Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.4 São João del-Rei oct./dez. 2020
A política e os afetos nas práticas de pesquisas feministas e o encontro com "mulheres negras jovens"
Policy and the Affects in Feminist Research Practices and the Encounter with "Young Black Women"
Política y los afectos en las prácticas feministas de investigación y el encuentro con las "mujeres negras jovenes"
Ana Cecília Ramos Ferreira da SilvaI; Marcos Ribeiro MesquitaII
IMestra em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas. Graduada em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas. Membro e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Diversidades e Política (Edis/Ufal). Atua na área de Psicologia e Processos Psicossociais com ênfase em temáticas contemporâneas: feminismos, relações de gênero, questões étnico-raciais, sexualidade, juventudes e participação política
IIDoutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor Associado do curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Coordena o Núcleo de Estudos em Diversidades e Política (Edis/Ufal). Atua na área de Psicologia e Processos Psicossociais com ênfase em temáticas contemporâneas: feminismos, relações de gênero, questões étnico-raciais, sexualidade, juventudes e participação política
RESUMO
Esse artigo discute a intersecção entre as escolhas teóricas, os afetos e as questões políticas implicadas nas práticas de pesquisas feministas em Psicologia. O ato de pesquisar é aqui compreendido como a soma dessas várias escolhas, que, juntas, definem o percurso metodológico que é perpassado por vínculos, (des)encontros, questionamentos, experiências, interesses, problemas e trocas, que acontecem no campo e com as/os sujeitas/os que nele circulam. As propostas epistemológicas do feminismo interseccional e o método do PesquisarCOM, foram as bases teórico-metodológicas que orientaram este estudo, a partir de um lugar situado, parcial e localizado. No entanto, foi por meio do encontro com as "mulheres negras jovens feministas" e suas trajetórias de militância - naquilo que as aproximam e as distanciam, em decorrência das suas experiências de vida perpassadas pelos marcadores sociais de gênero, geração e raça -, que o diálogo com esses modos de fazer pesquisa se concretizou.
Palavras-chave: Pesquisa feminista. Interseccionalidade. PesquisarCOM. Saberes localizados.
ABSTRACT
This paper discusses the intersection between theoretical choices, affects, and political issues implicated in feminist research practices in psychology. The act of research is understood here as the sum of these various choices that together define the methodological path that is permeated by bonds, (dis) encounters, questions, experiences, interests, problems and exchanges that happen in the field and with the subjects who circulate in it. The epistemological proposals of intersectional feminism and the PesquisarCOM method were the theoretical and methodological bases that guided this study from a situated, partial and localized place. However, it was through the encounter with 'young black feminist women' and their trajectories of militancy - as they approach and distance them, as a result of their life experiences crossed by social markers of gender, generation and race - that the dialogue with these ways of doing research materialized.
Keywords: Feminist research. Intersectionality. PesquisarCOM. Localized knowledge.
RESUMEN
Este artículo discute la intersección entre elecciones teóricas, afectos y cuestiones políticas implicadas en las prácticas de investigación feminista en psicología. El acto de investigación se entiende aquí como la suma de estas diversas opciones que juntas definen el camino metodológico que está permeado por enlaces, (dis) encuentros, preguntas, experiencias, intereses, problemas e intercambios que suceden en el campo y con los sujetos que circulan en él. Las propuestas epistemológicas del feminismo interseccional y el método PesquisarCOM, fueron las bases teóricas y metodológicas que guiaron este estudio desde un lugar situado, parcial y localizado. Sin embargo, fue a través de conocer a las 'mujeres negras jóvenes feministas' y sus trayectorias de militancia - a medida que se acercan y los distancian, como resultado de sus experiencias de vida cruzadas por marcadores sociales de género, generación y raza - que se materializó el diálogo con estas formas de hacer investigación.
Palabras clave: Investigación feminista. Interseccionalidad. PesquisarCOM. Conocimiento localizado.
Introdução
Alzandúa (1981/2000, p. 232), em uma carta endereçada para as mulheres escritoras do terceiro mundo, nos informa sobre o paradoxo da escrita. Escrever é contar versões de histórias, é narrativa, é falar sobre diferentes percepções de mundo, é uma forma de "reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você".
Escrever é também falar sobre a importância das relações significativas, ou seja, dos encontros - seja conosco, seja com as/os outras/os. E assim também parece ser o ato de pesquisar - ao menos das pesquisas que buscam questionar a pretensa neutralidade do projeto científico moderno.
Seguindo a compreensão de Alzandúa sobre a escrita, a pesquisa é aqui pensada como uma prática que também reinventa e alarga as possibilidades existentes, uma vez que como pesquisadoras/es também fazemos uso das palavras - escritas e faladas - para narrar e interferir em realidades (Moraes, 2011). Fazer uso da palavra
diz respeito àquilo que Latour (2001) define como "inscrição": "termo geral referente a todos os tipos de transformação que materializam uma entidade num signo, num documento, num pedaço de papel, num traço [...] as inscrições são sujeitas a superposição e combinação" (Latour, 2001, p. 350). Nos relatos que fazemos das pesquisas, as palavras dos entrevistados, recortadas e colocadas entre aspas, as notas de diários de campo, são inscrições no sentido de que transformam o acontecimento em traço, em registro a ser combinado e recombinado. (Moraes, 2011. p.177, grifos nossos).
