Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.4 São João del-Rei oct./dez. 2020
Os fios de Caracol: mulheres em danças de si
Snail Threads: Women Dancing Their Own
Hilos de Caracol: mujeres en danzas de sí
Ana Gabriela Machado de FariasI; Michele de Freitas Faria de VasconcelosII
IMestranda em Psicologia (PPGPSI/UFS). Graduada em Psicologia (UFS)
IIDoutora em Educação (UFRGS). Mestra em Saúde Coletiva (ISC/UFBA). Graduada em Psicologia (UFS). Professora do Departamento de Psicologia e do PPGPSI da Universidade Federal de Sergipe
RESUMO
O presente trabalho tem como proposta a composição de um corpo-escrita por meio de narrativas de mulheres que dançam, ensaiando outros modos de existência a partir dos seus corpos generificados, femininos. O campo de pesquisa emergiu do encontro entre uma pesquisadora e dançarina e mulheres num espetáculo dançado, no qual o signo mulher nos apequena e performamos para multiplicar e profanar gestos, língua, sentidos. Tomando como pista metodológica a cartografia, entendemos a atividade de pesquisa como um acompanhamento de processos em curso, de derivas subjetivas. Seguimos, então, a partir desse campo, a invenção de um corpo que se revolve na sua própria história diante das marcas que lhe foram impostas e o constituem. Numa dança de si, amplia sensibilidades, transmuta e se produz no ilocalizável. Nessa experimentação, arte e clínica aparecem articuladas e emergindo de um plano comum.
Palavras-chave: Corpo. Mulher. Dança. Clínica. Cartografia.
ABSTRACT
The present work proposes the composition of a body-writing through narratives of women who dance, rehearsing other modes of existence from their gendered, feminine bodies. The research field emerged from the encounter between a researcher and dancer and women in a dance show where the sign woman is small and we perform to multiply and desecrate gestures, language, senses. Taking cartography as a methodological clue, we understand the research activity as an accompaniment of ongoing processes, of subjective drifts. We followed, then, from that field, the invention of a body that revolves in its own history in the face of the marks that were imposed on it and constitute it; in a dance of itself, it broadens sensibilities, transmutes and is produced in the illocalizable. In this experimentation, art and clinic appear articulated and emerging from a common plan.
Keywords: Body. Dance. Clinic. Woman. Cartography.
RESUMEN
El presente trabajo propone la composición de una escritura corporal a través de narraciones de mujeres que bailan, ensayando otros modos de existencia a partir de sus cuerpos femeninos y de género. El campo de investigación surgió del encuentro entre un investigador y bailarín y mujeres en un espectáculo de danza donde la mujer de los signos es pequeña y actuamos para multiplicar y profanar gestos, lenguaje, sentidos. Tomando la cartografía como una pista metodológica, entendemos la actividad de investigación como un acompañamiento de procesos en curso, de desviaciones subjetivas. Seguimos, entonces, desde ese campo, la invención de un cuerpo que gira en su propia historia frente a las marcas que se le impusieron y constituyen; en un baile de uno mismo, amplía sensibilidades, transmuta y se produce en lo ilocalizable. En esta experimentación, el arte y la clínica aparecen articulados y emergen de un plan común.
Palabras clave: Cuerpo. Danza. Clínica. Mujer. Cartografía.
Aquecendo
O presente artigo tem como nascente um campo de experimentação/pensamento entre pesquisa, dança e clínica, acompanhando movimentos do (des)território mulher que se inscreve e constitui corpos. Essa proposta surge da dança como dispositivo inicial de encontro e desencadeador de processos de ampliação da vida a partir dos fios de uma narrativa de si que aproxima arte, clínica e política: "o fazer da própria vida um testemunho de construção de uma vida artista" (Rago, 2011, p. 251); um trabalho sobre si como luta política; danças de si, uma composição dançada, coletiva, de uma vida outra e de uma língua outra, balbuciante (Deleuze, 1990/2008), a performar a palavra mulher. Assim, desejamos abrir mão da clínica pensada como suporte de valores, ensaiando passos clínicos que transvalorem a vida (Paulon, 2006). Estamos falando da montagem de um dispositivo clínico que, interessado na produção de desvios, inspira-se no método e nas sensibilidades da cartografia:
[...] um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. Paisagens psicossociais também são cartografáveis. [...] [N]esse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos - sua perda de sentido - e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. (Rolnik, 2014, p. 23)
Dessa forma, a coreografia metamorfoseia-se em cartografia: a dança como escrita de si "impõe-se como necessidade de ressignificação do passado pessoal, mas também coletivo" (Rago, 2011, p. 253), uma tarefa política de, pela rememoração, produzir uma atenção e uma ação sobre o presente. Para acompanhar processos que estão em transmutação, fazemos pesquisa não sobre uma experiência, mas no olho do furacão da própria experiência. Estivemos/estamos atentas a esse movimento e a essa montagem pela própria vibração e instabilidade de nossos corpos feitos como corpos de mulheres.
Dessa aposta, surgiu um exercício de debruçarmo-nos sobre a dança em nossas vidas, não aos moldes de uma autobiografia, primando por histórias individuais e rigor serial da descrição dos seus episódios; tampouco de um diário íntimo, no que tem de confessional. O esforço suado foi o de produzir uma narrativa de si como campo de afirmação e criação da vida numa dimensão singular e, ainda assim, coletiva, já que é por meio desse ânimo de narrar-se que se abre um campo de mudanças na própria história constituinte. "A história é o que nos separa de nós mesmos, e o que devemos transpor e atravessar para nos pensarmos a nós mesmos" (Deleuze, 1990/2008, p. 119). Narrar a si é então uma possibilidade de fazer de nós, outras, além do que é a repetição de um roteiro que nos aponta como agir, como viver, regidas por uma moral que nos encerra numa vida ressentida que nos imobiliza (Deleuze, 1962/1976).
Partindo desse exercício-esforço de fazer da escritura uma dobra da experiência de dançar, na posição de dançarina e mulher, engendrando um corpo pesquisador, acabamos nos deparando com um espetáculo intitulado "Vaca Profana" (2016 - em andamento1), concebido por uma professora e por alunas do curso de Dança da Universidade Federal de Sergipe em um projeto de extensão, o Grupo de Dança e Performance. Ali encontramos uma aliança com nossas questões que já vinham sendo fiadas: um espetáculo que dança a multiplicação de sentidos ao que seja um corpo de mulher. Dançar-se em performances e profanações de um corpo-mulher.
