3 1Traços de personalidade, ansiedade e depressão em jogadores de futebolProcessos e intervenções psicológicas em atletas lesionados e em reabilitação 
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Revista Brasileira de Psicologia do Esporte

 ISSN 1981-9145

Rev. bras. psicol. esporte v.3 n.1 São Paulo jun. 2010

 

 

Os “problemas psicológicos” do atleta: um olhar fenomenológico para a experiência esportiva

 

The “psychological problems” of the athlete: a phenomenological look for sports experience

 

Los “Problemas Psicológicos” del deportista: fenomenología mirada a la experiencia deportiva

 

 

Lígia Frascareli

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo buscou, a partir da entrevista como uma atleta profissional, conhecer a experiência da prática esportiva através da perspectiva do próprio atleta, tendo como referencial teórico a Fenomenologia Existencial. Buscou também questionar alguns conteúdos próprios à Psicologia do Esporte, na tentativa de contrapor a experiência real do atleta a este campo de conhecimento, procurando apontar alguns de seus possíveis limites. A metodologia utilizada na entrevista foi a de intervenção participativa. Foi encontrado que a experiência da prática esportiva vivida por atletas é absolutamente singular, podendo ser explicitado como fenômeno, não como conceito. As categorizações e os conceitos provenientes da Psicologia do Esporte tradicional se mostraram pouco compatíveis com a experiência real do atleta no esporte. Procurou ao final, colocar em questão justamente as formas de atuação do psicólogo esportivo.

Palavras-chave: Atleta, Fenomenologia, Psicologia do Esporte, Esporte.


ABSTRACT

This article aims, from the interview with a professional athlete, to know the practical experience of sports through the perspective of the athlete, having as theoretical reference the existential phenomenology. Also sought to question some of Sport’s Psychology contents, in an attempt to compare the athlete's experience with the propositions of this field of knowledge, trying to point some of its possible limits. The methodology used in the interview was to participatory intervention. It was found that the experience of sports practice experienced by athletes is absolutely singular and can be explained as a phenomenon, not as a concept. The categorizations and concepts from the traditional sports psychology were somewhat consistent with the actual experience of the athlete in the sport, and was put in question precisely the forms of actions of the sport psychologist.

Keywords: Athlete, Phenomenology, Sport psychology, Sport.


RESUMEN

Este trabajo intenta, a partir de la entrevista como un atleta profesional, conocer la experiencia práctica de los deportes a través de la perspectiva del deportista, teniendo como referencia teórica a la fenomenología existencial. También solicitó a la pregunta de algunos contenidos a la Psicología del Deporte, en un intento de contrarrestar la experiencia real del deportista en este campo del conocimiento, tratando de mostrar unos de sus posibles límites. La metodología utilizada en la entrevista fue de intervención participativa. Se constató que la experiencia de la práctica deportiva por parte de los deportistas experimentados es absolutamente particular y puede explicarse como un fenómeno, no en el concepto. El categorías y conceptos de la psicología de los deportes tradicionales eran poco coherente con la experiencia real de la atleta en el deporte. Miró, al final, precisamente, poner en cuestión las formas de las acciones de los psicologos deportivos.

Palabras-llave: Atleta, Fenomenología, Psicología del deporte, Deportes.


 

 

Introdução

Nas últimas décadas a Psicologia do Esporte tem se tornado um importante campo de pesquisa e atuação. Se o primeiro grande avanço da área se deu na Guerra Fria, como tentativa de encontrar um diferencial que pudesse garantir aos atletas das duas potências a conquista dos eventos esportivos (Rubio, 2000), hoje provavelmente vivemos um segundo momento, em que o enorme interesse na busca desse diferencial está relacionado aos grandes ganhos financeiros envolvidos no esporte de alto rendimento.

Na Psicologia, ciência-mãe da qual derivam as variadas psicologias aplicadas, tal como a Psicologia do Esporte, convivem em eterno conflito diversas formas de pensar o "psicológico". Através da classificação dessas diversas formas, realizada por Figueiredo (2003), podemos perceber a filiação e as estreitas ligações entre a Psicologia do Esporte e as matrizes denominadas cientificistas.

As formas cientificistas de pensar o psicológico buscarão, em linhas gerais, uma ordem natural dos fenômenos e leis preditivas do comportamento, procurando fornecer orientação para práticas de controle do ambiente através da aplicação de uma lógica experimental. É estabelecida uma forma de pensar que se coloca à procura de uma causalidade linear e unidirecional dos fatos, através de relações deterministas e análise de fenômenos decompostos e descontextualizados. Procura-se, ainda, a partir de uma condição inicial dada, ser possível realizar predições confiáveis (Figueiredo, 2003).

