1 3A orientação da psicanálise em um serviço residencial terapêutico: a casa de aposentados - uma pequena construção 
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CliniCAPS

 ISSN 1983-6007

CliniCAPS v.1 n.3 Belo Horizonte dez. 2007

 

ARTIGOS

 

Trabalho em equipe na rede: a enfermeira e a instituição parceira*

 

 

Carlo Viganò**

Scuola Lacaniana de Psicoanalisis

 

 


RESUMO

Neste artigo, Viganò assinala a importância do profissional de saúde mental se colocar como um muro simbólico no tratamento do psicótico. Apresenta três tempos do auto-tratamento do sujeito psicótico e a maneira como a instituição enquanto parceira pode auxiliá-lo nesse trabalho de autodefesa, autoconstrução e de adesão ao Outro.

Palavras-chave: Instituição-parceira, Autodefesa, Autoconstrução.


ABSTRACT

In this article, Viganò points out the importance of mental health professional to be put as a symbolic wall in the treatment of psychotic. He presents three times of self-psychotic treatment and the way the institution as a partner can assist him in this work of self-defense, self-construction and Other’s adherence.

Keywords: Partner-institution, Self-defense, Self-construction.


 

 

Obrigado por este convite.

Para o argumento de hoje eu dei um subtítulo “A enfermeira e a instituição parceira”. A enfermeira como um dos atores da transformação da instituição, como agente desta transformação.

A instituição dá estrutura fixa à parceria do sujeito, à parceria criativa do sujeito. Isto é porque devemos pensar que o encaminhamento, a finalidade do tratamento é aquele que faz nascer um sujeito, um sujeito inédito.

Parto de uma afirmação que fez Basaglia, uma afirmação que pode parecer um pouco paradoxal. Basaglia dizia que o manicômio estava para todos os operadores como uma grande escola de vida. Assim esperava que, uma vez abolido o manicômio, que se mantivesse esta escola.

Vejamos porque o manicômio é uma escola da vida.

Freud fazia notar que nos psicóticos, havia uma transferência particular sobre a estrutura do hospital, que eles amavam os muros do hospital. Nós vimos que quando eles eram levados para fora, sofriam muito. O muro do manicômio tinha uma importância muito grande para eles e com isto devemos aprender como substituir o muro do manicômio, aprender para que servia o muro do manicômio ao doente. Servia para manter longe o temor e o perigo da morte. Para o psicótico a vida social é perigosa, é persecutória e o muro o defende disto. Se nós tiramos o muro o risco é que reste a perseguição.

Eu proponho pensarmos que a enfermeira é o novo muro do manicômio, é um muro vivo, não é um muro de pedra.

Para desenvolver esta função é preciso saber como vive o psicótico. Fundamentalmente o psicótico não organiza as duas pulsões, de vida e de morte. A sua pulsão de vida, o princípio do prazer, não tem condições de organizar a pulsão de morte. É por isto que o doente mental tende a fazer-se mal, a auto agredir-se, tem uma tendência à auto-mutilação.

Então a nossa função é de educar o doente a experimentar o prazer. O prazer faz muro à pulsão destrutiva. Por que digo que é uma função da enfermeira desenvolver esta função educativa? Porque a enfermeira vive o dia todo com o doente, é uma convivência, portanto pode funcionar como ponto de referência, para colocar um pare na tendência destrutiva. Para compreender melhor a tendência auto-destrutiva, vejamos como se organiza normalmente esta função de contenção da morte.

A contenção da morte, Freud a chama de mito de Édipo, o sujeito encontra seu lugar no que diz respeito a seu pai e a sua mãe. A relação entre o pai e a mãe faz muro contra morte.

O doente mental é aquele que não organizou o seu Édipo. Não quero dizer que a culpa seja dos pais, é uma coincidência muito complexa. O fato que não funcione o Édipo, depende de mais gerações, provavelmente depende também das circunstâncias biológicas. Normalmente o Édipo se organiza assim: em ambos os sexos, masculino e feminino, o sujeito chega a separar-se dos pais adquirindo um instrumento, um instrumento simbólico que a psicanálise chama o valor do falo, que é a possibilidade de tê-lo para o macho e de sê-lo para fêmea no nível simbólico, e, portanto de poder organizar a própria vida adulta.

O psicótico é aquele que não recebe este instrumento simbólico e por isto vive tudo no real. Para o psicótico as palavras são como as coisas e por isto perde a vantagem da palavra. A vantagem da palavra é de poder fazer trocas, de poder fazer doações, de poder pedir o amor do outro através da palavra.

O psicótico não tem este instrumento de troca, não tem condições de fazer uma doação. E isto é importante, não porque o psicótico não seja generoso, o psicótico não conhece a troca. A doação é sempre simbólica. Eu posso dar um perfume, um jogo, um brinquedo, um CD e isto significa que eu te quero bem. O psicótico não tem a possibilidade de doar um símbolo do amor e por isto a interrogação é que coisa é o amor para o psicótico? Como pode exprimi-lo? Poderia ser uma pergunta que eu dirijo a vocês.

Se não tenho a possibilidade de fazer um gesto simbólico, como te digo ‘te amo’? E aqui vem uma coisa paradoxal, para dizer que te amo te dou soco. E isto é difícil, é impossível de compreender, que para ter um contato com outro, deva fazer uma agressão.

É difícil de compreender e, sobretudo não é nada prático, não podemos lutar todos os dias. Então a solução que encontramos que já foi encontrada historicamente, está em amarrar, em conter os loucos. Mas assim nós impedimos a sua forma de expressão de amor.

O problema é encontrar uma saída que não seja violenta e que permita, porém uma troca, sem conter cada expressão do psicótico. Vejamos como se pode chegar a isto:

Se o psicótico não encontra a maneira de representar-se pela palavra, ele fica como objeto da mãe. Isto tem como efeito uma mortificação do sujeito. Se eu sou um objeto, não sou um sujeito, eu sou uma coisa da minha mãe. Esta falta simbólica tem conseqüência na própria vida do psicótico. Aquilo que poderiam ser os objetos para ele, para sua satisfação pulsional e sexual, não podendo fantasiar simbolicamente, o psicótico os encontra na realidade.