Como efeito de narrar a si, no nosso caso, por meio da dança, ampliamos nossa percepção ao que se concebe como ser mulher e corpo feminino. No discurso do feminino, veicula-se naturalizado um binarismo homem/mulher que engendra nossos modos de subjetivação e sociabilidades. Tal binarismo, por si só, opera violências ao reduzir uma multiplicidade de modos de viver a duas categorias, uma submetida e referenciada à lógica da outra, uma lógica hierárquica e dicotômica. O dito "a mulher" necessariamente feminina estabelece-se como um corpo-lugar configurado a todo tempo por meio de práticas discursivas e não discursivas que submetem a expressão de si a esse lugar de sobrecodificação, lugar institucional e moral. Narrar a si aparece, portanto, como uma possibilidade de encontro e fazimento de uma maneira outra de existir, que extrapola inclusive o signo mulher. Aposta-se, desse modo, num devir-mulher como manifestação de uma vida afirmativa.
O feminismo também tem isso: ele não coloca só o problema do reconhecimento dos direitos da mulher em tal ou qual contexto profissional ou doméstico. Ele é portador de um devir feminino que diz respeito não só a todos os homens e às crianças, mas, no fundo, a todas as engrenagens da sociedade. Aí não se trata de uma problemática simbólica - no sentido da teoria freudiana, que interpretava certos símbolos como sendo fálicos e outros maternos - e sim de algo que está no próprio coração da produção da sociedade e da produção material. Eu o qualifico de devir feminino por se tratar de uma economia do desejo que tende a colocar em questão um certo tipo de finalidade da produção das relações sociais, um certo tipo de demarcação, que faz com que se possa falar de um mundo dominado pela subjetividade masculina, no qual as relações são justamente marcadas pela proibição desse devir. (Guattari & Rolnik, 2000, p. 73)
Esta pesquisa aproxima, então, a Psicologia da arte não numa perspectiva positivista de dar respostas para problemas, mas de problematizar a vida que vivemos, criando caminhos para afirmá-la, tomando o corpo como a grande razão (Nietzsche, 1883/2011). Dessa forma, a pesquisa acontece perscrutando a criação de narrativas corporais, incorporadas. Um exercício, uma ética e estética da existência, uma prática de si, que se faz como uma (des)aprendizagem, uma arte de viver, aprendendo com a arte que toda forma pode ser desfeita.
Danças de si
Na narrativa que nos dispomos a produzir, por meio da articulação entre a ideia foucaultiana de escrita de si com pautas feministas (Rago, 2011), não se trata de falar sobre ou pelos outros, ocupando um lugar de especialista. Em contraposição à sobreposição, uniformização e interpretação, falamos em aliança, não uma fala justa, justo uma fala (Deleuze, 1990/2008). Falamos de um corpo que é político e de uma clínica política, no que tem de avesso à individualização de histórias, de sujeitos, da essência do "ser mulher". "Neste sentido, o próprio Ser é político" (Deleuze, 1990/2008, p. 111): narramos não para transmitir o já sabido sobre nós [mulheres]; o que nos anima a narrar "é a possibilidade de que este ato, essa experiência em palavras, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixar de ser o que somos para ser outra coisa, diferente do que vimos sendo" (Kohan & Larrosa, 2017, s/p).
O "Vaca Profana" emerge como criação monstruosa de corpos mulher-vaca, fazendo outros usos de um termo utilizado como xingamento e desprezo à carne-mulher, carne para abate e consumo, pensando os efeitos das práticas de abuso e violência a partir da criação de novos usos desse resto de carne. Um espetáculo que trata de corpos feitos sob a insígnia da categoria mulher; de corpos operados culturalmente (Bento, 2006), fabricados por meio de violação no sentido mais vil, dos estereótipos, tarjas, rotulações, modelagens, clausuras, amarras, mortificações de um corpo a todo tempo devorado. Um mal-estar, angústia e indigestão é o mínimo do que se tem ouvido das ressonâncias ao assisti-lo. No entanto, ele não se contenta a ser manifesto, ele rasga, ousa, fala, dança o movimento da existência, transmutando a violência em uma cruel e profana alegria.
O espetáculo é composto por cenas que vão se desenvolvendo de maneira dinâmica em paisagens que escancaram essas questões, sem uma personagem principal, marcando, a todo tempo, como tais questões emergem de um plano comum e coletivo. Essas cenas podem ser intituladas da seguinte maneira: Moiras, Maçã (Eva), Mulheres de Atenas, A Marcha da Dona Norma, Orgasmo, Cozinha (a fábrica de feminizar), Carne Comestível, Coração, Cupcakes - As gostosas, Manifesto, Milágrimas.2 Foi a partir das cenas que nos debruçamos a pensar nos efeitos da dança em um devir-mulher, que é também um devir-vaca, um devir-monstro. Mas o monstro aqui não é, mais uma vez, o outsider necessário a ser domesticado e amansado para continuarmos a crer na forma-Homem. O que se dança aqui é o desfazimento dessa forma e a composição de terras e corpos outros, outragem ultraje. Humanos?
Notas metodológicas, cartografar é profanar
"A profanação é o contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha separado e dividido" (Agamben, 2009, p. 45). Esta pesquisa intentou profanar as palavras mulher e feminino acompanhando movimentos e ressonâncias de um espetáculo de dança. Assim, pautou-se numa ética da vida que vai além de uma referenciação sacrificial, recorrendo a uma moral dada que discrimina como performar/sacralizar uma mulher, profanando-a pela instalação, entre espetáculo e pesquisa, de um território de habitação comum.
Eis que nesse ensaio de dar corpo-escrito a uma experiência, a partir do primeiro contato com essa dança, decidimos marcar uma roda de conversa com as mulheres que dançaram e que participaram da concepção do espetáculo "Vaca Profana". Nessa roda, ainda sob o efeito iminente da finalização da primeira temporada de apresentações, nos encontramos com 13 mulheres que falaram sobre sua relação com o espetáculo, marcando principalmente os efeitos de dançar algo que foi montado e coreografado baseando-se em suas próprias histórias e das tantas outras mulheres de suas vidas. Elas contaram sobre mudanças pelas quais passaram durante os laboratórios que precederam a composição coreográfica, durante os ensaios e as apresentações, no próprio corpo e no seu estar no mundo; contaram como a experiência de dançar um espetáculo que trata da categoria mulher, performando corpos femininos, produziu uma transmutação em seus modos de existir.
