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Epistemo-somática
versão impressa ISSN 1980-2005
Epistemo-somática v.3 n.2 Belo Horizonte dez. 2006
ARTIGOS
Transgeracionalidade: "des-encontro" de gerações
Transgenerationality: where generations don´t meet
Fabiana Pietsch da Fonseca Vianna*
Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Mater Dei - Belo Horizonte/MG
RESUMO
Este trabalho propõe refletir sobre a presença dos avós durante a internação do bebê em uma UTI Neonatal, lançando luz sobre a transgeracionalidade, ou seja, como que cada sujeito vai se inscrever em um novo lugar na genealogia familiar.
Palavras-chave: Bebê, Pais, Avós, Unidade de Tratamento Intensivo Pediátrico, Transgeracionalidade.
ABSTRACT
This paper proposes a reflection on the presence of the grandparents during the commitment of babies in neonatal intensive care units under the approach of transgenerationality, i. e., how each subject will inscribe him/herself in a new place in the familys genealogy.
Keywords: Baby, Parents, Grandparents, Pediatric Intensive Care Unit, Transgenerationality.
Aquilo que herdaste de teus pais,
conquista-o para fazê-lo teu.
Goethe
O nascimento do bebê é sempre uma surpresa por introduzir algo de novo, por mais que ele tenha sido planejado. Em alguns casos essa surpresa é carregada de algo a mais, quando o bebê nasce prematuro e necessita de cuidados intensivos, sendo encaminhado para uma UTI Neonatal. Pode ser um momento de angústia para os pais, quando se presentifica a ameaça de morte, ameaça essa que faz com que os pais tenham medo do que pode acontecer.
Segundo Hurstel, todo nascimento é um entrelaçamento entre a vida e a morte, inscrevendo cada um num novo lugar genealógico na sucessão das filiações. Cada nascimento desvela o tempo que passa e o fato de que toda vida inelutavelmente dirige-se para a morte: o filho torna-se pai, e o pai, avô (HURSTEL, 2005, p.15).
É o momento em que as gerações se confrontam, possibilitando o retorno das experiências vivenciadas pelos pais (agora avós) nos nascimentos de seus próprios filhos. Os avós tentam se adequar ao seu novo papel oferecendo uma resposta de seu antepassado diante da nova experiência do nascimento de uma criança. O que se percebe é um movimento de reatualização de um passado de experiências quando se vêem diante do novo. Diante do novo a resposta é antiga1.
Há uma tentativa de atualizar todo um passado de experiência, após um tempo de parênteses de prazer narcísico, possibilitando uma reatualização desse prazer. Sendo assim, esse novo traz em si o antigo, que pode ser revisitado com outro olhar. Distanciado, mas não distante.
Faz-se necessário recordar o que Lacan nos ensina sobre o papel primordial da família na transmissão cultural. Ele nos diz que se as tradições espirituais, a manutenção dos ritos e dos costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio são com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na aquisição da língua acertadamente chamada materna. Com isso, ela preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, preside esta organização das emoções segundo tipos condicionados pelo meio ambiente, que é a base dos sentimentos, segundo Shand; mais amplamente, ela transmite estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência. (LACAN, 1985, p. 13).
Esse modo de organização familiar em que as leis de transmissão, os conceitos da descendência e do parentesco que a ela estão unidos, as leis da herança e da sucessão que aí combinam, obscurecem e embaralham as relações psicológicas.
O vínculo emocional e o desamparo da criança perante os seus pais parecem constituir os fundamentos mais primitivos dos processos de identificação, de onde emanam as transmissões inconscientes de um sujeito para o outro e de geração para geração, formando a base para o funcionamento psíquico.
