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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.4 São João del-Rei oct./dez. 2020
Formação profissional, experiência e dialogicidade no contexto universitário: relato de uma experiência extensionista em educação feminista
Professional Training, Experience and Dialogicity in the University Context: Report of an Extensionist Experience in Feminist Education
Formación profesional, experiencia y dialogicidad en el contexto universitario: relato de una experiencia extensionista en educación feminista
Luciana da Silva OliveiraI; Paula Land CuriII
IPsicóloga. Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Mestra em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail: oliveira.luu@gmail.com
IIProfessora-Adjunta do Departamento de Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Programa de Pós- Graduação em Psicologia - Estudos da Subjetividade (UFF). Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP). E-mail: paulalandcuri@id.uff.br
RESUMO
Este artigo apresenta e discute uma possibilidade de intervenção da universidade pública na sociedade por meio de uma experiência educativa feminista voltada para a construção coletiva de conhecimentos sobre gênero, violências e cuidados: a "Formação de multiplicadores para o acolhimento de mulheres em situação de violência de gênero". A metodologia utilizada nessa ação extensionista de capacitação e qualificação de discentes e profissionais, que trabalhavam com violência de gênero, foram as Oficinas em Dinâmica de Grupo, uma prática de intervenção psicossocial que pode ser desenvolvida em diferentes contextos, sejam eles pedagógico, clínico, comunitário, seja de política social. As discussões sobre a experiência de formação são articuladas com contribuições da proposta educacional de Paulo Freire e das pedagogias feministas, indicando a possibilidade de realização de uma educação baseada na comunicação e no diálogo, que busca a construção coletiva do conhecimento e o despertar do senso crítico do/a educando/a por meio de suas próprias experiências.
Palavras-chave: Qualificação. Educação feminista. Violência de gênero. Extensão universitária.
ABSTRACT
This paper discusses a possibility of intervention of the public university in the society through a feminist educational experience, aimed at the collective construction of knowledge about gender, violence and care: the "Professional training of multipliers for the reception of women in situations of gender violence". The methodology used in this extensionist action of training and qualification of students and professionals working with gender violence was the Oficinas em Dinâmica de Grupo, a practice of psychosocial intervention that can be developed in different contexts, such as pedagogical, clinical, community or social policy. The discussions about the professional training experience are articulated with contributions from Paulo Freire's educational proposal and feminist pedagogies, indicating the possibility of an education based on communication and dialogue, which seeks the collective construction of knowledge and the awakening of the critical sense of the educator through their own experiences.
Keywords: Qualification. Feminist education. Gender violence. University extension.
RESUMEN
Este artículo presenta y discute una posibilidad de intervención de la universidad pública en la sociedad a través de una experiencia educativa feminista, orientada a la construcción colectiva de conocimientos sobre género, violencias y cuidados: la "Formación profesional de multiplicadores para la acogida de mujeres en situación de violencia género ". La metodología utilizada en esta acción extensionista de capacitación y calificación de discentes y profesionales que trabajaban con violencia de género fueron las Oficinas em Dinâmica de Grupo, una práctica de intervención psicosocial que puede ser desarrollada en diferentes contextos, sea él pedagógico, clínico, comunitario o de política social. Las discusiones sobre la experiencia de formación profesional se articulan con contribuciones de la propuesta educativa de Paulo Freire y las pedagogías feministas, indicando la posibilidad de realización de una educación basada en la comunicación y el diálogo, que busca la construcción colectiva del conocimiento y el despertar del sentido crítico del educando a través de sus propias experiencias.
Palabras clave: Calificación. Educación feminista. Violencia de género. Extensión universitaria.
Introdução
A universidade pública, como espaço de produção de conhecimentos, de formação e de integração com a comunidade, por meio de atividades de ensino, pesquisa e extensão, deve estar comprometida com processos e práticas que favoreçam a reflexão dos/as estudantes, a criação de novos problemas e o desenvolvimento de uma atitude crítica frente a problemáticas centrais de nossa época.
Considerando que ainda hoje vivemos em uma sociedade patriarcal, fortemente marcada por desigualdades, discriminações e opressões de gênero, sendo muitas as violências sofridas pelas mulheres, seja no âmbito público, seja no privado (humilhações, desigualdade e precariedade no mercado de trabalho, violência conjugal, violência sexual, assédios, abusos, etc.), podemos afirmar que a violência contra a mulher coloca-se como uma dessas problemáticas que demandam uma atitude crítica para o seu combate e enfrentamento. Surgem assim as seguintes questões: qual o compromisso das universidades com os direitos das mulheres? Que formação essas instituições têm oferecido para os/as futuros/as e atuais profissionais lidarem com toda a complexidade que perpassa o cuidado com as mulheres em situação de violência? Como as instituições públicas de ensino superior podem contribuir para a criação, o desenvolvimento e o aprimoramento de políticas para as mulheres? Quais as possibilidades de intervenção no interior dessas instituições no que concerne à promoção da igualdade de gênero e ao combate e enfrentamento à violência contra as mulheres?
Este trabalho discute a possibilidade de intervenção da universidade na sociedade por meio de uma experiência educativa feminista, voltada para a construção coletiva de conhecimentos sobre gênero, violências e cuidados: a "Formação de multiplicadores para o acolhimento de mulheres em situação de violência de gênero". A ação de formação para a capacitação e qualificação de discentes e profissionais que trabalham com violência de gênero foi desenvolvida no Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, durante o segundo semestre de 2017, no âmbito do Projeto Extensionista "Por que também temos que falar de violência?"1 Afinal, como destaca Matos (2018, p. 231), "na extensão universitária podemos encontrar algumas respostas complexas a problemas igualmente complexos que temos, a cada dia mais, que enfrentar no cotidiano de nossas instituições acadêmico-científicas, na sociedade e também nas instituições estatais".
No espaço da "Formação de multiplicadores para o acolhimento de mulheres em situação de violência de gênero", os saberes e as experiências dos sujeitos-participantes foram reconhecidos e produziram-se discussões relevantes que articularam formação, feminismo e Psicologia, intensificando reflexões sobre a atuação dos/as profissionais de Psicologia - e também de outras áreas - no atendimento às mulheres em situação de violência.
