SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16 número3Hanseníase e envelhecimento: representações sociais dos moradores de um hospital colôniaExistencialismo e o campo político carioca (1945-1955): um olhar fenomenológico-ator-rede índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.3 São João del-Rei jul./set. 2021

 

Obstáculos à produção do cuidado em álcool e outras drogas na perspectiva dos trabalhadores de saúde mental: prelúdios do cenário atual?1

 

Obstacles to the Production of Care for Alcohol and Other Drugs from the Perspective of Mental Health Workers: Preludes to the Current Scenario?

 

Obstáculos a la producción de cuidados en el alcohol y otras drogas desde la perspectiva de los trabajadores de salud mental: ¿prelúdios del escenario actual?

 

 

Adriana LeãoI; Bruna Lidia TañoII; Douglas Gonçalves JacobIII; Karine dos Santos PimentelIV

IProfessora Associada do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Pós-doutora em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Doutora em Ciências da Saúde pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas e Práticas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial/CNPq
IIProfessora Adjunta do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Doutora em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
IIIPsicólogo. Especialista em Gestão Pública em Saúde. Servidor vinculado ao Instituto Capixaba de Ensino Pesquisa e Inovação em Saúde/Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo (ICEPi/SESA-ES)
IVPós-graduanda pelo Colégio Brasileiro de Acupuntura e Medicina Chinesa. Terapeuta Ocupacional formada pela Universidade Federal do Espírito Santo. Terapeuta Ocupacional do Hospital Estadual Jayme dos Santos Neves e do Instituto de Gestão Social do Terceiro Setor

 

 


RESUMO


A partir de 2016, observam-se direcionamentos políticos divergentes em relação ao cuidado norteado pela atenção psicossocial de base comunitária e territorial. Diante das diretrizes para o cuidado em rede e as contradições na condução das políticas, questionamo-nos sobre os desafios na produção do cuidado com usuários de álcool e outras drogas. Neste estudo, objetivamos compreender os principais obstáculos para o cuidado em Rede de Atenção Psicossocial (Raps) no âmbito do Sistema Único de Saúde, a partir da visão dos trabalhadores da saúde mental. Norteada pela Análise de Conteúdo, dois temas centrais se fizeram presentes: a estigmatização em torno dos usuários de álcool e outras drogas e a presença das Comunidades Terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial. Os resultados apontaram para um processo de retrocesso e possível desmonte da Raps, como se preconizava, uma vez que o tema das Comunidades Terapêuticas se mostrou transversal aos resultados analisados.

Palavras-chave: Serviços de saúde mental. Transtornos relacionados ao uso de substâncias. Saúde pública. Práticas psicossociais.


ABSTRACT

From 2016 onwards, divergent political directions have been observed in relation to care guided by community-based and territorial psychosocial care. Given the guidelines for network care and the contradictions in the conduct of policies, we ask ourselves about the challenges in the production of care for users of alcohol and other drugs. In this study, we aimed to understand the main obstacles to care in a Psychosocial Care Network (PCN) within the Health Unic System, from the perspective of mental health workers. Guided by Content Analysis, two central themes were present: the stigmatization around users of alcohol and other drugs and the presence of Therapeutic Communities in the Psychosocial Care Network. The results pointed to a setback process and possible dismantling of PCN as recommended, since the theme of Therapeutic Communities was transversal to the analyzed results.

Keywords: Mental Health Services. Substance-Related Disorders. Public health. Psychosocial practices.


RESUMEN

A partir de 2016, se han observado direcciones políticas divergentes en relación con la atención guiada por la atención psicosocial comunitaria y territorial. Dados los lineamientos para la atención en red y las contradicciones en la conducción de las políticas, nos preguntamos sobre los desafíos en la producción de atención para los usuarios de alcohol y otras drogas. En este estudio, nuestro objetivo fue comprender los principales obstáculos para la atención en una Red de Atención Psicosocial (RAPS) dentro del Sistema Único de Salud, desde la perspectiva de los trabajadores de salud mental. Guiados por el Análisis de Contenido, estuvieron presentes dos temas centrales: la estigmatización en torno a los usuarios de alcohol y otras drogas y la presencia de Comunidades Terapéuticas en la Red de Atención Psicosocial. Los resultados apuntaron a un proceso de retroceso y posible desmantelamiento dela RAPS como se recomendaba, ya que la temática de Comunidades Terapéuticas fue transversal a los resultados analizados.

Palabras clave: Servicios de salud mental. Trastornos relacionados con el uso de sustancias. Salud pública. Prácticas psicosociales.


 

 

Introdução

O consumo abusivo de drogas sempre esteve presente em diversas culturas, condicionado a finalidades ritualísticas, religiosas, terapêuticas ou mesmo recreativas. O uso de drogas constituiu-se historicamente como um instrumento de estímulo, consolo, diversão, devoção e intensificação do convívio social, fazendo, assim, parte da cultura humana (Carneiro, 2009). Recentemente, o uso de álcool e outras drogas passou a ser visto como um problema de saúde pública, tanto em nível internacional como nacional, pois o aumento no padrão de consumo vem refletindo as profundas transformações socioculturais na relação do homem com tais substâncias (Alves & Lima, 2013).

As políticas proibicionistas, no movimento de "guerra às drogas", se fazem presentes no Brasil desde a década de 1970, a partir da qual se difundiu uma cultura de repressão e criminalização do uso das drogas e, consequentemente, a estigmatização em torno das pessoas que fazem uso destas, estando especialmente direcionado para um conjunto específico delas. Nesse sentido, o movimento proibicionista, atuando em uma perspectiva, influenciando inclusive o meio científico, classificava as SPAs em relação a seu caráter legal/ilegal (Queiroz, Jardim, & Alves, 2016). Mesmo com as diretrizes políticas e técnicas, serviços e ações, desde 2003, em que foi consolidada a Política Nacional sobre Drogas, criando uma nova política direcionada especificamente para os usuários de álcool e outras drogas, tais movimentos proibicionistas ainda se afirmam fortemente (Paiva, Ferreira, Martins, Barros, & Ronzani, 2014).