Os mecanismos de identificação, nas suas diferentes formas e desdobramentos, alcançam o estatuto de base ou fundação no que se refere às transmissões psíquicas. Freud em Totem e Tabu (1913) parte do princípio de que nosso aparelho psíquico se estrutura dentro de um contexto intersubjetivo2, em que o herdado tem um papel de destaque. Assim, considera-se de fundamental importância haver um pré-investimento dos pais em relação ao bebê, que possibilitará que a ele seja reservado um lugar legítimo. Observa-se, neste sentido, um movimento de mão dupla no qual a criança demanda ao grupo familiar o reconhecimento de pertencimento, mas por outro lado deve atender à demanda de preservação de seus valores e leis.
Esse lugar de ideal que o bebê pode ocupar na relação com seus pais fica ainda mais evidente nas palavras de Freud, que nos diz que o papel do psiquismo dos pais, transferindo à criança seu narcisismo infantil, reivindica que ela realize, em nome deles, os desejos a que tiveram que renunciar. Sendo assim, a doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação - Sua Majestade o Bebê3.
E quando a construção do ideal é quebrada pela necessidade de o bebê ser encaminhado a uma UTI Neonatal? Momento que muitas vezes se caracteriza por uma interrupção abrupta da gestação, porque algo não ocorreu como era esperado.
A UTI Neonatal se organiza predominantemente pelo discurso da ciência, por meio de uma prática médica altamente vinculada à ciência e à tecnologia, e é onde os bebês prematuros e as crianças com quadro clínico grave podem se beneficiar dos avanços tecnológicos. Entretanto, por se tratar de uma unidade que oferece cuidados de alta complexidade somada às particularidades de ser um centro de tratamento intensivo voltado para bebês e crianças, a presença dos familiares é em número reduzido, sendo destinada, principalmente, aos pais e aos irmãos. Tal restrição, em alguns casos, gera extrema angústia nos outros familiares que anseiam em conhecer o novo membro da família que fora tão esperado. Por apostar na importância de que a criança seja inserida no seu núcleo familiar, é chegado o momento da visita dos avós, que possibilita marcar um encontro de gerações - avós, pais e filho. Como nos disse um avô presente na unidade: Quero ser para o meu neto o que o meu pai foi para o meu filho. Seria, um momento em que a família apresenta suas filiações e o lugar que estas vêm ocupar na rede familiar.
Durante a visita dos avós pode ser observado como é necessário esse olhar para o bebê. Um olhar que também o nomeia e que o reconhece como mais um integrante desta família, e que pode ir tomando corpo enquanto é nomeado, falado.
Qual função os avós têm nesta transmissão? O que a torna importante e fundamental?
Para tanto, podemos pensar sobre o que é transmissão. No campo da psicanálise a transmissão se organiza a partir do negativo, a partir do que falta e falha. O narcisismo do bebê aponta para o que falta à realização dos sonhos de desejos dos pais, e neste sentido, nada do que tenha sido retido poderá permanecer completamente inacessível à geração seguinte. Haverá marcas, ao menos sintomas, que continuarão ligando uma geração à outra. René Kaës nos diz que existem dois tipos de transmissão psíquica: intergeracional e transgeracional. A primeira é um tipo de transmissão que envolve as relações imaginárias, reais e simbólicas entre os sujeitos. O grupo familiar precede o sujeito singular, este estruturado por uma lei constitutiva, e seus elementos estão em relação de diferença e de complementaridade. Neste grupo, são apresentados os enunciados referentes às proibições fundamentais, como também as relações de desejo que estruturarão os vínculos, as identificações e o complexo edípico. Entretanto, neste tipo de transmissão o sujeito não é somente herdeiro, beneficiário, servidor forçado, mas também adquirente singular daquilo que é transmitido. Há um trabalho psíquico de elaboração que permite a cada geração situar-se em relação às outras, percebendo e respeitando as diferenças, que entre elas se tornam um elo, e inscrevendo cada sujeito numa cadeia e num grupo.