A metodologia utilizada nessa formação denomina-se Oficinas em Dinâmica de Grupo (Afonso, 2000), uma prática de intervenção psicossocial que pode ser desenvolvida em vários contextos, sejam eles pedagógico, clínico, comunitário, seja de política social. Trata-se de uma metodologia participativa que abrange inter-relações e contribuições de diferentes teorias e autores, como é o caso de Paulo Freire.
A seguir, apresentamos e discutimos a experiência da formação, as condições em que foi realizada e a metodologia utilizada, buscando articulá-la às contribuições de Paulo Freire, assim como às pedagogias feministas, "contribuindo para a construção de uma cultura de e para a cidadania, de e para os direitos humanos" (Matos, 2018, p. 233).
Buscamos, assim, dar destaque para o enfoque dialógico, reflexivo e problematizador, que valoriza a dimensão da experiência na construção coletiva do conhecimento, contribuindo para o reconhecimento e o fortalecimento da atuação de discentes e de profissionais diante do problema da violência de gênero.
Formação universitária e violência contra a mulher: (re)pensando nossos processos e práticas educativas
A violência contra a mulher é um problema de saúde pública de proporções epidêmicas no Brasil, embora sua magnitude seja em grande parte invisível. Este problema não pode ser tratado como se fora restrito a alguns segmentos, uma vez que permeia toda a sociedade brasileira. A prevenção e o enfrentamento da violência contra a mulher passam necessariamente pela redução das desigualdades de gênero e requerem o engajamento de diferentes setores da sociedade, para se garantir que todas as mulheres e meninas tenham acesso ao direito básico de viver sem violência. (Garcia, 2016, p. 452).
A violência contra a mulher se configura como um problema social grave, frequentemente legitimado pela sociedade (patriarcal) que, ao banalizar e naturalizar tal violência, nega às mulheres direitos fundamentais e põe em risco suas potencialidades, colocando-as diante de situações de risco, medo, incerteza e silenciamento. Além de ter consequências sociais e econômicas, o fenômeno também figura como um problema de saúde pública, já que os agravos gerados pelas violências são profundos, afetando a saúde e o bem-estar de individualidades e coletividades, sobretudo a saúde física e mental das mulheres.
O combate e enfrentamento desse fenômeno complexo e multifacetado requer análise de múltiplos fatores, incorporação da perspectiva de gênero no cuidado, abordagem multiprofissional e articulação intersetorial dos/as profissionais que trabalham com a violência de gênero, visto que, além de ser uma questão que convoca um novo olhar da/para a sociedade, tem muitas especificidades. Ou seja, trabalhar com violência de gênero requer conhecimentos amplos, não só da área de inserção dos/as profissionais, mas também, e especialmente, das relações de poder que perpassam as relações de gênero, das políticas públicas intersetoriais e da sociedade em geral.
Seguindo o pensamento desenvolvido pela historiadora norte-americana Joan Scott (1995), é fundamental não perder de vista que o gênero é uma forma primária de dar significação às relações de poder, ou seja, é o campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado. Portanto, o fenômeno da violência ganha nova compreensão quando as questões de gênero são introduzidas, evidenciando a assimetria das relações de poder, que transformam a diferença em desigualdade.
Para o historiador Almícar Torrão Filho (2005, pp. 129-130), a virtude de Scott foi "conceituar o gênero enquanto uma categoria útil à história e não apenas à história das mulheres". Lembra-nos que gênero é uma categoria que, além de lançar luz sobre a história das mulheres, propicia-nos um campo fértil de análise das desigualdades e hierarquias sociais, capazes de elucidar "a história de homens, das relações entre homens e mulheres, dos homens entre si e igualmente das mulheres entre si". Por meio dele, propõe-se uma transformação dos paradigmas do conhecimento tradicional, impondo "um reexame crítico das premissas e dos critérios do trabalho científico existente".
A questão que se coloca é que, de um modo geral, por mais que alguns cursos de Psicologia (e de outras áreas ligadas à saúde) ofereçam algumas disciplinas que até possam abordar os estudos de gênero, como tema transversal, há uma lacuna entre estudá-los e trabalhar diretamente com mulheres em situação de violência de gênero.
Estar com essas mulheres pressupõe não só conhecimento teórico das questões que perpassam toda a discussão de gênero, mas também conhecimento muitas vezes de ordem prática, concernentes às políticas públicas e ao manejo de casos que envolvem violência e devem ser tomados singularmente. Ou seja, convoca também uma capacidade do profissional de se dispor a escutar o outro, lidar com seus próprios afetos e realizar intervenções, sem perder de vista a reflexão sobre as estruturas de poder que se colocam no contexto em questão. Demanda do sujeito um fazer que é ação e reflexão crítica simultâneas, uma práxis que, como Freire (1987) nos lembra, não deve reduzir-se nem ao teoricismo nem ao ativismo. Portanto, essa lacuna na formação acadêmica, que não aborda a concretude das especificidades dos casos que envolvem situações de violência contra a mulher, repercute negativamente na prática dos/as profissionais, que se sentem pouco preparados/as qualitativamente para a abordagem de temas delicados que, inclusive, muitas vezes, demandam saber lidar com os próprios afetos.
A pesquisa conduzida por Hasse e Vieira, descrita no artigo "Como os profissionais de saúde atendem mulheres em situação de violência? Uma análise triangulada dos dados" (2014), traz elementos importantes para refletirmos sobre essa lacuna e os afetos que perpassam os profissionais. As autoras evidenciam que a maioria dos profissionais entrevistados no estudo entende ser importante abordar a questão da violência no serviço e na formação, pois o desconhecimento epidemiológico da violência, em especial da perpetrada por parceiros íntimos, corrobora o aumento de sua invisibilidade. Elas também chamam atenção para os processos de formação em saúde que, com currículos ainda muito biologizantes, não trabalham de forma adequada a violência, pois, ao reforçarem o uso de um conceito limitado da saúde, tornam suas práticas reféns de modelos biomédicos, ao mesmo tempo em que inviabilizam uma abordagem transversal da violência que se vincula, necessariamente, às categorias de gênero, raça e classe. Para elas,
A dificuldade dos profissionais em reconhecer a violência como possível causa para diversos sintomas que atendem diariamente parece estar associado ao desconhecimento epidemiológico acerca da violência, que gera uma dificuldade de reflexão sobre o problema. Além disso, as emoções causadas pelas situações de violência, muitas vezes vividas pelos próprios profissionais em suas vidas pessoais, são outros fatores que podem dificultar a reflexão: "Nós tentamos racionalizar até a dor pra poder atender". (Hasse & Vieira, p. 487).