O estigma, presente no contexto proibicionista, é definido pelo juízo de valor hegemônico e envolve a desaprovação social de determinadas características pessoais, incluindo comportamentos ditos como "desviantes" em uma determinada cultura. A estigmatização pode representar uma das principais barreiras para a oferta de cuidado e, em situações extremas, a discriminação pode favorecer práticas desumanas de tratamento (Ronzani, Costa, Mota, & Laport, 2015).

A Organização Mundial de Saúde (OMS, 2002) propõe um modelo de atenção à saúde mental de base comunitária, consolidado em serviços territoriais e de atenção diária. Nesse contexto, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) no Brasil estão alinhados com as proposições da OMS, uma vez que têm como objetivo oferecer cuidados clínicos e inserção social, por intermédio do Projeto Terapêutico Singular (PTS), que envolve em sua construção a equipe, o usuário e sua família, e aumentar e fortalecer a rede social no contexto de vida do usuário, de forma articulada com os outros pontos de atenção da rede de saúde (Ministério da Saúde [MS], 2004)..

No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Portaria MS n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011, foi instituída a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, tendo em sua configuração alguns dos seguintes eixos: Atenção Básica em Saúde, composta pelos seguintes pontos de atenção: Unidade Básica de Saúde (UBS), Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf), Consultório na Rua (CnaR), Apoio aos Serviços do componente Atenção Residencial de Caráter Transitório e os Centros de Convivência e Cultura, Atenção Psicossocial Estratégica. Encontram-se os Caps, em todas as suas modalidades: Atenção à Urgência e Emergência, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu 192), Sala de Estabilização, Unidade de Pronto Atendimento (UPA) 24 horas e portas hospitalares de atenção à urgência/pronto-socorro, entre outros.

Contraditoriamente ao preconizado pela Atenção Psicossocial, as Comunidades Terapêuticas (CTs) foram inseridas na Raps, na atenção residencial de caráter transitório. As CTs são instituições de caráter privado, muitas vezes de natureza religiosa, que passaram a ser elegíveis a subsídios públicos, como benefícios fiscais e financeiros, a partir da Lei n. 11.343/2006, para a oferta de cuidados as pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas. Tal fato acirrou ainda mais a disputa, no que se refere às controvérsias quanto aos aspectos clínicos, científicos, morais, simbólicos e políticos, em torno do modelo de cuidado para essa problemática. Nas CTs preconiza-se a condução do tratamento pautado no valor da abstinência, nem sempre como um objetivo das próprias pessoas que buscam auxílio, além da sua reclusão e isolamento social, sob rigorosas regras de conduta e convivência, tutela e vigilância, por um tempo determinado entre seis e 18 meses, sendo adotado com mais frequência o período de nove meses (Santos, 2018).

A partir de 2016, em franca contraposição ao que foi preconizado pela Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas (Ministério da Saúde, 2003), verifica-se um posicionamento divergente em relação ao cuidado norteado pela atenção psicossocial de base territorial e comunitária (Almeida, 2019).

A Nota Técnica n. 11/2019, emitida pela Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas - CGMAD/Dapes/SAS/MS (MS, 2019), reúne em torno de 15 documentos normativos, entre portarias, resoluções e decretos, elaborados entre dezembro de 2016 e maio de 2019, e foi denominada como a Nova Política Nacional de Saúde Mental. As novas diretrizes políticas se caracterizam pelo incentivo à internação psiquiátrica, com o reajuste de 60% no valor das diárias hospitalares, pela separação da Política de Álcool e Outras Drogas, que passou a ser chamada como Política Nacional sobre Drogas, cuja ênfase recai sobre o financiamento de CT, com uma perspectiva proibicionista e punitivista em torno dos aspectos do uso de álcool e outras drogas (Santos, 2018; Cruz, Gonçalves, & Delgado, 2020).

Mesmo diante dos retrocessos anunciados, não podemos deixar de considerar nos anos anteriores os avanços obtidos com a estruturação dos pontos da rede e de ações, possibilitando a disposição de espaços de cuidado integradores. No entanto, para que se torne efetiva a atenção psicossocial em rede, ainda é preciso mudanças nas concepções e práticas dos diferentes atores, profissionais, usuários, familiares, no intuito de superar a reprodução do saber/fazer incoerente com as propostas da Reforma Psiquiátrica (Oliveira, Araújo, & Silva, 2014).

Além do trabalho pautado em rede de cuidados, também se faz presente na lógica da atenção psicossocial a Redução de Danos (RD) como uma ferramenta conceitual e também prática. A RD se iniciou no contexto nacional em 1989, na cidade de Santos, quando o índice de contaminação pelo HIV/Aids estava relacionado com o uso indevido de drogas injetáveis, com troca de seringas. Posteriormente, o foco da RD, para além da prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, passou a ser um novo paradigma de cuidado, ao colocar o usuário de drogas como protagonistas do seu próprio processo, tornando-se assim corresponsável pela produção de sua saúde (Passos & Souza, 2011). Desse modo, para as pessoas que fazem o uso prejudicial de álcool e outras drogas, é uma ampliação da oferta de cuidado, que favorece o autocuidado, a diminuição progressiva do consumo das substâncias, o que pode ter como consequência a abstinência, caso seja do desejo do usuário (Santos, 2018).

