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Epistemo-somática

versão impressa ISSN 1980-2005

Epistemo-somática v.3 n.2 Belo Horizonte dez. 2006

 

ARTIGOS

 

"Comissão de frente": A entrada em uma saída possível

 

"Front comissionn": The entry in a possible way out

 

 

Mariana Vieira Duarte*

Fundação Ouro Branco – Ouro Branco/MG

 

 


RESUMO

Este trabalho discorre sobre o papel do psicanalista no Hospital Geral, especialmente no CTI. Tomando como ponto de partida o significante “Comissão de Frente”, podemos fazer um paralelo entre a posição do analista e tal ala de uma escola de samba. Anunciar, abrir espaço, preparar, inaugurar. Em situações de urgência, como é o caso do hospital, a pessoa se vê ali imersa na angústia. A verdade está escancarada e o sujeito, desamparado. A equipe de Psicologia permite que o sujeito entre, e que entre também para o encontro com o Real que, apesar de angustiante ou insuportável, poderá ser a entrada em uma saída possível para suas questões.

Palavras-chave: Sujeito, Desamparo, Psicanalista, Urgência subjetiva, Presença do analista.


ABSTRACT

This work discourses on the paper of the psychoanalyst in the General Hospital, especially in the ITU. Taking as the starting point the significant “Front Commission”, we can make a parallel between the position of the analyst and such section of a samba school. To announce, to open space, to prepare, to inaugurate. In urgency situations, as it is the case of the hospital, the person sees her/his self immersed in the anguish. The truth is discovered and the subject, abandoned. The team of Psychology allows that the subject enters, and that he also enters for the meeting with the Real that, although overwhelming or insupportable, it could be the entrance in a possible exit for his questions.

Keywords: Subject, Abandonment, Psychoanalyst, Subjective urgency, Presence of the analyst.


 

 

Durante o estágio no CTI de um hospital geral deparei-me com várias situações instigantes. Dentre elas, a fala da filha de um paciente enquanto aguardava o boletim médico: “Estou observando vocês”, diz se dirigindo às psicanalistas enquanto se aproxima cuidadosamente trazendo consigo as outras irmãs e a mãe. “Vocês são um tipo de Comissão de Frente, né? Ficam aqui organizando as coisas, preparando a gente. Muito bonito o trabalho de vocês”.

A despeito do que esta fala significava para esta filha e esta família, podemos pensar no significante “Comissão de Frente”.

A cultura carnavalesca brasileira emprega este termo para definir uma das alas que compõem uma escola de samba. Neste contexto, a “Comissão de Frente” é aquela que, composta por uma ou mais pessoas, anuncia a chegada da escola, abre espaço, prepara e inaugura o desfile. Anunciar, abrir espaço, preparar, inaugurar. Articulando o nosso significante ao sujeito do inconsciente, temos aqui um caminho que se pode trilhar. Especialmente em situações de urgência, como é o caso do hospital, a pessoa se vê ali imersa em sofrimento e angústia onde, nem sempre, as palavras, dele ou de outrem, são suficientes. A verdade está escancarada e o sujeito, desamparado. Nesse momento, algo se rompe e a descontinuidade do sujeito é marcante.

O trabalho do analista no CTI envolve ainda a participação na organização dos horários de visitas. Acolher o familiar no momento de sua presença junto ao paciente. Este acolhimento, muitas vezes, é esperado com muita expectativa e medo pelos familiares. Esse momento, marcado pela presença do analista, possibilita a oferta da escuta, o acolhimento da queixa, a recusa da satisfação das demandas e o possível despertar do desejo, como citam Mohallem & Souza (2000, p.18) se referindo à questão da transferência na promoção da abertura do inconsciente. Neste caso, respondemos às demandas com a oferta da própria presença, da escuta.