Aquilo que para nós é a fantasia, por exemplo, a fantasia de uma moça ou de um rapaz que nos agrada, para um psicótico torna-se uma alucinação. Não é uma fantasia, é uma coisa que vê ou que sente, uma voz. Ainda que nós digamos que esta voz é uma fantasia, ele não aceita isto, ele a sente de verdade, ‘não é doido’. Se disser a ele que é uma fantasia é como dizer a ele que é um doido. Com efeito, tem razão, ele sente de verdade a voz. Precisamos fazer uma passagem a mais para chegar a tornar a voz igual à fantasia. O psicótico se encontra do lado de fora da possibilidade de discurso, de troca simbólica e de representação. Para ele o simbólico é real, esta é a origem do sofrimento psicótico. O que nós chamamos sofrimento, talvez fosse melhor chamarmos perseguição. Frente a esta perseguição, o psicótico faz duas coisas, e é importante compreender esse ponto da perseguição:

‘Se eu não sou um sujeito, sou um objeto de minha mãe. Eu não tenho instrumento de discurso e todos outros falam entre si. Esta condição me coloca numa situação persecutória. ’ ‘Se eu, psicótico, encontro uma pessoa que me saúda, posso crer que me ameaça, não compreendo o que quer e, portanto, devo me defender.’

Podemos pensar num marciano que cai sobre a Terra, que não compreende nenhum de nossos símbolos. Se eu faço “assim” para apertar sua mão, ele me corta, ele crê que seja uma agressão e assim com qualquer gesto, qualquer contato. Por aí podemos pensar a condição do psicótico que é, portanto, uma condição não vivível. Vejamos como o psicótico faz para viver, faz duas coisas: primeiro uma ação de autodefesa, segundo uma ação autoconstrução.

 

Autodefesa e Autoconstrução

Vejamos a operação de autodefesa. No momento que o simbólico tem o valor de real para ele, cada signo, cada marca da presença do Outro, pode assumir um valor de gozo do Outro. Um gozo que tende a destruí-lo como sujeito, isto o leva a anular, a cancelar todos os signos, todas as marcas do Outro, tudo aquilo que o Outro pode colocar como sinal. Por isto se isola, se fecha em seu quarto, tapa os ouvidos, inverte o dia com a noite, porque à noite o Outro emite menos sinais, o Outro dorme. Por isto o psicótico pode viver.

Por isto digo que o psicótico deve evitar qualquer signo do Outro, o ideal para o psicótico é um lugar sem o Outro, um deserto, uma ilha. No período medieval o colocavam dentro de uma nau, vocês conhecem a nau dos insensatos, uma pintura de Bosch que representava isto - era a intuição que o psicótico precisava de um lugar sem nenhum sinal da presença do Outro, no meio do mar não tem Outro. E também quando o encontramos parece que não nos escuta, que não nos olha, chamamos a isto, autismo. É como um ser congelado. Por isto qualquer palavra, qualquer forma de atenção, que o resguarde, ou o deixe indiferente, simplesmente o agride. Este é o primeiro movimento do psicótico, a autodefesa, o isolamento, congelamento.

A segunda operação que faz para viver é uma operação de autoconstrução. Esta é muito importante porque se demonstra que de qualquer maneira o psicótico está dentro da linguagem. Ainda que sua palavra possa não produzir sentido, ele está de qualquer maneira, dentro da estrutura humana da linguagem.

O psicótico não é como um primitivo que não conhece a linguagem, ou antes, como um animal. O psicótico é uma pessoa humana com todos os seus defeitos. Isto é importante porque muitas vezes, vem espontaneamente a nós tratar o psicótico como um ser primitivo, como se ele estivesse fora da linguagem humana, porque não o compreendemos, não tivemos compreensão daquela operação de autodefesa que lhes falei antes.

Aquilo que demonstra que o psicótico está dentro da linguagem é o uso que ele faz dela, por exemplo, o movimento alternado para frente, para trás. Eu vi uma pessoa que o dia inteiro fazia assim. Esta é uma forma de linguagem, é um uso do significante, elementar, para frente para trás, para frente para trás.

Isto demonstra que o psicótico como todos nós tem necessidade de estar na linguagem. Eu me recordo de outro psicótico que todo dia tinha um horário de trabalho. Depois do horário de almoço saía para o parque e seu trabalho era procurar pequenas pedrinhas e à tarde voltava com o bolso cheio. Evidentemente ele procurava um certo tipo de pedrinha, ele tinha o seu simbólico, ele ocupava o dia inteiro procurando este tipo de pedrinha. Quando retornava para o lugar onde morava, tirava tudo do bolso e já estava pronto para outro dia de trabalho. Há outros que têm um pequeno objeto, uma pequena boneca, ou uma porta que fecha e abre, abre e fecha. Procura fazer com estes gestos a sua construção significante, de estar dentro do mundo da linguagem.

Nós pensamos que a linguagem é sempre feita do modo do computador, de mais/menos. Linguagem da informática que talvez vocês não conheçam, tem só dois sinais mais (+) e menos (-). É um pouco como a psicose, quando se vai ao teclado escrever uma palavra, ‘amor’: a-m-o-r , e o computador faz: mais, mais, mais, menos ou menos, menos, menos, mais, traduz uma linguagem de frente para trás, de trás para frente. Por isto com esta operação, o sujeito procura realizar a existência simbólica do próprio corpo, que normalmente é realizada pela estrutura simbólica do Édipo e pela família. Portanto elevar o próprio corpo, a própria biologia à dignidade do simbólico. Todos estes gestos demonstram que é um homem e não um animal. Não existe nenhum animal que para viver tenha a necessidade de fazer estes movimentos, este ritmo, estes pequenos gestos, porque o animal para viver não precisa estar na linguagem. O animal é guiado pelo seu instinto, o psicótico, ao contrário, é um homem e necessita da linguagem.

O problema do psicótico é que esta sua produção simbólica, ele a produz sozinho, sem o Outro, não tem o Outro que reconheça sua linguagem. É propriamente por isto que estes gestos tornam-se repetitivos, não acabam mais. A nós parece que acabarão, esperamos que ele se canse, que chegue à fadiga, mas em vez disto, não acabam, porque não encontra o Outro que o reconheça. Por isto, até o fim, estes gestos não se tornam uma palavra. E como eles não acabam mais, nós lhe damos medicamentos e bloqueamos os músculos de modo que pare com este ritual esquisito, que pare de fazer estas coisas. Por isto, paradoxalmente, muitas intervenções que fazemos no tratamento dos psicóticos vão contra seus dois movimentos, suas duas tentativas, a da autodefesa e a da autoconstrução.