Pela diretriz oficial da Política Nacional de Saúde Mental estabelecida em 2003, os Caps álcool e drogas (Caps ad) podem trabalhar na lógica da RD, que se caracteriza como abordagem pragmática, em que as intervenções se fundamentam no princípio de que o consumo de drogas sempre esteve e sempre estará presente na história da humanidade. Dessa forma, a abordagem da RD parte de estratégias para a minimização das consequências, danos e prejuízos psíquicos, físicos e sociais relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas, sempre integradas ao binômio da vontade do sujeito e do seu direito a uma vida mais saudável, segundo a sua capacidade de ser construtor dessa opção mediante o apoio da família, da comunidade e do Estado (Alves & Lima, 2013; MS, 2003).

Alguns desafios para o uso da RD relacionam-se com a pouca preparação dos profissionais para lidar com o fenômeno do uso das drogas por essa perspectiva, o que pode ser explicado pela ausência ou insuficiência da temática na graduação (Carvalho & Dimenstein, 2017) e pela presença da abstinência como um valor mais moral do que clínico, o paradigma da abstinência (Passos & Souza, 2011). Na contramão do que é preconizado para a Atenção Psicossocial, a abstinência é afirmada como a conduta ideal e condição para o tratamento das pessoas em Comunidades Terapêuticas, alocadas como serviços residenciais de caráter transitório, a despeito do que historicamente vinha sendo construído como importante e potente proposição de cuidado para as pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas.

Considerando as diretrizes para os serviços de atenção psicossocial, o cuidado em rede, a perspectiva da RD, e até mesmo a concomitância de contradições na condução das políticas, questionamo-nos: quais os principais desafios estão colocados para os profissionais que atuam nas Redes de Atenção Psicossocial da Grande Vitória para a produção do cuidado em rede com usuários de álcool e outras drogas?

Objetivo

Tendo em vista a necessidade de melhorias na qualidade de serviço na atenção em saúde mental no SUS, objetivamos analisar os obstáculos ao processo de produção de cuidado em saúde mental, em especial, acerca das especificidades do campo da atenção ao uso abusivo de álcool e outras drogas, no contexto da Raps dos municípios da Grande Vitória.

Metodologia

Os resultados a seguir, fazem parte do projeto de pesquisa intitulado Processo de trabalho na Rede de Atenção Psicossocial da Grande Vitória: os caminhos e os impasses na produção do cuidado em saúde mental, que teve como objetivo principal revelar a produção de cuidado em saúde mental em rede, a partir de eixos temáticos centrais na discussão do cuidado em saúde mental: Saúde Mental Infantojuvenil, Atenção às situações de crise, Cuidado em álcool e outras drogas, aqui apresentados, Saúde Mental na Atenção Básica, Desinstitucionalização e Reabilitação Psicossocial (Leão et al., 2017).

A pesquisa proposta é exploratória de natureza qualitativa, compreendendo que a pesquisa qualitativa pode ser entendida como a tentativa de obter profunda compreensão dos significados e definições das situações, como as pessoas nos apresentam, visto que o mundo é permeado por significados e símbolos e a intersubjetividade um ponto de partida para captar reflexivamente os significados sociais (Minayo, 1998). Considerando que a produção do cuidado no campo da atenção psicossocial também depende diretamente das visões, representações e perspectivas dos trabalhadores de saúde mental dos serviços da Raps da Grande Vitória, acreditamos ser essa forma de metodologia a mais adequada para responder ao objetivo proposto.

Cenário da pesquisa

O campo deste estudo foi composto pelos serviços pertencentes à Raps que prestam assistência em saúde mental aos usuários de álcool e outras drogas dos municípios da Grande Vitória: Vitória, Serra, Vila Velha e Cariacica.

No momento da pesquisa de campo, a rede de atenção à saúde mental desses municípios apresentava a configuração apresentada no Quadro 1, dos serviços agrupados por município, e no Quadro 2, dos equipamentos e serviços de urgência e emergência em Saúde Mental que atendem aos municípios pesquisados, conforme o relatório da pesquisa realizada.

Participantes da pesquisa

Os participantes foram 13 trabalhadores de saúde mental. Como critérios de inclusão dos participantes, a pesquisa considerou a inserção dos profissionais e técnicos que atuavam nos serviços de saúde mental, independentemente da sua formação, que aceitaram participar do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Foram convidados para participar, no total, 16 profissionais, sendo dois trabalhadores de cada um dos seguintes equipamentos: Caps ad e CnaR dos municípios de Serra e Vila Velha, Promad do município de Cariacica e Caps ad III e dos dois CnaR do município de Vitória.

Coleta de dados e procedimentos éticos

A coleta dos dados foi realizada por meio do grupo focal, após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Ufes (Parecer n. 1.566.200, de 25 de maio de 2016), respeitando-se os princípios éticos fundamentais adotados nas Resoluções n. 466/2012 e n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde para pesquisa com seres humanos.

O uso do grupo focal é apropriado quando o objetivo do investigador é analisar de que forma as pessoas avaliam uma determinada experiência, ideia ou evento, como definem um problema e de que forma suas opiniões, sentimentos e significados relacionam-se com determinados fenômenos (Westphal, Bógus, & Faria, 1996). Nesse sentido, os grupos focais podem captar os sentidos atribuídos à produção de cuidado no cotidiano institucional com foco no processo de trabalho e explorar a capacidade crítica dos sujeitos envolvidos nas pesquisas.

O grupo focal foi realizado em novembro de 2016, teve duração de duas horas e contou com dois coordenadores, bem como dois observadores. Os tópicos norteadores da discussão foram: cotidiano dos serviços na produção de cuidado; relação entre os diferentes serviços que compõem a Raps; percepção da implantação e consolidação da Raps; produção de cuidado diante da especificidade dos diferentes serviços nos territórios em que estão inseridos; e caminhos e impasses na produção de cuidado para os usuários de álcool e outras drogas nos municípios. A sessão foi gravada e posteriormente transcrita para análise.