Nota-se que a proposta que inaugura a Psicologia do Esporte, por volta da década de 60, é justamente a de aplicar uma "tecnologia psicológica", na época recentemente legitimada pela ciência, à melhora de rendimento de atletas concebidos como homem-máquina (William & Straub, 1991), cujas reações precisavam ser previstas e controladas, na tentativa de eliminar qualquer característica pessoal ou "sintoma" psicológico que pudesse impedir o rendimento máximo.

Para atingir esse objetivo, a Psicologia do Esporte estruturou-se através de critérios normativos (inevitavelmente reducionistas) que possibilitam, por exemplo, a classificação das mais variadas formas de expressão em um pequeno número de "personalidades", "estados emocionais" e em modelos pré-estabelecidos de comportamento. A partir dos conceitos (e não do atleta real), são definidas "características psicológicas" e tipos de "tratamento" a serem dispensados ao atleta, com a intenção de favorecer o rendimento esportivo (Frascareli, 2008).

Neste artigo, procurou-se realizar uma leitura crítica de algumas teorizações referentes à Psicologia do Esporte tradicional enquanto área de conhecimento acadêmico-prático, contrapondo essas teorizações às compreensões do que foi colhido em entrevistas com uma nadadora profissional, ou seja, aos dados da experiência "real" da atleta e do mundo esportivo. Este objetivo surgiu como resultado de uma postura crítica frente a esta área de conhecimento, em grande medida rígida, e à própria Psicologia de base epistemológica positivista, não na pretensão de negá-la, mas de apontar alguns de seus possíveis limites, especialmente no que se refere aos fenômenos humanos.

 

Uma Proposta Fenomenológica

Na investigação de novas possibilidades de compreensão e prática em Psicologia do Esporte será utilizada a perspectiva fenomenológica existencial, como uma forma qualitativamente outra de compreender os fenômenos (Morato, 1999).

A Fenomenologia surge na Filosofia como "retorno ao mundo das coisas", e na Psicologia como uma possibilidade compreensiva do humano. Desenvolve-se como questionamento a pontos importantes da Psicologia, dentre os quais a problemática do sujeito, colocando que a compreensão psicológica deveria individualizá-lo e levar em conta as especificidades deste sujeito particular, ao invés de inseri-lo em modelos pré-determinados.

Para a Fenomenologia, o homem é ser-no-mundo, e essa pertença é inevitável: as coisas não são em si mesmas, mas são no contexto relacional da existência, da historicidade. Da mesma forma, a consciência que o homem possui não é em si, mas sempre intencional, dirigida a algo. Não havendo separação possível entre sujeito e objeto, a possibilidade do conhecimento é entre. Assim, as ciências humanas encontram, utilizando-se da fenomenologia como referencial teórico, os sujeitos empíricos, suas experiências (Forghieri, 1993) produções concretas no mundo, com seus valores e significados historicamente determinados:

[...] a maneira de ser-no-mundo, sujeito às contingências como um ser que é lançado ao mundo, mundo que o precede e alcança, no qual o homem, ao ver-se como tal, precisa lutar para encontrar-se. Nesta intencionalidade a fenomenologia põe em suspensão a atitude natural, isto é, a metodologia das Ciências Naturais, pois para ela o mundo já está sempre aí, antes mesmo da reflexão, como uma presença inalienável. (Martins, 1992, p. 51,52)

Temos agora como delimitar o tema deste trabalho, a saber: a utilização da Fenomenologia como recorte teórico na tentativa de compreensão do fenômeno esportivo e do próprio atleta-em-situação, bem como do sentido de sua prática e, possivelmente, de alguma forma de sofrimento envolvido na mesma. Essa proposta exige conceber também o esporte como fenômeno que não está dado a priori, que não pode ser apreendido unicamente por conceitos, mas que será revelado em sua manifestação concreta.

Na realização de uma pesquisa em Fenomenologia, "O modo de interrogação é determinado exatamente por aquilo que se quer saber [...]" (Critelli, 1996, p. 27), o que dificulta a elaboração de um método e a escolha de instrumentos antes do contato com aquilo que se propõe conhecer.