Pesquisa, no sentido aqui compreendido, é o encontro com o campo, com as/os sujeitas/os, é um conjunto de escolhas que somadas definem o percurso metodológico trilhado para alcançar o objetivo de (in)formar, conhecer. É para falar sobre esse caminho - perpassado por vínculos, (des)encontros, questionamentos, experiências, interesses, problemas, trocas, teorias e posicionamentos políticos - que este texto foi pensado e dividido em dois momentos: o primeiro, dedicado a contar-lhes sobre as escolhas teóricas-metodológicas-políticas assumidas como pressupostos norteadores deste estudo e sobre os afetos que aconteceram no/com o campo; e o segundo, para (com)partilharmos sobre as trajetórias de militância e de afeto que marcam as experiências de cada uma das cinco mulheres negras jovens feministas - protagonistas e coautoras de cada traço aqui escrito -, tanto naquilo que as aproximam quanto no que as distanciam.
O(s) feminismo(s) como prática de pesquisa: uma mirada interseccional
Em termos epistemológicos, foram nas metodologias e teorias feministas que encontramos os pressupostos necessários para situar este estudo, a partir de um lugar comprometido com a construção e sistematização de um conhecimento mais horizontal e dialógico.
Essa escolha teórico-metodológica se dá por compreendermos que o procedimento metodológico revela não só os caminhos percorridos durante o processo de investigação, mas também configura-se como um ato que é político, posto que, ao fazermos pesquisa, estamos deixando explícito quais pressupostos orientam nossas práticas. Assim sendo, nossas escolhas fundamentaram-se numa perspectiva que considera que o conhecimento é social e historicamente localizado e que se constrói junto com as outras sujeitas envolvidas na pesquisa.
Em específico, direcionamos nosso olhar por meio de uma perspectiva feminista interseccional, ou seja, procuramos analisar e compreender as relações diferenciadas de poder que situam as mulheres em posições desiguais. A interseccionalidade, categoria que surgiu no feminismo negro norte-americano - mas que já se pluralizou e está presente em discussões feitas pelas feministas do Sul-Global -, é usada por diversas autoras feministas (Crenshaw, 2002; Piscitelli, 2008; Borges, 2013; Silveira, 2013, Nogueira, 2017; Akotirene, 2018) com o objetivo de relacionar diferentes sistemas de poder e opressão que operam sobre a vida das mulheres, em especial, das mulheres negras, sem hierarquizar qual deles é mais importante.
Nesta pesquisa, tomamos os sistemas sexo-gênero, racista e colonial, e adultocêntrico para pensar interseccionalmente aspectos das militâncias das mulheres negras jovens feministas. A interseccionalidade, enquanto prática que é teórica e, ao mesmo tempo, analítica, é a ferramenta que torna possível conhecer os diversos arranjos que os marcadores sociais de diferenciação engendram e produzem na vida das mulheres - aqui, especificamente, em como a intersecção entre gênero, geração e raça marcam as trajetórias de militância das mulheres negras jovens feministas.
Outro pressuposto teórico que orienta nosso olhar nesta pesquisa diz respeito aos saberes localizados (Haraway, 1995), que compreende o conhecimento enquanto situado, parcial e localizado. Ao trabalhar sob essa perspectiva,
faz-se necessário desenvolver um processo contínuo de crítica, sempre aberto à contestação [...] a qual não deixa de implicar o estabelecimento de redes, práticas de partilha e de diálogo entre diferentes localizações e visões parciais, prática essa que obriga à consideração das relações de poder em presença e à necessidade de responsabilização. (Rodrigues, 2015, p. 27).
Em outras palavras, é reconhecer que não é possível chegar a um conhecimento total sobre a realidade, visto que ele é perpassado por contextos sociais e históricos que dependem das nossas próprias experiências. Desse modo, é preciso construir um conhecimento no qual as relações de poder sejam tensionadas. É necessário que quem realiza a pesquisa se comprometa com o processo de reflexividade como um instrumento de crítica e pressuposto intransponível (Neves & Nogueira, 2005), responsável pela historicização que mostra o lugar de enunciação e afeta as interpretações que estão sendo feitas.
A reflexividade, no sentido dado pela pesquisa feminista em interseccionalidade, se apresenta cada vez mais como um processo que é urgente, uma vez que "ela permite que se esteja atento a valorizar, a criticar e analisar subjetivamente. Implica perceber o que se estuda e como se estuda, o que se faz ao pesquisar, quem se beneficia e quem se prejudica, o que se reifica, o que se permite que aconteça" (Nogueira, 2017, pp. 198-199).
Para tanto, Haraway (1995) destaca que nesse processo é fundamental desconstruir o conceito de objetividade tal qual conhecemos na modernidade. Nessa perspectiva, a objetividade perde o atributo de neutralidade que lhe foi atribuída pelas ciências mais construtivistas e ganha contornos de parcialidade. Assim, numa metodologia feminista, a objetividade é alcançada quando reconhecemos os lugares de onde nos encontramos e partimos - que é, desde sempre, nosso próprio corpo e não um "lugar nenhum", neutro. Conforme a autora,
a corporificação feminista, as esperanças feministas de parcialidade, objetividade e conhecimentos localizados, estimulam conversas e códigos neste potente nódulo nos campos de corpos e significados possíveis. É aqui que a ciência, a fantasia científica e a ficção científica convergem na questão da objetividade para o feminismo. (Haraway, 1995, p. 41).
Adotar esse aporte teórico significa compreender os diferentes posicionamentos no processo de investigação - inclusive, o lugar de quem pesquisa. É, enfim, buscar desconstruir os postulados heteropatriarcais e coloniais do projeto científico moderno (Biglia, 2014), que compreendem a relação sujeito-objeto a partir da premissa de neutralidade e objetividade que revela, na verdade, o caráter sexista de muitas pesquisas.