 

Análise dos dados

O tratamento e análise do material e sua codificação se deu por intermédio da análise de conteúdo, que Bardin (2011, p. 47) define como um "conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens". Há várias maneiras para analisar conteúdos de materiais de pesquisa, sendo que essa etapa da pesquisa foi trabalhada na modalidade de análise temática, que "procura nas expressões verbais ou textuais os temas gerais recorrentes que fazem a sua aparição no interior de vários conteúdos mais concretos" (Turato, 2008, p. 442). Desse modo, após leituras sucessivas e discussão com a equipe de pesquisa, pode ser, por meio de consenso, categorizado não pela repetição de falas, mas pela relevância dos relatos no encaminhamento das discussões. Como norteadores para análise e reflexão dos resultados, utilizamos a produção acerca da Atenção Psicossocial em interface com a Saúde Coletiva.

 

Resultados

A organização do material empírico teve como norteador o roteiro do grupo focal e foram resultantes do conteúdo analisado diferentes categorias. Todavia, verificou-se que em todas as categorias temáticas dois temas centrais estiveram presentes, sendo oportunamente apresentados como foco deste estudo, a saber: a estigmatização em torno dos usuários de álcool e outras drogas e a presença das Comunidades Terapêuticas na Raps como aspecto constante dos trechos das falas no grupo focal, as quais serão identificadas como GF.

 

Discussão

Estigmatização

O estigma em torno das pessoas que fazem uso de drogas constitui-se em uma das dificuldades para o processo de reabilitação psicossocial e de inclusão social, pois influencia a busca e adesão ao cuidado, bem como a forma de integração social que parte de uma conotação moral, também, dos próprios profissionais de saúde (Sanches & Vecchia, 2020).

Nesse sentido, nos discursos dos profissionais, fizeram-se presentes críticas quanto ao julgamento moral acerca das pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas ou que estão envolvidas com o tráfico, especialmente os adolescentes:

GF: A questão do álcool e outras drogas passa por vários paradigmas, um dos principais que eu acho é você como profissional dessa área de trabalho. Você [precisa] mudar o seu olhar pra poder ter uma aceitação melhor, porque o usuário de drogas, ele é muito colocado no lugar do "coisa errada", "coisa ruim", do "sem vergonha".

GF: A gente pode pensar como um caminho mais como seria a prevenção, nessa parte da formação, né, desde pensar na formação dos profissionais, colocar isso como um foco, um assunto, disciplina, num sei, né, pra ser trabalhado. Eu não sei se as pessoas já nascem com a natureza de saber ouvir ou se elas podem se tornar... eu ainda não cheguei à conclusão, mas a gente aprende e é porque faz parte do acolhimento a escuta qualificada, para ouvir, né.

GF: E no sentido do preconceito, né, também levar isso também para formação, pra ser discutido, trabalhado.

A formação dos profissionais, suas experiências profissionais e a própria construção do tema relacionam-se com o desencontro produzido nas ações diante de diretrizes preconizadas e contribuem, assim, para a naturalização do fenômeno, a estigmatização e a culpabilização das pessoas, usuário e família (Vasconcelos, Paiva, & Vecchia, 2018).

O trabalho em saúde não é absolutamente controlável, posto que cada trabalhador faz uso de seus restritos espaços de autonomia para agir de acordo com seus valores e/ou interesses, uma vez que têm ideias, valores e concepções acerca de saúde, do trabalho em saúde e de como este deve ser executado (Merhy & Feuerwerker, 2009).

As práticas em saúde individuais ou institucionais expõem um conjunto de concepções que sustentam os modos de agir e as formas de intervir no processo de trabalho. Para Schneider e Lima (2011), a síntese dos saberes e práticas dos quatro modelos de concepção - jurídico-moral, biomédico, psicossocial e o sociocultural -, que são alimentadas por raízes teóricas e epistemológicas distintas, influenciam a compreensão e intervenção nos fenômenos de saúde/doença, e, consequentemente, no cotidiano do cuidado.

Desse modo, as práticas produzidas, segundo os participantes, são permeadas pela presença de resistências, relatadas como medos e receios em relação ao tráfico, e, nesse sentido, é afirmada a importância do trabalho de aproximação para diminuir tais resistências; como o não atendimento pela ausência de documento formal em alguns serviços; como a falta de acolhimento diante da necessidade do usuário; ou, como a dificuldade de inserção social do adolescente pela presença de estigmas.

GF: Então, a questão do preconceito talvez esteja por trás dessa nossa dificuldade de inserção deste adolescente que é usuário de drogas e álcool, é inserção social mesmo no mercado de trabalho. A gente tem muita dificuldade, é um obstáculo, assim, imenso que a gente tem dentro do cuidado com relação à inserção social, a essas políticas de inclusão que não funcionam quando o público é usuário de álcool e outras drogas.

GF: Quando a gente tenta inserir um adolescente no mercado de trabalho, a gente encaminha e chega lá ele vai fazer entrevista e aí ele tem uma tatuagem, aí a pessoa que tá entrevistando sabe que quem encaminhou foi o serviço de tratamento pra dependência química. A gente vê que isso existe ainda, muito o preconceito em se admitir um usuário.

GF: Até no esporte quando a gente vai lá encaminhar o adolescente para uma atividade de esporte tem essa questão: "ah, mas ele vai vir para cá, vai influenciar os outros adolescentes que estão aqui fazendo remo e os outros vão passar a usar droga também", então, assim, isso não é dito, mas isso é subentendido.