Nós somos tentados a impedir a autodefesa e a autoconstrução e, portanto somos um pouco sádicos, um pouco persecutórios, por isto não podemos nos surpreender quando o psicótico recusa o tratamento. Há uma escassa adesão ao tratamento, como dizem os médicos. Se o sujeito faz uma boa adesão, é um terceiro movimento.

 

Adesão ao Tratamento

Primeiro ponto do tratamento, autodefesa; segundo, autoconstrução e terceiro, adesão ao Outro. O paciente que faz esta adesão deve ocupar-se de tratar os enfermeiros e os médicos. Como eu dizia ontem no Instituto Raul Soares 1, o paciente se preocupa que os enfermeiros e os médicos voltem para casa tranqüilos, que eles estejam contentes. Porque se o paciente não toma o remédio, o médico torna-se ansioso e como os psicóticos são muito bonzinhos, eles procuram contentar o Outro.

Tendencialmente o psicótico faz sempre um duplo trabalho, de autodefender-se e de autoconstruir-se, e depois, de tratar o Outro. Ele faz todo trabalho que deve fazer, deve se reeducar, fazendo todas estas coisas para tratar o Outro.

Quando vemos um psicótico que está o dia inteiro no leito e ele diz: “estou muito cansado”, nós devemos compreender que ele está trabalhando muito no leito e ele está fazendo todas estas coisas que listou, de verdade ele está muito cansado. É um trabalho que nós não vemos, mas que devemos começar a ver. Devemos começar a compreender. Só assim poderemos andar adiante, andar adiante na direção de uma ajuda, daquilo que chamamos reabilitação e não na direção de um conflito.

 

Estabilidade – Um Lugar No Discurso

Como o psicótico chega a encontrar certa estabilidade? Fundamentalmente quando encontra um lugar no mundo simbólico, quando existe uma constelação, um discurso que lhe dá o seu lugar. Vimos que a dificuldade específica da psicose é entrar no discurso e no vínculo social. Qualquer discurso que se produza que lhe dê um lugar, o estabiliza.

O discurso social do manicômio dá uma estabilidade ao psicótico. A estabilidade de doido na sociedade, na cidade. Existiam estas vilas, como Barbacena, conhecidas como a cidade da loucura, que eram lugares sociais que estabilizavam o psicótico. Se hoje isto está se transformando é por causa de muitos motivos. Primeiro porque eram lugares de encarceramento, de enclausuramento, de escravidão, fora da cidade social e este é um motivo humanitário. Tem também um motivo menos humanitário, mais utilitarista, mais capitalista e do progresso da química. A ação da química custa menos ao estado que o manicômio. Eu creio que três miligramas de Haloparidol custam dois ou três reais. Um leito, a comida, o pessoal, custa muito mais e, portanto com a química o estado pode economizar, este é um motivo menos humanitário para se desfazer o manicômio.

Como vimos antes, a medicação em excesso é uma condição mais maligna do que o manicômio, porque não dá nenhuma estrutura simbólica, não dá nenhum lugar ao doente mental, simplesmente impede seu movimento, seu pensamento, seus afetos. Fica reduzido a um estado mais calmo, mas se não encontra este lugar simbólico, não será um sujeito que está bem, e, sobretudo não encontrará uma estabilização. Por isso que a química sozinha não basta. O que pode estabilizar o psicótico é um discurso. O manicômio era um discurso, agora não tem mais manicômio, estamos lutando contra o manicômio. Devemos saber que a química não substitui o manicômio.

 

O Que Substitui o Manicômio?

Agora chegamos ao ponto do qual tínhamos partido: o que pode substituir o manicômio não são puramente as estruturas externas, tem que ser um discurso. Tem que ser uma estrutura simbólica que dá um lugar ao psicótico e este é um dever dos enfermeiros e de todas as outras pessoas que entram na relação com os psicóticos.

A enfermeira tem a chance, a ‘sorte’ de estar muitas horas ali trabalhando. Não é como o médico que um pouco nervoso, vai para outros lados. A enfermeira ainda que nervosa deve permanecer ali. Este é um problema para a gente resolver, senão devemos internar as enfermeiras, senão as enfermeiras tornam-se sádicas. O problema é que a enfermeira (digo enfermeira para dizer de quem se ocupa dos psicóticos, toda a equipe, assistentes sociais, psicólogos, todos os profissionais), também deve encontrar um lugar simbólico no mundo, na sociedade para poder se ocupar dos psicóticos. Deve ter suas próprias regras, seu próprio discurso. Se a equipe tem um discurso poderá dar um lugar ao psicótico. Mas se a equipe não tem um discurso, se é conflituosa, se o médico é contra o enfermeiro, se a enfermeira tem ciúmes de outra enfermeira, se a enfermeira pensa só na escala de trabalho, na escala de férias, que lugar pode dar ao psicótico? Nenhum. Não tem discurso, não tem vínculo social. Não estou dizendo que as enfermeiras devam se dar bem entre elas, não estou indicando o amor universal, isto não é possível. Existem aquelas simpáticas e aquelas antipáticas. A gente não pode obrigar ninguém a gostar de todo mundo. Mesmo com uma paciência altíssima, não é possível. Ainda que com muito dinheiro, não é possível agradar a todos. O problema é um discurso, um vínculo social, um vínculo simbólico na equipe, fundamentalmente de ter uma palavra que circula. Por exemplo, as reuniões não só para fazer escala, mas reuniões para compreender, por exemplo, os doentes. No Instituto Raul Soares chamam de Sessão Clínica 2, eu vi isto - a construção do caso.

A construção do caso é colocar-se em simpatia com o doente, colocar-se do lado do doente, ver como ele está trabalhando na autodefesa e na autoconstrução. Então, se tivermos construído a posição atual do psicótico, poderemos tomar boas decisões na equipe. Assim poderemos ajudá-lo no seu trabalho, facilitar o trabalho feito pelo psicótico, ao invés de aumentá-lo, dificultá-lo.

Para facilitar o trabalho do psicótico é necessário que primeiro falemos do trabalho que ele está fazendo, que o construamos, que possamos dar uma ordem simbólica ao seu trabalho. A primeira ordem no simbólico é poder falar, é poder produzir na equipe um saber sobre o caso particular. É um saber que vai ser construído para cada caso. É um saber que não aprendemos na escola de enfermagem, porque na escola a gente não conheceu aquele senhor que está ali doente. A escola ensina coisas gerais, o nome da doença, tipos de medicamentos, como se organiza o serviço, mas não ensina a construir um caso clínico, eu creio. Isto se ensina no hospital, no serviço, se se é uma equipe. E, portanto isto é um ponto fundamental do trabalho da equipe.