Abre-se um espaço para o surgimento do sujeito. O hospital já é, em si, um espaço privilegiado onde o psicanalista se depara com pessoas em situações inesperadas que “podem destituir o sujeito do seu ancoramento significante”, vendo-se “diante da falta de bordejamento” e imerso na angústia, segundo nos marca Moura (2000, p.7) quando se refere ao caráter traumático dos acontecimentos que provocam tal destituição do sujeito. Neste tempo, em que algo da cadeia se rompeu, cabe ao psicanalista escutar o sujeito no mais além. No entanto, nesse momento, em que o sujeito se vê abruptamente desalojado, no sem sentido, a constante presença do analista é fundamental para que a escuta faça sentido. A Psicanálise no hospital oferece ao sujeito que ali sofre e que enfrenta situações rompantes e limites em sua vida, uma abertura para o sentido. Freud (1913) pontuou que “a única regra da psicanálise é a associação livre e esta não está do lado do analista, e sim do analisante”. Portanto, se há algo para se oferecer ao paciente, nesse momento, é a presença e a escuta. Cabe ao próprio paciente a decisão da fala. No caso dessa familiar que coloca o analista como “Comissão de Frente”, vê-se a criação da demanda com a oferta da escuta através da presença do analista naquele momento.

Pré-parar, parar antes, antes do encontro com o Real (marcado até pelo espaço físico do CTI), pré-parar sem estacionar, evoluindo rumo a um angustiante encontro que, muitas vezes, é a inauguração de algo em si, na cadeia significante, na vida. Aqui, a tentativa é de bordejar o Real para que o sujeito se ancore e se sustente diante dele. Tal borda é marcada, “primeiro com sua própria presença e aos poucos com a inserção da palavra, proporcionando um deslocamento do corpo para a cadeia significante, aliviando esse corpo da carga extra de tensão que ele despende para dar conta do mal que o invade”, como nos aponta Rodrigues (2000, prefácio) ao dizer da verdade como um mal incurável, onde não cabe ao psicanalista tamponá-la e sim bordejá-la.

A fala dessa familiar, enquanto aguardava o boletim médico, soou como sua própria preparação para um momento incerto, para algo que poderia vacilar suas certezas, para uma notícia-limite à qual sucederia uma situação-limite. Diante disso, entre o possível e o impossível, as imagens e as palavras caem. Aparece a castração do Outro, deixando o sujeito imerso na angústia, como nos coloca Palonsky (1991, p.7) ao dizer desta angústia nas situações de urgência de um hospital. Muito além disso, falamos aqui do Real que paralisa, que cega, da morte ou da possibilidade desta, de um corte. Falamos aqui de castração, da ordem fálica, da instauração de um campo de perda que não possui inscrição no inconsciente. Este corte inscreve o sujeito na experiência da morte, instaurando, portanto, a dimensão simbólica, a palavra, a linguagem. Podendo ocorrer em qualquer momento da vida, esse corte e esse desalojamento do sujeito abalam o fantasma fundamental e o destituem de seu lugar de crença inabalável, incluindo o que Lacan chamou de vel alienante. Esse vel é o anteparo que permite ao sujeito lidar com a morte, é o recurso de que o sujeito dispõe, é o fantasma por trás do qual se desvela o vazio de sua essência de sujeito. Tudo isso se torna claro ao observarmos uma família diante de uma notícia de óbito ou a própria reação ao boletim médico. Nestes casos, a teoria está tão próxima da prática que é nítida a posição de desalojamento e angústia que abala o sujeito.

Podemos pensar que inaugurar algo, neste sentido, é colocar em movimento algo que estava ali parado e fixado. Pois é aqui, onde o sujeito se vê desvanecido, que a possibilidade do aparecimento do objeto a, faltoso, pode se concretizar. E esta, sim, é a verdadeira “Comissão de Frente”, que abre espaço para os outros discursos, abre uma brecha, um intervalo, uma questão para que a pulsão silenciosa, o saber que não se sabe, o vazio fundante da estrutura do sujeito seja honrado, como nos aponta Rodrigues (2000, p.51-52).

Em “A função das entrevistas preliminares”, Quinet (1991, p.16) marca o início do tratamento como o momento no qual o sujeito se vê diante de uma ruptura, onde quer saber sobre seu sintoma ou sua doença, onde se encontra imerso em situações de angústia. É onde há uma ruptura que se encontra a possibilidade de entrada em análise pois é neste tempo que, apesar do desamparo, o sujeito pode se questionar. A “Comissão de Frente” abre passagem para o desfile da escola de samba, para que esta se apresente, para que se desloque pela avenida. As entrevistas preliminares, ou seja, os primeiros momentos com o paciente possuem, dentre outras funções, a função de proporcionar e possibilitar o que, para muitos, é a “entrada na vida”, a organização da fala e daquilo que se pensa, o posicionamento e os questionamentos.