Assim, com a negação de outras oportunidades e impossibilidade de inserção social, em decorrência da estigmatização, os participantes refletiram sobre a relação com o tráfico de drogas:

GF: Eu acho que com tantos "nãos" fica muito mais fácil, talvez, para esse adolescente que mora naquela região de que tinha o movimento [do tráfico] ser convidado pra participar do tráfico e de conseguir dinheiro dessa forma, do que na inserção tão complicada quanto essa, não justifica, mas acontece, né.

As dificuldades de acesso dos usuários aos serviços podem estar ligadas às "barreiras burocráticas", como a ausência de documentos, e ao preconceito que eles sofrem, reflexo do modo como a sociedade reconhece essas pessoas, o que culmina no não reconhecimento de seus direitos, reforçando a exclusão social e a barreira para um cuidado humanizado (Souza, Pereira, & Gontijo, 2014). Como consequência, é produzido um cuidado pautado no modelo educacional e disciplinar, apontado pelos trabalhadores como uma crítica.

É importante frisar que tais barreiras denotam ser ainda mais substanciais para o grupo de adolescentes e jovens, como se evidencia pelos relatos anteriormente destacados. Os processos de exclusão e marginalização desses grupos têm suas raízes históricas bastante arraigadas, em que se destacam os processos violentos e asilares da intervenção do estado e da sociedade, sobre os quais atualmente incidem sobremaneira os processos de judicialização do cuidado e da individualização de problemáticas eminentemente sócio-históricas (Joia, Oliveira, & Vicentin, 2016).

Diante da estigmatização, a exclusão social é reforçada e concretizada pela institucionalização, tendo como cenários as Comunidades Terapêuticas.

Comunidades Terapêuticas

As Comunidades Terapêuticas integravam a Raps até 2017, por meio da Portaria de Consolidação n. 3, MS-GM, de 3 de outubro de 2017, que foi alterada pela Portaria n. 3.588, de 21 de dezembro de 2017, que dispõe sobre a Rede de Atenção Psicossocial, na qual não consta mais as CTs como serviço de atenção em regime residencial, o que consolida a transição da assistência aos usuários de álcool e outras drogas do Ministério da Saúde para o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (Cruz, Gonçalves, & Delgado, 2020).

O tipo de tratamento que é ofertado nas CTs vai de encontro ao cuidado proposto pela Atenção Psicossocial, pois caracteriza-se pelo excesso de disciplinarização, o caráter religioso da atuação, o princípio de que qualquer uso pode ser nocivo, a homogeneização da terapêutica, a falta de um corpo profissional mais especializado, o foco na abstinência e pelo fechamento interno, práticas de cuidado que vão na contramão da Redução de Danos (Rui, 2014). Além disso, nesses serviços, as pessoas têm de se adequar às normas e regras estabelecidas para a convivência, modificar seu estilo de vida e seus valores e assumir para si a culpabilização pelo uso problemático das drogas (Vasconcelos, Paiva, & Vecchia, 2018).

As CTs aparecem de forma marcante no conteúdo das falas dos trabalhadores da saúde mental nas diferentes categorias temáticas, sendo que, na maioria das vezes, os participantes referiram-se a elas com críticas. Em consonância à parte das críticas, o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2018) aponta para a violação aos direitos humanos nessas instituições asilares, em que se destaca a inexistência de laudos médicos para internações involuntárias, a prática da laborterapia como ferramenta disciplinar, restrição do contato dos internos com a família, a violação dos períodos de internação, entre outras situações de relevante gravidade que atacam a dignidade humana e produzem o enfraquecimento das lógicas comunitárias e territoriais e em liberdade como abordagens prioritárias para o cuidado.

Ao tratarem sobre as concepções de cuidado, observamos que se faz presente a compreensão de que a internação psiquiátrica, assim como preconizado nas diretrizes da atenção psicossocial, deve ser o último recurso. São tecidas críticas referentes à forma como ocorre a intervenção por parte do âmbito judiciário - a internação compulsória, que é determinada sem atenção anterior aos outros fatores que poderiam ser trabalhados.

GF:A gente percebe que esta questão de internação, ela deveria ser o último recurso, você já esgotou tudo e realmente vê que não tem condições de tratar a pessoa de outra forma, é isso. Mas tem sido a primeira coisa.

GF: A gente que trabalha no ambulatório infantojuvenil, muitas vezes o adolescente já chega lá com determinação da justiça de internação, e aí, quando a gente começa a fazer a escuta, a gente percebe que existe até uma abertura ali pra se trabalhar outras coisas, e muitas vezes quando o adolescente chega, a questão principal dele não é a questão da drogadição, são outras questões.

GF: Muitas vezes a rede, ela não tem esse suporte de questão de cursos, de esportes, muitas outras coisas pra gente envolver esse adolescente. E aí a família começa a fazer uma pressão pra que esse menino vá pra uma internação, muitas vezes ele vai por causa desta pressão e a própria justiça acaba encaminhando e volta depois, na mesma situação, claro.

Na relação entre os diferentes serviços que prestam atenção ao usuário de substância psicoativa, foi problematizada a presença e o aumento do número de CTs nos últimos três anos (2013 a 2016) no estado do Espírito Santo, especialmente a partir da criação de um serviço de recolhimento para internações voluntárias, prevenção, tratamento e reinserção social, pesquisa, capacitação e informação, criado por meio da Resolução n. 01, de 2 de abril de 2013, da Secretaria de Governo do Estado do Espírito Santo (Leal, Santos, & Jesus, 2016). Após dois anos de funcionamento, esse serviço foi reformulado e mudou de nome, com o intuito de ofertar uma atenção mais integrada e com os serviços da Raps (Bardi, 2019).