Aponta Merleau-Ponty (2006, p. 4) que: "Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala [...]", ou seja, à experiência ela mesma, ao vivido, no caso desse estudo, pelo atleta. Isto implica deixar em suspenso o conhecimento e a práxis até então utilizadas em Psicologia do Esporte, para dirigir-se ao fenômeno esportivo, agora na perspectiva do esportista, desenvolvendo a pesquisa (no caso, a entrevista) a partir da experiência dele. Essa proposta metodológica define-se como pesquisa intervenção (Szymanski & Cury, 2005), e é inevitavelmente qualitativa.

Foi realizada uma entrevista livre com uma atleta de uma modalidade individual (natação), participante de competições (profissional, ou seja, que recebe pagamento por parte da instituição pela qual compete), e que demonstrou interesse em contar sua história no que diz respeito à participação e vivências esportivas. Buscou-se a experiência com o esporte no contexto individual e social desta atleta, analisando, a partir de suas falas, algumas questões pontuais, tais como a questão do rendimento e de seu suposto "problema psicológico".

 

O “Psicológico” e a Questão do Treinamento Esportivo

A atleta entrevistada, aqui chamada de L.1, após obter resultados bastante expressivos em sua cidade natal, é convidada a nadar por um grande clube em outra cidade. Sua decisão de mudar-se pareceu relacionada não apenas a sua carreira esportiva, mas também com uma escolha pessoal, revelando um desejo de "crescer" com maior independência e liberdade com relação à família.

Porém, na mudança de clube e de vida, a atleta tem uma queda no rendimento esportivo. Aqui são apresentados alguns trechos relevantes da entrevista, com a intenção de mostrar a experiência da atleta como ela mesma a percebe e a conta.

Aí eu vim pro * (clube A) e fui treinar com outro técnico... Aí comecei a não nadar tão bem quanto eu nadava... O treino era diferente. Não era muito diferente... mas era diferente daquilo que eu fazia... era diferente daquilo que tava dando certo prá mim.

Este trecho aponta uma questão relativa à diferença no treinamento que L. encontra no clube novo.

Sabe-se que, na natação, cada tipo de prova e cada tipo de nado têm sua especificidade técnica, tática e fisiológica e demanda diferentes métodos de treinamento, considerando cada tipo de atleta. Estes são dois dos quatros princípios ou fundamentos biológicos aceitos pelas teorias do treinamento esportivo como norteadores para a estruturação de qualquer treinamento: especificidade e individualidade biológica - os outros dois princípios, a saber: reversibilidade e sobrecarga (Verkhoshanski, 2000).

Aparece na história da atleta um "obstáculo" concreto relativo à sua prática, ou seja, ela está em um clube de renome, com técnicos reconhecidos e integra uma equipe forte, mas se depara com uma questão para a qual a própria estrutura da modalidade não tem uma solução simples: a inadaptação ao treino. Ainda que o treinamento possa ser, em linhas gerais, considerado "correto", L. constata que não este não era o tipo de treinamento adequado para ela. Inicialmente, a situação será analisada a partir dos conhecimentos da área do esporte.

Ainda que amplamente baseado em teorias científicas (às quais, cabe dizer, nem todos os técnicos conhecem ou entendem), o planejamento do treino na natação está sujeito a erros e à inadaptações. Isto é uma vicissitude da modalidade, a qual se pode ampliar para o esporte como um todo. Devido à falta de condições estruturais e talvez de uma maior disponibilidade dos profissionais da área do Esporte, ou mesmo à realidade esportiva brasileira, o processo de treinamento não é pensado no sentido de responder as necessidades de todos os atletas, funcionando na maioria das vezes por um princípio seletivo. Ou seja, aqueles que se adaptam a um determinado tipo de treino obtêm um bom rendimento, diferentemente dos que não se adaptam. Faz-se importante diferenciar falta de adaptação e falta de "talento", porque o mesmo atleta pode responder bem a outros tipos de treinamento. O processo é excludente e atua como uma "peneira" - termo bastante comum na área - onde os que não se adaptam ou deixam de responder ao treinamento, não raras vezes, e inclusive no caso de L., são tachados como atletas que "têm problemas psicológicos". Esse assunto será discutido adiante.

Prosseguindo com trechos da entrevista da atleta:

Uma competição que me marcou? Tiveram duas na verdade: uma foi a última que eu nadei quando eu tava em * (cidade natal) ainda... que eu bati o recorde dos 200 borboleta... que eu nadei super bem... nadei o 100 também muito bem... E uma que eu não nadei tão bem? Ah... também teve uma que marcou: a primeira pelo * (clube A). Porque eu tava treinando muito! Muito! Tava treinando absurdo... em quantidade e qualidade! Eu fazia umas séries que os três técnicos viravam e falavam: "Nossa! Essa menina vai nadar muito! Que é isso?! Coloca ela na água logo prá gente ver o que vai acontecer!". Daí eu fui... também estava com a expectativa alta porque pô... primeira coisa que eu pensei... eu estava bem em * (cidade natal)... bati o recorde dos 200 borboleta... e agora estava melhor ainda... estava me sentindo muito melhor... Pensei: "Nossa! Vou nadar prá caramba!". Nadei uma merda! Eu saia da piscina e chorava... chorava tanto... chorava tanto...