Percurso metodológico: um diálogo entre as questões teórico-políticas e afetos
No processo de pesquisa, além de uma questão epistemológica, no que diz respeito aos modos de conhecer, o "deixar se afetar" é também uma questão ética, uma vez que está referindo-se ao reconhecimento e à valorização da experiência da/o outra/o. Ou como diz Favret-Saada (2005), ser afetada/o no contexto da pesquisa é aceitar assumir os riscos de ver seu projeto de conhecimento se desfazer, é entender que a experiência no campo nos modifica, e essa é a dimensão central dos encontros promovidos na/pela prática da pesquisa.
Foram justamente as afetações, incorporadas ao longo de todo o processo, que criaram as condições necessárias para a construção de laços de confiança e vínculos fortalecidos nesses encontros: primeiro, com os feminismos, enquanto ferramentas teórico-políticas que permitiram (re)pensar o campo e os modos de agir nele; com as pensadoras feministas negras e latino-americanas, que tornaram possível enxergar a partir de novos horizontes a pesquisa. E, ainda, com as diversas mulheres negras, que cruzamos nas rodas de conversa cidade afora, nas reuniões e ações dos grupos e coletivos feministas que acompanhamos, mas, principalmente, com as cinco interlocutoras deste estudo, que aceitaram compartilhar suas histórias de vida e trajetórias de militância - pois, sem a confiança que fora depositada, jamais conseguiríamos compreender o que propusemos neste estudo: entender as implicações da intersecção entre os marcadores sociais de gênero, geração e raça.
Pedimos licença para compartilharmos um dos aspectos mais importantes desse percurso, que diz respeito ao processo de reconhecimento de uma das autoras deste estudo como uma mulher (e pesquisadora) não branca. Assim, abro aqui um parêntese para escrever no singular: pesquisar é também processo de aprendizagem, inclusive sobre o que é ser pesquisadora. Não cheguei a essa pesquisa pronta e talvez seja necessário assumir que não estarei completamente nunca. Meu lugar recém-conquistado e ainda em construção, de "cientista-acadêmica-militante-feminista", termo que tomo emprestado da Perucchi (2009), iniciou junto e como parte do próprio processo de elaboração desta pesquisa. A cada autora que fui conhecendo, um mundo de novos conceitos foi sendo revelado, provocando rupturas e descobertas que ainda estão sendo processadas, visto que tomar consciência de si não é um processo fácil e requer, antes de tudo, desconstruir as ideias que foram enraizadas na sua história, na sua família. Pela primeira vez, reconheci nos meus traços a negritude que meu tom de pele mais claro não deixava enxergar.
Destaco esse momento como a primeira vez que me deixei ser afetada. Entender qual era o meu lugar nesse processo de pesquisa - para além de ser "a pesquisadora" que se debruça sobre um objeto e conduz o estudo - foi essencial para que compreendesse a importância de ocupar espaços de reivindicação e militância também na academia. Ocupar os espaços acadêmicos não só no sentido de ser objeto de pesquisa da/o outra/o, mas sim, e principalmente, ocupar sendo quem pesquisa, investiga e conta a própria história. Para Despret e Stengers (2011), isso significa ser "criadora de caso" e/ou "fazedora de histórias". Ser uma criadora de casos, no sentindo pensado pelas referidas autoras, é permitir que no encontro com a/o Outra/o - com quem se faz a pesquisa junto - novas versões da realidade sejam contadas.
Fechamos este parêntese, dando continuidade ao que possibilitou todo esse processo de (re)conhecimento: o encontro com o PesquisarCOM (Moraes, 2010) - método que permite que a pesquisa seja feita não sobre a/o outra/o, mas sim que seja feita junto com a/o outra/o. Foi com o PesquisarCOM que apreendemos os subsídios necessários para ir ao campo e transitar nele: aberta/o ao que os ruídos têm a nos dizer, entendendo que, assim como aquilo que é enunciado, ele se faz (e se fez) importante.
Foi o resultado desse encontro entre pesquisadora/or e interlocutoras que se tornou possível produzir conhecimento como estratégia de fortalecimento, como uma maneira de se estar junto e atuando politicamente, de modo que as fronteiras impostas pelas ciências modernas, que nos separam em pesquisadora/or e pesquisadas, que colocam nossos interesses em lugares distintos, e dificulta as nossas trocas - de histórias, experiências, causos, problemas, afetos - puderam ser subvertidas, pensadas sob uma nova compreensão de ciência que nega os pressupostos de neutralidade.
Ao assumir essa perspectiva, é importante que seja adotada uma postura ética em relação ao campo, de forma que as experiências resultantes desse encontro, inclusive os problemas e percalços próprios do fazer pesquisa - principalmente aquelas feitas COM outras/os -, não sejam desconsideradas. O campo, pensado nessa perspectiva, é lugar para atravessamentos, afetos, desentendimentos, questionamentos e interesses.
Outra aposta que fizemos durante o processo de elaboração da pesquisa e construção da escrita diz respeito ao que entendemos por uma ciência (e Psicologia) que se quer crítica, ou seja: alinhada às contribuições feministas e antirracistas da produção acadêmica. Para tanto, priorizamos dialogar com autoras mulheres, em sua maioria negras, feministas e latino-americanas, estreitando, assim, os laços entre a academia e os espaços de intervenção político/social - fortalecendo as redes de cooperação entre as diversas mulheres (negras, jovens, lésbicas, periféricas, rurais, cis e transgêneras, etc.).
