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Epistemo-somática

 ISSN 1980-2005

Epistemo-somática v.4 n.1 Belo Horizonte jul. 2007

 

ARTIGOS

 

Dádiva da contemporaneidade: doação de órgãos em transplante intervivos

 

Gift of contemporaneousness: organ donation in living donor transplantation

 

Dadiva da contemporaneidad: donación de órganos em transplante intervivos

 

Don de la contemporanéité: donation d’organes dans des transplantations entre donneurs vivants

 

 

Claire Terezinha Lazzaretti

Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná – Curitiba, Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho tem por objetivo refletir sobre a doação de órgãos para transplante intervivos. Há séculos a humanidade se preocupa em substituir tecidos ou órgãos com funcionamento deficiente por outros sadios. Os avanços farmacológicos e das técnicas de cirurgia de transplantes tornaram possível a troca de partes do corpo de um doador no corpo vivo de um receptor. Essa técnica médica pode simbolizar um tipo de imortalidade parcial, pois o desenvolvimento científico pode ser considerado como resposta a uma demanda coletiva frente à vulnerabilidade do ser humano. Neste sentido, nas condições atuais de desenvolvimento tecnológico e do saber médico, a dádiva adquire nova dimensão, a solidariedade, a generosidade e o altruísmo como justificativa do ato da doação de parte de seu corpo podem ser pensadas como uma das maneiras de o homem lidar com sua condição de desamparo.

Palavras-chave: Dádiva, Doador vivo, Transplante.


ABSTRACT

This article´s objective is to reflect about organ donation in living donor transplantation. It has been centuries since the humanity started worrying about substituting tissues or organs with deficient functions to other healthy ones. Advances in pharmacology and surgery techniques have made possible the transplantation of a range of body parts from a donor body into the living body of a recipient. This Medical technique can symbolize a type of partial immortality because the scientific development can be considered as an answer to a collective demand front the human being’s vulnerability. In the current conditions of technological development and medical knowledge the gift acquires new dimension, the solidarity, the generosity and the altruism as justification of the donation of part of his body, it can be thought as one in the man’s ways to work with his condition of abandonment.

Keywords: Gift, Living donor, Transplantation.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo es reflexionar sobre la donación de órganos para la realización de transplante intervivos. Hace siglos la humanidad se preocupa en sustituir tejidos u órganos deficientes por otros saludables. Los avances farmacológicos y de las técnicas de cirugía de transplantes hicieron posible el cambio de partes del cuerpo de un donador en el cuerpo vivo de un receptor. Esta técnica médica puede simbolizar un tipo de inmortalidad parcial, pues el desarrollo científico puede ser considerado como respuesta a una demanda colectiva frente a la vulnerabilidad del ser humano. En este sentido, en las condiciones actuales de desarrollo tecnológico y del saber médico, la dádiva adquiere nueva dimensión: la solidariedad, la generosidad y el altruismo como justificativa del acto de donación de parte de su cuerpo pueden ser pensadas como una de las maneras del hombre lidiar con su condición de desamparo.

Palavras clave: Dádiva, Donador vivo, Transplante.


RESUMÉ

Ce travail a pour but de réfléchir sur la donation d’organes en vue de la transplantation entre donneurs vivants. Depuis des siècles l’humanité tient à remplacer des tissus ou des organes malades par d’autres sains. Les avancements pharmacologiques et ceux des techniques de chirurgie de transplantation ont rendu possible le transfert de l’ organe d’un donneur au corps vivant d’un récepteur. Cette technique médicale peut alors symboliser une sorte d’immortalité partielle, car les progrès scientifiques peuvent être considérés comme une réponse à une demande collective face à la vulnérabilité de l’être humain. En ce sens, dans les conditions actuelles du développement technologique et du savoir médical, le don acquiert une nouvelle dimension: la solidarité, la générosité et l’altruisme – justification de l’acte de donation d’une partie de notre corps – peuvent être pensés comme une des manières dont l’homme vit sa condition de délaissement.

Mots-clés: Don, Donneur vivant, Transplantation.


 

 

A mistura de corpos que hoje é uma realidade com os transplantes de órgãos, não é uma idéia original da contemporaneidade. Há séculos a humanidade se preocupa em substituir tecidos ou órgãos com funcionamento deficiente por outros sadios ou simplesmente criar seres com partes de corpo de outros seres. Podemos verificar isto principalmente nas lendas e na arte.