Pode-se perceber que a importância dada às competições, para essa atleta, está fortemente relacionada aos resultados obtidos. Nem todos os atletas têm esse direcionamento tão claro. L. é, sem dúvida, uma atleta competitiva, no sentido mais amplo do termo. Na primeira competição pelo clube novo, L. fala de um "estado pré-competitivo" confiante, embora as expectativas estivessem altas. Um único resultado ruim deixa de ser algo normal, comum na carreira de todo atleta, porque transforma L. em "decepção" em "falsa promessa" para o clube que a remunera por seu esporte-trabalho.

A partir desse acontecimento, já não é possível para L. observar o fenômeno com a clareza necessária. Para a Fenomenologia, toda forma de conhecimento não se dá no vazio, mas no contexto e de acordo com as emoções do momento. Frente a esse desempenho ruim, o entender de L. sobre o momento é emocionado.

O que eu acho que aconteceu? Os técnicos me perguntavam e eu dizia: "Não sei! Eu achei que eu ia nadar bem! Eu estava bem prá caramba!"... E aí eu olhava minhas passagens de prova... a análise da minha prova de 50 em 50 e falava: "Olha isso aqui! Alguma coisa tá acontecendo!". E foi a prova que se repetiu durante os últimos 3 anos... Eu pensava: "Alguma coisa tá acontecendo! Ritmo de prova não está faltando!"... Eu falava: "Eu vou passar para 1’08"..." e falava que ia passar o primeiro 50 prá 33"e ia voltar prá 35"... e fazia 1’08"... e não conseguia voltar2. E no que eu não conseguia voltar... eu sabia que tinha alguma coisa errada... se fosse alguma coisa de cabeça... meu técnico tinha mania de jogar no psicológico... Ele me falava: "É... eu acho que alguma coisa está acontecendo... porque periodização a gente fez inteirinha e não sei o que..."... e aí uma vez ele chegou... depois de uns 3 meses que eu tava no clube.... ele falou: "É... eu acho que talvez seja alguma coisa aí de ansiedade... alguma coisa que a gente não está sabendo o que é!" Falei: "Não por isso! Terapia eu já faço!". Já estava fazendo psicologia e fazia terapia com uma psicóloga especializada em esporte que faço até hoje. E aí eu falei: "Bom... por isso... terapia eu já faço!". Aí eu comecei a cercar de todos os lados: médico... nutricionista... terapia... fisioterapia... tudo que eu podia fazer... prá ir eliminando... Aí continuei nadando mal! No treino saía tempos bons... mas eu só fazia série aeróbia... não fazia nenhuma série de NA3 direito... a gente não tinha muita série de AN... tanto que nas provas de 800... e eu nunca tinha nadado 800 livre... fui nadar pela primeira vez no Troféu Brasil e fiquei em sexto.

Através do que aparece na entrevista, pode-se suspeitar que algo realmente estivesse inadequado na preparação de L., dado que as características fisiológicas de uma prova de 800m crawl são muito diferentes de provas de 100m e 200m borboleta, especialidade da atleta. Trata-se de vias de produção de energia e capacidade de tolerar a acidose metabólica diferentes e, mais que isso, concorrentes entre si4.

A atleta conta também que houve divergências entre ela e seu técnico a respeito do que não estava "certo" em sua preparação/execução. Ela via problemas fisiológicos, ele, problemas psicológicos. Curiosamente, a segunda "causa" estava sendo "tratada", acredita-se, da melhor forma possível: por uma psicóloga especialista em esporte. A primeira não foi modificada.

Por sua vez, L. começa a se ver em uma posição delicada: há um clube que a cobra resultados, os quais ela não consegue obter. Começa então a "cercar de todos os lados", procurando entender, em vão, o que estava acontecendo. Não se torna difícil compreender a situação como causadora de grande angústia. Mas a fala localiza a angústia no tempo e no espaço: ela ocorre ao final da prova, ao final dos desempenhos ruins, não na decisão de mudar de cidade, nos treinos iniciais, antes de nadar pela primeira vez pelo novo clube. É preciso notar que a tal "ansiedade", indistintamente tomada como causa de desempenhos ruins, na fala de L. aparece como conseqüência.