Além disso, vale também questionar se os modelos tradicionais de formação acadêmica - frequentemente baseados em uma concepção de educação vertical e hierárquica, que valoriza a racionalidade, a reprodução de conhecimento de forma acrítica e o desempenho, investe nos especialismos e se efetiva por meio de uma prática "bancária" de transferência, de depósito, de conhecimentos do/a educador/a no/a educando/a (Freire, 1987) - de fato têm colaborado para qualificar a atuação dos/as futuros/as profissionais. Nesse modelo, em geral, há uma valorização da racionalidade em detrimento de um olhar que, ao considerar a integralidade da questão, poderia acolher os afetos e as experiências dos e das estudantes, que, muitas vezes, nos diferentes âmbitos de suas vidas, também lidam com diversas situações de violência. Por exemplo: como ficam as estudantes mulheres que, pelo atravessamento das questões de gênero - interseccionadas com as categorias raça e classe - podem sofrer tipos diversos de discriminação, exploração e opressão, tanto nos espaços públicos (na própria universidade, nos estágios, na rua, etc.), como no âmbito privado de suas relações afetivas e familiares? Na sala de aula, quando porventura conteúdos relacionados a gênero e violência são abordados, há espaço para que essas estudantes possam compartilhar suas experiências e afetos?
As nossas pedagogias de resistência2 revelaram para ouvidos preparados para, de fato, acolher a escuta que saberes e conhecimentos libertadores para as mulheres só se realizam na medida em que elas próprias se engajam e despertam em si consciência crítica e desejo de autonomia nos processos formativos. Estes, por sua vez, precisam partir da concretude das experiências e histórias de vida delas e não podem ser tomadas de campos cristalizados e já estabelecido nas ciências. (Matos, 2018, p. 238).
Seguindo o pensamento de hooks (2017), na busca pela afirmação de uma Pedagogia engajada de forte inspiração freiriana, podemos ainda perguntar: será que os/as educadores/as estão dispostos/as a reconhecer que há uma ligação entre as ideias aprendidas no contexto acadêmico e as aprendidas pela prática da vida?
É nesse sentido que, diante das demandas que se colocam na formação de profissionais para o enfrentamento da problemática da violência de gênero, processos educativos voltados para a construção coletiva e compartilhada do conhecimento, que rompem com a lógica tradicional da educação, podem ser uma valiosa ferramenta no fortalecimento do fazer dos/as futuros/as profissionais. As contribuições de Paulo Freire nos são bastante relevantes, considerando sua concepção de educação como processo transformador, fundamentado em uma relação baseada no diálogo, na escuta e no respeito entre educador/a e educando/a, o que implica no reconhecimento e valorização do saber desse/a último/a. Ou seja, assim como na perspectiva feminista, o saber forjado nas experiências de vida é valorizado, respeitado e incorporado como um dos aspectos do processo de construção do conhecimento. Freire (1987) considera ainda que a educação é sempre um ato político e que as práticas educativas devem ser pautadas na formação crítica dos/as educandos/as, o que não pode ocorrer por meio do simples depósito de conteúdos, mas sim pela problematização dos sujeitos em suas relações com o mundo. Assim, em vez de serem "recipientes dóceis de depósitos", os sujeitos passam a ser "investigadores críticos", em diálogo com o/a educador/a, também investigador/a acrítico/a. Trata-se de uma educação que acontece na relação dos sujeitos entre si, mediatizados pelo mundo, que vai ao encontro da proposta de Haraway (1995) de uma produção de ciência situada e corporificada, de saberes parciais, localizáveis, críticos, apoiados na possibilidade de redes de conexão; um conhecimento produzido por meio de interações e mediações, tecidas em um meio heterogêneo.
Na prática, para concretizar essa educação política problematizadora comprometida com a formação crítica dos/as educandos/as, é importante que os/as educadores/as se ocupem de algumas tarefas, engajando-se em algumas estratégias pedagógicas, por exemplo: o repensar permanentemente a prática educativa; o uso de técnicas e recursos didáticos que estimulam o senso crítico, a criatividade e o interesse; tratar os conteúdos de forma a articular teoria e prática política; buscar relacionar o local com o global; ter atenção constante às mudanças contextuais, às necessidades de cada momento, etc.
Procuramos nos ocupar dessas tarefas durante o planejamento e a realização da experiência em educação feminista apresentada a seguir, que ofereceu uma formação introdutória para o trabalho com mulheres em situação de violência por meio de uma metodologia dialógica e participativa, as Oficinas em Dinâmica de Grupo (Afonso, 2000). Por meio dessa formação, voltada para estudantes, profissionais e voluntários/as que trabalhavam ou tinham interesse pela questão da violência contra a mulher, foram abordadas algumas temáticas fundamentais para o enfrentamento à violência de gênero, fazendo uso de ferramentas, técnicas, atividades vivenciais e debates que contribuíssem para o trabalho cotidiano de acolhimento e atendimento às mulheres em situações de violência.
As Oficinas em Dinâmica de Grupo e a formação de multiplicadoras: possibilidades de transformação do contexto da sala de aula
As Oficinas em Dinâmica de Grupo constituem-se em um trabalho estruturado com grupos que, independentemente da quantidade de encontros, têm como foco uma questão central que o grupo se propõe a refletir e elaborar, em um contexto social. Tal elaboração almejada nas oficinas não se reduz a uma reflexão racional, mas envolve os sujeitos de forma integral, abarcando modos de pensar, agir e sentir (Afonso, 2000). Permite assim que o grupo reflita, elabore e promova mudanças pessoais e sociais, inserindo-se numa perspectiva emancipatória que assegura aos indivíduos um espaço de reflexão e reconstrução de práticas e hábitos.
Essa metodologia possibilita o uso de técnicas lúdicas, que facilitam o processo de motivação, interação, reflexão, elaboração e mudança no grupo, porém, as atividades lúdicas devem ser usadas com cuidado, e sempre como um meio e não como um fim em si mesmo, sendo importante combiná-las com momentos de reflexão e de elaboração, por intermédio da circulação da palavra e da troca de experiências. Esse trabalho deve contar ainda com um planejamento flexível que possibilite mudanças no planejamento inicial, permitindo assim o acompanhamento do processo do grupo.