Retomemos: não nos propomos a narrar o espetáculo "Vaca Profana" aos olhos de um melhor informante, de uma melhor perspectiva que traga uma interpretação para cada cena apresentada, ou um fundamento do espetáculo. Nem da diretora, nem das dançarinas, nem das espectadoras. Entendemos, como muitas outras, o conhecimento como invenção e a pesquisa como intervenção, mesmo quando se diz alçar neutralidade. "O conhecimento como produção da realidade e a pesquisa como um mergulho no plano da experiência no qual emergem o si e o mundo, aquele[as] que conhece[m] e aquele[as] ou aquilo que é conhecido" (Kastrup & Passos, 2014, p. 210). Pesquisamos não para conhecer um mundo dado, mas para transformá-lo. Mais do que descrever estados de coisas, visamos acompanhar processos, derivas subjetivas. Assim, não se trata de uma pesquisa sobre ou para mulheres, e sim uma pesquisa COM mulheres. Trata-se de fazer pesquisa tremendo e tecer com a pesquisa um território dançante de habitação coletiva em luta pela expansão dos territórios de vida de todas e cada mulher.
Entendemos a importância da afirmativa de que gênero não equivale à mulher; mas entendemos também a radicalidade de uma luta feminista de mulheres que se dá num embate conosco mesmas, que, por meio de práticas discursivas e não discursivas, nos fizemos mulheres de determinados tipos, e não de tantos outros. Uma luta fiada pela categoria mulher, "um signo construído no patriarcado" (Tiburi, 2018, p. 21), condição de subjugação. Um signo que precisamos fazer vibrar, bifurcar. Entendemos ainda que é no pequeno mundo de todos os dias, na intimidade dos dramas do cotidiano que está também o tempo e o lugar da resistência. Com a pesquisa, encontramos com mulheres que dançam dores do cotidiano, dores "de mulher", de se ter sido feita como mulher, trasmutando-as, transmutando-se.
Compusemos, assim, narrativas femininas, que estamos chamando aqui de danças de si, por meio inclusive da experiência de um corpo-pesquisador que ousa pôr o corpo em movimento com elas. No meio da pesquisa, radicalizando um pesquisar, inserida no campo, uma das pesquisadoras, corpo dançarino-inquieto-exposto, foi dançar o espetáculo com essas mulheres (já eram muitas outras, que por diversas questões entraram e saíram do grupo), na segunda e na terceira temporada de apresentação. Desenhamos, cartografamos, por fim, um caminho de contar esse espetáculo, de como nos tem atravessado.
Os fios de Caracol
Das infinitas possibilidades de contar esta história, fazendo-a devir, falaremos da perspectiva de uma personagem chamada Caracol, a resultante da trama desses encontros. Sua história é feita na composição dos relatos daquelas 13 mulheres, com cenas, músicas e trechos de falas do espetáculo, com as ressonâncias e o que fez durar do espetáculo que assistimos, com a experiência de participar da remontagem com outras mulheres, dançando na segunda e na terceira temporada, com as experiências narradas pelas dançarinas que chegaram depois.
Um processo de subjetivação, isto é, uma produção de modo de existência, não pode se confundir com um sujeito, a menos que se destitua este de toda interioridade e mesmo de toda identidade. [...] A subjetivação sequer tem a ver com a "pessoa": é uma individuação, particular ou coletiva, que caracteriza um acontecimento (uma hora do dia, um rio, um vento, uma vida...). É um modo intensivo e não um sujeito pessoal. (Deleuze, 1990/2008, p. 123)
Ao falarmos de mulheres, não pretendemos quantificar todas as mulheres às quais nos referimos, não tratamos da soma de indivíduos, tampouco somente de corpos classificados e organizados como "de mulher". Sabemos que se trata de uma multiplicidade de corpos e de vivências, distintas entre si, a mulher gorda, a negra, a do padrão de beleza, a velha demais para dançar, a muito magra, a lésbica, a bissexual, a não binária, a adotiva. Muitas delas se enquadram em recortes entendidos como "de minorias", mas não nos colocamos aqui falando desses lugares, reforçando um olhar para as formas. Intentamos, sim, cartografar forças, acompanhar um devir minoritário (Deleuze, 1990/2008) a produzir um distinto lugar para si mesma diante do que é posto como um modo de vida que já não se suporta mais.
Não desconsideramos a força possível das lutas minoritárias, mas traçamos um outro caminho neste trabalho. O plano comum que perpassa os mais distintos corpos, que dançam e que assistem ao espetáculo, já não mais só mulheres, mas também homens, ou outros corpos que se sentem afetados de maneira singular, convocando devires inclassificáveis, plano que coloca em questão a categorização que nos encerra numa única performance de nós mesmas.
O comportamento libertado dessa forma reproduz e ainda expressa gestualmente as formas da atividade que se emancipou, esvaziando-as, porém, de seu sentido e da relação imposta com uma finalidade, abrindo-as e dispondo-as para um novo uso. [...] Profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas. (Agamben, 2007, pp. 74-75)
Outrar a performance...
A performance não é a repetição mecânica, ela implica num agenciamento com fluxos, aprendizagem sempre envolve devires paralelos. A aprendizagem exige destreza no trato com o devir. Aprender é, antes de tudo, ser capaz de problematizar, ser sensível às variações materiais que têm lugar em nossa cognição presente. (Kastrup, 2008, p. 175)
Com isso, Caracol surge como personagem/performance efeito da picotagem e bricolagem dessas diversas experiências que foram compartilhadas ao longo da nossa aproximação com o "Vaca Profana", nessa experiência grupal e coletiva que se estendeu por quase dois anos, tempo da pesquisa do mestrado e do fim da terceira temporada.
Chegamos ao nome Caracol por meio de alguns caminhos. A história de uma das dançarinas que teve como marco o corte dos seus cabelos encaracolados que figuravam sua beleza, que nos remeteu à canção "Debaixo dos caracóis dos seus cabelos" (E. Carlos & R. Carlos, 1971); o símbolo do orixá da criação, Oxalufã, no animal caracol; a imagem espiralada do eterno retorno nietzschiano, que discorreremos mais adiante, que aproxima essa experiência de dança de uma dimensão clínica; a história do Mistério de Ariadne (Deleuze, 1963/2006), que aponta a transmutação de Ariadne no labirinto do minotauro de uma vida ressentida para uma vida ativa, leve e afirmativa por meio do eterno retorno, deixando de segurar o fio da moralidade, segurando seu próprio fio, o fio de Ariadne. A seguir, vamos acompanhar como se deu a vida de Caracol, ou talvez seja melhor dizer acompanhar como Caracol se deu à vida.
