda, quem nos dá as credenciais para atuar? Como ser reconhecido desde esse lugar de estagiário, quando não se utiliza vestimentas que nos identificam, como o jaleco branco, por exemplo? Como conquistar um espaço de fala e de escuta na equipe e principalmente com os usuários? Essas reflexões nos acompanharam ao longo dos semestres e no encerramento das atividades do ano as retomamos para marcar o processo de organização e transformação de si no encontro com o cotidiano do estágio. Nesse segundo momento, as reflexões voltam-se para pensar que, mais do que o espaço físico onde se situa e atua, o fazer-se profissional da Psicologia está relacionado à produção de uma postura e ao estabelecimento de relações de proximidade e interação com a equipe e usuários do dispositivo. E ainda que o reconhecimento do ser estagiário passa por autorreconhecer-se e, assim, autoafirmar-se nesse lugar. Como nos explica Spink (2008), é no cotidiano que ocorre a produção de (novos) sentidos, o que se configura como desafiador para os psicólogos sociais.

Podemos sintetizar nossas análises dos semestres letivos numa mudança quanto aos discursos dos/as estagiários/as, uma vez que se encontram numa etapa de transição da universidade para o mercado de trabalho; de estagiárias/os, em breve, são/serão trabalhadores/as. Essa compreensão de seu lugar em um mundo do trabalho cada vez mais precarizado, e considerando o território onde atuam, nos leva a pensar na (nova) atribuição de sentidos sobre si mesmos, mas também ao próprio lugar do estágio e dos/as psicólogos/as que lá atuam.

Além disso, podemos nos remeter a um reposicionamento dos/as estagiários/as no próprio microlugar, para retomar o termo de Spink (2008), em função de todas as suas vivências ao longo do estágio, sendo muito mais observadores/as num primeiro momento e, com o decorrer do tempo e sua inserção nos diferentes lugares, apropriando-se de uma postura mais dialógica, tentando "acertar". Um ciclo se fecha e outro se inicia quando na atividade de roda de conversa no fim de ano os estagiários compartilham suas experiências nos locais de estágios com os estudantes do terceiro ano que se preparam para o estágio em Psicologia Social.

Para nós, como professoras e/ou orientadoras e coordenadoras do estágio em Psicologia Social, também é uma busca de atitude mais dialógica e horizontal em nossos "campos tema" (Spink, 2008), apesar das dificuldades e de alguns desconfortos quanto à adoção dessa postura extremamente desafiadora, como aponta Pereira et al. (2018). Concordamos com Spink (2008) sobre nos considerarmos parte do cotidiano de formação profissional e, ao mesmo tempo, ocuparmos um espaço de poder na universidade, o qual pode ser repensado.

Nesse sentido, nos colocamos como professoras e pesquisadoras disponíveis para o diálogo, e que o compreendem como salutar para "tentar acertar" (Spink, 2008, p. 76). Na mesma direção, apontamos alguns impasses e frustrações que os/as estagiários/as vivenciam ao se deparar com a rede que (não) se comunica e os sofrimentos psíquicos que poderiam ser acolhidos de outra maneira, ou que são de algum modo silenciados. Ademais, quando o/a supervisor/a local, que inicialmente é visto como um espelho para a formação do/a futuro/a psicólogo/a, atua de modo equivocado, quando supervisor/a e orientador/a têm entendimentos distintos acerca de uma abordagem ou de uma determinada problemática, a disciplina integradora configura-se como um lugar de encontro privilegiado, cujo olhar pode ser ampliado sobre a rede de atenção em saúde, assistência social e educação, o que pensamos ser uma postura ético-política no espaço formativo.

 

Considerações finais

Ao longo do presente relato de experiência, nos propusemos a olhar para o cotidiano de nossa própria prática profissional e tentar responder ao seguinte questionamento: como se constitui a formação em Psicologia diante das novas demandas nas PP? Entendemos que a formação se constitui como um processo em aberto e, em muitos momentos, tensionado entre saberes e fazeres inseridos num contexto político, econômico e territorial. Ao elaborarmos o presente texto, entendemos o quanto é difícil sair de posições mais ou menos delimitadas nos diferentes campos da Psicologia e dialogarmos com áreas e saberes que não fizeram parte de nosso próprio processo de formação e que ainda estão em jogo. Ao mesmo tempo em que essas experiências se colocam, num primeiro momento, como desafiadoras, observamos que ao atuarmos de forma mais horizontal e, buscando o diálogo com vários profissionais, com cidadãos da comunidade, novas possibilidades são vislumbradas. Para nós, tal postura se alinha à dimensão ético-política postulada pelas referências que apresentamos no início do texto.