A entrevista semiestruturada foi a principal ferramenta adotada na construção deste estudo. Essa escolha se deu por ela ser o tipo de entrevista que possibilita um espaço para a espontaneidade, visto que as perguntas não são rígidas e fixas, pois podem se adequar e serem modificadas a partir do que vai sendo respondido. Outra dimensão que orientou nossa ação - além dos pressupostos do PesquisarCOM e as práticas do se deixar afetar no/pelo campo - foi a entrevista com viés feminista, que se configura num
conjunto de procedimentos que visam garantir sobretudo o equilíbrio de poder entre entrevistadas/os e entrevistadoras/es. No domínio da investigação feminista as abordagens narrativas, potenciadas pelas entrevistas, são especialmente valorizadas, uma vez que permitem o enfoque nos processos que condicionam a construção social dos fenômenos. (Neves, 2012, p. 8).
Mesmo com os percalços próprios da pesquisa - atrasos, remarcações em cima da hora, compromissos outros na cidade -, acreditamos que a entrevista se concretizou satisfatoriamente, pois as questões foram respondidas sem grandes problemas, uma vez que a atmosfera criada era mais de uma conversa do que uma entrevista com resposta certa a ser dada.
As entrevistas foram realizadas com cinco participantes que se reconheciam como mulheres negras, jovens e feministas, e tinham idades compreendidas entre 20-25 anos. Todas as jovens participavam da construção do cenário político feminista da cidade em que esta pesquisa foi realizada. Cada uma, no entanto, vivencia os feminismos à sua maneira: tem quem esteja produzindo conhecimento científico na academia; quem participa organizadamente em coletivo feminista e de classe; há quem ressalte a organização na internet e o ativismo digital como forma de militância; quem busca numa organização partidária de esquerda espaço para organização política das mulheres pela democracia; e quem vem articulando feminismo negro e militância LGBT.
No que se refere aos olhares e arranjos analíticos, trabalhamos o corpo do material, composto pelas transcrições referentes às entrevistas realizadas, a partir da análise de conteúdo - contudo, cabe abrir um parêntese para explicar que, ao trabalhar com a perspectiva interseccional, a contribuição da análise de conteúdo se deu mais exclusivamente no processo de organização dos eixos analíticos.
Em nosso estudo, apostamos em uma prática de escrita afetiva e colaborativa. Assim, as narrativas das jovens, em muitos momentos, integram a própria composição do texto - em nossa compreensão -, que é o que possibilita construir, realizar e escrever a pesquisa com a/o pesquisadora/or, tornando possível que as assimetrias na escrita científica sejam diminuídas.
Resultados e discussões
As cinco protagonistas deste trabalho, aqui apresentadas como Nátaly, Stephanie, Carol, Evelyn e Rayza,1 são mulheres negras jovens que têm diferentes inserções nos movimentos feministas da cidade; e embora compartilhem experiências de vida - resultado dos processos e discursos que engendram suas vidas num lugar de não privilégio em relação a outras mulheres -, elas têm singularidades que as posicionam em lugares distintos, tanto no campo da política como na composição do cenário feminista local.
O tópico a seguir será dedicado a compreender como as trajetórias de militância das mulheres negras jovens feministas, que (com)partilharam um pouco sobre suas vivências conosco, vêm sendo construídas - a partir daquilo que as aproximam, devido às suas experiências de vida marcadas por situações de opressões e desigualdades em comum, decorrentes das suas condições de gênero, raça e geração; e daquilo que as distanciam, pois elas lidam de modos distintos com essas situações, pois o racismo, o machismo e o adultocentrismo, têm diversas faces e se apresentam de diferentes maneiras na vida de cada uma delas.
Trajetórias de militância: aproximações e distanciamentos
É por reconhecer que na história da diáspora as mulheres negras são estereotipadas e subvalorizadas que Werneck (2009) faz uma afirmação que provoca, à primeira vista, estranhamentos: "as mulheres negras não existem". A autora, ao proferir essa frase, está falando sobre como as mulheres negras
enquanto sujeitos identitários e políticos, são resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos. (Werneck, 2009, pp.151-152).
Histórica, sociológica e culturalmente, o discurso sobre as mulheres negras segue uma lógica racista e sexista que as colocam, no padrão colonial eurocêntrico, na última posição como sujeitos. A cor da pele e os órgãos genitais, referências biológicas, são usados para marcar o lugar inferior de seus corpos. Como consequência dessa hierarquização - na qual os homens brancos ocupam o topo, seguido das mulheres brancas e depois dos homens negros -, as mulheres negras, na diáspora africana, foram subjugadas, violentadas e desapropriadas de suas (diferentes) identidades. Assim, foi a partir do olhar racista-sexista do colonizador que elas passaram a ser vistas e, consequentemente, passaram também a se constituir.
Em nossa pesquisa, uma das questões que nos orienta é compreender se há ou não um processo de reconhecimento de suas identidades a partir da compreensão de suas vivências como mulheres negras jovens. Quando falamos em identidade, vale lembrar que estamos partindo de um pressuposto ancorado em Mouffe (1999), que entende a identidade do sujeito sempre como múltipla e contraditória, que deve ser abordada a partir da pluralidade. Nesse sentido, corroboramos com a afirmação de que,
embora a identidade coletiva das mulheres negras seja articulada a partir de experiências sociais e historicamente determinadas por sociedades desiguais, racistas e patriarcais, outras experiências individuais e comuns surgem como eixos de diferenciação e de aglutinação das mulheres. (Cardoso, 2012, p. 60).
Assim, para pensar esse processo de construção, buscamos traçar as aproximações e distanciamentos que se articulam às suas trajetórias de militância no tocante a duas questões: a primeira diz respeito ao processo de se reconhecer como mulheres negras; e a segunda fala sobre se entender como feminista.