Havia num tempo muito longínquo três irmãs que eram responsáveis por determinar o destino da vida dos deuses e dos humanos. Uma criava o fio da vida, estabelecendo os nascimentos, outra media e tecia os caminhos de cada ser, e outra cortava o fio, delimitando o seu fim. Véus caíam sobre seus rostos e se estendiam sobre seus peitos nus, brilhantes, acesos como faróis, enevoados pela sombra do tecido arenoso. Imponentes figuras, de crua nudez, balançavam-se num ritmo de maré baixa, um vai e vem, marcado no silêncio. Enchiam o espaço e o tempo com uma sacralidade possível - carne visível ante os olhos. E nessa sabedoria anciã, estavam sempre com fio, agulhas e uma grande faca em suas mãos, dançando solenemente a duração de cada vida.
Dançando solenemente a duração de cada vida. Era assim que parecia ser a vida de Caracol, mulher mensurada para ter um caminho a ser percorrido, uma maneira de existir, e um tempo para durar. Nasceu em um paraíso onde existia a mais bela flora, fauna, fenômenos da natureza e um humano, dito homem. De uma parte do corpo dele foi feita e ganhou a vida nesse paraíso, que no meio de toda imensidão havia uma única árvore que não podia jamais ser tocada, por ordem divina - já outro deus, já outro tempo. A chamada árvore da vida garantia a imortalidade dela e do homem de quem nascera para ser sua companhia. Certo dia, tomada por sua curiosidade e astúcia, Caracol convocou o homem para provar do fruto dessa árvore, que trazia o conhecimento do bem e do mal. Quando ele provou do fruto, os dois foram expulsos do paraíso, conhecendo o bem e o mal do mundo e destituídos da imortalidade. Ela foi para sempre marcada por esse acontecimento como uma chaga que amarrava a sua garganta e tapava a sua boca, além de ser condenada a parir filhos sentindo dores e a ter os seus desejos e vontades submetidos aos do homem.
Nessa nova vida a que tinha de caber, Caracol passou a criar o seu cabelo muito longo e muito belo com cachos e ondulações nas pontas. Toda a sua força de existir dependia desses seus fios. Sempre alinhado, preso em tranças rentes ao couro cabeludo, esticando todo seu rosto e seu juízo, era o alvo do desejo e da inveja dos homens e das mulheres, que só a reconheciam por meio dele. Era um cabelo estimado e cultivado por ela, mas que aos poucos, observando outras vidas pelas quais poderia brotar, percebeu que a longa madeixa a prendia e a acorrentava, como se fosse o ar que ela respirasse, a importância maior da sua vida. Até pessoas que não a conheciam passavam por ela e acariciavam seu cabelo. Não havia quem por ela passasse sem que seu cabelo não fosse notado. Era muito mais o cabelo do que ela.
Assim, Caracol vivia sempre com os olhos vidrados, sem expressar nenhuma emoção, apática, com a boca e a vagina lacradas e as costelas amarradas por cintos de castidade, apertados até sufocar. Caminhava meneando o corpo com movimentos delicados e sensuais, dos ângulos perfeitos dos braços e pernas, ao suave quebrar dos quadris, exaltando uma beleza de formas perfeitas, coxas, carnes, curvas, aos moldes do que se constituiu como ideal feminino. "Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas, vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas" (Buarque & Boal, 1976).3 Ninguém na cidade conhecia a voz da dona daquele exuberante cabelo, só o homem que se tornou seu dono, chamado de marido. Aquele para quem ela se embelezava e numa paciência eterna o esperava chegar dos seus passeios, dos seus cortejos a outras tantas mulheres, das suas aventuras, pronto para dela se servir. Cultivava, então, a cada dia, o seu próprio corpo, pela observância e contemplação daquele outro, até que o seu coração parasse de bater.
Era desse jeito alinhado de ser que Caracol fora criada e criaria outras mulheres, já em outros tempos, com o corpo sendo disciplinado para agir conforme a moral estabelecida, arrimo do instituído (Paulon, 2006). Venha, você deve fazer assim. Arrume tudo, ponha ordem, endureça. Vista-se. Coordene seus passos, gestos, trejeitos, postura, respiração. Feche as pernas, alinhe a postura, arrume o cabelo, cubra o corpo, equilibre-se, não se exalte, marche, marche, não saia da linha, seja forte, siga o rebanho. Uma risada estridente escapava nervosa do farfalhar dos seus pulmões, mas logo era reprimida por ela mesma. Não pode. Não cabe, não cai bem. E há ainda mais, marche, siga e beba o ralo leite do contentamento, do seio da mãe à filha no seio, bem criadeira, cuidadora. Líquido materno aquietador? Líquido seminal de prazeres de outrem? Líquido de uma certa vaca? O branco do leite no preto da vestimenta. Cores primárias, nuas e cruas. Receba este mínimo e trate de sorrir, mesmo amarelo; é o que basta. O mínimo necessário, a substância nutritiva para manter o corpo em cumprimento de condutas, para sua sobrevivência. Corpo forte, dócil (Foucault, 1987) e que trate de também ser doce, mas de maneira contida. Corpo que cobra e é cobrado. Corpo de mulher que deve nutrir, sempre subserviente. Aquele destinado a servir de exemplo a outras mulheres, por meio de um rigor atemorizador. Fez-se Dona Norma Caracol.
