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Epistemo-somática

 ISSN 1980-2005

Epistemo-somática v.3 n.2 Belo Horizonte dez. 2006

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

Era uma vez...

 

Once upon a time...

 

 

Marcos Almeida Magalhães Andrade Júnior*

Unidade de Terapia Intensiva e Departamento de Cardiologia do Hospital Mater Dei - Belo Horizonte / MG

 

 


RESUMO

O autor, através de narrativa de casos reais ocorridos em uma Unidade de Terapia Intensiva, evidencia a importância do papel de profissionais com formação em Psicologia e especialização em atendimento hospitalar na ordenação da equipe multidisciplinar.

Palavras-chave: Unidade de Terapia Intensiva, Psicologia, Atendimento multidisciplinar.


ABSTRACT

The author, by means of narrating real cases found at an Intensive Care Unit, has put in evidence the importance of the role of professionals with a degree in Psychology and graduated courses in Medical Care in the order of the multidisciplinary team.

Keywords: Intensive Care Unit, Psychology, Multidisciplinary care.


 

 

Era uma vez...

Era cem vezes....

Era mil vezes... Era todas as vezes...

Ser encaminhado para internação em uma Unidade de Tratamento Intensivo representa para o doente um momento único em sua vida.

É hora de se conhecer o limite da existência, o limite do poder que temos sobre nossas decisões, a dependência interpessoal, a revisão dos valores de vida. Longe de ser unicamente um local de exercício da medicina em sua maior complexidade tecnológica, é nestas unidades que delicadamente se evidenciam o físico e o psíquico em sua forma associativa mais evidente.

As rupturas são tantas que somente o atendimento multidisciplinar pode ser utilizado para atender a todas as demandas. Falamos de atendimento multidisciplinar integrado e não somente simultâneo. Não se consegue tratar a dor em sua manifestação física e a dor subjetiva em separado, mas sim a expressão subjetiva da dor física. Assim não é o médico, a fisioterapeuta, a enfermeira ou a psicóloga a pessoa indicada para o sucesso terapêutico, mas sim todos eles se complementando em suas atitudes, gestos ou palavras.

Se não, vejamos:

Estava no seu gabinete, de sua grande empresa, tomando todas as grandes decisões definidas em seu plano estratégico. Súbito, não mais falava e estava plégico. A empresa estava acéfala e mais um cliente adentrava a UTI. Não tinha domínio sobre o corpo, não mais emitia ordens verbais. O poder se deslocara para a técnica de enfermagem que o atendia. Não era possível aceitar esta nova ordem.

Hora da visita. Em elevado tom de voz: Há 20 anos moro fora do país, sem ver meu pai e ainda tenho que esperar 15 minutos para vê-lo? Caso ele morra antes, vocês serão os culpados por eu não tê-lo assistido...

O especializando caminha pelo corredor: E eu que fiz Terapia Intensiva, não atendo consultório, para não ter contato com famílias complicadas, tenho que tolerar isto...

A técnica de enfermagem se nega terminantemente a cuidar do nosso empresário a partir do terceiro dia de internação. Sua supervisora não admite a negativa. O confronto é iminente. Súbito a fala reveladora: Como posso cuidar de alguém que tem a mesma doença que está matando meu pai, lá em casa... vou perder os dois de uma só vez?

É, realmente coordenamos uma Unidade de Terapia e Intensiva.

A recuperação a que se propõem as Unidades Intensivas não pode se limitar aos aspectos físicos, tão visíveis, sem o gerenciamento da completa ruptura da ordem psíquica às vezes caprichosamente oculta.

Nossa visão de há 10 anos, da impossibilidade do funcionamento de UTIs sem a presença de experientes profissionais com formação em Psicologia, se reafirma com o passar do tempo, uma, cem, mil, todas as vezes que uma nova vida nos é entregue para ser reabilitada.

Gestão de uma Unidade com estas características mostra ser o conhecimento técnico uma simples ferramenta, na qual se deve apoiar o profissional de saúde para se transformar em espelho, cujo reflexo permite, a cada um dos envolvidos em ambos os lados da relação, a oportunidade única de enxergar seus valores, sua existência, sua missão, seu EU.

 

 

Recebido em: 05/12/2006
Aprovado em: 13/12/2006

 

 

* Coordenador da Unidade de Terapia Intensiva e Departamento de Cardiologia do Hospital Mater Dei - Belo Horizonte / MG • Endereço eletrônico: markdr@uol.com.br

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