De forma complementar, também apontamos outras questões: a quem e de que forma está atendendo a formação em Psicologia? Há uma inter-relação entre teoria e prática? A formação se disponibiliza em dialogar com a singularidade dos sujeitos e as diferentes perspectivas que compõem o processo de formação? A partir das (auto)narrativas, compreendemos que tais estágios possibilitam contribuir com a formação em Psicologia numa perspectiva mais ampla de atuação do/a psicólogo/a, para além da atuação individualizante e fortemente marcada pelas práticas e ferramentas de uma clínica tradicional alinhadas aos interesses das elites. A formação de PP, de Saúde, Assistência Social e Educação se articula num processo de conversação coletiva, em prol de práticas relacionadas ao cuidado integral, contextualizado e territorializado, em rede, numa perspectiva multiprofissional e intersetorial. Nesse sentido, o compromisso social da formação se faz no diálogo com os usuários e as pessoas a quem prestamos nosso serviço, como desdobramento da dimensão ético-política de atuação em Psicologia.

Não obstante, a articulação dos conhecimentos teóricos às vivências do estágio curricular é bastante significativa, considerando o processo de construção da identidade profissional, o qual não se finda com o término do curso de graduação, no caso dos/as estagiários/as, e vai sendo ressignificada ao longo do processo de profissionalização, no caso das trajetórias docentes, ainda que em diferentes posições na divisão social do trabalho.

Como uma contribuição do artigo, entendemos o compartilhamento de informações sobre o processo de interiorização dos cursos de Psicologia no país, considerando que o município em que trabalhamos distancia-se 400 km da capital do estado do Rio Grande do Sul, onde estão localizados cursos de excelência na área da Psicologia, bem como muitas formações complementares ao curso de graduação. Destacamos que o curso está em franco processo de ampliação com diferentes propostas de grupos de pesquisa, ensino e extensão. As narrativas de professores/as e psicólogos/as que participam dos estágios no curso em que trabalhamos mostram que o caminho adotado para efetivar as práticas de estágio em Psicologia Social neste curso alinham-se ao cuidado, quanto aos vínculos estabelecidos desde o início das atividades, buscando ampliar a inserção dos estagiários no âmbito das PP de forma sensível aos anseios da comunidade.

 

Referências

Bernardes, J. S. (2012). A formação em Psicologia após 50 anos do Primeiro Currículo Nacional da Psicologia: alguns desafios atuais. Psicologia: Ciência e Profissão, 32(spe), 216-231. Doi: https://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932012000500016.         [ Links ]

Böing, E., & Crepaldi, M. A. (2010). O psicólogo na atenção básica: uma incursão pelas políticas públicas de saúde brasileiras. Psicologia: Ciência e Profissão, 30(3), 634-649. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-98932010000300014.         [ Links ]

Campos, G. V. S. (2000). Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Ciência & Saúde Coletiva, 5(2), 219-230. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232000000200002.         [ Links ]

Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas - Crepop. (2013). Referência técnica para atuação de psicólogas(os) nos Centros de Referência Especializada de Assistência Social (Creas). Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia.         [ Links ]

Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas - Crepop. (2019a). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na educação básica. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia.         [ Links ]

Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas - Crepop. (2019b). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na atenção básica à saúde. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia.         [ Links ]

Cordeiro, M. P., Svartman, B., & Sousa, L. V. (2018). Apresentação. In M. P. Cordeiro, B. Svartman & L. V. Souza (Orgs.). Psicologia na Assistência Social: um campo de saberes e práticas (pp. 5-11). São Paulo, SP: Instituto de Psicologia.         [ Links ]

Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - Dieese. (2016). Projeto 2 - Levantamento de informações sobre a inserção dos psicólogos no mercado de trabalho brasileiro. São Paulo, SP: Dieese.         [ Links ]

Dimenstein, M., Macedo, J. P., Leite, J. F., & Gomes, M. A. F. (2015). Psicologia, políticas públicas e práticas sociais: experiências em pesquisas participativas. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 10(1), 24-36.         [ Links ]