"Minha alegria ficou sem voz" (Barros, 2016, p. 29), Senhora. Tivera que impor força e dureza para ocupar espaços a ela não destinados. Descendente de escravas, empregadas domésticas e patrões, donos de casarões, crescera sabendo que seria pelo trabalho e pelo "conhecimento" que forjaria o seu cantinho no mundo. Vendedora de livros, que espreitava saberes pelas brechas das páginas; pequena empresária de uma fábrica de doces, com o marido. Divorciada em tempos inesperados. Para nós que daqui olhávamos, avesso da subserviência. Tinha o seu modo específico de cortar o bolo ou o cuscuz, passando um "carão" de arrepiar, caso se atrevessem a fazer e errassem; um jeito único de fazer uma comida, cuja magia era a ela restrita, aprendida por sua mãe e avó. Reclamava, tossia e gemia de dor nas costas a todo tempo, numa rabugice singular, seu jeito de dizer que estava presente e de que merecia ser olhada. Protetora como ninguém. A matriarca da família, sempre disponível a cuidar de maneira incomparável. Não só dos seus filhos, netos e bisnetos, como dos vizinhos do interior, dos seus funcionários, dos desabrigados ou adoecidos, que levava para seu teto. Seus prazeres, seus medos, seus sonhos, escondidos a sete chaves.
Por vezes inesperadas, entretanto, bem de dentro de sua rígida concha, aparente numa elegância de roupa alinhada, fechada sobre todo o corpo, do pescoço às pontas dos pés, Caracol percebia seu corpo por dentro. No seu esconderijo, surpreendia-se com uma contração que segurava fundo tudo que nela havia e com um relaxamento, que deixava sair diferentes sensações, e um gotejamento todo seu. Escorriam das suas entranhas mais viscosas suores, sabores, cheiros, texturas e quenturas, sensações à flor da pele, inundada de prazer. Encontrava-se com outros corpos, contaminava-se, era penetrada pelos olhos, nariz, língua... vagina. A carne amolecida de desejo, os olhos lânguidos, de cílios ardentemente repousados uns nos outros, a boca frouxa, entreaberta, umedecida, junto ao corpo todo água e sal. Era suspiro, fluidez, relaxamento em meio à contração e liberação de músculos, mucos, em uivos, gritos e gemidos, entre a brandura e a ferocidade, saltando aos poros num silêncio povoado (Deleuze, 1990/2008) de vida, em um tempo interminável, que parecia durar para sempre. Caracol Nuvem, Caracol Água.
Até que vinha o susto, o grito de pavor. Caracol escuta de dentro de si a ordem, e corre contra a parede. Pro-i-bi-do! A roupa amarrotada cobrindo o seio a todo custo, o pânico gritando à face. Os músculos trancados e tesos, logo doloridos. Olha a frigidez! "Rosinha!!!! Rosinha, rosinha, rosinha... rosinha! Menina tem que usar rosa! Hmmm... Rosinha! Um mundo todo cor de rosa! Aaahhh!"4 - surge uma figura não humana completamente coberta de frufrus cor de rosa. Bicho-da-seda, algodão-doce de voz aveludada e risonha, espalhando amorosidade e doçura em muitas doses de ironia. "Rosinha?"
E com ela, vem à tona com altas e largas paredes a fábrica de feminizar, que produz em série meninas embonecadas e paspalhas, prontas para incrementarem as engrenagens com as suas funções. Já de dentro da fábrica, com a cara embasbacada, enfeitada com um nariz de palhaça e uma saia de bailarina cor de rosa, Caracol tornava-se verbo e ritmo mecânico: "varrer, lavar, estender, passar, cozinhar, varrer, lavar, estender, passar, cozinhar, varrer, lavar, estender, passar, cozinhar". Tornara-se a mulher soberana do saber doméstico. Dona de casa, filha mulher ou empregada doméstica, a depender da classe e raça, para servir aos filhos e marido, na garantia de uma vida feliz e realizada, muito bem casada, ou fazer pelos irmãos homens, ou para ganhar o dinheiro que sustenta sozinha o seu sobrado e alimenta os seus rebentos. Quem faz mais? Quem faz melhor? Todas esgotadas, prontas a dar curto-circuito, tique nervoso. Máquina falida, louca, desvairada. Cozinhar, passar, lavar, cozinhar, passar... Os tempos continuam presentes, a história se repete. Já não importa mais falar de um passado. Lavar, passar, cozinhar, ficar bonita, amassar a massa do bolo, amassar a massa do bolo antes que ele chegue e amasse a minha bunda, lavar, passar, cozinhar, pronta para dar o corpo e ser comida. Exausta. Corpo sem força, últimos fôlegos. Como continuar? Caracol começa a dar defeito, tique nervoso. Apontam para ela as outras mulheres da fábrica e saem à sua caça, agarrando-a a força, enquanto ela se debate e urra tentando se desvencilhar, numa luta em vão. Na iminência de sua morte, sua voz começa a ecoar...
Apontam-me, me pegam à força. Maquiam-me de outra coisa, me rasgam, apagam as forças que me restam. Há tempos mal respondo por mim mesma, e agora então! Mexem e remexem o meu corpo como se ele não fosse de ninguém, ou melhor, fosse propriedade privada de maquinarias institucionais, masculinas! Roupa logo arrancada, bem-maquiada, o corpo pintado de branco, marionete, violência que dá mais tesão. Tão bonitinha ela! E ainda assistem com deleite cada gota de sangue que começa a escorrer de mim. Arrastam-me completamente nua para uma mesa, enquanto me contorço freneticamente. Já não respondo pelos meus movimentos e sou penetrada, uma, duas, três vezes, mesmo seca, dolorida, exaurida. Penetram e arrancam. Penetram e arrancam. Já gozou? Pois quero ver você gozar!, me dizem. De resto, vazia. Mas ainda há carne a se lamber os beiços e fazer babar. "Ser mulher é uma delícia!"5 Isso, uma delícia, tornei-me comestível. A carne cozida sou eu e arrancam aos dentes pedaços de mim, se lambuzando. Põem-me em choque térmico da panela quente à água gelada, que é mais fácil para emudecer e a carne sair do osso. Tudo que restara do que era e sou, minha carcaça. É que aprendi bem direitinho a não comunicar se não for questionada. Apenas as lágrimas que escorrem dos meus olhos silenciosamente e sem cessar ainda sinalizam que há vida aqui. Mas eu não estou só. Sinto muitas mãos de mulheres me levantando cuidadosamente, me colocando em um pau de arara, pendurada como a última carne de boi do fim da feira. "Pega teu boi, morena, pra nós vender" (Cia. Cabelo de Maria, 2007).6 É a maneira possível de me velar. Seguem em procissão, mulheres fortes que se revezam me conduzindo para outro lugar, menos vil.