As oficinas que compuseram a "Formação de multiplicadores para o acolhimento de mulheres em situação de violência de gênero"3 contaram com a participação de alunas da graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), integrantes do projeto extensionista em questão, e que realizavam não só ações de sensibilização e orientação no território,4 com mulheres, mas também atendimentos clínicos voltados às mulheres expostas e/ou em situação de violência. Participaram também duas psicólogas e três assistentes sociais vinculadas ao projeto, por meio das parcerias interinstitucionais realizadas com os dispositivos (da saúde e assistência social) nos quais desenvolviam suas atividades profissionais, e que eram acessados pelas mulheres em situação de violência.
Atuamos como facilitadoras desse grupo de formação, que contou com oito encontros de três horas cada, realizados quinzenalmente, com uma média de quinze participantes, sendo dez alunas da graduação de Psicologia UFF, em períodos diversos da formação, duas psicólogas e três assistentes sociais que desenvolvem suas atividades em serviços parceiros do Projeto. Das alunas da graduação, cinco já eram discentes extensionistas e cinco pleiteavam vaga para ingressar no Projeto. Todas elas eram de classe média, na faixa dos 22 anos. Oito brancas, uma parda e uma negra. As alunas ingressaram na universidade pela ampla concorrência, a exceção da aluna negra, que não ingressou via Enem, mas pelo processo de revinculação, uma vez que já tinha completado outra graduação na própria UFF. As profissionais, jovens mulheres brancas, com idade entre 24 e 30 anos, classe média, desenvolviam atividades no SUS e no Suas. Uma delas era casada e mãe. Todas eram mulheres cisgêneras, heterossexuais. Nenhuma era deficiente.
Descreveremos, a seguir, o modo como os encontros se organizaram, narrando mais detalhadamente o primeiro encontro, pela sua relevância para a compreensão da construção da proposta de trabalho e para a efetivação de uma pedagogia engajada, que, de acordo com hooks (2017, p. 31), valoriza a expressão do/a aluno/a "sem reforçar sistemas de dominação existentes".
O objetivo do primeiro encontro da formação era realizar o acolhimento e o conhecimento inicial das participantes, por meio da apresentação dos objetivos das oficinas e de um momento de apresentação das próprias participantes. Outro objetivo era o de construir o "contrato" do grupo, por meio de acordos e combinados importantes para o seu funcionamento, bem como levantar as expectativas e os temas que seriam trabalhados ao longo da formação. Assim, em um primeiro momento, depois de as facilitadoras darem as boas-vindas e apresentarem os objetivos das oficinas de formação, foi proposta uma técnica de interação entre as participantes, buscando facilitar a apresentação de cada uma para o grupo.
As participantes formaram duplas e, depois de conversarem durante alguns minutos sobre suas trajetórias de vida e sobre as experiências que as constituem como mulheres, cada uma apresentou sua dupla para as demais. Logo a seguir, foi entregue uma folha de papel em branco para cada participante e foi pedido que elas escrevessem uma carta de acordo com duas instruções: a carta deveria ter um destinatário e deveria responder à seguinte pergunta: qual a sua questão com a violência de gênero? O objetivo dessa atividade foi criar condições que favorecessem a emergência das experiências de cada uma das participantes com relação ao tema central da oficina, sensibilizando-as para o início do trabalho com a violência de gênero. Depois de finalizarem a escrita, cada participante leu ou comentou sua carta, que teve como destinatário diferentes figuras/personagens, por exemplo: o presidente do país, o pai de uma das participantes, um amigo, a própria pessoa que escrevia a carta, o Departamento de Segurança Pública, o curso de Psicologia daquela universidade, as facilitadoras da oficina e até um canivete!
Embora possa parecer estranha a escrita de uma carta destinada a um objeto inanimado, a participante, em breves palavras, falou do medo que a assalta: o medo de ser mulher em uma sociedade patriarcal e o medo de sofrer violência. E abordou, principalmente, a ambivalência diante do objeto que lhe dá paz, ao mesmo tempo em que a assusta; o objeto que toma como seu amigo, mas que queria que jamais existisse.
Querido Canivete, primeiramente, gostaria de agradecer por todas as noites escuras que te ter em mãos me possibilitou paz. Diante da ansiedade de chegar em casa, o nervosismo ao escutar passos lentos e a paralisia ao ímpeto de olhar para trás, tive em mãos você, caro canivete, uma esperança de um tudo ou nada. Pode ser que você não entenda por agora, mas essa carta na verdade é uma despedida. A segurança que você me proporciona também me assusta. Assusta-me precisar de você para ir à esquina comprar um pão. Gostaria de poder explicar melhor, mas não posso ter como amigo algo que eu queria que nem existisse. Com amor, e muita coragem.5
O conteúdo das cartas variou, mas sempre estava relacionado com as vivências das participantes e também com questões abordadas pelos feminismos, tais como: a naturalização de silenciamentos, assédios e violências de diversos tipos contra as mulheres em nossa sociedade machista e patriarcal; a importância da união e da solidariedade das mulheres na luta contra a violência de gênero; a necessidade de implantação e efetivação de políticas públicas de qualidade para o enfrentamento dessa violência; os efeitos da violência de gênero na vida da mulher e dos/as filhos/as; questionamentos dos estereótipos atribuídos às mulheres e das desigualdades de oportunidades no mercado de trabalho; entre outros.
Esse momento de compartilhamento foi muito rico, permitindo-nos começar a perceber o modo como cada participante se relacionava com o tema por meio dos diferentes elementos que foram acionando na escrita das cartas, possibilitando assim o início do debate sobre a relevância de uma formação voltada para o enfrentamento da violência de gênero.