 

Pontos de Estabilização:

A - Uma Falta no Outro

Eu creio que existem três pontos particulares de estabilização, que digo rapidamente. Primeiro, a equipe deve tratar o Outro do psicótico. Vimos que o Outro do psicótico é um Outro pleno, sólido, material, real, aquilo que eu chamava persecutório. Por isto devemos introduzir no Outro do psicótico, uma falta, um defeito. Ou o introduzimos nós esse defeito na equipe, ou o psicótico o faz espontaneamente. Para introduzir esta falta no Outro, tem dois instrumentos: um é a auto-mutilação, ele introduz uma falta no seu corpo; e outro é a tendência a tornar-se feminino, uma feminização, um fazer-se mulher, porque mulher é uma posição da falta fálica. Então tenhamos presente isto: o primeiro elemento de estabilização é introduzir uma falta no Outro. Estão aí os modos que o psicótico o faz patologicamente: automutilação e transformação no feminino.

B – Um Órgão Suplementar

Segundo elemento de estabilização é a procura de um órgão suplementar, um instrumento para ordenar o campo do discurso, um objeto erotizado, investido de uma maneira particular. Pode ser qualquer objeto, pode ser um brinquedinho, um automóvel, um pedaço de cobertor, uma divisa (distintivo).

Conheço um psicótico que sempre se veste com uma farda, como um militar, um outro que usa sempre uma echarpe no pescoço, um que tem no bolso sempre uma Ferrari. Cada um encontra o seu objeto, portanto um objeto próprio, erotizado, que serve para o sujeito ter uma chave para a organização do discurso. Dizemos que este objeto está no lugar do Nome-do-Pai, no lugar da lei simbólica, propriamente porque o sujeito dá um significado a mais a este objeto. Não é a Ferrari que seria Ferrari para qualquer outro, é a ‘Sua’ Ferrari, é a ‘Sua’ echarpe, é uma coisa particular naquele sentido pessoal.

C - Encontrar uma Posição Sexual

Então o primeiro modo de tratar o Outro é introduzir uma falta, o segundo é introduzir um órgão fora do corpo, particular, pessoal; e o terceiro ponto da estabilização é como encontrar uma posição sexual.

Vimos que o psicótico não está dentro do Édipo, portanto não está dentro da normalidade da diferença sexual, mas, se o psicótico não encontra a posição sexual não pode estabilizar-se. Este é um tema do qual na psiquiatria fala-se muito pouco. Nós geralmente pensamos nos doentes como sem sexo, um pouco angelicais. Como fazer, portanto, um psicótico estabilizar-se no nível da posição sexual?

Um elemento, como já lhes disse, é a feminilização, mas, sobretudo o instrumento para encontrar uma posição sexual é a elaboração do saber, é uma invenção sua, tendencialmente o delírio. Através do delírio mais ou menos organizado, o psicótico encontra o seu lugar na sexualidade. Tendencialmente é um lugar de sublimação, de grande função social, de grande sacrifício para humanidade ou de grande importância política pelo qual cada gesto seu determina um pouco do equilíbrio da política mundial: ele deve pensar certas coisas para que os EUA estejam de acordo com a Rússia. Há também outras coisas, por exemplo, a escrita. Tem uma grande tendência do psicótico a escrever. Se ele pega um pedacinho de papel sai escrevendo, ou simplesmente faz desenhos sobre o muro, portanto é encontrar a criação de um sinal, um signo, que seja um sinal da sua posição sexual. Sexual não no sentido propriamente simbólico, da sua especificidade, digamos. Trata-se de um signo, um sinal que chamamos de significante mestre principal, que o faz sair do isolamento, daquele trabalho simbólico sem o Outro, daquele trabalho que não acaba mais.

Se o psicótico inventa uma cifra, um símbolo, um traço, então ele se encontrará inscrito no mundo do Outro, ele sai do isolamento, encontra sua especificidade simbólica, aquela que nós psicanalistas chamamos uma posição sexual. O delírio é uma forma mais folclórica. Uma produção artística, literária, é uma maneira menos bizarra. Mas todos são modos para encontrar uma inscrição no mundo do Outro.

Então recordo os aspectos tratados: primeiro os dois movimentos da psicose - autodefesa e autoconstrução; segundo, a estabilização que vem através da tentativa de curar o Outro por parte do psicótico, tratar o Outro introduzindo-lhe uma falta, depois curar o Outro através de um objeto particular que organiza o próprio corpo; terceiro ponto, curar o Outro inserindo um signo, um sinal da própria particularidade: a criação artística, o delírio, etc. Este último ponto, mais que uma cura do Outro, é um tratamento da própria posição. E o sucesso desta operação, a operação de encontrar o próprio lugar, depende de qual Outro o sujeito encontra. Portanto o sucesso desta tentativa dependente do Outro, portanto dependente do parceiro do psicótico.

 

O Parceiro do Psicótico

Então vamos aqui falar deste ponto: qual o parceiro?

A função do parceiro é aquela de assegurar ao sujeito, com uma presença regular, atenta ao mínimo detalhe e, sobretudo doce, sensível, o que diz respeito à sua invenção.

Devemos sempre recordar que deve ser uma presença que não o deixa sem uma mensagem. A mensagem do Outro é sempre perigosa para o psicótico. Deve-se estar atento à mensagem que o psicótico inventa, se o parceiro estiver atento fará uma grande descoberta.

Quem vive com o psicótico não é um fato tedioso. É mais entediante a nossa família que o psicótico. A cada dia se encontrará uma coisa nova. Portanto a presença do parceiro é que sustenta o psicótico na sua bricolagem com os objetos. A bricolagem serve ao psicótico para defender-se do Outro que goza dele, do sadismo do Outro.

Portanto o parceiro não é um interprete, não deve compreender. É obrigatório não interpretar, cada interpretação é persecutória. Isto é um erro que muitas vezes fazem as pessoas de formação psicanalítica, que pensam a psicanálise como a técnica da interpretação, de dar um sentido a tudo. Mas psicanálise não é isto, não é só interpretação.