Aí eu falava prá ele (técnico): "Será que não dá prá gente fazer mais série de AN?" Ele ficava puto! E algumas coisas eu falava e ele falava: "Você é agressiva demais no jeito que fala!". E eu falava: "Mas eu já tentei falar de todos os outros jeitos!" Eu tentava falar com ele das formas mais... Eu virava pra ele... "Eu estou sentindo que eu preciso de mais séries fortes com intervalo menor..." Eu falava 3 vezes desse jeito. Daí eu falava: ‘Pô! Vamos fazer mais séries de AN né?!’. Mas também não funcionava! Aí eu peguei e desencanei sabe... desencanei bastante. Eu vi que foi... a proporção da natação na minha vida foi diminuindo... a importância que eu dava prá ganhar... e estar no meio... foi diminuindo bastante...

Logo no início do trecho, a atleta fala sobre a dificuldade na tarefa de comunicar-se com seu técnico. Quando é tido como mero executor, o atleta parece não ser capaz de questionar aquilo que está sendo feito consigo mesmo, sua experiência (física) de si parece não ter nenhum valor ou confiabilidade, por ser de ordem "subjetiva". Aqui, como já foi argumentado, a queixa da atleta é válida, mas ainda que não fosse e que não existisse causa fisiológica alguma para o desempenho ruim, L. acreditava nisso.

Um treino diferenciado muito provavelmente melhoraria seu desempenho, quer via "mecanismo placebo", quer via real modificação fisiológica. Qual seria então o entrave para uma escuta por parte do técnico? Questões estruturais? Ou a ameaça das relações de poder institucionalizadas na hierarquia esportiva? Qual a veracidade da concepção, amplamente difundida no meio esportivo, de que o atleta está lá para executar e o técnico para pensar a melhor forma de execução? Felizmente, hoje já se começa a falar, especialmente nas modalidades coletivas, a respeito do "atleta inteligente", diferenciado, capaz de ler as situações e tomar a melhor decisão possível (ver, por exemplo Morales & Greco, 2007), bem como possuir pensamento crítico (Bar-Eli, Lurie & Breivik, 1999). O mesmo parece ainda não acontecer nas modalidades fechadas onde a capacidade física é a única responsável pelo rendimento.

Porém, o atleta possui uma forma de conhecimento de seu corpo que raramente é levada em conta, sequer legitimada. Esta forma de conhecimento denomina-se tácito. Esse conceito de Polanyi e Prosch (1975) se refere a um conhecimento incorporado às capacidades afetivas, motoras, cognitivas e verbais, em certa medida resistente a discursos representacionais e que se dá em um plano de experiência em que sujeito e objeto não se encontram como entidades independentes uma da outra. Esse "conjunto de habilidades" se encontra entranhado no corpo, e é desenvolvido pelo atleta ao longo dos muitos anos de prática, tornando-o capaz de diferenciar quando está "bem" ou "não está bem" para competir, ainda que ele não consiga explicar o que seja esse "bem".

Os autores acima mencionados contrapõem ao conhecimento tácito o conhecimento explícito, representacional ou, ainda, objetivo. Esta é a forma de conhecimento (teórico) a qual estamos habituados, sendo o que domina a tradição ocidental. Mas não é a única.

A impossibilidade de encaixe do conhecimento tácito nos moldes de conhecimento aceitos pela Ciência, dado sua inerente singularidade, faz com que muitas informações sejam ignoradas e perdidas, ou pior, tomadas com subjetivas, no sentido mais pejorativo do termo, informações estas que poderiam ter inestimável valor na preparação e desenvolvimento do atleta.

Porém, talvez o aspecto mais comprometedor de não considerar o conhecimentos tácito seja o fato de que, sendo encorajado a ignorar suas sensações, o atleta não abre possibilidades acerca do que sabe sobre si mesmo e sua prática (seu agir). Desconsiderado em sua percepção e desestimulado a manter-se em contato consigo mesmo, abre mão de tornar-se companheiro de si e, em sentido amplo, de conhecer-se. A "[...] ordem biotecnológica que se conjuga com a organização do treinamento [...] acaba submetendo o corpo [...] a um controle de qualidade que acaba por transformar a própria experiência concreta do corpo" (Valle & Guareschi, 2003, p. 257).