A primeira menção de transplante de órgãos inter-humanos remonta à Idade Média, no ano de 348 d.C., e foi atribuída aos santos Cosmes e Damião. Diz a lenda que eles transplantaram a perna de um escravo etíope que havia morrido há pouco, no lugar da perna gangrenada de um fiel da sua igreja. No dia seguinte o cristão partiu com duas pernas sadias, uma negra e uma branca (KÜSS & BOUGERT, 1992).

Também na antiga civilização, homens já imaginavam mudanças na morfologia, estrutura e funcionamento do corpo humano. A mitologia egípcia e greco-romana nos oferece inúmeros exemplos de metamorfose, tais como o Centauro e o Minotauro.

Na literatura e nos filmes de ficção podemos citar o monstro do Dr. Frankenstein. O corpo grotesco do monstro é uma junção de fragmentos de pessoas mortas com o cérebro de um criminoso (na versão clássica de 1931) acidentalmente transplantado em seu crânio, e animado não por um espírito humano mas pelo poder de ciência.

Com o crescente desenvolvimento da moderna medicina, a criação de corpos parcialmente artificiais, que antes eram do domínio da ficção científica, hoje é uma realidade. São o resultado de cirurgias de trocas de “peças”. Há dois tipos de “peças sobressalentes” disponíveis: os transplantes, que são órgãos ou tecidos de outros corpos, vivos ou mortos; e os implantes, órgãos artificiais ou partes de corpo feitos de plástico, metal ou outro material sintético. Ambos influenciam as imagens do corpo na sociedade, a imagem da sua sociedade contemporânea e as trocas sociais que acontecem dentro deste contexto.

Avanços em cirurgia de transplante tornaram possível a troca de uma gama de partes de corpo de um doador no corpo vivo de um receptor. Estas partes incluem: osso, cartilagem, córnea, coração, rim, fígado, pulmão, nervos, pâncreas, pele, etc., como também as transfusões de sangue, plasma e medula óssea. Alguns enxertos – tais como pele, veias ou músculo – podem ser transplantados de uma parte para outra no corpo do receptor, são os auto-enxertos, mas a maioria dos órgãos transplantados se origina de outras pessoas, são os aloenxertos. Nestes últimos, podem ser doadores vivos aparentados ou não com o receptor ou doadores com morte encefálica. É comum que os doadores vivos sejam parentes de primeiro grau do receptor (especialmente irmãos ou pais), por ser menor a possibilidade de rejeição do enxerto, mas a cada dia aumenta o número de doadores não aparentados, apenas com laços afetivos ou não com o receptor. A outra alternativa para as doações de órgãos de pessoas com morte encefálica é a família destes “mortos” aceitar doar partes de seu parente morto. Quando isso acontece, essas pessoas têm suas funções vitais artificialmente prolongadas por um sistema de apoio que mantém o coração batendo para preservar a irrigação sangüínea até que os órgãos doados sejam retirados para transplante. Alguns órgãos, tais como o coração e pulmão, precisam ser imediatamente transplantados (4 a 6 horas), mas no caso da córnea, que pode ser armazenada até 14 dias, ou dos ossos, que podem ser armazenados até cinco anos, criam-se os bancos de órgãos (córneas, pele, ossos).

Assim, poderíamos dizer que implantes, transplantes e até mesmo indivíduos em morte encefálica são corpos parcialmente artificiais, tal como foi previsto em alguns filmes de ficção científica, como o do Homem Biônico, do Soldado Universal, entre outros, e o quase realístico “21 gramas” que apresenta o doente moribundo, o doutor, o doador, o coração recentemente transplantado que dá vida. Com o desenvolvimento técnico científico de hoje e das previsões de pesquisas em andamento, os limites entre a natureza e a ficção estão ficando crescentemente diminuídos.