No meio dessas vísceras míseras, há um coração desesperado para amar. Disseram-me que para ser mulher eu tinha que encontrar a minha metade fora de mim. Disseram-me que sou oca aqui embaixo e vivo à deriva procurando quem me preencha. E eu me doei tanto, tentando sobreviver ainda carcaça; habitei o impossível de mim para servi-lo e cumprir minha função, estar completa como me disseram. Mas ele nem me quis, e eu fiquei a rodopiar num drama sem fim do meu existir. O fio de vida que me restava era repetir, repetir e repetir a falta que esburacava meu peito. Eu fui feita para isso. Meu coração é arrancado a faca, e sangra toda a sua dor no mundo, a dor do mundo, dor de mulher, partilhada entre nós. A dor de quem só quis amar e foi abandonada. A dor da saudade de quem teve desejo de existir. De quem não teve possibilidade de criar para si um modo de viver que fosse seu. Querem me ter, me guardar - o mínimo resquício de mim - a todo custo, com toda voracidade. Lamentam minha partida, tudo aquilo que tentei ser. E não suportam mais os meus lamentos, nessa repetição pulsante que não me leva a lugar nenhum, não faz o meu lugar emergir. Já é uma dor tão insuportável me ter entre as mãos, que só querem me tirar de dentro das suas lembranças, me jogar para longe, me esquecer. Até apagarem de vez o desejo de existir, arrematando-me a tudo aquilo que eu fui em nome do ser uma mulher, dizendo-me no meu último suspiro: "nesse mundo, morena, não há lugar para a sua dor".
É só mais uma mulher. Mais uma a menos. Mas vida, para algumas muitas de nós, é insistência!7
Vai, mulher. Assim! Agora! Isso sim é ser mulher. Vai, rebola, sua gostosa! "Vai mamando, vai!" (Mc Kitinho, 2016).8 Que linda você é. Que linda, hein? Deliciosa... Olha ela, toda piriguete ali, querendo se aparecer, se arreganhando com o corpo. Caracol, diante da violência da maquinaria que enclausurou sua errância a um modo de existir como mulher, perdeu sua concha, sua casa, sua proteção. E agora retorna carcaça, erguida sobre saltos altos com um cupcake delicioso no lugar da face. Refez-se montada no mulheril, gostosa, peito, bunda e coxas soltas rebolando e gingando. Dança e vive para servir de objeto de prazer aos outros. Feita marionete, dança entre o horror e a delícia, a vida e a morte.
Até que a música cessou e ela arrancou de si o doce, mirando o horizonte com olhos de águia, rosto e marcas evidentes, corpo inteiro presente. Retirou de si a borra de tudo que lhe era negação e reação, e depois de nua, vestiu-se com nova cor. Junto com outras mulheres, falou e também entoou silêncios que não tinham ares de silenciamento, aprendeu que as pausas são necessárias. Já não cabia na linguagem enferma, generificada. Desfez suas mágoas, afirmou suas forças e montou-se com outras roupas. Afirmando-se, duplicou a "relação de forças, de uma relação consigo que nos permita resistir, furtar-nos, fazer a vida ou a morte voltarem-se contra o poder" (Deleuze, 1990/2008, p. 123). Enquanto falava e silenciava, sua concha foi se refazendo, sem o peso e o aperto de antigamente. Uma proteção só sua, que lhe contornava e conduzia seu caminhar.
A cada milágrima (Assumpção, 1993)9 que ora escorre e finca no chão, fazendo brotar sementes, ora se junta a outras mudando de caminho, ora cai e se perde, ora se isola e desaparece, a cada multiplicidade, sai um milagre, uma possibilidade singular de existir. Caracol, encontrando-se consigo e com outras mulheres, revestiu o corpo de cores, transvestiu-se dançando, criou um território para si. Fez dançar consigo os seus cabelos, já soltos das tranças tesas, e com uma tesoura na mão, entregou mechas às mãos daqueles que fizeram parte da sua caminhada, para com ela cortarem aquela marca de beleza que se tornara prisão e apequenamento da sua existência em um mundo de bela e boa mulher. Permitiu tirarem-lhe os caracóis dos seus cabelos, um a um, enquanto dançava, e reluzia muito maior, escancarando-se em meio a cabelos curtinhos, uma nova forma de mulher em fluxo de desejo e afirmação da vida. Uma vaca profana, de território inventado, de habitação coletiva, com mulheres em bando, em debandada, indo do rebanho à manada, que convocam a devir-mulher. Devir-mulher, dançando a vida, artistando a existência em suas alianças.
Florescendo do solo aparentemente infértil, pode agora ser forte e ser frágil, sem se quebrar, sem ser invadida ou violentada. Pode se lançar e explorar o mundo, e pode se recolher, se aninhando sozinha, ou em outros colos, renovando suas forças, sem se sentir pequena. Vai e vem. Contorna-se, e cria uma outra de si. Milagrando-se.
A Caracol teve uma transformação no corpo dançando que é muito visível. O corpo dela, o modo que ela dança foi se transformando junto com as coisas que ela foi vivendo [...] O modo com que ela vive interfere diretamente no modo com que o corpo dela se movimenta.10
Devir-mulher, devir-vaca, devir-caracol: por uma clínica dançarina
Para iniciar este item, precisamos apontar para um movimento de ampliação da clínica, fazendo-a variar de si em sua história de emergência: reforçar uma natureza humana, produzir subjetividades privatizadas, individualizadas, corrigir desvios naturalizando medidas inventadas para o humano. Colocando em questão a vida da mulher, de um ser mulher atrelado a uma moral que a torna reativa, ensaiamos um devir-mulher da própria clínica, clínica que se faz pelo corpo e, por acaso, independente da figura de um psicólogo, ou de um setting terapêutico, um consultório, tece-se como um acompanhamento de efeitos-subjetividade, uma cartografia de processos de subjetivação em curso. Ousamos afirmar um efeito-clínico do "Vaca": uma clínica se fez por meio do acaso, da disponibilidade dos corpos que se encontraram e produziram desvios em suas próprias histórias. Aquele acaso a quem Nietzsche (Deleuze, 1962/1976) chama de devir, a partir do qual se afirma uma vontade. Um acaso que se fez por meio da arte. Uma clínica que se fez na dança. Uma dança que se fez clínica. Mas, o que se passa na dança, no corpo que dança, abrindo um campo de produção de desvios? Na experiência da dança, a bailarina
Sai deliberadamente da postura d[a mulher] comum para se colocar desde o início na dificuldade: desequilibra-se, procura as situações instáveis que reproduzem esse movimento da evolução da criança entre o engatinhar e o estar de pé. Repete a situação infantil, mas agora, a partir do equilíbrio aprendido; e é isso que muda tudo. Notemos que este pequeno deslocamento marca o nascimento da arte ou, pelo menos, da sua possibilidade. Deixando de adotar uma postura natural, o corpo dá-se um artifício, faz-se artificial: pode doravante tornar-se imagem, quer dizer matéria de criação de formas. A sua instabilidade em nada prenuncia aquilo em que vai tornar-se, não predeterminando nenhuma outra postura. Este ponto crítico é um ponto de caos - múltiplas forças podem nascer dele. Procurando desestabilizar a atitude natural, o bailarino quer criar as condições que lhe permitirão tratar o corpo como um material artístico. (Gil, 2004, p. 22)
Disso se trata o que, com Margareth Rago (2011), apontávamos no início deste texto: a construção de uma vida artística, o fazer da própria vida, uma escrita que se faz pelo corpo, uma dança de si. A experiência artística no que tem de provocar instabilidade, produzindo outra estabilidade, escancara o corpo e a vida como não natural, ou como de natureza transmutável.