Em seguida, junto com as participantes, realizamos o levantamento e ordenamento dos conteúdos que seriam trabalhados na formação. Como facilitadoras, explicamos que, pela nossa atuação nas políticas públicas para mulheres em situação de violência, considerávamos que algumas temáticas eram fundamentais de serem abordadas ao longo das oficinas e, como estávamos sentadas em círculo, espalhamos no centro da roda, no chão da sala, alguns cartões com esses temas escritos: socialização de gênero; desigualdade de gênero; tipos de violência contra a mulher; ciclo da violência; mitos da violência; Lei Maria da Penha; rede de enfrentamento à violência. Deixamos cartões em branco e canetões ao alcance das participantes e então pedimos que elas pensassem e escrevessem livremente outros temas e assuntos que achassem relevantes para a formação, surgindo assim outras temáticas: masculinidades; mulheres trans; mulheres negras; corpo; romantização da violência; violência obstétrica; cuidado; violência e uso de álcool e outras drogas; os impactos da violência no corpo e na saúde mental das mulheres em situação de violência; movimentos feministas.
Por fim, as participantes foram movendo os cartões espalhados no chão e experimentando diferentes propostas e configurações, de modo que construímos conjuntamente um ordenamento para os temas a serem trabalhados ao longo dos encontros da formação. Chegamos, assim, ao seguinte planejamento geral:
Combinamos que esse ordenamento das temáticas poderia ser modificado, que o planejamento poderia ser revisto ao longo do trabalho, de acordo com as necessidades do grupo e do modo como as discussões se desenrolassem no decorrer dos encontros. Também construímos o contrato grupal, estabelecendo com as participantes alguns combinados para o bom funcionamento do trabalho, que diziam respeito, por exemplo, ao horário e local dos encontros, sigilo, uso de celulares, etc. As participantes também propuseram que ao fim de cada encontro fosse construída uma frase coletiva que sintetizasse o trabalho realizado no dia. Esses pactos foram escritos em uma cartolina à medida que foram sendo construídos.
Ao fim desse encontro introdutório, foi realizada uma breve avaliação do trabalho realizado no dia e as participantes demonstraram grande expectativa para a discussão dos temas propostos. A frase criada coletivamente para sintetizar o trabalho do dia foi "histórias cruzadas: construindo caminhos", remetendo às experiências e histórias compartilhadas entre as participantes por meio das cartas que escreveram.
Conforme previsto na metodologia das Oficinas em Dinâmica de Grupo (Afonso et al., 2006), buscamos estruturar os demais encontros, em que trabalhamos as diferentes temáticas mencionadas anteriormente, em 3 momentos: 1. Um momento introdutório, breve, em que era retomado verbalmente o que havia sido trabalhado nos encontros anteriores e as participantes eram preparadas para o trabalho a ser realizado no dia, seja por meio de uma dinâmica ou técnica de aquecimento, seja mesmo por meio de uma conversa que atualizava a proposta daquele encontro. 2. Um momento intermediário, que tomava a maior parte do encontro, em que o grupo se envolvia com atividades variadas com o intuito de refletir e elaborar o tema trabalhado. Nessa parte do encontro, recorremos a diversas ferramentas e recursos para facilitar a elaboração da temática do dia: técnicas e dinâmicas variadas, filmes, documentários, participação de convidadas que trabalhavam ou pesquisavam o tema para o compartilhamento de suas experiências, etc. Esses recursos eram usados seguidos ou mesmo intercalados com momentos de conversa e reflexão sobre os sentimentos e ideias das participantes sobre as situações vividas e experimentadas no encontro, sempre buscando expandir essas vivências para pensar situações cotidianas parecidas relacionadas ao tema abordado. Também era um momento de compartilhar informações sobre o tema, em articulação com as experiências e saberes compartilhados pelas participantes, possibilitando composições e a produção de novos sentidos sobre a temática trabalhada no encontro. 3. Um momento de fechamento, em que era realizada uma síntese do trabalho realizado no dia, construindo-se coletivamente uma frase que resumia esse trabalho. Nesse momento, as participantes e as facilitadoras, conjuntamente, também faziam uma breve avaliação do encontro, refletindo e trocando impressões sobre as atividades desenvolvidas. E, por fim, era apresentado o tema a ser trabalhado no encontro seguinte.
É importante destacar que esses três momentos estruturantes dos encontros não eram estanques ou enrijecidos, e que, no desenvolvimento desse tipo de trabalho de formação, é necessária abertura e flexibilidade para que eles sejam revistos e alterados, dependendo do acontece no espaço do grupo e das necessidades colocadas pelas participantes. Nesse sentido, é fundamental que as facilitadoras se atentem para o caráter vivo e dinâmico dessas oficinas, que podem ter imprevistos das mais diversas ordens, situações novas, inesperadas, que rompem com o planejamento inicial e demandam inventividade.
O último encontro da formação, contou com a presença de uma ativista feminista integrante dos movimentos "PartidA RJ" e "Articulação de Mulheres Brasileiras" para compartilhar sua trajetória e experiência nos movimentos de mulheres, contribuindo, assim, para a discussão sobre o tema previsto para o dia: os movimentos feministas.
Entre os conteúdos que apareceram na discussão, ganhou destaque a importância de afirmar um feminismo antirracista, anticapitalista e anticolonialista, em uma perspectiva interseccional, que leva em consideração a inter-relação entre diferentes modalidades de opressão experienciadas pelas mulheres. As participantes do grupo, cientes das discussões conceituais que envolvem a tríade gênero, raça e classe, corroboravam o chamado feminismo interseccional e, com Akotirene (2018, p. 23), afirmavam:
Acreditamos que a política sexual sob o patriarcado é tão onipresente nas vidas das mulheres negras, quanto às políticas de classe e raça. Também achamos, muitas vezes, difícil separar opressões de raça, classe e sexo porque, nas nossas vidas, elas são quase sempre experimentadas simultaneamente.
Com relação às múltiplas perspectivas dos movimentos feministas, foi debatida a importância de valorizar a diversidade das mulheres, mas também de dialogar e construir coalizões diante de lutas comuns. A frase construída coletivamente ao fim da discussão apontou exatamente para essa diversidade do movimento: "articulando mulheres na luta: a diversidade feminista".