Digamos que o parceiro do psicótico é um aluno, é alguém que deve aprender com o psicótico, e tem muito para aprender. Não só aprender que coisa é a psicose, mas aprender uma dimensão humana. Eu recordo um paciente que tinha compreendido bem isto, antes que eu compreendesse. Ele me disse: “eu sei porque o senhor conversa comigo, porque aprende tanta coisa que pode levar para um congresso”. E ele ficou muito contente por causa disto, porque ele tinha uma função social, colaborar para o progresso da ciência. É uma forma de entrar no discurso.

Portanto o parceiro é alguém que deve aprender a língua particular do sujeito psicótico. É alguém que paga com a própria pessoa para demonstrar que o Outro pode estar ali, pode obter se não um dialogo, ao menos uma forma de resposta. Isto de estar ali, de permanecer, se desenvolve em dois tempos:

 

Uma Parceria em Dois Tempos

Primeiramente o parceiro se propõe como um objeto bom, não persecutório e, portanto não se coloca à frente do paciente, não se faz espelho para ele, mas se coloca um pouco atravessado, evita tornar-se persecutório, tornar-se alguém que rouba qualquer coisa do doente.

Num segundo tempo muda de lugar, não é mais só um objeto bom, mas torna-se um ponto de vista, um ponto ideal no qual o paciente se vê visto.

De qualquer modo estes dois tempos, são os tempos da mãe com a criança, mas não a mãe dos cuidados, mas a mãe do desejo, a mãe que deseja que o filho torne-se um sujeito, que nasça no simbólico, que se torne um sujeito por sua vez.

Só assim um parceiro pode construir um saber não padronizado, standard, mas um saber que o paciente lhe ensina, um parceiro que pode acolhê-lo na sua particularidade, sem confrontá-lo com ninguém, sem confrontá-lo nem mesmo com o diagnóstico, com uma classificação, mas numa posição puramente sensível e tolerante. Assim o paciente poderá através dele, construir-se, construindo um Outro à sua medida e, portanto equipar-se de significantes tomados deste Outro.

Este é o saber-fazer da enfermeira, um saber pouco técnico no sentido que isto não se aprende nos livros, é um saber prático. É propriamente uma verdadeira anti-pedagogia. A enfermeira não tem nada para ensinar, a enfermeira deve aprender, é uma pedagogia ao avesso. Ou se quiser, é uma educação na qual a parceira-enfermeira não tem um saber a transmitir.

Naturalmente para que isto se realize é necessário que o Outro seja regulado, que seja tranqüilizador e é só por esta razão, só por isto, que devem existir regras de convivência. É necessário que nos grupos de pacientes se respeitem os horários, que as pessoas de manhã façam higiene, que façam turnos para lavar os pratos, tirar a mesa... As razões destas regras não são pedagógicas, não são para ensinar o paciente a se limpar, mas são para que o Outro seja regulado, para que aí tenha uma constância, para que o Outro não produza angústia. As regras têm um efeito de tranqüilizar, são uma segurança e, portanto, no fundo, este parceiro é alguém que faz desenvolver no paciente um trabalho que já fazia antes - autodefesa, autoconstrução - mas simplesmente que não o faça mais sozinho, no isolamento, mas que faça as mesmas coisas, porém com o Outro que o tome neste ato.

Deste modo, com o tempo, o paciente poderá fazer seu trabalho também na ausência do parceiro. Na essência, que o parceiro possa estar presente simbolicamente porque o paciente se construiu em seu Outro. Isto ocorre somente quando vem o momento no qual o paciente consegue fazer ao menos um parceiro e não o sabemos a priori.

Eu creio que ao menos simbolicamente, a relação do paciente com o parceiro é uma espécie de matrimônio indissolúvel. Poderá ser muitas vezes, diluído. Uma vez ao ano, o paciente pode vir cumprimentá-lo no Natal, mas deve saber que o Outro está ali, que isto está garantido, está garantido também na sua ausência.

 

O Lugar dos Dispositivos

A partir disto então podemos interrogar a instituição, os novos dispositivos da psiquiatria, na sua capacidade de ser instituição-parceira, parceira na invenção do sujeito, na sua elaboração, na sua bricolagem. É claro que a instituição para fazer isto, deve ser uma instituição animada. A instituição como ela é, não é uma parceira. A instituição é uma forma de autoconservação que, portanto, deve ser animada por uma equipe, por pessoas que coloquem aí algo de si mesmas.

Eu creio que o verdadeiro dever, o compromisso com a desinstitucionalização, deve cuidar do pessoal e do enfermeiro, em particular. Os enfermeiros são institucionalizados, são eles que devem ser desinstucionalizados.

 

A Rede Por Si Só Não Cura Ninguém

Portanto a passagem do manicômio à rede não é necessariamente um progresso. Pode ser alguma coisa pior que o manicômio. Uma rede puramente institucional trás danos definitivos para os psicóticos. Como dizia antes, o manicômio, enquanto um lugar simbólico produzia. A rede não produz nada. A rede é Internet. O modelo de toda rede é a Internet. A Internet nunca curou ninguém porque não tem um sujeito Internet. A rede é uma possibilidade de circulação.

O problema é como a equipe viaja na rede, como a equipe usa a rede, se a usa para criar o parceiro do paciente, ou se a usa simplesmente para fazer o próprio percurso.

Portanto direi que o trabalho em rede coloca novos problemas, precisamente o problema de criar a equipe, criar a equipe nesta atitude ética, de criar um lugar da pedagogia sem o saber. Portanto um lugar vazio para o saber do paciente, pronto a acolher o saber do paciente.