"Reconhecer-se" mulher negra
Nátaly, Stephanie, Carol, Evelyn e Rayza, assim como outras mulheres negras, tiveram e ainda têm suas trajetórias marcadas por esse lugar subalterno e estereotipado que foi direcionado às mulheres negras na sociedade brasileira. Ser mulher negra jovem aparece em suas narrativas como sendo algo que "é pesado, eu estava no caminho, no ponto de ônibus, pensando em uma frase que eu acho que se encaixa bastante, que é: 'a minha pele tem sido o manto da minha resistência', porque ser jovem negra não é fácil" (Carol). É, no sentido atribuído pelas protagonistas deste estudo, quase que sinônimo de resistência, uma vez que
ser uma mulher jovem e negra hoje é um desafio que é constante, primeiro porque você ser uma mulher é uma batalha diária com você e com a sociedade. Segundo que a questão de estereótipo, de ser negra e da cor, dificulta muito as coisas, e não só do ponto de vista econômico, mas da socialização de nós enquanto mulheres [...]. Ser mulher jovem e negra hoje é um desafio não só para se alcançar um lugar, para ascender, mas principalmente por estar viva, é uma luta constante para se estar viva e se manter viva. É praticamente um ato de resistência. Você resistir a um processo de socialização e de vida, porque é você se colocar num contexto que normalmente não foi projetado para você, e aí você precisa travar vários duelos, interpessoais e pessoais, então é um desafio constante. (Stephanie, 24 anos).
Essa resistência, por estar e se manter viva diante de um cenário que não é favorável à sua existência, faz com que seja necessário enfrentar a vida e o cotidiano de maneira aguerrida, pronta para atuar combativamente diante desses desafios que lhes são impostos. Ser mulher negra jovem, como nos diz Nátaly, é "atuar frente às questões, a minha vida e o meu cotidiano de maneira agressiva! Ser quem eu sou, na minha singularidade, ser mulher 'da onde' eu venho, diante das questões que vivencio, é atuar no que vier de maneira agressiva".
Werneck (2009) já havia sinalizado que, diante de condições que são profundamente desvantajosas em diferentes esferas, as mulheres negras precisaram desenvolver estratégias cotidianas de disputa que fossem capazes de recolocar e valorizar o papel das mulheres negras como agentes importantes para a constituição do tecido social e dos projetos de transformação. Essas estratégias de disputas parecem dialogar com o que é colocado pelas jovens, no sentido de fazer da resistência e do sentimento de agressividade molas propulsoras para a construção de um novo horizonte de luta.
Mas, antes de tomar para si a responsabilidade pela criação dessas estratégias cotidianas de disputa, faz-se necessário passar por um processo de reconhecimento que não é, na maioria das vezes, um caminho fácil. Nesse processo de reconhecer-se como uma mulher negra, observamos algumas experiências que se aproximam nas trajetórias das jovens. Stephanie e Evelyn nos falam sobre o impacto que foi descobrir-se negra dentro da universidade. Em comum, além de as duas serem estudantes da mesma instituição, elas passaram por esse processo de (re)conhecimento de maneira bem semelhante: por meio da participação em encontros estudantis.
Stephanie relata que depois do congresso da União Nacional dos Estudantes, do qual ela participou em 2015, passou a se reconhecer identitariamente como uma mulher negra devido às trocas de experiências com outras negras jovens que também participaram do encontro.
E aí nesse processo de discussão eu fui me identificando ainda mais com alguns fatores que foram depois levantados, que me diferencia das outras mulheres que são mulheres também da classe média baixa e os fatores que isso implica. E aí eu costumo dizer que eu existo antes e depois daquele momento, porque depois daquele momento eu fui me colocando, eu fui aprendendo a me colocar dentro dos espaços, comecei a participar de fóruns que debatiam as questões raciais, e aí pra mim foi bastante importante, porque foi um momento de ruptura entre como eu me via e como eu passei a me ver. (Stephanie, 24 anos).
Evelyn, também realça essa dimensão da troca com outras mulheres negras jovens como sendo essencial no seu processo: "eu não nasci uma jovem mulher negra, eu me tornei uma mulher negra na universidade. Quando eu entrei na universidade, eu ainda não era preta, eu era parda, moreninha, mulata". Foi depois de sua participação no movimento estudantil, que ela conheceu o feminismo e movimento negro:
conheci muitas mulheres negras do Brasil todo, que, de repente, a gente sentava, conversava e a gente se reconhecia uma na outra, e para mim foi muito louco esse primeiro momento de entender que eu era uma mulher negra. Nesse primeiro momento que você se entende mulher negra, você se entende empoderada, é mágico. Você acha que descobriu o ar da sua vida, a grande mudança da sua vida. Mas aí, com o tempo, se torna doloroso, porque você começa a descobrir também muitas outras coisas e o peso que é e que sempre foi ousar ser uma mulher negra, e se dizer uma mulher negra não só na universidade, mas para todo o mundo. (Evelyn, 21 anos)
Se, por um lado, existe um processo de reconhecimento como mulher negra a partir das experiências vivenciadas no contexto da universidade, há, por outro, uma dimensão desse reconhecimento que vem muito antes da entrada nesses espaços. Ser mulher negra e reconhecer-se como tal não foi, para Carol e Nátaly, um acontecimento ou momento específico. Diferentemente de Evelyn e Stephanie, que vão tornar-se mulheres negras a partir desses encontros, as duas já sabiam que eram, devido ao contexto em que estão inseridas, principalmente em suas famílias.