Por meio do "Vaca Profana", podemos ver, em suas cenas iniciais, um modelo de ser mulher reforçado por uma moral. "[...] [M]oral, isto é, as formas e hábitos de avaliação presentes nos usos e costumes, nas regras praxeológicas e nas formas de conduta, orientadas e legitimadas por valores e crenças socialmente partilhados" (Giacóia, 2001, p. 41). O prolongamento das cenas pelas quais Caracol passa, por meio da dança, nos mostra que existem muitas "naturezas" que escapolem de dentro daquele formato valorado. "O movimento dançado compreende o infinito em todos os seus momentos" (Gil, 2004, p. 15).
No entanto, para que esse movimento de criação aconteça, é necessário ao corpo que passe por um esforço, por uma repetição, uma técnica, para que a bailarina se encontre em seu corpo, "ou seja, que os seus movimentos se insiram no espaço com a mesma intimidade e a mesma familiaridade com a qual habita o seu corpo" (Gil, 2004, p. 18). Assim, surge o movimento espontâneo, um movimento dançante. Isso faz recordar como ao longo dos ensaios do "Vaca Profana", prolongando-se por três temporadas, pudemos observar que, à medida que a coreografia era aprendida, os movimentos que não nos eram habituais se tornavam leves, fluidos, dançados e não reproduzidos. Nessa repetição, nos levamos a dançar. Dança essa que vem de uma percepção que se produz pelo corpo, a partir da abertura às sensibilidades, em um agenciamento com a música, com o corpo, com os outros corpos, o chão, as paredes, o figurino, criando uma intimidade com os movimentos. Intimidade que não marca um íntimo, interior, mas uma aproximação tamanha com o próprio corpo emergente de todos esses agenciamentos, de modo que se produz dança pensante, mas sem uma atitude reflexiva. O corpo simplesmente dança, já sem se reportar à marcação coreográfica. Uma transmutação trágica do peso, que outrora associamos a uma reatividade, articula-se agora à leveza, atividade que acontece no próprio corpo.
Consideremos aqui o corpo já não como um fenômeno, um percebido concreto, visível, evoluindo no espaço cartesiano objetivo, mas como um corpo metafenômeno, visível e virtual ao mesmo tempo, feixe de forças e transformador de espaço e de tempo, emissor de signos e transemiótico, comportando um interior ao mesmo tempo orgânico e pronto a dissolver-se ao subir à superfície. [...] Um corpo que se abre e se fecha, que se conecta sem cessar com outros corpos e outros elementos, um corpo que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma e pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. Um corpo humano porque devir animal, devir mineral, vegetal, devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro movimento. Em suma, um corpo paradoxal. (Gil, 2004, p. 56)
Profana mulher, vaca, bicho, monstro. Caracol, cabelo, bicho, mulher, corpo impossível, paradoxal, ilocalizável.
Para não finalizar, dancemos!
Pode ser um passeio solitário, um poema, uma música, um filme, um cheiro ou um gosto... Pode ser a escrita, a dança, um alucinógeno, um encontro amoroso - ou, ao contrário, um desencontro... Enfim, você é quem sabe o que lhe permite habitar o ilocalizável, aguçando sua sensibilidade à latitude ambiente. (Rolnik, 2014, p. 39)
Desde que designada como mulher no ventre da sua mãe, Caracol ia se constituindo de acordo com o discurso forjado a partir desse nome. Toda sua carne ganhava palavra e significados, substantivos e adjetivos que a solidificavam em camadas numa casca que aos poucos se tornava pesada e insuportável de habitar. Um corpo generificado, um modo de subjetivação que tem uma forma a se reportar para ser reconhecida e autorizada no seu lugar de mulher. Corpo esse de larga permissividade para lhe adentrarem, invadirem e dizerem de si, com palavras ou outros atos que retiram e colocam pedaços, que, no caso de Caracol, enrijeceram-se numa concha. Uma concha que prendia, sufocava, limitava e violava. Que é também sua própria carne, mas que de tão prescrita tornou-se lugar inabitável de existir.
Ao perceber a insustentabilidade desse nome mulher que a teceu até estabilizar-se como casca, Caracol sentiu um tensionamento, passou a movimentar-se vagarosamente, arrastando a sua concha, explorando o mundo no seu campo possível de visão. Nessa errância, exercitou uma abertura de poros e sensibilidade, o mudar de sentir nietzschiano (Nietzsche, 1881/1978), pelo movimento que ia acontecendo. Seu corpo pegajoso começou a escorrer livremente por vastas superfícies, ela que nem notava seu próprio visgo. Até que encontrou outras mulheres que andavam em ritmos que se conectaram com o seu, compartilhando estranhamentos das suas cascas, concha e nomes que a amarrotavam. Caracol, dobra de si, dançando, experimenta-se.
Justo naquele iminente ilocalizável, espaço da profanação, ainda sem nome e forma dizível, Caracol experimentou um outrar-se, diferenciando-se de si mesma, em si mesma. Debaixo dos caracóis, Caracol ia se picotando, fio a fio, à medida que ia encontrando os outros corpos, e confeccionou para si um corpo de firme envergadura, ética, estilo e estética corporal, rasgando o signo mulher e profanando o feminino em contato com a pele do mundo.