Ainda que o conhecimento tácito seja de difícil utilização na área do esporte, talvez uma forma diferente de escuta possa fazê-lo, estimulando, ao mesmo tempo, o atleta a manter-se em contato consigo mesmo. Mas em que medida o psicólogo do esporte está preparado para ouvir o atleta sem procurar nele "problemas que estejam atrapalhando o rendimento"?

Foi desmotivando. Era frustrante falar e ele não me escutar! Era o que eu mais discutia em terapia. Eu chegava lá e falava: "Eu não acredito... eu falo... falo tanto... e o cara não me ouve... a sensação é que eu estou falando prá ninguém!".

Quando se muda para o clube grande e para outra cidade, a situação da atleta é bastante diferente em relação àquela na cidade de origem: o valorizado status de pertencer a uma grande equipe, ao mesmo tempo, situava-a no interior dessa equipe como "mais uma" ou, pior, como "ninguém". Nessa situação, as diretrizes do treinamento não mudariam em função dela porque, quando o resultado esperado pelo clube não acontece, outra atleta renderá em seu lugar. É sobre a experiência de ser substituível, muito freqüente no mundo esportivo, que a atleta fala aqui. Esta pode ter como conseqüência a perda das raízes e dos vínculos com o meio e em grande parte com o próprio projeto ser atleta, pois retira do "aspirante" a sua condição de único, de especial, de um herói respondendo a convocação do destino (Rubio, 2001), para colocá-lo em território comum a outros tantos atletas que "não deram certo".

A "desmotivação" aqui parece ser uma resposta, embora indesejada, compreensível, pois há uma situação exterior de grande magnitude a respeito da qual L., sozinha, não pode fazer muita coisa. Seria a desmotivação, nesse caso, uma disposição afetiva discrepante ou demonstrativa de qualquer "problema psicológico"?

Através desse tópico, pretendeu-se demonstrar como o trabalho do psicólogo esportivo pode ser complexo, por dizer respeito a duas áreas distintas, mas que se encontram inseparáveis na experiência concreta do atleta. Conhecer as vicissitudes do esporte em geral, e, em especial, as características da modalidade do atleta-cliente parece ser fundamental na possibilidade de um fazer ético do psicólogo do esporte (Frascareli, 2008).

 

O Problema do "Problema Psicológico"

Até agora foram expostas algumas falas de L. que situam o contexto pessoal e esportivo da atleta: a mudança de clube é marcada por um intenso desejo de mudanças e acaba tendo como um resultado inesperado a queda no rendimento. Esta queda recebe imediatamente uma "causa psicológica", a qual já se colocou em dúvida com as análises realizadas acima. Para analisar o efeito dessa suposição de "problema psicológico" no atleta, infelizmente muito comum, faz-se interessante observar mais um trecho significativo da entrevista:

Eu acho que muitas das coisas discutidas em terapia vinham do problema de virarem prá mim e falarem: "É cabeça!"... e eu falava: "Mas como é cabeça se eu..." Entendeu?! Entrei na coisa... fiz exatamente a passagem que queria fazer... entrei no ritmo da prova... Se fosse cabeça... a primeira braçada que eu tinha dado eu já não ia estar ali na coisa... entendeu? Até quando eu estava em * (cidade natal) não tinha cabeça... foi mudar de cidade que... aí falavam: "Ás vezes é sua situação aqui... você não está bem..." E eu falava: "Mas eu estou tão bem aqui... estou tão feliz de estar aqui... gosto prá caramba de morar aqui." E aí eu falei "Oh... Quer saber? Alguma coisa pode ser que tenha... então eu vou..."
Eu acabei acreditando... tomando várias coisas prá mim... E também eu conversava com as pessoas... às vezes não conseguia falar o que queria... principalmente com técnico... eu não conseguia virar prá ele e falar: "Olha... você tá errado... desculpa... mas não é isso!" Eu não tinha essa postura. Eu acho que a Psicologia me ajudou muito com isso. Saber me colocar mais... me apropriar mais das minhas coisas e de mim... ter mais confiança... daí também parte prá todo o lado pessoal... que não tem como livrar disso tudo também...

Desde o início da análise da entrevista postulou-se quão "perigosa" é a suposição de que há no atleta algum "problema psicológico", e nesse momento L. revela justamente qual é esse perigo.