O que houve, no entanto, para Carol e Nátaly, foi uma tomada de consciência quanto às suas negritudes que só veio junto com a militância. Sobre esse processo de reconhecer-se como mulher negra, Carol afirma:
eu ouço várias pessoas falarem assim "ah, me reconheci negra na academia", sabe? Eu acho engraçado, porque eu nunca precisei... Não é porque eu sou negra retinta e meu cabelo é crespo, é porque eu acordava na minha casa e via que minha irmã tinha cabelo cacheado e o meu não era, o dela era loiro e o meu era preto, das pessoas perguntarem se ela era realmente minha irmã e se eu era adotada. Então eu sempre soube que meu lugar era subalterno, meu lugar era inferior ao dela, e esse reconhecimento veio desde muito cedo, a minha vida toda [...]. Então, essa afirmação, esse reconhecimento, eu sempre tive porque ele sempre esteve muito exposto por outras mulheres negras na minha vida e na minha família. Agora, essa afirmação de levantar a cabeça e dizer "eu sou uma mulher negra, meu cabelo é crespo, meu nariz é amassado e eu tenho muita boca mesmo", aí sim, essa afirmação toda nesse contexto veio dentro da militância. De dizer "eu sei porque que eu sou assim e que bom que eu sou assim". (Carol, 22 anos).
Em relação ao processo de reconhecimento de Rayza como uma mulher negra, a sua experiência se aproxima mais dos percursos de Carol e Nátaly, uma vez que a família vai ser o cenário principal desse processo. Contudo, diferentemente das duas, que já tinham suas vidas marcadas pela raça e que sentiam desde crianças a diferença entre ser uma mulher branca e ser uma mulher negra - como pontuado por Carol, ao relembrar o modo como as pessoas a tratavam diferente da sua irmã branca de cabelos loiros -, Rayza precisou se afirmar como negra primeiro na família e só depois nos espaços de militância. Ela nos diz que
eu sempre escutei do meu pai que eu não era negra. Eu tinha nascido com o cabelo ruim de negro, com os quadris e os lábios de negro, mas eu não era negra porque eu era mais clara. E eu sempre fiquei: se eu não sou negra, se eu não sou branca, porque tenho "essas coisas" de negro, o que eu sou? [...] E ele olhou para mim e disse "você é parda", e eu não sabia o que era parda, e eu copiei e colei "parda" no Google e apareceu o Neymar, a Mariana Rios, pessoas que eu via como negras, então, eu vi que não, eu não sou parda, eu sou negra. E desde então comecei a pesquisar sobre o que era ser pardo, ser negro e, aí, quando eu me vi negra, eu queria me afirmar ainda mais como negra e eu parei de alisar o cabelo, comecei a passar batom, comecei nos meios a dizer que era negra e as pessoas me indagavam: "mas você é tão clarinha". E eu respondia: "É! Mas aí é que está a miscigenação", daí comecei a pesquisar e entender mais sobre tudo isso. (Rayza, 20 anos).
A miscigenação, a que Rayza se refere, é resultado do encontro violento e opressor que marcou a formação histórica do Brasil entre brancos colonizadores europeus, negros escravizados africanos e índios nativos. Vendida como um processo positivo da constituição do que seria a "nação brasileira" - mistura de raças, etnias e cores -, a miscigenação esconde, na verdade, um conjunto de violências cometidas nos corpos das mulheres negras e indígenas pelos escravocratas brancos.
Mas não é só isso. Esse processo de miscigenação também está relacionado com a tentativa de embranquecimento da população brasileira e a consequente "valorização" da/o negra/o da pele mais clara em detrimento da/o negra/o com a pele escura, o que acarreta numa falsa impressão de que a população negra está inserida nos espaços, mas, como bem colocado por Silva (2017, p. 13): "[...] na verdade, àquela população de pele mais escura é negada qualquer possibilidade de acesso. Uma pessoa de pele escura, aliás, será reconhecida como negra em todas as circunstâncias, sem poder disfarçar as suas características fenotípicas para então ser 'tolerada'".
Rayza, ao não aceitar ser compreendida como parda, está, na realidade, negando o embranquecimento do seu corpo; está resistindo ao processo de miscigenação que diz que seu tom de pele mais claro a coloca num lugar de superioridade em relação às outras mulheres negras.
Pensando a trajetória de militância a partir das aproximações e distanciamentos, podemos compreender que, nesse processo de reconhecimento como mulheres negras, temos aqui dois movimentos distintos: um que passa pelo reconhecimento a partir da troca e do encontro com outras negras jovens, que dividem não só experiências semelhantes, mas coabitam no mesmo espaço, que é a universidade; e outro que passa pelas vivências experienciadas desde a infância no âmbito familiar, seja de afirmação, seja de negação da negritude.
Em comum, esse processo de reconhecer-se mulher negra - independentemente do momento da vida ou espaço em que isso ocorreu - vai ganhar contornos políticos na militância. A partir do reconhecimento de si e da outra, as negras jovens feministas protagonistas deste estudo passaram a buscar modos de resistência que possibilitassem o enfrentamento das práticas racistas-sexistas que marcam cotidianamente suas trajetórias.
Gonzalez (1988, p. 55), ao falar sobre sua experiência em tornar-se negra, vai fazer alusão ao discurso de Simone de Beauvoir para falar da questão da raça, ao dizer que "não se nasce negra, mas sim preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc., mas tornar-se negra é uma conquista".
Nesse contexto, se pensarmos o processo de reconhecer-se mulher negra e as trajetórias de militâncias construídas por Nátaly, Stephanie, Carol, Evelyn e Rayza, veremos que muito do que as jovens apontam em suas narrativas corroboram com o que foi dito pelas referidas autoras: tanto no que diz respeito ao processo de "tornar-se negra" - como um modo de negar o embranquecimento de seus corpos - quanto no que se refere à centralidade da militância em suas trajetórias. Sobre essa última questão, podemos realçar ainda que, seja em grupos mais tradicionais, seja em espaços de intervenção mais alternativos, esse é um ponto de aproximação entre as cinco negras jovens. Todas elas, ainda que com modos de atuações distintos, compartilham o sentimento de pertença e fazem questão de afirmarem politicamente suas negritudes nos mais variados espaços - inclusive na família -, ainda que reconheçam o quão doloroso é fazê-lo.