Como consequência, os profissionais apontaram o aumento da demanda espontânea para internação e a presença mais constante nos discursos das equipes sobre estas, bem como o destaque para as internações compulsórias em processos de judicialização do cuidado. Esses três movimentos, somados, oportunizam a afirmação de que a internação por si só é resolutiva, enfraquecendo outros agenciamentos de cuidado mais singulares (Joia, Oliveira, & Vicentin, 2016), ocasionando inclusive desinvestimento nos serviços substitutivos.

Além disso, assinalam a insuficiência de recursos para os Caps, diante da demanda de usuários encaminhados das CTs, as quais recebem financiamento para atenção e mudanças no cotidiano de trabalho dos serviços:

GF: A gente tem visto enquanto rotina, mesmo na nossa área, que eu acho que alguns anos atrás a questão na área de álcool e drogas estava mais tranquila de se trabalhar. Atualmente, a questão da necessidade de internação, se percebe comparecer demais em reuniões e que quando eu comecei lá dentro do [serviço], foi há quase 8 anos atrás, a gente não escutava isso, a gente não escutava a quantidade de vezes as pessoas falando da Comunidade Terapêutica de uma forma muito natural.

GF: Além do próprio trabalho, a gente tem que se virar de várias coisas... tem que reunir com a pessoa da instituição, reunir com [serviço] e bancar as coisas, reunir com a Comunidade Terapêutica. Pessoal, é assim, assim assado, né, porque não tem o gestor lá pra fazer por, abriu tá mandando a qualquer hora por dia.

GF: Criou-se [serviço] no Estado, a gente começou a escutar na rua louvores, os usuários reunidos em grupo começaram muito a falar: "eu quero me internar, eu quero me internar", uma fala que eu nunca tinha escutado, e aí isso começou a me assustar. Quando o sujeito está pedindo internação, vamos ver com ele, o que ele tá pedindo, é internação? É tratamento? É abrigo? Ele tá te pedindo o quê? O que ele está querendo? E aí você percebia, às vezes, que os profissionais não entendiam essa fala, mas porque, historicamente, a gente não percebia isso dentro do Caps ad, a gente fazia acolhimento, não tinha essa questão da internação.

De acordo com o conteúdo das falas dos participantes, no contexto da Raps, a oferta de serviços no cuidado aos usuários de álcool e drogas no estado indica um problema de desproporcionalidade da rede, pois foram relatadas ainda a insuficiência de leitos de atenção integral em Hospitais Gerais ou nos Caps III, com leitos 24 horas, a inexistência de leitos para atenção a crianças e adolescentes, a carência dos serviços de urgência e as limitações e incoerências na atuação do Samu 192 para esses casos. Além disso, na Grande Vitória, dos municípios estudados, Cariacica não tem Caps ad, e o único Caps ad III do estado localiza-se em Vitória, conforme apontado anteriormente no Quadro 1.

Assim, no que se refere à percepção da implantação e consolidação da Raps, os discursos apontaram que a capacidade instalada para o atendimento na rede de saúde mental é insuficiente ante a demanda crescente que se apresenta aos serviços, e que estes vêm atuando de forma isolada:

GF: Não tem a estrutura, não tem recursos humanos e a população está crescendo e a população usuária está crescendo também. Aí você fica assim, como que nós vamos fazer? Esse modelo que nós estamos fazendo está funcionando? Num tá? O que nós vamos mudar?

GF: Eu pelo menos não percebo que a gente avançou em 4 anos em relação a Raps. Sempre assim com essa interferência muito forte atualmente da internação de Comunidade Terapêutica, então isso tem sido uma marca muito forte pra gente que trabalha com a questão AD.

GF: Com relação à Raps, a gente tem uma questão de ter perdido alguns serviços, ter ampliado outros, como foi o caso do Consultório na Rua. O Consultório na Rua foi ampliado, mas a gestão municipal fez uma escolha [...] a gente tinha uma Unidade de Acolhimento Transitório pra criança e adolescente que eles avaliaram que era um serviço muito caro, então fecharam essa Unidade de Acolhimento Transitório.

Os trechos apontam uma percepção de estagnação da rede, de ausência de avanço na Raps dos quatro municípios, os quais apresentam uma estruturação bastante diferente em cada um deles, mas o que se constatou em comum entre eles foram discursos de insuficiência, seja pela ausência de alguns dispositivos que deveriam estar presentes para compor a rede de cuidado, o número insuficiente dos serviços para atenção à demanda, seja a redução de profissionais nos serviços. Diante dessa insuficiência da rede, como dito pelos participantes, a CT é vista como um ponto de apoio em alguns casos, por exemplo, quando se faz necessário um espaço para proteção do usuário. "GF: Depois que o Caps realmente fala, 'olha esse sujeito', até por uma questão de proteção à vida dele, né, dele estar precisando neste momento de uma outra forma de atendimento, aí eu acho que é bacana, aí eu acho que dá pra gente aproximar da Comunidade".

Com o sucateamento dos serviços da atenção psicossocial e pela falta de investimento político, econômico e técnico, limites e impasses para a produção do cuidado em rede foram apontados: a desestruturação das equipes por falta de recursos humanos, a dificuldade de trabalho em rede, de saúde e de forma intersetorial, a falta de leitos para desintoxicação, a crítica ao poder médico da atenção psicossocial diante da necessidade de um olhar ampliado no cuidado demandado pelo usuário de álcool e outras drogas, o despreparo na formação profissional, a precariedade das políticas públicas de inclusão social, o adoecimento, a falta de estímulo e a estagnação dos profissionais.

Esses aspectos da produção do cuidado em rede configuram uma organização do processo de trabalho, conhecê-la, como aponta Lancman (2008), é uma forma de contribuição para uma análise mais complexa dos serviços, sendo possível não apenas detectar problemas na produção do cuidado em rede, e que impedem ou dificultam a concretização de um novo modelo de atenção, mas também as possíveis formas de superação, ações transformadoras que possibilitem a construção de novas práticas, em prol da superação da lógica manicomial e também, como consequência, da estigmatização das pessoas que fazem o uso de álcool e outras drogas.