Durante os últimos vinte anos, os avanços das cirurgias de transplantes, por exemplo, tiveram destaques na televisão, nos noticiários, nas telenovelas (Corpo e alma), em documentários (Globo Repórter) e até em programas com participação do público (Você Decide), onde os telespectadores eram convidados a participar e dar sua opinião sobre a realização da doação de órgão. Em noticiários regulares de televisão, os transplantes de coração, pulmão, fígado e o recente transplante de rosto são retratados como a batalha do cientista médico “super-herói” contra as forças do tempo e da doença. Cirurgiões famosos de transplante são os convidados regulares em rádio e programas de entrevista de televisão, e muitos receptores de transplante aparecem se recuperando da cirurgia e elogiando os seus médicos. Alguns espectadores que ouvem esses recém-transplantados sentem o mesmo grito triunfante do Dr. Frankenstein, no filme de 1931, “está vivo! está vivo!”.

É a inovação tecnológica modificando o modo de pensar das pessoas. Isto se percebe quando, numa situação real de ter que tomar uma decisão sobre a doação ou recebimento de um órgão, alguns entrevistados apresentam uma certa familiaridade com o procedimento dizendo: “Já vi na televisão”. É a ficção e a realidade se mesclando. Ou seja, embora os implantes e transplantes possam ter se tornado parte da vida cotidiana e da mitologia médica contemporânea, eles não estão isentos de seus efeitos sociais. Ambos insinuam uma mudança na imagem do corpo na sociedade, quebrando seus limites através de objetos externos. No discurso da inovação tecnológica, o corpo tem sido reconceitualizado como uma “máquina” e máquinas reconceitualizadas como “pessoas”, cabendo à medicina a tarefa de re-colocação de novas “peças” para substituir as desgastadas. Com a cirurgia de transplante, o homem obteve a possibilidade de substituir partes de seu corpo que se desgastaram ou sofrem de “insuficiência”. Assim, o corpo pode ser pensado como uma coleção de partes ou “pedaços” para os quais existem “peças sobressalentes” disponíveis quando eles finalmente desgastarem.

Este modo de pensar da sociedade de hoje pode simbolizar um tipo de imortalidade parcial. Pois mesmo que se possa verificar que estes procedimentos – implantes e transplantes – estabelecem um tipo particular de relação social do paciente com os profissionais da equipe de saúde, e também com os produtores, provedores e reparadores da prótese no caso do implante, as relações podem ser definidas, em última instância, entre consumidor e produtor. No caso do transplante, ainda é forte o imaginário social sobre o comércio de órgãos. Imaginário este que na ficção, como no filme “Coisas Belas e Sujas”, apresenta de maneira ilustrativa aquilo que inúmeras reportagens denunciam e advertem.

Na China uma investigação demonstrou que órgãos dos condenados à morte são vendidos para estrangeiros que precisam de transplantes. Uma das autoridades afirmou que os prisioneiros eram voluntários para a doação de órgãos, colaborando, dessa forma, com um ”presente à sociedade”. E acrescentou que atualmente existe um excedente de órgãos devido a um aumento nas execuções. A China executa mais prisioneiros do que qualquer outro país no mundo. Mas não está totalmente claro se os prisioneiros são realmente livres para decidirem sozinhos a respeito da doação de seus órgãos pouco antes de sua execução (BBC Brasil, 27 de setembro, 2006). No Brasil, uma mulher de Manaus (AM) anunciou em um jornal do Estado que estava disposta a vender órgãos de seu corpo. ”Leilôo órgãos do meu corpo. Rim e medula, máximo de 50 mil”, anunciou como classificado no ”Diário do Amazonas”.

Estes fatos corroboram a hipótese de que a nova tecnologia médica, apesar de todo seu referencial humanista, não saiu isenta da idéia utilitarista da sociedade industrial, a ponto de alguns países optarem por só realizar transplante com doador vivo se este for aparentado do receptor, numa clara tentativa de romper com a hipótese de uma medicina capitalista – que supõe o ser humano e seus órgãos coisificados em mercadorias – e de obter o resgate do altruísmo na doação de órgãos.

No caso de transplantes, é explícito que além das relações estreitas com a equipe de saúde, o doente, no caso o receptor, estabelece uma particular ligação com o doador do órgão ou com sua própria família, quando se trata de transplante intervivos; ou para com o morto desconhecido, no caso de transplante com doador em morte encefálica. Enquanto no primeiro caso a representação é de vida que dá vida, no segundo, o receptor é, de certo modo, uma junção de vida e morte, e pela sua sobrevivência ele assegura – tal como a criação de Frankenstein – uma vida parcial ao doador.