A militância, nesse sentido, é parte importante desse reconhecimento, pois a partir de uma participação mais politicamente engajada, elas conseguiram ver que muitos aspectos de suas trajetórias dialogam com as trajetórias de tantas outras negras jovens. Se reconhecer na luta da outra e encontrar força para a superação de situações e condições de opressão é consequência do processo de empoderamento que as transformam em sujeitas ativas e que tecem coletivamente estratégias de resistências cotidianas.
"Tornar-se" mulher negra jovem feminista
O segundo elemento que pensamos sobre as trajetórias de militância diz respeito ao processo de, enfim, reconhecer-se como feminista. A partir dessa compreensão, podemos observar quais aspectos aproximam e distanciam Nátaly, Stephanie, Carol, Evelyn e Rayza no campo de disputa político-ideológico feminista. Em relação a esse processo, um ponto em comum que aproxima as jovens é a dificuldade de se reconhecerem num movimento que historicamente foi construído para/por/pelas mulheres brancas, no qual as pautas eram sobre elas, no qual quem tinha voz ativa e podia falar sobre o movimento também eram elas.
Essa dificuldade não é uma característica que aproxima somente as cinco jovens protagonistas deste estudo, mas parece ser comum a outras mulheres negras que se encontram, independentemente de qual espaço, no ativismo e na luta política. Isso poderá ser mais bem compreendido se dialogarmos com Werneck e sua crítica ao feminismo hegemônico (e branco) brasileiro. Para tanto, trago um recorte da tese de doutorado de Cardoso (2012, p. 304), na qual a reflexão de Jurema está destacada:
Na história das brancas, a gente entra nos 45 do segundo tempo, não faz nem sentido no segundo tempo. Essa crítica já foi feita por milhares de vezes, mas para nós ela precisa ser feita cada vez mais. Cada vez mais. A gente se identifica como uma parte feminista e a gente reconhece no feminismo este viés individualista e racista que faz parte de toda a estrutura de pensamento branco em vigor no Brasil e fora do Brasil. É por isso que a gente não se vê feminista.
Para Cardoso (2012), essa crítica ao movimento faz com que muitas mulheres negras não reivindiquem a identidade feminista, ainda que compartilhem, compreendam e concordem com muitos de seus conteúdos. Processo parecido acontece com as negras jovens desta pesquisa, o que as diferem é que, ainda que com dificuldade e certa resistência, elas se afirmam como feministas, embora não deixem de tecer suas críticas.
Outra questão realçada por Carol é que o movimento feminista hegemônico em vigor no Brasil ainda é muito academicista, sendo isso um dos fatores que a faz manter-se alerta:
para eu bater no peito e dizer que sou feminista, como eu posso dizer? Para mim, é muito acadêmico. Chegar assim e dizer que sou feminista, sendo que eu enquanto negra, meus antepassados, as mulheres negras da minha história, as que vieram antes de mim, nunca precisaram dessa nomenclatura e fizeram o que fizeram, e fizeram muito bem... quando eu me deparei com o feminismo, foi dentro da academia, não foi da forma de "nossa, que libertador", até porque eu não consigo entender o próprio feminismo radical hoje, eu não consigo lidar... e sim, hoje eu bato no peito e digo que sou uma mulher jovem negra feminista dentro do feminismo negro, porque foi aí que eu consegui... eu já li muito Beauvoir, inclusive eu gosto do "memórias de uma moça bem-comportada", mas aí a gente contextualiza, sabe? Beauvoir não estava falando das mulheres, ela estava falando do círculo de mulheres que ela convivia, ela era da sociedade francesa, casada com um filósofo fodão, super conhecido mundialmente... e eu nunca me encaixei ali, sabe? (Carol, 22 anos).
No que concerne às aproximações e distanciamentos em relação ao processo de se reconhecer feminista, Stephanie é a única que vem militando em um coletivo feminista socialista (Movimento de Mulheres Olga Benário). As outras quatro, Evelyn, Carol, Nátaly e Rayza, compartilham o feminismo negro como sendo o projeto teórico-político que elas elegeram para construírem suas trajetórias de militância. Cada uma, no entanto, chegou até o feminismo negro por caminhos distintos.
Tanto Evelyn como Carol, mesmo não confiando totalmente nos movimentos feministas, sabem e reconhecem a importância de estarem junto com outras mulheres negras na construção de um feminismo negro. Elas não se abstêm do debate e estão, cada uma à sua maneira, produzindo conhecimento na academia que sirva a outras mulheres também negras - uma sobre violência contra a mulher no estado de Alagoas a partir de um recorte racial; e a outra sobre mídia e representação da mulher negra. Carol também é a única representante do estado na Associação Nacional de Negras Jovens Feminista. E Evelyn está sempre apresentando sua pesquisa em mesas que discutem feminismos e as questões das mulheres negras - inclusive, foi assim que as conheci: em palestras e rodas de conversa.
Sobre o pensamento feminista negro, Cardoso (2012, p. 26) reflete que ele é construído a partir
da complexa realidade racial brasileira, uma realidade codificada pelo gênero, e se caracteriza: a) pela recuperação da história das mulheres negras; b) pela reinterpretação desta história a partir de uma nova estrutura teórica construída em oposição aos paradigmas tradicionais, revelando a contribuição das mulheres negras em diversas áreas do conhecimento; e c) pelo enfrentamento político ao racismo, ao sexismo e ao heterossexismo através de uma perspectiva interseccional.