Ainda como caminho possível para essa mudança, foram apontados, principalmente, a capacitação e a intersetorialidade:

GF: Capacitação, né, acho que educação mesmo.

GF: Reforço isso. Acho que formação profissional, capacitação, essa gestão de pessoas, esses momentos, esses fóruns que têm, [...] essa integração com outras políticas, essa articulação é a construção dia a dia, né, gente?

GF: Acho que a questão do cuidado, quando a gente pensa nos usuários de álcool e outras drogas, é algo extremamente complexo, porque a gente não pode só pensar na política de saúde, na política de assistência, a gente tem que integrar várias outras políticas que não necessariamente se sentem na obrigação desse cuidado direcionado ao usuário de álcool e outras drogas.

O conteúdo dos trechos anteriores aponta para os determinantes sociais que são fundamentais para a prevenção ao abuso de drogas, adesão ao tratamento e reinserção social, sendo necessário o fortalecimento das redes sociais dos indivíduos e a sua reconstrução, quando em situações de extrema vulnerabilidade ou exclusão social. Assim, a integralidade da assistência recomenda um conjunto articulado e contínuo de serviços, profissionais e ações, individuais e coletivas, indo desde a promoção de saúde, prevenção, reabilitação e reinserção social em todos os níveis de atenção da saúde e da assistência social que possam superar as práticas fragmentadas que contribuem para a emergência e sustentação deficitária de diálogos e relações entre os diferentes serviços, setores e atores que os instituem (Ronzani et al., 2015).

Desse modo, não é possível fornecer respostas simples para questões complexas. Em analogia das CTs com o manicômio, relembremos Lancetti (2006) ao afirmar que o trabalho no território, e, portanto, a produção do cuidado em rede, é oposto à simplicidade que faz funcionar uma Comunidade Terapêutica.

 

Considerações finais

O uso de álcool e outras drogas é um fenômeno fundamentado e compartilhado por muitas áreas que articulam aspectos antropológicos, biológicos, psicológicos, farmacológicos, econômicos, políticos e socioculturais, configurando um campo de cuidado complexo que clama por estratégias e ações multissetoriais integradas que possam alicerçar não só as práticas em saúde, mas também a produção de cuidado interdisciplinar e intersetorial. Desse modo, a produção do cuidado para os usuários de álcool e outras drogas deve acontecer em rede, na lógica da integralidade em todos os níveis de atenção à saúde articulando-se com outras políticas sociais.

Um outro parâmetro da produção do cuidado é a RD, que comparece nas temáticas concepções, ao serem apontados os paradigmas existentes nesse campo, e em caminhos, como uma dificuldade de compreensão do profissional em torno dessa abordagem. Inferimos que a ausência da RD nos relatos das temáticas produção de cuidado e cotidiano revelam um distanciamento metodológico-prático no processo de cuidado com as pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas.

Em vez de um processo de consolidação da Raps, observa-se já em 2017 um processo de desmonte, com a redução de equipamentos e de recursos humanos. Um retrocesso que não passa despercebido e demanda dos trabalhadores engajamento e mobilização para o resgate e criação de novas redes, que permitam a produção de encontros potentes e capazes de produzir mudanças no cotidiano e valorização dos serviços de saúde mental. E isso será extremamente necessário diante dos desdobramentos recentes.

O cenário atual, com o desmonte da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, é marcado por graves retrocessos com a publicação da Nova Política de Saúde Mental e da Política Nacional sobre Drogas, apesar de toda a luta e de conquistas construídas nos últimos 30 anos da Reforma Psiquiátrica.

Os discursos dos trabalhadores durante o grupo focal já apontavam para esse cenário e denunciavam o plano proposto, pois o tema das CTs mostrou-se transversal aos resultados analisados, fez-se presente em diferentes temáticas, como concepções de cuidado, cotidiano de trabalho, limites e impasses para a consolidação da Raps, ora destacados como críticas, ora revelados como serviços que de distintas formas compõem a rede assistencial.

No momento, com os investimentos financeiros anunciados para as Comunidades Terapêuticas, há um explícito redirecionamento progressivo de uma rede comunitária para um modelo baseado em instituições de longa permanência, com a lógica exclusiva da abstinência, que se mostrou historicamente ineficiente, uma vez que favorece o estigma e a segregação, descaracteriza a política de desinstitucionalização e deixa clara a lógica manicomial para esse público.

Diante desse cenário, acreditamos que se tornam essenciais pesquisas que evidenciem a efetividade da produção de cuidado em saúde mental para os usuários de álcool e outras drogas em rede, ainda na perspectiva de fortalecimento e do desenvolvimento regional das Raps.

 

Referências

Almeida, J. M. C. (2019). Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cadernos de Saúde Pública, 35(11), 1-6.         [ Links ]

Alves, V. S., & Lima, I. M. S. O. (2013). Atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas no Brasil: convergência entre a saúde pública e os direitos humanos. Revista de Direito Sanitário, 13(3), 9-32.         [ Links ]

Bardi, G. (2019). Entre a "cruz" e a "caldeirinha": doses diárias de alienação nas comunidades terapêuticas religiosas. Tese de doutorado, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória.         [ Links ]

Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Carneiro, H. S. (2009). As drogas e a história da humanidade. Psicologia Ciência e Profissão, 6(6), 13-15.         [ Links ]

Carvalho, B., & Dimenstein, M. (2017). A proposta de RD não está sendo utilizada como uma ferramenta potencializadora de mudanças no campo de atenção aos usuários de AD. Temas em Psicologia, 25(2), 647-660.         [ Links ]