Entretanto, em ambos os casos, doador vivo ou morto, parte do corpo que foi transplantado “pertence” a outras pessoas. Isto sugestiona a possibilidade de uma nova imagem subjetiva na sociedade contemporânea, ou seja, a criação de um novo corpo – qualquer um completamente ou parcialmente artificial – tem sido tema recorrente na cultura deste século. Inicia-se com os antigos filmes e histórias de ficção científica e continua até os documentários médicos atuais. Em todas as formas – implantes ou transplantes –, os temas do poder (e perigos) da ciência e a criação de um homem novo simbolizam um tipo novo de sociedade, uma sociedade que cria estas imagens, e também é influenciada por elas.

É neste contexto de inovação e familiaridade que os sujeitos de nossa pesquisa se inserem. O transplante de fígado é um dos grandes êxitos da medicina moderna e da “generosidade” da sociedade, que oferece a esperança de uma nova vida a muitos pacientes que padecem de insuficiência hepática, não tratável com outros procedimentos. O fígado pode ser considerado o principal órgão de nosso corpo, desenvolve funções específicas, imprescindíveis para a vida. Sem o fígado não se pode viver.

Apesar da grande capacidade que tem o fígado de regenerar-se, são numerosas as causas que danificam este órgão de forma irreversível e que o impedem que realize suas funções com normalidade, pondo em risco a vida do doente. Em algumas destas situações a única possibilidade de tratamento e de sobrevivência é o transplante. É a tecnologia driblando a morte.

O sucesso dos resultados do transplante hepático, obtidos numa população sem outra alternativa terapêutica, explica por que o número de órgãos para enxertos não é suficiente para atender todos os candidatos a transplante que vêem neste procedimento uma possibilidade de sair do sofrimento que a doença causa. Em conseqüência, visando contornar a escassez de órgãos cadavéricos, desenvolveu-se uma técnica que emprega enxerto de doador voluntário denominada transplante hepático inter-vivos (THIV). Parte do fígado do doador é transplantada no receptor. A cirurgia do doador implica um risco baixo, com mortalidade estimada em torno de 1%. Além disso, o processo de regeneração, característico do fígado, confere um atrativo muito importante ao procedimento. Assim, como o THIV evita a lista de espera, sua aceitação tem sido muito grande, apesar de já terem sido comunicados óbitos de alguns doadores.

Todavia, a dependência de uma doação voluntária cria cenários inéditos, do ponto de vista ético, que devem ser discutidos. É necessário preservar a autonomia do doador. No que diz respeito ao princípio primo non nocere, devemos considerar duas vertentes antagônicas. Uma que proíbe ao médico causar dano a qualquer um dos seus pacientes, e outra que garante a todo ser humano o respeito ao seu direito de autonomia. Esse princípio confere ao doador o direito de correr um risco conhecido para salvar a vida de um paciente, sendo ele emocionalmente relacionado ou não. Num contexto no qual a vida de uma pessoa depende de uma decisão desse tipo, é inevitável que ocorram influências que podem limitar a liberdade de decisão do doador. Ou no mínimo perguntar se há autonomia para a tomada de uma decisão tão importante, de correr risco de vida para ajudar um outro, um semelhante. Ou ainda, partindo da idéia do sistema de trocas de dádivas que MAUSS (1925/1974) estabelece à existência de três obrigações sociais que reforçam o laço social – a obrigação de dar, a obrigação de receber e a obrigação de retribuir –, quando se doa um órgão, em que posição o doador se encontra, na obrigação de dar ou na obrigação de retribuir?

Nas condições atuais de desenvolvimento tecnológico e do saber médico, a dádiva adquire nova dimensão. A lógica simples da troca entre doador e receptor passa a ser determinada pelos mecanismos que regulam esta relação, tais como a captação de órgãos pelo estado e sua distribuição pelo saber médico que no limite institui quem será o receptor, quando o órgão provém de cadáver. No THIV, a instituição do doador também é resultado da decisão médica sancionando ou não a candidatura que se apresenta, seja o candidato ligado por laços consangüíneos ou somente simbólicos com o receptor, mas previamente existe a estrutura familiar na qual predominam os vínculos parentais e pessoais. O grupo consangüíneo tem uma forte rede de relações já estabelecidas pelo parentesco, e o transplante se sobrepõe à rede específica de favores e obrigações existentes, no interior da família, criando um vínculo denso e particular entre dois membros desse grupo; vínculo este que funda o parentesco por aliança.