Um problema psicológico considerável, a ponto de prejudicar o desempenho seria estruturado, de acordo com Moraguès (2003) como "contra-desempenho". Este termo foi proposto para definir manifestações corporais inibidoras que resultam em desempenhos ruins. Esse contradesempenho, ainda que disparado na situação esportiva, vai além dela e, diz o autor, é inútil a tentativa de resolver o problema através de técnicas relacionadas ao esporte, conforme aponta o autor:

Podemos deduzir que o contradesempenho é estruturado como um sintoma. Ele contém nisto toda a ambigüidade. Expõe claramente a enunciação do desejo inconsciente num primeiro instante incompreensível, mas igualmente sua finalidade, que é de resistir, de se opor à renúncia, à perda simbólica que impõe as modificações corporais e psíquicas. Seria vão procurar resolver o problema do campo esportivo somente na realidade, por meio de conselhos técnicos ou de um reforço consciente da vontade. Porque nesses casos não apenas o corpo não obedece, como se manifesta contra o querer da vontade consciente do eu do esportista. (p. 14)

Mas há uma importante questão a ser pensada: em que medida expor isso para o atleta, sem determinar qual seria esse "problema" e sem possibilitar uma via para que ele o compreenda e o supere pode ajudá-lo? De fato, apontar o "psicológico" como causa para diversos problemas humanos tornou-se prática corrente inclusive no discurso médico e nas áreas humanas. Essa "psicologização" exagerada tende a fazer desaparecer o contexto no qual o sujeito se insere, e encontra seus limites no número de excluídos ou "problemáticos" que produz (Enriquez, 1994).

Esbarra-se, ainda, em um duplo problema epistemológico: por um lado, não se tem perfeita clareza dos fenômenos psicológicos para que se possa determiná-los inequivocamente como causa de um desempenho físico ruim. Por outro lado, em última instância, todo comportamento voluntário é determinado pelo "psicológico", consciente ou inconsciente. Merleau-Ponty (2006) nos fala sobre essa problemática a partir do olhar fenomenológico:

É preciso então compreender então como os determinantes psíquicos e as condições fisiológicas engrenam-se uns aos outros (...). Para que as duas séries de condições possam em conjunto determinar o fenômeno, assim como dois componentes determinam um resultante, ser-lhes-ia necessário um mesmo ponto de aplicação ou um terreno comum a "fatos fisiológicos" que estão no espaço e a "fatos psíquicos" que não estão em parte alguma, ou mesmo a processos objetivos como os influxos nervosos, que pertencem à ordem do em si, e a cogitationes tais como a aceitação e a recusa, a consciência do passado e a emoção, que são da ordem do para si. (p.116)

E mais à frente:

Os motivos psicológicos e as ocasiões corporais podem se entrelaçar porque não há um só movimento em um corpo vivo que seja um acaso absoluto em relação às intenções psíquicas, nem um ato psíquico que não tenha encontrado pelo menos seu germe ou seu esboço geral nas disposições fisiológicas. (p.130)

As ciências, na ânsia de normalizar os fenômenos, tomam como em si processos humanos que pertencem à dimensão do para si. Nunca existirá uma emoção, por exemplo, em si, mas uma emoção-para-um-sujeito-em-uma-situação.

Assim, antes de tentar investigar supostas causas psicológicas para desempenhos ruins, parece válido abordar outro processo relacionado a esta suposição: o que acontece quando é dito ao atleta que ele possui um "problema psicológico".

Compreende-se que o atleta, colocado em dúvida quanto a si mesmo, perde a confiança, não como "característica da personalidade", mas como possibilidade de em seu mundo, ou seja, na situação competitiva. Passando a duvidar de si, temeroso e angustiado, limita suas possibilidades de compreensão de si mesmo no mundo. A compreensão humana não é flutuante, é sempre um "entender emocionado", atravessado pelo estado de humor ou ânimo (befindlichkeit - Heidegger) que, mais que um estado interno, é uma forma de se colocar no mundo (Gendlin, 1978/1979). A emoção da derrota ou do desempenho ruim (porque provavelmente não se irá supor que o atleta vencedor tenha problemas psicológicos), ainda que seja diferente para cada atleta, dará a perspectiva emocional que servirá de base para o que será compreendido a respeito de seu "problema". "A compreensão originária sempre capta aquilo que já é matizado por uma certa emoção. Essa compreensão originária é anterior à compreensão cognitiva, que passa a ser sua derivada." (Almeida, 1999, p. 49)

A simples suposição de um "problema psicológico" já traz consigo a falsa cisão entre corpo e mente, por atribuir à mente o poder de não permitir que o corpo realize aquilo que, por si só, seria capaz. Talvez seja dessa concepção duvidosa sobre o ser humano que provenha o embasamento à idéia tão popular de "competir contra si mesmo", na qual haveria algo em si a ser "vencido".