Além do trabalho com o tema do dia, uma parte do encontro foi destinada à realização de uma avaliação de todo o processo de formação e uma despedida, com a elaboração do fim da oficina. Nesse momento, retomamos em conjunto com as participantes o trabalho desenvolvido desde o primeiro encontro e os materiais produzidos ao longo dos encontros ficaram expostos na sala para facilitar o rememorar de todo o processo. De um modo geral, as participantes avaliaram positivamente o processo, tanto com relação à metodologia utilizada quanto em relação aos conteúdos trabalhados, dando destaque positivo para algumas atividades vivenciais realizadas durante a oficina e para o uso de alguns recursos, como filmes e documentários. Um ponto apontado como problemático foi com relação ao 7º encontro, em que planejamos trabalhar com várias temáticas, mas não tivemos tempo hábil para aprofundá-las, ficando o trabalho com alguns conteúdos prejudicados.
As frases formuladas depois de cada um de nossos encontros demonstraram não só a abrangência das temáticas abordadas, mas também a potência do trabalho realizado, reafirmando "a urgência de deslocar as atividades de extensão de seu lugar secundário dentro das universidades e na academia brasileira" (Matos, 2018, p. 230). Revelaram que, partindo da reflexão e do compartilhamento das experiências pessoais, são produzidas ressonâncias entre as participantes, que apontam para o modo violento como as macroestruturas de nossa sociedade patriarcal continuam atravessando nossos corpos de mulheres, indicando assim que ainda há muito a ser discutido para que a luta contra a violência de gênero avance.
A relevância da experiência, da dialogicidade e da problematização nos processos formativos
Freire nos traz uma compreensão da educação como processo dialógico que só se realiza por meio da problematização do mundo, questionando a assimetria de poder na aprendizagem, considerando que o saber não é algo que um sujeito possa dar a outro sujeito, mas é produzido em interação, nas relações concretas, em um contexto. Assim, o/a educador/a não pode se colocar como detentor/a da verdade, mas sim como alguém que trabalha com as experiências do grupo, com os entraves à aprendizagem e à elaboração, produzindo saber coletivamente, na interação com os/as educandos/as e mediatizados pelo mundo. É assim que o sujeito produz uma compreensão crítica sobre seu contexto e sobre si próprio e amplia o seu engajamento em ações de transformação social.
A experiência educativa aqui apresentada buscou fortalecer essa compreensão crítica das participantes por meio de um enfoque dialógico e reflexivo construído em torno de temas e problemas relacionados à violência contra a mulher, cujo debate desafiou o grupo à reflexão e aprendizagem. Considerando que as temáticas trabalhadas foram selecionadas pelas facilitadoras da oficina em conjunto com as participantes, e que, conforme Freire afirma em Pedagogia do Oprimido (1987), o diálogo começa no momento da escolha do conteúdo programático, que se organiza e se constitui a partir da visão de mundo dos/as educandos/as, podemos dizer que um diálogo legítimo entre facilitadoras e participantes da oficina também se iniciou no primeiro encontro da formação.
Do mesmo modo que as palavras geradoras6 de Freire, as temáticas trabalhadas na oficina também devem mobilizar o grupo porque se relacionam à experiência, tocam em necessidades, receios, dúvidas, conflitos e possibilidades, estimulando a participação e a troca de experiências (Afonso et al., 2006). Por isso, a escolha dos temas foi feita a partir do diálogo com as participantes da formação, levando-se em consideração o que elas acreditavam e sentiam ser importante abordar, respeitando sempre o que surgia no grupo que se constituiu.
Freire propõe que os "conteúdos programáticos" sejam primeiro escolhidos pelos/as educandos/as, e só depois o/a educador/a inclui os temas que não foram sugeridos por aqueles, mas considera fundamental para o trabalho educativo em questão, chamando esses temas de temas-dobradiça. O autor explica como funcionava esse processo no projeto dos círculos de cultura realizados no interior do Movimento de Cultura Popular (MCP):7
Os projetos dos círculos de cultura do MCP não tinham uma programação feita a priori. A programação vinha de uma consulta aos grupos, quer dizer: os temas a serem debatidos nos círculos de cultura, era o grupo que estabelecia. Cabia a nós, como educadores, com o grupo, tratar a temática que o grupo propunha. Mas podíamos acrescentar à temática proposta este ou aquele outro tema que, na Pedagogia do Oprimido, chamei de "temas de dobradiça" - assuntos que se inseriam como fundamentais no corpo inteiro da temática, para melhor esclarecer ou iluminar a temática sugerida pelo grupo popular. Porque acontece o seguinte: é que, indiscutivelmente, há uma sabedoria popular, um saber popular que se gera na prática social de que o povo participa, mas, às vezes, o que está faltando é uma compreensão mais solidária dos temas que compõem o conjunto desse saber (Freire & Betto, 2003, p. 14).
Mesmo que na Formação de Multiplicadoras a escolha das temáticas não tenha seguido exatamente a proposta freiriana, é possível tecer aproximações, no sentido de que também não tínhamos uma programação feita a priori, que o planejamento foi construído a partir do diálogo com o grupo, tendo as participantes a possibilidade não só de escolher temáticas de seu interesse, mas também de participarem ativamente do ordenamento dos temas para os encontros. Assim, o conteúdo da formação não foi imposto às participantes, mas também partiu delas, que, em diálogo com as facilitadoras, puderam manifestar suas demandas, desejos e anseios, dando início à dialogicidade em um processo educativo que não fechou os olhos para o que tinha implicação direta na vida das participantes.
Para que a dialogicidade, que se iniciou na escolha dos conteúdos da formação, perpassasse todo o processo educativo, durante os encontros lançamos mão de diferentes estratégias, com destaque para as seguintes: a escuta atenta e a valorização das experiências das participantes, que, de algum modo, já vivenciaram em suas vidas situações de opressão, discriminação ou mesmo de violência pelo simples fato de serem mulheres, devendo, pois, serem reconhecidas como sujeitos do conhecimento e da ação política transformadora; o diálogo problematizador entre as diferentes perspectivas dessas mulheres; e o estímulo constante de um posicionamento crítico diante das questões de gênero e dos aspectos naturalizados da vida cotidiana.