As motivações que desencadeiam as doações são motivos pessoais, muito embora apareça a justificativa do altruísmo como uma forma de racionalizar os próprios motivos ao invés de denominar a “verdadeira” motivação. Podemos entender que é esta particularidade o que caracteriza a doação de órgãos: um fato individual ligado às experiências pessoais e que condiciona toda uma série de respostas sociais, desencadeando a pergunta: Por que fazemos dádivas?

Para conhecer as particularidades de cada doador, não podemos prescindir de considerar, como dissemos no início, as influências familiares e sociais. Sua decisão, qualquer seja ela, estará sancionada pelas novas circunstâncias do contexto social. Poderá recusar de se oferecer como doador recorrendo ao seu livre arbítrio de não pôr sua vida em risco; ou ao contrário, usar o mesmo argumento e dizer que a vida é um risco, então por que se eximir de ajudar o próximo. Sem muito esforço, poderemos reconhecer nesta última decisão, tomada a partir do risco, que há uma identificação com o receptor, ambos estão marcados pela condição do desamparo.

Em “Psicologia das massas e a análise do eu”, Freud declara: “... o laço mútuo existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação..., baseada numa importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder” (FREUD, 1921/1976: p.136). Por que o lider? Porque contrariamente ao chefe da horda, em uma civilização, nas instituições, nas organizações, nos grupos, pronuncia um discurso de amor e por este discurso de amor igualitário ele cria o grupo, e cada um de seus membros introjeta o líder como objeto ideal e vai substituir seu próprio ideal do eu pelo ideal encarnado nesta figura transcendente, é a união pelo amor o ponto fundamental do vínculo emocional e, conseqüentemente, do vínculo social.

Assim, torna-se claro que o indivíduo não existe fora do campo social. O sujeito humano é um sujeito social. É porque um outro nos ama, nos fala e nos olha que nós existimos enquanto sujeitos humanos. Sem a presença dos outros, nós não poderíamos aceder à humanidade. É um outro, em particular, os pais, que pode reconhecê-lo enquanto totalidade, da qual eles falam, e que acede a seu primeiro regozijo de existir no momento do “Estádio do espelho” (LACAN, 1949/1998) e como portador de desejos que podem assegurar-lhe seu lugar na dinâmica social, lugar que ele deverá investir narcisicamente. Desta maneira, sua história individual, marcada pelos elementos identificatórios que levaram o sujeito a adotar determinado modo de funcionamento psíquico, só tem sentido se inserida em um contexto social. Ou seja, os processos de socialização pelos quais o infans passa e que são sempre, para ele, as marcas de uma “violência necessária” é o que possibilita se transformar em um ser social que integra os valores de seu grupo e se localiza em relação a eles, e o acesso à humanidade. Freud fala da humanidade do homem como a capacidade de amar o outro e de se amar, de trabalhar com os outros. Para Freud o homem “normal” é aquele que pode amar e trabalhar, ou seja, que sublima suas pulsões mais violentas e mais destrutivas nas artes, nas ciências e em toda atividade socialmente valorizada.

Assim, com a psicanálise, em certo sentido, dentre uma de suas direções, além dos processos puramente narcísicos irredutíveis aos fenômenos sociais, também é possível pensar as interações entre os diversos indivíduos, seus processos de identificação, de projeção e da formação de fantasias ativadas nas inter-relações e que desorientam a realidade psíquica dos indivíduos, que se atam e desatam no campo social. Ou seja, é possível buscar entender o impasse sobre a maneira pela qual os sujeitos sociais sentem os fenômenos, experimentam temores e empreendem ações; sobre seu imaginário individual e sobre o imaginário social que contribuem para criar; sobre os processos de identificação que são o acervo de todos os homens ao longo de sua existência, assim como sobre os outros processos, tais como o recalcamento, a repressão e a sublimação, que são demandados pela sociedade na qual eles vivem. A partir deste prisma nossos comportamentos, sofrimentos e sintomas, dentre outros, podem ser considerados como resposta às solicitações da família e da sociedade.

Deste modo, seria possível pensar a disponibilidade de doar parte de seu corpo como uma resposta a uma demanda social?