E isto é muito difícil porque a rede é cheia, cobre tudo e, portanto, habitar a rede a torna menos perfeita, quero dizer, humanizar a rede. É como o computador. Como se faz para humanizar o computador? É preciso quebrá-lo senão ele se quebra sozinho. Quando o computador não funciona, torna-se humano. Não é mais uma máquina e aí, se pergunta: o que fazer? O problema da rede é que ela tende a ser uma máquina, um automatismo. O nosso dever, ao contrário, é criar ocasiões de surpresa, de utilizar a rede como se utiliza uma rua - as ruas são úteis para se mover, mas somos nós que devemos nos mover nela. Devemos colocar aí, algo de nosso. Devemos utilizar a rede para criarmos pontos, que servem ao sujeito como um ponto de alavanca, um ponto sobre o qual o sujeito possa fazer uma alavanca pela sua própria criatividade, para suas invenções: as oficinas, os passeios, as refeições, as reuniões, os jogos, o jornal de bordo, grupos de palavras, grupos de psicodrama. São todos pontos de alavanca, para que o paciente possa ter ocasião de inventar qualquer coisa de novo. Portanto, em todas estas atividades, nós devemos estar prontos para recebermos qualquer coisa de novo. Devemos nos separar da mentalidade de escola. Não somos professores para estarmos ali para ensinar como cozinhar. Devemos criar ocasiões para que o paciente descubra como se faz para comer. Oh meu Deus! Pode até inventar uma receita nova. Se nos ocupamos da hora do banho de 2a a 6a, de todos os dias do paciente, nos turnos que são estabelecidos, não é para ensinar o paciente a tomar banho, é para que se estabeleça uma ordem mínima. Uma vez uma paciente, como eu compreendi, viu os objetos de maquiagem da enfermeira e pediu se podia experimentar. A enfermeira ensinou-lhe a se maquiar. Daquele dia em diante todas as mulheres quiseram se pintar, se arrumar. Olharam-se no espelho, descobriram que tinham um corpo e aconteceu uma mudança radical. Foi uma invenção mínima, um acaso. A enfermeira podia ter dito: “não, estas coisas são minhas, você deve arrumar-se com as coisas do hospital”. Poderia ter feito uma reunião e poderia ter pedido à administração que fornecesse esse tipo de material para os pacientes. Não teria tido sucesso nenhum. Ninguém estaria pintado e a administração teria dito: “nós gastamos dinheiro à toa”. Portanto esta é uma parceira da invenção do paciente.

E este é o critério que deve valorizar, fiscalizar a nova organização. Se todos os novos dispositivos oferecem múltiplas ocasiões para esta parceria, então, vão bem. São, de verdade, uma alternativa ao manicômio. Entretanto, repito se não são animados pelo nosso desejo, tornam-se uma máquina de segregação ainda piores que o manicômio. Porque pacientes serão confinados em seu buraco, sem a mínima possibilidade de relacionar-se com outros pacientes, ou com o muro do hospital.

 

Debate

Pergunta: Numa hora da fala o senhor disse o seguinte: que a enfermeira não tem um saber para transmitir. Eu queria saber qual sua colocação neste não-saber para transmitir, porque nós enfermeiros ensinamos todo dia, toda hora, eu não consegui entender.

Viganò: Ser enfermeira não é como ser um pequeno mestre de escola, se sente frustrado, ‘que estou fazendo aqui?’ A minha resposta é que não deve fazer nada, só deve estar ali. Ou então estar ali fazendo coisas, criando ocasiões para que o sujeito se expresse. Não é ficar ali parada, olhando a cara das pessoas. Aliás, deve ficar olhando o menos possível. Se ficar olhando muito para as caras, corre o risco de tomar um soco. Portanto é útil fazer qualquer coisa de prático, mas não para ensinar, e sim para aprender. Penso que isto é pouco tranquilizador, pode deixar a enfermeira um pouco inquieta porque é difícil não fazer nada. Na realidade é preciso uma grande vocação, uma grande formação para chegar a isto. Eu vejo que os enfermeiros com mais experiência chegam a uma posição deste tipo, sobretudo tornam-se muito capazes de colher novidades dos pacientes, de aprender sua língua privada. E de manhã diz: “porque hoje não me disse a coisa que todos os dias me diz? Toda manhã me diz: ‘quando bebemos o café?’ E eu respondo sempre: as dez, e hoje não me pediu”, e isto se torna uma novidade, uma surpresa. Então o problema torna-se este: quando a enfermeira percebe esta novidade, a quem fala disto? O que se faz com isto? Fala disto com médico e o médico diz: “bah! Não é importante”.O médico diz: “mas está tranqüilo ou está agitado?” Mas você diz: “está tranqüilo demais”, o médico diz: “melhor assim!” Então fala com os colegas. Isto se torna um problema: com quem falar? Existem certamente reuniões, deveriam existir, nas quais se fala destas observações. É necessário estar pronto, na equipe, para reconhecer a autoridade clínica de quem acolheu um elemento de novidade. Neste sentido a equipe não é hierárquica, pode-se acolher um elemento clínico importante mesmo o último da hierarquia. Não é necessário ser médico, enfermeiro, psicólogo. Por exemplo, na minha comunidade tem uma pessoa que é cozinheira, não é enfermeira, e como as pessoas vão muito à cozinha, muitas particularidades clínicas são colhidas pela cozinheira. A cozinheira participa da reunião e é muito mais importante que o psiquiatra. Sabe muitas coisas dos pacientes, por isso capta o que alguém que acompanha o paciente ao supermercado não compreende.

Porque as coisas mais importantes, os pacientes dizem no supermercado quando caminham no meio das pessoas? Provavelmente, como na nau dos loucos, no espaço anônimo é mais fácil falar, ou é menos persecutório. O paciente sentado na frente da psicóloga no consultório, não diz nada, não revela seu segredo. Mas na rua, fora dos espaços, onde está tudo misturado, vem a palavra. Muitas vezes é um estagiário que o acompanhou ao mercado, então a autoridade clínica naquele momento é o estagiário, num outro momento é o cozinheiro. E, portanto, no trabalho de parceria, é necessário que existam momentos sem hierarquia. As hierarquias são úteis, servem para organização. Não estou propondo um ideal anárquico. Existe a hierarquia para organizar o serviço, mas também tem os momentos fora da hierarquia. O que me ocorre é que se faça existir a possibilidade de emergir uma autoridade clínica, que pode ser qualquer um.

Míriam Abu-Id: Viganò é o seguinte: há mais ou menos vinte anos, nós aqui, começamos a questionar a existência do hospital psiquiátrico, com relativo atraso em relação a Itália, mas a tempo de tentar corrigir uma situação sustentada universalmente, podemos dizer assim, ou então pelo menos, pela cultura ocidental. Mas quando você fala de dois vieses que justificariam o fim do hospital, que tem justificando, um pelo viés humanitário, outro pelo viés não tão nobre, não tão humanitário, eu fiquei pensando que num primeiro momento a nossa discussão era humanitária. Posteriormente ela não deixa de ser humanitária, eu acho que é uma situação que nós vamos ter que segurar, mas ela possa também pelo viés, não vou chamar de clínico, mas ela passa por uma compreensão exata de que o hospital psiquiátrico não seria o locus do tratamento. Partiu do momento de que o espaço, que a sua existência, se caracteriza pela privação da liberdade, é impossível fazer advir qualquer sujeito num espaço que pressupõe a privação da liberdade. Eu queria que você comentasse alguma coisa neste sentido.