Gomes, N. S., & Gonçalves, S. M. M. (2018). A Psicologia na Assistência Social: considerações sobre o percurso histórico deste "novo" campo. Revista Mosaico, 9(1), 2-9. Doi: https://doi.org/10.21727/rm.v9i1.1225.         [ Links ]

Gonçalves, M. das G. M. (2010). Psicologia, subjetividade e políticas públicas. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Guareschi, P. (2005, nov./dez.). Opinião: Ética e Política. In Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul. Entrelinhas. 6(31). Recuperado de https://issuu.com/crprs/docs/novembrodezembro2005.         [ Links ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE] (2020). Cidades@. Recuperado de https://cidades.ibge.gov.br/.

Lei n. 11.788, de 25 de setembro de 2008. (2008). Dispõe sobre o estágio de estudantes e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11788.htm.         [ Links ]

Maciazeki-Gomes, R. C. (2017). Narrativas de si em movimento: uma genealogia da ação política de mulheres trabalhadoras rurais do sul do Brasil. Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Recuperado de https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/180436.         [ Links ]

Ministério da Educação. CNE/CES n. 1071/2019, aprovado em 4 de dezembro de 2019. Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos Cursos de Graduação em Psicologia e estabelecimento de normas para o Projeto Pedagógico Complementar (PPC) para a Formação de Professores de Psicologia. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=139201-pces1071-19&category_slug=dezembro-2019-pdf&Itemid=30192.

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2004). Política Nacional de Assistência Social - Pnas-2004. Brasília, DF: Senado Federal. Recuperado de http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf.         [ Links ]

Pereira, M. S., Oliveira, A. F. F., Machado, J. P., Vieira, N. R. S., Miranda, R. N., Cunha, S. S. N., & Flor, T. C. (2018). Estágio profissionalizante e formação em Psicologia: o trabalho com grupos como dispositivo formativo. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(2), 218-232. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703002752017.         [ Links ]

Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. (2017). Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Recuperado de https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html.

Resolução n. 5, de 15 de março de 2011. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, estabelecendo normas para o projeto pedagógico complementar para a Formação de Professores de Psicologia.

Silva, R. B., & Carvalhaes, F. F. (2016). Psicologia e políticas públicas: impasses e reinvenções. Psicologia & Sociedade, 28(2), 247-256. Recuperado de https://dx.doi.org/10.1590/1807-03102016v28n2p247.         [ Links ]

Souza, M. P. R. (2010). Psicologia Escolar e políticas públicas em educação: desafios contemporâneos. Em Aberto, 23(83), 129-149. Recuperado de http://www.rbep.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/1637/1303. Doi: http://dx.doi.org/10.24109/2176-6673.emaberto.23i83.2255.         [ Links ]

Spink, P. K. (2008). O pesquisador conversador no cotidiano. Psicologia & Sociedade, 20(spe), 70-77. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0102-71822008000400010.         [ Links ]

Yamamoto, O. H., & Oliveira, I. F. (2010). Política Social e Psicologia: uma trajetória de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(spe), 9-24. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S0102-37722010000500002.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 1/12/2018
Aceito em: 30/6/2020

 

 

1 Ainda que neste artigo não seja nosso objetivo discutir as DCN e suas revisões que aguardam homologação (CNE, 2019), é importante considerá-las partindo das discussões propostas por Bernardes (2012). Nesse sentido, cabe indicar ao leitor que o curso de graduação em que trabalhamos foi implementado em 2006, assim como seu primeiro Projeto Político Pedagógico (PPP). Com a atualização das DCN em 2011, o PPP do curso passa por algumas alterações em 2012 e, em 2017, uma alteração curricular é estabelecida, momento em que a ênfase em Psicologia Institucional e Comunitária e Processos de Desenvolvimento e Educação passam a compor a ênfase Psicologia Social.
2 Para uma breve definição da "questão social", recorremos novamente a Yamamoto e Oliveira (2010, p. 10): "pode ser definida como o conjunto dos problemas políticos, sociais e econômicos postos pela emergência da classe operária no processo de constituição da sociedade capitalista".
3 Alguns estudantes residem em cidades vizinhas ao município da Universidade e, dessa forma, têm a possibilidade de realizar seu estágio em locais que os acolha em termos de efetivação das DCN.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License