Levando em conta as afinidades da proposta de Freire com o feminismo, no sentido de que apontam para a importância da experiência, considerada por ambos como desencadeadora da produção do conhecimento, essas estratégias dialógicas utilizadas na formação de multiplicadores podem nos direcionar para a construção de uma práxis educacional feminista, em que a formação se dá num processo permanente de reflexão sobre as experiências individuais e coletivas das participantes, por meio de técnicas, ferramentas e intervenções que alargam a compreensão crítica dos diferentes temas que perpassam as discussões de gênero e, consequentemente, também ampliam seu engajamento para a transformação social. Para tal, salientamos mais uma vez o quanto foi importante ouvir as participantes das oficinas em seus anseios, suas experiências e seus saberes, trazendo suas perspectivas sobre as diferentes temáticas relacionadas a gênero e violência. Ou seja, uma exigência pedagógica fundamental nesse processo é ter sempre como foco os sujeitos participantes do processo educativo e o contexto no qual estão inseridos, deslocando assim as relações hierárquicas entre professores e alunos, muitas vezes permeadas por desconfiança, e privilegiando as possibilidades de composição com o outro, com a diferença, de modo a propiciar o compartilhamento de questões.
Reconhecer os sujeitos-participantes como protagonistas na troca de experiências e no aprendizado compartilhado, numa concepção de educação como um processo coletivo, requer uma postura humilde do/a educador/a. Humilde no sentido de que, nesse processo educativo coletivo, cabe ao/à educador/a criar ferramentas e mecanismos pedagógicos para a expressão e elaboração das questões, das experiências, das dúvidas e incertezas dos/as educandos/as, sem ter a pretensão de impor sua visão, sua postura a eles/as. Freire nos lembra que a humildade é condição para o diálogo, enquanto a autossuficiência é incompatível com este. É preciso que o/a educador/a assuma uma postura humilde, de respeito às experiências e saberes dos/as educandos/as para reconhecer que "ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho; os homens se libertam em comunhão" (Freire, 1987, p. 29).
Como facilitadoras da formação, buscamos exercitar essa postura humilde, de valorização das experiências e dos saberes dos sujeitos-participantes para que o diálogo pudesse se dar em uma relação horizontal, que, por meio de problematizações, buscava sempre um pensar crítico sobre as questões relacionadas à violência contra a mulher. Para operacionalizar essa relação horizontal com as participantes do grupo, realizamos com elas as tarefas e atividades propostas a cada encontro, de modo que também compartilhamos nossas experiências de mulheres. Aqui vale ainda destacar que a valorização das experiências e o respeito do saber das participantes das oficinas não significava que as facilitadoras ficassem presas e aderidas somente a essas experiências. Em Pedagogia da Esperança, Freire (1992/2006, p. 119) destaca que o respeito a esses saberes, "para ir mais além deles, jamais poderia significar - numa leitura séria, radical, por isso crítica, sectária nunca, rigorosa, bem-feita, competente, de meus textos - deve ficar o educador ou a educadora aderida a eles, os saberes de experiência feitos". É nesse sentido que o autor nos alerta para o risco de fazermos um uso distorcido do diálogo, o que acontece, por exemplo, quando ele é convertido num simples "bate-papo desobrigado" entre educadores/as e educandos/as.
Não há diálogo no espontaneísmo como no todo-poderosismo do professor ou da professora. A relação dialógica, porém, não anula, como às vezes se pensa, a possibilidade do ato de ensinar. Pelo contrário, ela funda este ato, que se completa e se sela no outro, o de aprender, e ambos só se tornam verdadeiramente possíveis quando o pensamento crítico, inquieto, do educador ou da educadora não freia a capacidade de criticamente também pensar ou começar a pensar do educando. Pelo contrário, quando o pensamento crítico do educador ou da educadora se entrega à curiosidade do educando. Se o pensamento do educador ou da educadora anula, esmaga, dificulta o desenvolvimento do pensamento dos educandos, então o pensar do educador, autoritário, tende a gerar nos educandos sobre quem incide um pensar tímido, inautêntico ou, às vezes, puramente rebelde. (Freire, 1992/2006, p. 163).
Daí a importância de um diálogo autenticamente problematizador, que dê visibilidade para as diferentes perspectivas em jogo e possibilite novas composições entre as experiências e os saberes dos/as educando/as e do/a educador/a, incorporando uma perspectiva crítica a esses saberes da experiência, que amplia o engajamento em um agir transformador. Como facilitadoras, foi esse o nosso esforço no desenvolvimento da formação de multiplicadoras para o enfrentamento à violência de gênero.
Considerações finais
As discussões tecidas neste artigo indicam a possibilidade de realizarmos uma educação baseada na comunicação e no diálogo, que não pode ser caracterizada como depósito ou transferência de saber, mas como encontro de sujeitos que buscam aprender algo no mundo (Coimbra, 2000); uma educação que busca a construção coletiva do conhecimento e o despertar do senso crítico do/a educando/a por meio de suas próprias experiências e do/a educador/a por meio da produção de outros modos de olhar para os processos formativos.
Esse despertar crítico dos/as educandos/as só é possível quando assumimos a impossibilidade de uma educação baseada na neutralidade, quando reconhecemos que a educação que recebemos e transmitimos nunca é politicamente neutra (hooks, 2017) e que é necessário adotar um posicionamento crítico sobre a situação dos grupos violados pela lógica dominante, para que a mudança seja possível. Como Freire (1987) afirma, ensinar exige essa crença de que a mudança é possível, e foi essa convicção que orientou a formação de multiplicadoras ao buscar promover uma educação comprometida com a transformação da condição das mulheres, em especial daquelas em situação de violência.
Afinal, a violência contra a mulher exige descolonizar as práticas profissionais, repensando modelos de intervenção tradicionais, principalmente aqueles modelos voltados para a individualidade. É preciso muita atenção para, como profissionais, nos nossos diferentes campos de atuação, em especial nas políticas públicas, não operacionalizarmos lógicas opressivas, racistas, sexistas, tencionando práticas e intervenções hegemônicas que não levam em conta as especificidades dos contextos socioculturais das mulheres. É preciso lembrar a todo o momento que "indivíduos de diferentes origens precisam de uma teoria feminista que dialogue com a vida que têm" (hooks, 2019, p. 165). Trata-se de promover alternativas comprometidas com uma perspectiva política e social que favoreçam as condições para superação da situação de violência, potencializando a crítica social sobre o papel da mulher na sociedade e sobre as formas que essa sociedade cria para enfrentar a violência.