De certo modo sim, porque o desenvolvimento científico, também, pode ser considerado como resposta a uma demanda coletiva frente à vulnerabilidade do ser humano. Em “O futuro de uma ilusão”, Freud escreve que:

“A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais... apresenta, como sabemos, dois aspectos ao observador. Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros...” (FREUD, 1927/1976, p.16).

Para Freud, a civilização se impõe ao homem, projetando-o de estado de natureza para o estado de sujeito social, à custa de restringir aquilo que é considerado o propósito da vida: a felicidade, conquistada através da tentativa de realização do princípio do prazer. As relações sociais são reguladas tendo como base a restrição às liberdades humanas individuais. Freud identifica assim que, por conta desta liberdade perdida, o ser humano estará permanentemente em conflito com a civilização, reconhecendo que cada revolução, cada impacto que a humanidade experimenta, é uma tentativa de externar (e superar) este conflito, esta inquietação, e é assim que a civilização evolui:

“Grande parte das lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação conveniente – isto é, uma acomodação que traga felicidade , entre essa reivindicação do indivíduo e as reivindicações culturais do grupo, e um dos problemas que incide sobre o destino da humanidade é o de saber se tal acomodação pode ser alcançada por meio de alguma forma específica de civilização ou se este conflito é irreconciliável” (FREUD, 1930/1974, p.116-117).

Para explicar como se deu o desenvolvimento da civilização e a submissão dos homens à Lei e aos princípios morais e éticos sociais, em “Totem e tabu”, Freud constrói a hipótese segundo a qual, na origem dos tempos, existia “uma horda primeva” submissa a um grande macho que reservava a si mesmo a posse sexual das mulheres e que, então, se comportava como um ser onipotente fazendo reinar apenas as relações de força.

“Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem-sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer individualmente. (...) O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição, e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião” (FREUD, 1913/1974, p.170).

Após sobrepujar o pai, os filhos descobrem que uma combinação de forças pode ser mais forte que o indivíduo isolado. Em um segundo momento os filhos, percebendo que cada um deles queria tomar o lugar do pai, estabelecem as primeiras regras que fundam a civilização primitiva. Mais tarde, tomados de remorsos, eles teriam idealizado este ser e o teriam transformado em totem, fiador das leis que eles começaram, então, a estabelecer a fim de não instaurar, após o assassinato do pai, a rivalidade entre os irmãos.

Para Freud, a humanidade começou, assim, com um crime cometido em conjunto e do qual ela jamais se libertaria. Os irmãos expulsos que retornam unidos representam a primeira relação de solidariedade. A respeito do vínculo fraterno, ele diz:

“Odiavam o pai, que representava um obstáculo tão formidável ao seu anseio de poder e aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-no também. Após terem-se livrado dele, satisfeito o ódio e posto em prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma de remorso. Um sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo pois os acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos tomar nos assuntos humanos ainda hoje” (FREUD, 1913/1974, p.171).

Assim, ao banquete totêmico no qual comemoram o crime liberador, seguem-se o remorso e a culpa. Dessa maneira, a culpa origina-se no retorno do amor sob a forma de remorso. Temos aqui, desde o início, duas correntes: a agressiva, que se manifesta pelo parricídio, e a afetuosa, que surge pelo remorso. Amor e ódio estão na fundação do laço social.

Da mesma forma, o complexo de Édipo, descoberto por Freud no nível do psiquismo individual, tem um papel determinante e estruturante no nível da vida coletiva. Os dois grandes crimes da humanidade – o parricídio e o incesto – fonte de sentimento de culpa da humanidade, são transformados nos dois tabus do totemismo e correspondem aos desejos do complexo de Édipo. O crime cometido em conjunto cria a cultura, pela culpa e pelo remorso, institui a função paterna na origem da humanidade e implica a necessidade de uma referência externa a essa Lei que se manifestara no sistema de “controle” social.

Não há, então, grupo sem pai, grupo sem a obrigação infinita da dívida do direito à existência e do direito ao sentido. E, como todos os homens têm, neste momento, o mesmo ideal, eles poderão se identificar mutuamente e também se amar. “E, no desenvolvimento da humanidade como um todo, do mesmo modo que nos indivíduos, só o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo” (FREUD, 1921/1976, p.130).

Com o assassinato do pai, ocorre a passagem da condição de filho para a condição de irmão, ou seja, da condição de submissão absoluta para a condição de sujeito humano e isso não se dá sem o luto pelo amparo que o pai tirano oferecia. Depois do assassinato do pai, os irmãos estão livres e desamparados.