O trabalho da equipe de Psicologia ali vai muito além da organização da visita. Na verdade, é “organizando” a visita que a desorganização da família aparece, ou melhor, o desarranjo da família vem à tona diante do limite e da morte. Percebemos, aqui, que esta “organização” se trata da preparação à qual se referia a filha do paciente. A ruptura é evidente e por isso se faz urgência. A família se vê no total desamparo, na porta de entrada para o encontro com um Real que muitas vezes não quer encontrar. É nessas horas que se instala um verdadeiro caos, em todos os sentidos do termo. Uma confusão, gritos, falatórios, perguntas, questionamentos, discussões, brigas. Mas a confusão externa é apenas a transparência de cada um. O caos é subjetivo, pois as certezas do sujeito estão em xeque, não há respostas que sustentem suas dúvidas.

Receber e acolher este desarranjo é muito mais do que ensinar a lavar as mãos ou vestir o capote; é proporcionar e abrir espaço para que o sujeito se apresente, para que coloque sua angústia a respeito do que o espera lá dentro ou do que sentiu ao sair: “Como ele está? Está acordado? Teve febre hoje? Nossa, ela está tão inchada, isso é normal? Ele estava dormindo”.

A entrada no CTI pode ser, para muitos, o primeiro contato com os limites da vida, o primeiro espaço para a expressão de sua dor e de seu desejo, o primeiro momento de reconciliações e compreensões. Deste primeiro passa-se ao último, daí a urgência da palavra. E através dela inicia-se ou retoma-se uma cadeia significante permitindo que o sujeito deslize nela encontrando saídas possíveis para sua dor. Dizemos que o sujeito surge diante da falta, de um acidente no percurso ou no discurso. Portanto, para muitos, a internação ou a doença (própria ou de familiares) podem se tornar uma possibilidade de o sujeito despertar.

Assim, como “Comissão de Frente”, a equipe de Psicologia permite que o sujeito entre, e que entre também para o encontro com o Real que, apesar de angustiante ou insuportável, poderá ser a entrada em uma saída possível para suas questões.

Muito mais do que “simples ouvidos”, o psicanalista no Hospital “abre muitas alas”, possibilita a entrada de várias “escolas de samba”, inaugura vários “desfiles” na cadeia significante de cada sujeito e prepara “o terreno” para aquilo que está por vir. No contexto psicanalítico, a “Comissão de Frente” se encontra lá onde o sujeito se dispõe a passar, mesmo que de rompante, despreparado e desprevenido. A presença e a escuta serão ofertadas, mas a escolha da fala é de cada um.

 

 

Referências

FREUD, Sigmund. (1911-1913) Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989,v.XII.        [ Links ]

LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

MOHALLEM, Léa N. & SOUZA, Elaine M. C. D. Nas vias do desejo... In: Psicanálise e hospital. 2.ed. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.        [ Links ]

MOURA, Marisa Decat. Psicanálise e urgência subjetiva. In: Psicanálise e hospital. 2.ed. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.        [ Links ]

PALONSKY et al. Crises acidentais: dimensão teórica e direção do tratamento. In: Seminários ministrados por Cíntia Palonsky. Belo Horizonte, 1991.        [ Links ]

QUINET, Antonio. A função das entrevistas preliminares. In: As 4+1 condições da análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.        [ Links ]

RODRIGUES, Gilda Vaz. Prefácio à Primeira Edição. In: Psicanálise e hospital. 2.ed. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.        [ Links ]

RODRIGUES, Gilda Vaz. Nem o sol, nem a morte podem ser olhados de frente. In: Psicanálise e hospital. 2.ed. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 15/07/2006
Aprovado em: 25/10/2006

 

 

* Psicóloga • Pós-graduada em Neurociência e Comportamento pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG • Atua como psicóloga na Fundação Ouro Branco – Ouro Branco/MG • Endereço eletrônico: mvieirad@hotmail.com

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