O outro ponto, quando você também coloca uma questão do discurso, que o hospital psiquiátrico sustentou, ele foi este discurso, ele foi o muro, não é um simples muro físico, ele de certa maneira, de certa maneira não, você afirma isto, que ele foi um espaço que proporcionou uma estabilização da psicose ou do paciente psicótico. Se nós então estamos nos contrapondo a este discurso, a estes locus hospital psiquiátrico, você coloca que outro discurso poderia advir também, que outro discurso, ou que outro instrumento, ou que outro saber, o quê que a gente poderia colocar para que o psicótico possa então entrar no discurso? E eu queria também saber de você, se a questão do campo da cidadania poderia ser este espaço.

Viganò: O campo da cidadania, o quê que vem a ser exatamente? Inserção na cidadania normal?

Miriam Abu-Id: Sim, enquanto cidadão, na cidade: o direito de ir e vir, o direito de escolher o tratamento, isto, de votar, ou seja, esta inserção que o hospital psiquiátrico e seus muros, apesar de estabilizar e eu também critico, eu queria entender um pouquinho esta questão, que estabilização é esta que o hospital psiquiátrico daria. Mas é isto, o campo da cidadania, este fora, este trânsito do paciente na cidade, com todas as possibilidades de direitos e deveres.

E o terceiro ponto, você deve conhecer claro, a parábola que Basaglia, a parábola da serpente, que o Basaglia coloca e que eu acho muito interessante com isto que você está trazendo na questão da composição das equipes, na questão da formação do profissional, esta posição crítica que nós temos o tempo todo que estar atentos em relação a esta formação formal, acadêmica.

Eu partilho realmente da posição do Viganò neste sentindo. E só para reafirmar isto, acho que esta parábola de Basaglia, quando ele fala que depois que a serpente abandona o corpo, muda de pele, que ela não dizia respeito apenas ao paciente psicótico e que também diria respeito ao próprio profissional, que depois que esta serpente abandona esta pessoa, esta pessoa precisa de um tempo, para se transformar, para saber, para voltar a aprender a viver sem esta serpente que estava dentro dele. É só estes pontos que eu queira que você...

Eu só estou reafirmando a importância, usando esta parábola de Basaglia que eu gosto muito, que esta serpente é toda esta mudança de pele necessária, ou então que ela acontece quando a serpente entra, ela é tudo isto, ela é instituição psiquiátrica, ela se compõe dos nossos saberes, nossas atitudes, que nós temos que transformar e aí sim, eu acho que nós poderemos ser, enfermeiros ou não, parceiros dessa invenção do paciente, que você colocou.

Viganò: Obrigado por esta pergunta apaixonada. A propósito da privação da liberdade não se pode, por exemplo, curar um sujeito se o priva da liberdade. Eu recordei no meu percurso uma passagem pela qual a psicose enquanto estrutura subjetiva é a falta de liberdade. Portanto o problema é não só não privar da liberdade, mas o problema ainda mais difícil, é como dar a liberdade ao sujeito, como dar uma liberdade vivível, não a liberdade que o sujeito se mata no dia seguinte.

Este é o dever da estrutura da enfermeira, dos parceiros, aquilo que eu descrevi um pouco hoje. Este modo um pouco paradoxal de educar a liberdade, paradoxal no sentido que a liberdade não se ensina, a liberdade se produz, se produzem condições para que o sujeito se autoliberte.

Eu introduzo a segunda pergunta, no que diz respeito à inserção na cidade. Disto eu não falei hoje, senão dizendo que o sujeito, a certo ponto, pode ter construído seu Outro, seu próprio Outro que possa viver também sem o Outro da enfermeira, da enfermagem. Eu penso que seja este o momento da inserção na cidade, para o sujeito, para o paciente. Se o paciente vai a cidade muito cedo, pode se sentir perseguido pela cidade e pode não querer voltar a andar, ter medo. Portanto não se pode levar o sujeito à cidade à força.

Mas tem um outro problema importante no que se refere à inserção na cidade, este é um problema da parte da cidade, e não devemos ver o problema só da parte do paciente. Este tema é que Basaglia se detinha muito sobre ele, que a cidade deve mudar até o ponto de não fazer medo ao paciente. É, portanto um tema político, de política geral, social, antes também de política cultural. Não existe uma cidade na qual não existam 10% de doentes mentais. Lacan chegou a dizer que a loucura é o limite da liberdade humana, no sentido que o homem é livre porque pode escolher a loucura.

A loucura não é um tolhimento da liberdade. A loucura é o risco que o homem corre por ser livre. O problema da cidade é que aceite isto, que aceite a presença da loucura como um dado positivo e não como um dado negativo, como a testemunha da liberdade humana, como a escolha extrema que o homem pode fazer. Antes ter a loucura como escolha, e isto na Antigüidade era muito presente. Na sociedade primitiva o louco era uma pessoa mais que os outros, não menos que os outros. O louco era alguém que estava em contato com a divindade, que fazia as profecias, várias pessoas iam até ele perguntar, pedir, consultar sobre o seu futuro. Os antropólogos dizem que os loucos dizem coisas sem sentido, então funcionam bem como profecia. A profecia melhor é aquela que não se compreende bem, aquela que sempre deixa dúvida, porque cada um entende da forma que está dentro dele, a boa profecia deve ser interpretada. Se a profecia diz que em 11 de setembro caem as torres gêmeas, isto se chama ciência e não profecia, é um saber científico.

O louco pela própria diversidade é um personagem importante na cidade, em certas civilizações. Na idade média ele tornou-se alguém que não estava em contato com a divindade, mas era alguém que estava em contato com o demônio, por isto foi necessário colocá-lo nos barcos, na nau. É, porém, entre Deus e o diabo, sempre uma pessoa excepcional. Como disse Foucault: só com a revolução francesa, com a industrialização, que não mais se encontrou uma dignidade para loucura.

Quando todos nós nos tornamos trabalhadores dentro do dito sistema capitalista, o doido tornou-se um ser inútil, alguém que não trabalha. Hoje que tem o capitalismo avançado, que de certo ponto de vista, certo percentual de desocupação é necessário, talvez encontraremos um lugar para o louco, serão desocupados voluntários. E os serviços de reabilitação se empenham para fazer os loucos trabalharem, para que trabalhem na fábrica, em qualquer lugar, mas este é um problema delicado, como eu dizia, desocupados voluntários, portanto deveria ser uma escolha. O louco pode escolher se quer trabalhar ou não. Portanto o problema da inserção no trabalho é sempre o problema da rede de ser animada, não é uma obrigação de trabalho, mas pode ser uma possibilidade.