Este desamparo perdura por toda a vida, pois além da necessidade da crença ilusória de uma entidade divina que nos governa com amor e diminui nossos medos em relação aos perigos da vida, o homem faz uma renúncia pulsional por temer perder o amor do outro e por não suportar a angústia perante a perda do amor. Essa angústia é transformada em sentimento de culpa como forma de proteção ao desamparo e marcará para sempre a relação do sujeito com o outro, com a sociedade como um mal-estar incurável.

Assim, Freud, sem negar a importância das determinações históricas, dá ao indivíduo um lugar na construção do social, sem deixar de reconhecer que a ciência e a tecnologia desempenham um papel semelhante ao da religião, no sentido de oferecer uma proteção ao desamparo constitucional do ser humano.

“Essas coisas que, através de sua ciência e tecnologia, o homem fez surgir na Terra, sobre a qual, no princípio, ele apareceu como um débil organismo animal e onde cada indivíduo de sua espécie deve, mais uma vez, fazer sua entrada (’oh inch of nature’) como se fosse um recém-nascido desamparado – essas coisas não apenas soam como um conto de fadas, mas também constituem uma realização efetiva de todos – ou quase todos – os desejos de contos de fadas. Todas essas vantagens ele as pode reivindicar como aquisição cultural sua. Há muito tempo atrás, ele formou uma concepção ideal de onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses. A estes, atribuía tudo que parecia inatingível aos seus desejos ou lhe era proibido. Pode-se dizer, portanto, que esses deuses constituíam ideais culturais. Hoje, ele se aproximou bastante da consecução desse ideal, ele próprio quase se tornou um deus. ... O homem, por assim dizer, tornou-se uma espécie de “Deus de prótese”. Quando faz uso de todos os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeiramente magnífico; esses órgãos, porém, não cresceram nele e, às vezes, ainda lhe causam muitas dificuldades.... As épocas futuras trarão com elas novos e provavelmente inimagináveis grandes avanços nesse campo da civilização e aumentarão ainda mais a semelhança do homem com Deus....contudo, não esqueceremos que atualmente o homem não se sente feliz em seu papel de semelhante a Deus” (FREUD, 1930/1974, p.111-112).

A doação é um ato social individual que se expressa por e mediante a coletividade. Responde a diversas motivações pessoais, coletivas e necessidades institucionais e tem diferentes formas de expressão que são modeladas pelo ambiente social em que estão inseridas, além de concentrar elementos de toda ordem: religiosos, econômicos, políticos, socioculturais, simbólicos, etc. Como afirma Freud: “a civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única grande unidade, a unidade da humanidade” (FREUD, 1930/1974, p.145).

Concluindo, a solidariedade, a generosidade e o altruísmo como justificativa do ato da doação de parte de seu corpo podem ser pensados como uma das maneiras de o homem lidar com sua condição de desamparo, isto é, a falta de garantias do sujeito sobre o seu existir e o seu futuro. Segundo Freud: “é bastante concebível que tampouco o sentimento de culpa produzido pela civilização seja percebido como tal, e em grande parte permaneça inconsciente, ou apareça como uma espécie de mal-estar, uma insatisfação para a qual as pessoas buscam outras motivações” (FREUD, 1930/1974, p.160), uma vez que a dádiva é mais importante para aquele que dá, ainda que exista a necessidade por parte daquele que a recebe.

 

Referências

FREUD, S. “Psicologia de grupo e a análise do ego” (1921). in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XVIII, p.91-184.        [ Links ]

FREUD, S. “O futuro de uma ilusão” (1927). in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XXI, p.13-71.        [ Links ]

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LACAN, J. “O estádio do espelho como formador da função do eu”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia, v.I e II. São Paulo: E.P.U. e EDUSP, 1974.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 02/06/2007
Aprovado em: 20/06/2007

 

 

Sobre a autora:
Psicóloga clínica do Serviço de Psicologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná – Curitiba, Brasil • Especialista em Psicologia Clínica – Psicanálise. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná – Curitiba, Brasil • Doutoranda pela Universidade Federal do Paraná – Curitiba, Brasil • Endereço eletrônico: clairetl@ufpr.br

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