Já na transmissão transgeracional, há uma abolição dos limites e espaços subjetivos, não existe a experiência de separação entre os sujeitos, que ficam à mercê das exigências do narcisismo. Uma característica deste tipo de transmissão é a cadeia, traumática, dominada pela repetição, em detrimento da memória e da historização do sujeito. Sendo assim, são transmitidos os lutos mal elaborados, os segredos, histórias de violência, traumas, enfim, o que não pode ser simbolizado, transformado.
É possível observar que em momentos de urgência e ruptura a reatualização da história familiar se presentifica. Os segredos, os traumas, os mitos aparecem nas palavras de cada familiar que chega à unidade. No entanto, podemos pensar que a experiência vivenciada pelos pais na internação de seu filho na UTI Neonatal possibilita uma oportunidade para a elaboração desse passado que se atualiza no presente? E o analista presente na UTI Neonatal, em que pode intervir?
O analista pode fazer valer um espaço para que o sujeito possa restabelecer a dialética interrompida com o Outro, agora em torno do furo no discurso proporcionado pelo real da internação. Para isso é necessária a produção de um saber dentro do contexto em que se enuncia, de maneira independente de qualquer saber preconcebido por parte daquele que escuta. O analista oferece uma escuta não tendenciosa de saber e convoca o sujeito no lugar de responsável pelo que diz em sua história.
Como nos diz Trachtenberg (2005), é lá, na morada do silêncio, do branco e do vazio, dominada pelos mandatos da herança transgeracional - logo, das palavras introduzidas por um outro qualificado -, que poderá se instalar um verdadeiro e novo espaço de transcrição transformadora dentro do sujeito. É lá, na travessia em direção à sua herança intergeracional, sua miséria comum, que brotarão os sons, as cores e os sentidos, aproximando o sujeito da construção de sua própria historicidade (TRACHTENBERG, 2005, p.127).
E o analista aposta no despertar deste sujeito, que pode se encontrar em um momento de pavor proporcionado pelo real da internação. Há, por parte do analista, uma aposta para além de uma tragédia, a aposta em um sujeito desejante. Cabe ao analista estar presente e ser capaz de escutar para além do fato, possibilitando, assim, que o sujeito construa algo em torno de suas marcas.
Referências
FREUD, S. (1913). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1979, v. XIII. [ Links ]
FREUD, S. (1913). Totem e tabu. In: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1979, v. XIV. [ Links ]
HURSTEL, Françoise. O anúncio feito ao marido ou os três tempos do acesso à paternidade. In: MOURA, Marisa Decat (org). Psicanálise e hospital 4 - novas versões do Pai: reprodução assistida e UTI. Belo Horizonte: Autêntica/FCH-FUMEC, 2005. [ Links ]
KAËS, R (org.). Transmissão da vida psíquica entre gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. [ Links ]
LACAN, J. Os complexos familiares na formação do indivíduo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. [ Links ]
LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 248 - 264. [ Links ]
ROZA, Lívia Garcia. A delicada questão de ser avó. Texto inédito. [ Links ]
TRACHTENBERG, Ana Rosa Chait (org.). Transgeracionalidade de escravo a herdeiro: um destino entre as gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. [ Links ]
Recebido em: 26/06/2006
Aprovado em: 27/09/2006
* Psicóloga Pós-Graduação em Psicologia Hospitalar pela Universidade FUMEC - Belo Horizonte/MG Membro participante da Formação e Transmissão da Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Mater Dei - Belo Horizonte/MG Endereço eletrônico: fabianapietsch@psicanaliseehospital.com.br
1 ROZA, Lívia Garcia. A delicada questão de ser avó. Texto inédito.
2 É importante lembrar que Lacan, em seu texto Proposição de 9 de outubro de 1967, faz uma ressalva sobre o termo intersubjetividade. Ele nos diz que a transferência por si só cria uma objeção a intersubjetividade, ela a refuta, é seu obstáculo. E diz, ainda, que nenhum sujeito é suponível por outro sujeito, p.252-253.
3 FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1979, v. XIV. p.108.