Esse compromisso do feminismo negro em contar histórias outras sobre as mulheres negras realça uma dimensão bastante importante do engajamento político, que é a questão do afeto. É nessa dimensão que Rayza vai, depois de um primeiro momento de aproximação com uma vertente mais liberal do feminismo - ela fazia parte da comissão organizadora da Marcha das Vadias na cidade -, reconhecer que é necessário e importante se colocar na disputa política feminista fazendo um recorte de classe e de raça. Assim, ao se afirmar mulher feminista, é preciso fazê-lo também contemplando o lugar de sua negritude.
Foi por intermédio da militância no feminismo negro que ela encontrou em outras jovens também negras o suporte necessário para se (re)conhecer mulher negra feminista. O feminismo negro para Rayza foi "a possibilidade de me entender como um todo, de ver a possibilidade de pessoas iguais a mim contando coisas que tinham vivenciado e que eu também tinha vivenciado, sabe?" Essa compreensão de que são mulheres com histórias de vida semelhantes é o que proporciona a Rayza o entendimento de uma das práticas mais difundidas no/pelo feminismo negro: o cuidar de si, para cuidar da outra.
Quando uma começa a contar sua história e é tão igual à história da outra, de se ver na outra [...] quando uma jovem negra começa a contar a história dela e o que ela vivenciou, é como se ela estivesse contando a minha história, entendeu? Eu quero ficar mais perto ainda dessa pessoa. Quando ela começa a falar eu fico "poxa, eu já vivi isso", e isso só faz eu querer ficar mais perto para trocar experiências, para cuidar uma da outra. (Rayza, 20 anos).
Esse encontro com outras mulheres negras permite que elas compartilhem a dor da opressão racista-sexista, ao mesmo tempo em que vão se encorajando, se cuidando e construindo juntas imagens mais positivas de si. Como destacado em suas narrativas, o feminismo negro teve e continua tendo uma importância muito significativa para que as mulheres negras se sintam pertencidas politicamente aos movimentos feministas.
Mas não é só de pertencimento que o feminismo negro trata. Ao articular as mulheres negras para enfrentar as práticas cotidianas racistas-sexistas, ele está fortalecendo também o processo de reconstrução identitária dessas mulheres que não mais precisam adequar-se aos interesses da branquitude para sentirem que suas vidas importam; para se constituírem como sujeitas políticas; para disputar nos espaços feministas lugares legítimos de ação.
Considerações finais
Nos dias atuais, como se sabe bem, é impossível pensar as práticas de pesquisa em Psicologia Social sem considerar os debates sobre desigualdade social, a interlocução que existe entre os eixos de diferenciação, poder e subordinação, como raça, etnia, geração, localidade geográfica, religiosidade, sexualidade, gênero, orientação sexual, entre outros.
Contudo, outro desafio que fez parte deste processo de pesquisa foi, justamente, trabalhar, na perspectiva da Psicologia Social, as trajetórias de militância das protagonistas deste estudo a partir de uma análise interseccional dos marcadores sociais de gênero, geração e raça. Essa dificuldade, no entanto, é característica própria de um campo de estudo que ainda está incorporando nas suas práticas de pesquisa a necessidade e a importância de se pensar a interlocução de diferentes marcadores por meio de um olhar atento às diversidades e aos modos como eles dialogam e se apresentam, circunscrevendo coletiva e subjetivamente as vidas de diferentes sujeitos.
Embora todas essas dificuldades tenham existido, sabemos o quão foi importante trabalhar e reforçar a Psicologia como um campo de investigação que pode se orientar a partir de um viés feminista e interseccional; e que deve olhar de maneira mais ampla para os processos psicossociais.
Apostamos numa prática de pesquisa ética e politicamente implicada nos afetos, nos encontros e desencontros, nas partilhas e trocas. Nosso compromisso, ao realizá-la a partir desse lugar aberto ao diálogo e apostando em uma forma de escrita colaborativa, diz muito sobre a ciência que queremos fomentar, mas fala mais ainda sobre a sociedade que acreditamos ser possível construir: uma sociedade livre das práticas racistas-sexistas, adultocêntricas e cis-heteronormativas, que são responsáveis por estabelecer relações opressivas e excludentes ao dar privilégios para uns em detrimento do sofrimento e da exploração de outros.
Durante o processo de construção dessa pesquisa, passamos por diversos momentos em que foi preciso parar e refletir sobre nossas práticas, reformular os objetivos e os modos de olhar para o campo e para as jovens - que deixaram de ser meras participantes para se tornarem, por meio de suas narrativas, coautoras do que está escrito aqui.
Encerramos essas páginas de discussão tendo a clareza de que, por maiores que tenham sido nossos esforços, sabemos que este debate não se esgota aqui, pois um trabalho como esse é sempre incompleto, ainda que queira ser uma contribuição para o conjunto de debates na área. É, antes de qualquer coisa, um trabalho feito de/para/por/com outras mulheres negras jovens, uma vez que não escrevemos só, mas sim junto com Nátaly, Stephanie, Carol, Evelyn, Rayza, e tantas outras que estiveram (e que ainda estarão) presentes nas interlocuções realizadas e nos possíveis e futuros diálogos outros.
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Recebido em: 31/10/2019
Aceito em: 10/10/2020
1 Os nomes são fictícios e uma homenagem às negras jovens que se destacam no cenário brasileiro devido a suas diversas formas de ativismo. São elas: a ativista e colunista da Marie Claire, Stephanie; a youtuber Nátaly Neri; a cantora de funk Mc Carol; a grafiteira Evelyn Queiroz, mais conhecida como Negahamburguer; e a digital influencer negra mais seguida nas redes sociais Rayza Nicácio.