É, pois, inegável a importância de uma formação diferenciada para os/as profissionais que trabalham com o atendimento de mulheres em situação de violência, uma vez que as violências de gênero demandam, necessariamente, que sejam desenvolvidas competências e habilidades para se trabalhar em redes de cuidados, multiprofissionais e intersetoriais. No que diz respeito especificamente à formação em Psicologia, em grande parte baseada em um modelo de ciência positivista e androcêntrica, que se pretende neutra e cujos processos educativos frequentemente não consideram o contexto social, cultural e político em que se inserem, torna-se cada vez mais fundamental a luta pela afirmação de uma Psicologia feminista que promova o princípio do ativismo social, da implicação com as causas dos grupos sub-representados, comprometendo-se com uma mudança social, e também buscando diluir uma perspectiva autocrática e a imposição de um conhecimento universal (Nogueira, 2017).
O enfrentamento à violência de gênero e as transformações nas vidas das mulheres em situação de violência exigem essa formação crítica dos sujeitos, dos/as futuros/as profissionais de nossa sociedade. E, sem dúvida, a universidade pública e a formação em Psicologia - majoritariamente composta por discentes do sexo feminino - têm muito a contribuir com esse processo de mudança, sendo um dos caminhos fundamentais a formação de atores políticos engajados, como ilustramos por meio da discussão da "formação de multiplicadores para o enfrentamento à violência de gênero".
Realizada no formato de oficinas, essa formação representou uma potente experiência político-pedagógica, possibilitando uma interação dialógica entre estudantes e profissionais que trabalham com violência contra a mulher, oferecendo visibilidade e reconhecimento às experiências de vida e trabalho desses sujeitos participantes. Nesse processo, foi ainda fundamental saber lidar com dores e outros sentimentos compartilhados: "para além da inerente atitude de escuta, reconhecimento e acolhimento, foi preciso transformar a matéria bruta desse afeto comum em saber, em conhecimento, e, sobretudo, em ações" (Matos, 2018, p. 45). Tudo isso contribuiu para uma construção compartilhada de conhecimento que fortalece práxis comprometidas com transformações no trabalho com mulheres em situação de violência e nas relações sociais mais amplas.
Podemos dizer também que, baseando-se na construção da dialogia, foi possível colocar em análise as práticas e processos produzidos pelo/as profissionais no atendimento às mulheres em situação de violência, potencializando não só a qualidade dos atendimentos e intervenções realizadas com esse público, mas também as discussões acerca dos dilemas, tensões e as perspectivas inerentes à temática.
Tudo isso possibilitou um aprendizado valioso também para nós, facilitadoras dessa experiência formativa, que abriu espaço para a circulação de diversos afetos, produzindo deslocamentos que nos permitiram olhar para os processos educacionais de uma perspectiva ainda mais crítica. Isso porque as discussões e os debates produzidos colocaram em evidência os limites de uma formação que, de alguma maneira, ainda se encontra aprisionada a um modo hegemônico de fazer e construir conhecimento em Psicologia.
Portanto, para finalizar, reafirmamos o papel fundamental da extensão universitária numa produção e troca de conhecimentos que incluem práticas e intervenções "criativas", que, por sua vez, nos convocam a (re)pensar e questionar as formas convencionais - e comumente autoritárias - de produção de conhecimento e ciência, num esforço para desmitificar a "neutralidade das pedagogias, das metodologias, e, afinal, das próprias ciências, recobrindo o compromisso ético e político com a transformação do status quo" (Matos, 2018, p. 31). Trata-se de dar ênfase para a interação social dialógica e para a transformação social, duas das principais diretrizes da extensão universitária, que, no nosso caso, se efetivaram por meio do compromisso ético com a transformação das violências e opressões vivenciadas pelas mulheres em nossa sociedade.
Referências
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Recebido em: 6/9/2019
Aceito em: 19/6/2020
1 O projeto vincula-se ao Programa UFF Mulher, uma ação extensionista da Pró-Reitoria de Extensão (Proex/GSI), que desenvolve ações para a promoção do diálogo e de trocas de saberes entre a Universidade e a sociedade, por meio de atividades que não só valorizam o papel da extensão universitária, mas também colocam em cena as violências de gênero, principalmente contra as mulheres. Suas ações são centradas em três eixos de atuação: a) atividades e eventos no território; b) formação de profissionais psicólogos sensíveis e comprometidos com o enfrentamento da violência contra a mulher; c) prestação de serviço à comunidade - - sob a forma de atendimento psicológico às mulheres em situação de violência de gênero.
2 Grifos da autora.
3 Ressalta-se que foi aberto link de inscrição para a atividade, através da PROEX, para toda comunidade interna da UFF, sendo oferecidas 25 vagas.
4 As atividades foram realizadas em diversas regiões administrativas da cidade de Niterói.
5 Todas as participantes da formação autorizaram a reprodução de suas cartas, resguardando o seu anonimato.
6 Palavras geradoras são palavras-chave que, decompostas em seus fonemas, possibilitam o surgimento de novas palavras pela combinação daquelas. Assim, por exemplo, a palavra FAVELA poderia gerar: favo, fivela, luva, leva, vovó, fala, lavava, fila, etc. (Coimbra, 2000). De acordo com a metodologia de Freire, a escolha das palavras geradoras deve ser realizada na área popular, no local onde o trabalho de alfabetização iria acontecer, por meio de uma pesquisa temática. "Era tentando compreender a linguagem popular e descobrir as palavras mais carregadas de emoção, mais carregadas de sensibilidade, mais ligadas à problemática da área, que a gente elaborava o programa" (Freire & Betto, 2000, p. 19).
7 De acordo com Coimbra (2000), o Movimento de Cultura Popular (MCP) foi fundado em Recife-PE, em maio de 1960, apoiado pela prefeitura local, com a participação de estudantes, artistas e intelectuais que se preocupavam em combater o analfabetismo e "elevar o nível cultural do povo". Influenciado por ideias socialistas, marxistas e cristãs, o MCP buscava promover a conscientização das massas e, além das atividades de alfabetização, promovia atividades culturais diversas (teatro, música, cinema, canto, dança, etc.). A alfabetização proposta era por meio do rádio, com recepção organizada em escolas experimentais e, no geral, seguia os mesmos princípios de educação popular defendidos naquele período: era preciso "integrar o educando à vida política e cultural do país"; era necessário "conscientizá-lo". Freire participou ativamente do MCP de 1960 a 1962.