Porém, cabe desde já pensar como é vivida pelo atleta a situação em que lhe é "cobrado" um controle de si mesmo, mas ambiguamente comunicado que ele mesmo encontra-se impróprio para tal exercício? A própria figura do herói (muitas vezes atribuída ao atleta - Rubio, 2001), como semi-deus, lhe confere uma limitação, mas na perspectiva de uma condição a que se está sujeito, e não como "defeito". Não é possível "tratar" as limitações da condição humana, e em que medida não é justamente isso que propõem as psicologias cientificistas de maneira geral quando se ocupam da questão do controle (da ansiedade, da motivação, das emoções...)?

 

Considerações Finais

Para encerrar este artigo, foi escolhida uma última fala da atleta, bastante reveladora:

O que eu acho que a Psicologia tem prá oferecer pro esportista? Nossa! Tem muita coisa né!? E aí depende de cada um. Eu acho que é muito individual. Tem aquele atleta que... poxa... falando especificamente no momento competitivo... tem aquele cara que fica super ansioso. Então tá... vamos entender isso... vamos conseguir deixar o cara naquele nível de stress necessário prá ele competir bem. Tem o cara que não consegue concentrar... tem os esportes coletivos que você precisa ter uma visão mais geral da coisa... você precisa ter um outro foco de atenção que não é aquele foco que a natação precisa por exemplo... que é aquele fechado... você esquece do mundo e fica você... na sua raia... com a água... e é aquilo. Já no vôlei você precisa ter uma visão muito maior da coisa... precisa ter uma visão sua... do seu time inteiro e do time adversário inteiro. Já é diferente também.

O trecho foi escolhido para encerrar o artigo porque nele é possível perceber a força do discurso científico na prática psicológica esportiva, através do comentário de L.: frente à totalidade da situação que atravessa (a qual é constituída por inúmeros fatores de diferentes ordens), tendo sido vítima dessa forma mecânica de ver o humano exercida pela Psicologia do Esporte, e após realizar terapia fenomenológica- existencial por alguns anos, ela fala de uma forma de trabalhar que procura "o nível de stress necessário para competir bem". Nessa proposição psicofisiológica, a atleta real desaparece frente ao próprio olhar, tornando-se um mecanismo. Através do que vimos na entrevista, seria possível reduzir, especialmente do ponto de vista ético, a complexa questão de L. a um "nível de stress ou ansiedade muito altos para competir bem"? Será que essa forma de compreensão e de trabalho é o melhor que o psicólogo do esporte tem a oferecer?

 

Referências

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Endereço para correspondência
R. Prof. Adalberto Nascimento, 749. Vila São Bernardo.
Campinas, SP. CEP: 13030-730
Email: ligia.frascareli@usp.br, li_frascareli@yahoo.com.br

 

 

Sobre a autora

Lígia Silveira Frascareli
Psicóloga pelo Instituto de Psicologia – Universidade de São Paulo. Mestra em Psicologia Clínica Esportiva pelo Instituto de Psicologia – Universidade de São Paulo e aluna de graduação em Esporte pela Escola de Educação Física e Esporte – Universidade de São Paulo.

Sobre o trabalho

Trabalho derivado da dissertação de mestrado: "Interfaces entre Psicologia e Esporte: Sobre o Sentido de Ser Atleta".

1A inicial não corresponde ao nome verdadeiro da atleta, que será assim denominada para a preservação de sua identidade.
2 Realizar a segunda metade da prova.
3 AN = anaeróbia. Série anaeróbia se refere a um tipo de exercício que, por sua configuração (alta intensidade com duração de até 120s), prioriza como fonte energética a via metabólica da glicólise, que gera ATP a partir de glicose sem a presença de oxigênio, tendo como resultados metabólicos NADH +H e piruvato. Quando o fluxo de quebra da glicólise excede a captação de hidrogênio (um de seus produtos) pelo NAD, o NADH reduz piruvato (composto que funciona como aceptor de hidrogênio para liberar moléculas de NAD, garantindo a continuidade do processo) à lactato, daí a origem do ácido lático. (STAGER & TANNER, 2008). Esse tipo de série induz o organismo a tolerar o lactato, substância tóxica que limita o desempenho e causa uma intensa sensação de desconforto.
4 Não se pretende aqui promover discussões sobre vicissitudes relativas ao treinamento esportivo, mas mostrar como foi rápida a suposição de um problema psicológico mesmo quando haviam outras questões envolvidas.

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