Eu vejo mais como um problema cultural, política da cidade, que a cidade aceite a presença da loucura como uma presença positiva. Este é um problema dos profissionais, dos enfermeiros, das instituições. Para as enfermeiras, na realidade tem muita coisa para fazer. Devem fazer pouco com os pacientes, mas devem fazer muito na sociedade, devem criar as possibilidades para que o paciente possa entrar na cidade, organizar festas, concertos, teatros, passeios, mostras de arte, todas aquelas ocasiões nas quais os cidadãos possam se encontrar positivamente com a loucura, possam mudar o juízo sobre a loucura, passando do medo à surpresa. Porque a cidade tem medo da loucura, a cidade crê que o louco seja perigoso, toma-o por um delinqüente. Na realidade o psicótico é incapaz de ser mau, ele pode fazer mal só se sentir um perigo de morte, quando rompe tudo. Quando fere o pai ou a mãe, é preciso anos de preparação deste ato, e, portanto, se se muda a atitude, se não fossem estes anos que o pai e a mãe tiveram medo dele, o psicótico jamais lhes faria mal. É próprio de estrutura, é a pessoa menos agressiva que a gente possa pensar.

O problema de segunda demanda, sobre o entendimento da inserção na cidade, eu falei só sobre o ponto de vista do paciente, é necessário falar também sobre o ponto de vista da cidade.

Causa prazer que tenha encontrado na parábola de Basaglia semelhanças com o que eu disse.

Juliana Motta: Eu queria só fazer um comentário sobre esta proposta do trabalho do enfermeiro, fundamental na psicose, é uma proposta muito dolorosa porque, como operar abrindo mão desse lugar de saber, da educação continuada, da orientação, quer dizer, isto que sustenta o discurso da enfermagem basicamente. E como construir um limite, porque eu acho que aí que se coloca o osso, que é o limite desse trabalho que você propõe, dessa nova posição, que é trabalhar com regra e com regulação e com o paciente lado a lado. Estes três pontos, lado a lado, sem usar a regra e a regulação como um saber propriamente dito. Porque é assim que se inscreve o trabalho da enfermagem enquanto um saber sobre uma regra, uma regulação.

Viganò: Porque disse que é doloroso?

Juliana Motta: Porque eu penso que é o único saber que se representa enquanto um trabalho da enfermagem, enquanto estatuto de saber de como operar nos trabalhos, nas instituições, nos serviços como se o saber da enfermagem, eu particularmente não acredito nisto, não é isto que eu ensino para as minhas alunas, espero que elas aprendam isto bem, mas fica só na esperança, que aquilo que a gente escuta, eu tenho companheiros aqui, colegas, é que a inscrição desta prática da enfermagem é por este saber sobre a regulação e a regra na instituição. É um papel que eu acho doloroso porque desnuda alguma coisa, um vazio aparece e vamos construir em cima disto. Queria que você comentasse isto, ou as pessoas também pudessem falar alguma coisa.

Débora: Eu penso que esta questão que a Juliana coloca, acho que hoje é um dos temas que mais nos mobiliza, as enfermeiras mais próximas da psicanálise, pelo menos. Porque em geral a gente está nessa função de professora, a gente tem essa função transmissão de um saber da enfermagem, da psicanálise. E uma das dificuldades que a gente encontra nesta transmissão é justamente favorecer as condições para que o enfermeiro possa desocupar este lugar de tanto saber, para poder escutar o que os pacientes nos trazem. Mas eu queria saber, eu sei que você tem uma experiência com o trabalho com enfermeiras em Como, e eu queria que você contasse como é que você fez para trabalhar a resistência que as pessoas tinham para sair desta posição de saber.

Viganò: Muito simples, na comunidade que trabalhei não tinha nenhuma enfermeira, porque era gerenciado por uma cooperativa que não tinha dinheiro para pagar enfermeiras. A lei permite que pessoas menos qualificadas, que na Itália se chamam educadores, muitos que estão desocupados e, portanto aceitam trabalhar nesta cooperativa que paga pouco. E ainda, por isto, tem pessoas muito jovens trabalhando. A responsável era uma pedagoga que a Roseli conheceu. Trabalhar com uma equipe deste gênero é mais fácil porque ela se forma ali e são pessoas animadas por um forte desejo, porque poderiam ganhar mais fazendo outros trabalhos. No norte da Itália, por exemplo, ainda tem possibilidade de trabalho na indústria, no comércio e escolheram aquele trabalho por paixão. E por isto eu evitei o trabalho de reconverter as enfermeiras, que eu compreendo que seja muito difícil. Se é tão difícil entre os psiquiatras, entre os enfermeiros mais ainda, sobretudo quando têm certas atitudes, certas identificações, pode ser mais difícil. Pela minha experiência não é só um problema de idade. Eu encontrei muita disponibilidade em enfermeiras mais velhas na profissão, porque sozinhas chegaram a elaborar certas coisas, por isto creio que a resistência à mudança, a encontraremos sempre. Ocorre-me que exista que seja preciso um núcleo que trabalhe de certo modo, de modo que outros possam seguir, possam entusiasmar-se, tomar gosto por este jeito de trabalho.

 

 

Tradução simultânea: Roseli cordeiro
Transcrição: Márcia Quadros
Revisão: Cristiana Miranda Ramos Ferreira / Wellerson Durães de Alkmim
Estabelecimento: Wellerson Durães de alkmim

 

 

1 Discussão clínica com equipe do IRS – FHEMIG.
2 Reunião semanal, de âmbito institucional, dedicada à para construção dos casos clínicos.
* Conferência proferida por Carlo Viganò em 11/setembro/2002, no Conselho Regional de Enfermagem – COREN.
** Psiquiatra e psicanalista de Milão. Membro da Scuola Lacaniana de Psicoanalisis (SLP). AME da Ecole de la Cause Freudienne (ECF). Membro da Ecole freudienne de Paris. Docente do Istituto freudiano de Roma e do Centro Paul Lemoine de Palermo. Consultor de Pesquisa junto à Cátedra de Psicoterapia da Universidade de Milão. Supervisor clínico do Centro de Acolhimentoe tratamento de Dependência de Milão. End: 15 via C. da Sesto, 20123, Milano, Italia. Email: -carlo.vigano@fastwebnet.it

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