Tudo isso diante do seu próprio território-corpo, criando a partir da sua pele, casca e história, movimentos que permitem acontecer sua força vital em desejo, linguagem, imaginação, afetos, perceptos (Rolnik, 2018). Nessa contração e expansão, Caracol ia multiplicando a carne delimitada pela palavra mulher, gotejando naquele gozo que escapulia das frestas das normalizações, rompendo a casca da Dona Norma Caracol. Até perder sua concha, arrancada de si por meio da violência e da morte, o extremo da moral. Depois de dançar como uma marionete grotesca, sem a concha que a sufocava, mas a protegia, sem rosto e sem coração, Caracol junto àquelas mulheres recupera sua força, e vai criando para si uma nova concha, agora mais leve, flexível, gostosa de habitar. Cortou os caracóis de seus cabelos e viveu em sua concha uma poderosa transmutação: do ser mulher reativo ao devir-mulher ativo, reinventando sua vida, falseando de sua vida de mulher o que quiser.
Narrando-se, a partir do encontro consigo e outras mulheres, performando e profanando o próprio corpo, a própria carne, por meio da experiência de dançar, Caracol tensiona a relação entre carne e palavra e aproxima os campos da arte e da clínica. Dançando, tirou ponta por ponta o seu cabelo, e por baixo dos seus caracóis fez de si um devir-caracol, um devir-mulher e um devir-vaca. Aquela vaca que acoplaram ao seu nome querendo apequená-la, como outros tantos nomes que usam para mulheres que não se escondem nem sob seu nome, nem sob seu corpo, mugindo, rastejando e emanando um som estranho não humano em desejo e vontade de vida. Vaca, Vadia, Puta. Simplesmente dançando, acabou inventando-se uma Caracol não mais por debaixo daqueles fios pesarosos através do qual lhe enxergavam, exclusivamente. Passara a reconhecer a potência ativa do seu revolver-se, das suas voltas sobre si sem fim. Eterno retorno nietzschiano (Deleuze, 1962/1976): um processo de revolver-se em si mesma, em vez de reproduzir em si os ditos sobre si; criação de uma ética de si, de uma maneira singular de existir.
Ela sabia se lançar e se recolher, levando e trazendo restos e estilhaços do mundo e de si, desde que cultivara um saber que se passava pelo próprio corpo e a vinculava a um coletivo. No encontro com outras mulheres, Caracol viveu o devir-vaca nesse devir-mulher indo de um modo de subjetivação em que se articulavam como rebanho, homogêneo, até uma nova configuração de manada, como produção de coletivo e de diferença. Viveram elas a passagem do senso comum, do gregário; para a produção de um comum por excesso de diferença. Com Caracol, seguimos uma aposta numa clínica política da experimentação:
[...] um colocar à prova, uma experimentação [...]. Ela não consiste apenas na urgência de ser contra, nem em definir as constantes e as invariantes para o estar junto. Tanto a urgência do engajamento quanto a ação em favor da igualdade devem estar subordinadas a uma política que se abra à esfera do acontecimento, a uma política do devir, à política como experimentação. (Lazzarato, 2004, p. 148)
Na história de Caracol, nossa, das mulheres, da humanidade, de todas e de ninguém, o ilocalizável emergiu de situações e modos de vida que deixaram de fazer sentido, de territórios existenciais que caducaram, tornando-se inabitáveis, pondo em relevo a trava, o enrijecimento, a imobilização, o adoecimento do corpo. Sai de cena, ao menos por alguns instantes, a negação do movimento e transmutação da vida por um ressentimento conduzido por valores morais (Deleuze, 1962/1976), compondo a manutenção de uma lógica de saber-poder. O ilocalizável por se fazer diante do conflito de forças que expõe as sensibilidades do corpo. Um processo de decomposição que faz de um resto de vida opaco, exposto às larvas, vida nova, larvária, de outra "natureza", matéria orgânica em criação de si.
A cena da criação artística como um lugar de trabalho micropolítico e clínico [...] a prática clínica deve ser feita como uma prática artística, ou seja, de forma sempre experimental, apelando à transformação da sensibilidade e da representação, inventando em cada caso os protocolos necessários que permitem renomear, sentir e perceber o mundo. (Preciado, 2018, p. 18)
Neste trabalho, intentamos vir-a-ser dançando descolando-nos do primado da moral e dos bons costumes, ensaiando outros modos de fazer ciência, outras práticas psi, articulando-nos a miudezas e delicadezas das histórias locais de mulheres dançarinas. Dançando com elas, vimos brotar, dos passos dançados, devires. Devires-mulher germinavam da afirmação em ato do corpo dançado como grande razão, da afirmação da vida em expansão, pois é do vivo viver. Fica o desejo de que nos encontremos e nos desintegremos, produzindo fissuras, brechas para transmutação, profanação, monstrificação. Que se queime o que tiver de ser queimado, arda o que tiver de ser ardido, brilhe o que tiver de brilhar. Incendeie o de incendiar. E enquanto houver a possibilidade de insurgirmos em vida, morte, vida, que se faça movimento.
Referências
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Recebido em: 9/10/2019
Aceito em: 21/5/2020
1 No ano de 2016, se deu o início da montagem do espetáculo, que entrou em cartaz em três temporadas. Realizamos a terceira temporada em dezembro de 2019, e em seguida, suspendemos os ensaios, o que não implicou no encerramento da proposta de apresentar o espetáculo, de modo que o grupo continua aberto. Em 2020 fomos surpreendidas pela pandemia do Covid-19, e durante todo o ano mantivemos as atividades suspensas. Em dezembro de 2020, tivemos a notícia de sermos contempladas pela Lei Aldir Blanc, criada com o intuito de promover ações para garantia de renda emergencial à classe artística, diante da pandemia. Assim, temos previsão de retorno das atividades em 2021, considerando as condições e possibilidades em relação ao andamento da pandemia.
2 As fotografias do espetáculo estão disponíveis em https://www.instagram.com/vacaprofana__/.
3 Essa música compõe a trilha sonora do espetáculo.
4 Trecho do espetáculo.
5 Trecho do espetáculo.
6 Essa canção compõe a sonoplastia do espetáculo.
7 "Vida para certas pessoas é insistência" (Baptista, 2017).
8 Canção que compõe a sonoplastia do espetáculo.
9 Referência à canção que integra a sonoplastia do espetáculo.
10 Fragmento retirado da roda de conversa.