Conselho Federal de Psicologia. Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Ministério Público Federal - Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (2018). Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas - 2017. Brasília: Conselho Federal de Psicologia.         [ Links ]

Cruz, N. F. O., Gonçalves, R. W., & Delgado, P. G. G. (2020). Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, 18(3), 1-20.         [ Links ]

Joia, J. A., Oliveira, A., & Vicentin, M. C. G. (2016). O que as trajetórias de atenção a crianças e adolescentes que fazem uso de drogas nos ensinam sobre o cuidado em rede?. In E. Lauridsen-Ribeiro & C. B. Lykoropoulos (Orgs.). O Capsi e o desafio da gestão em Rede (pp. 265-279). São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Lancetti, A. (2006). Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Lancman, S. (Org.). (2008). Políticas públicas e processos de trabalho em saúde mental. Brasília: Paralelo 15.         [ Links ]

Leal, F. X., Santos, C. C. M., & Jesus, R. S.(2016). Política sobre Drogas no Estado do Espírito Santo: consolidando retrocessos. Textos e Contextos, 15(2), 423-436.         [ Links ]

Leão, A., Constantinidis, T. C., Santos, J. L. G., Belotti, M., Leal, E. M. L., Souza, A. B., Pereira, N. B. R., Jacob, D. G., Pimentel, K. S., & Wagemacker, P. L. B. (2017). Processo de trabalho na Rede de Atenção Psicossocial da Grande Vitória: os caminhos e os impasses na produção do cuidado em saúde mental. Relatório de Pesquisa, Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Vitória.         [ Links ]

Merhy, E. E., & Feuerwerker, L. C. M. (2009). Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In A. C. S. Mandarino & E. Gomberg (Orgs.). Leituras de novas tecnologias e saúde (pp. 29-56.). São Cristóvão: Editora UFS.         [ Links ]

Minayo, M. C. S. (1998). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (5a ed.). São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Ministério da Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde (2004). Saúde mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST/Aids (2003). A Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde (2019). Nota Técnica n. 11/2019. Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Oliveira, A. K. S., Araújo, M. S., & Silva, D. F. C. (2014). Conhecimento, diálogo e movimento: sobre o desafio de tecer redes de atenção psicossocial. Veredas Favip, 7(2), 95-108.         [ Links ]

Organização Mundial da Saúde (2002). Relatório sobre a saúde no mundo. Saúde mental: nova concepção, nova esperança. Lisboa: OMS.         [ Links ]

Paiva, F. S., Ferreira M. L., Martins M. Z. F., Barros S. L. C. F., & Ronzani T. M. (2014). A percepção profissional e comunitária sobre a reinserção social dos usuários de drogas. Psicologia e Sociedade, 26(3), 696-706.         [ Links ]

Passos, E. H., & Souza, T. P. (2011). Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de "guerra às drogas". Psicologia & Sociedade, 23(1), 154-162.         [ Links ]

Portaria n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011. (2011). Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União.

Portaria n. 3.588, de 21 de dezembro de 2017. (2017). Altera as Portarias de Consolidação n. 3 e n. 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre a Rede de Atenção Psicossocial, e dá outras providências. Diário Oficial da União.

Queiroz, I. S., Jardim, O. M., & Alves, M. G. D. (2016). "Escuta no pátio": cuidado e vínculo como práticas de redução de danos. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(3), 650-668.         [ Links ]

Resolução n. 01, de 2 de abril de 2013. (2013). Aprova o Programa Estadual de Ações Integradas sobre Drogas do Espírito Santo. Diário Oficial dos Poderes do Estado do Espírito Santo.

Resolução n. 01, de 9 de março de 2018. (2018). Define as diretrizes para o realinhamento e fortalecimento da PNAD - Política Nacional sobre Drogas, aprovada pelo Decreto n. 4.345, de 26 de agosto de 2002. Diário Oficial da União.

Resolução n. 32, de 14 de dezembro de 2017. (2017). Estabelece as Diretrizes para o Fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Diário Oficial da União.

Ronzani, T. M., Costa, P. H. A., Mota, D. C. B., & Laport, T. J. (Orgs.). (2015). Redes de atenção aos usuários de drogas: políticas e práticas. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Rui, T. (2014). Nas tramas do crack: etnografia da abjeção. São Paulo: Terceiro Nome.         [ Links ]

Sanches, L. R., Vecchia, M. D. (2020). Reabilitação psicossocial e inclusão social de pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas: impasses e desafios. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 24, 1-14.         [ Links ]

Santos, M. P. G. (Org.). (2018). Comunidades terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: Ipea.         [ Links ]

Schneider, D. R., & Lima, D. S. (2011). Implicações dos modelos de atenção à dependência de álcool e outras drogas na rede básica em saúde. Psico, 42(2), 168-178.         [ Links ]

Souza, V. C. A de., Pereira, A. R., & Gontijo, D. T. (2014). A experiência no serviço de Consultório de Rua na perspectiva dos profissionais: contribuições para a atenção ao usuário de álcool e outras drogas. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 22(supl. esp.), 37-47.         [ Links ]

Turato, E. R. (2008). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Vasconcelos, M. P. N., Paiva, F. S., & Vecchia, M. D. (2018). O cuidado aos usuários de drogas: entre a normatização e a negação da autonomia. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 11(2), 363-381.         [ Links ]

Westphal, M. F., Bógus, C. M., & Faria, M. M. (1996). Grupos focais: experiências precursoras em programas educativos em saúde no Brasil. Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana, 120(6), 472-82.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 14/10/2020
Aceito em: 13/9/2021

 

 

1 Este artigo trata de um dos resultados do projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes) - Edital Fapes/CNPq/Decit - SCTIE-MS/SESA nº 05/2015 - Programa de Pesquisa para o SUS: Gestão Compartilhada em Saúde - PPSUS.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons