Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.2 no.2 Juiz de fora dez. 2009
ARTIGOS
A habilitação de um sujeito para as construções do caso clínico e do projeto terapêutico1
Enabling the subject to the building of clinical case and therapeutic project
Cláudia Maria Filgueiras Penido2
Prefeitura Municipal de Santa Luzia, Santa Luzia, Brasil. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. Universidade de Itaúna, Itaúna, Brasil. Universidade Vale do Rio Verde-UNINCOR/BH, Belo Horizonte, Brasil
RESUMO
Este relato de experiência aborda os esforços preliminares para se construir o caso clínico e o projeto terapêutico de um sujeito - empreitada que disparou a articulação de uma ampla rede de dispositivos e profissionais de um município mineiro de médio porte. São analisadas as dificuldades encontradas para o exercício do cuidado integral em saúde prestado ao portador de sofrimento mental e os meandros da tarefa de habilitar um sujeito para as construções do caso clínico e do projeto terapêutico. Esta experiência se tornou paradigmática por ter inaugurado a utilização de leitos psiquiátricos no hospital geral municipal e possibilitado uma nova configuração da rede substitutiva ao hospital psiquiátrico.
Palavras-chave: Saúde Pública, Saúde Mental, Reforma Psiquiátrica, Reabilitação Psicossocial, Psicanálise Aplicada
ABSTRACT
This paper describes a preliminary effort to construe a subject's clinical case and propose a pertinent therapeutic plan. The undertaking started the articulation of a wide net of devices and professionals at a small town in the State of Minas Gerais, Brazil. We analyze the obstacles for the exercise of integral health care towards people with mental disorders, as well as the task of making the subject able to contribute to the construction of the clinical case and therapeutic project. This experience has become paradigmatic for mental health care policy, for it has started the use of psychiatric beds at the local General Hospital, and had brought about a new configuration of health care substitute network to psychiatric hospitals.
Keywords: Public Health, Mental Health, Psychiatric Reform, Psychosocial Rehabilitation, Applied Psychoanalysis
O presente relato de experiência aborda um caso clínico acompanhado em um município mineiro de médio porte, o qual conta com uma rede substitutiva ao hospital psiquiátrico que inclui um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) II, um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSi), dois serviços residenciais terapêuticos e equipes matriciais que dão apoio a 29 das 41 equipes de saúde da família.
Os CAPS têm acolhimento e permanência-dia de segunda a sexta, das 8 às 18 horas e contam com equipe multiprofissional. O apoio matricial em saúde mental é ofertado por equipes compostas por psiquiatras e psicólogos, os quais vão quinzenalmente às unidades de saúde da família. Durante um período de duas horas, profissionais do apoio matricial e da equipe de saúde da família discutem casos e podem fazer atendimentos e visitas domiciliares conjuntos, de acordo com a necessidade. Encontra-se em fase de implantação uma retaguarda assistencial, prestada pelos psicólogos, para casos cuja prioridade é determinada coletivamente durante reunião matricial. Tais atendimentos são feitos em horários diferentes das reuniões, na Unidade Básica de Saúde ou na própria casa do usuário.
A equipe de trabalhadores de saúde mental do município conta, atualmente, com 17 psiquiatras, um clínico geral, um pediatra, 19 psicólogos, 4 terapeutas ocupacionais, 4 assistentes sociais, 4 enfermeiros e 28 técnicos de enfermagem, além de auxiliares administrativos, gerentes e coordenadores técnicos para cada um dos dispositivos da rede.
O caso, cuja construção iremos relatar, mobilizou a equipe do CAPS II e do apoio matricial, além de outros dispositivos e atores da comunidade. A escolha de escrever sobre ele se deveu a três motivos. Primeiramente, pelo fato de o identificarmos como um caso paradigmático para a saúde mental do município em questão, considerando que sua singularidade nos permitiu reflexões e intervenções fundamentais para a ampliação de nossas possibilidades de cuidado em saúde mental, prescindindo da histórica recorrência ao recurso manicomial. Em segundo lugar, pelos entraves encontrados para garantir ao cidadão psicótico o direito ao cuidado integral em saúde. E, finalmente, pela dificuldade colocada às construções do caso clínico e do projeto terapêutico, a qual demandou um trabalhoso processo de habilitação3 do sujeito em questão.
É importante mencionar ainda que a equipe de saúde mental do município só muito recentemente veio a se ampliar e a melhor articular suas estratégias de trabalho graças, em parte, a um inédito investimento político, iniciado a partir de uma bem sucedida mobilização de alguns trabalhadores que requisitaram uma coordenação técnica que pudesse negociar e implantar um projeto de saúde mental para o município. Assim, valorizamos cada passo dessa construção, os quais sabemos serem decisivos na consolidação de um trabalho que historicamente foi desqualificado por muitas gestões municipais. Apesar disso, temos clareza do quanto ainda precisamos avançar.
Nessa trajetória, tomamos esta oportunidade de escrever sobre a clínica, que nos indica qual rede tecer, como um exercício reflexivo que nos permite situar nossas dificuldades, progressos e desafios.
Dificuldades e desafios no cuidado integral ao portador de sofrimento mental
Lúcio (nome fictício) é um sujeito psicótico de quarenta anos, solteiro, filho caçula de uma família numerosa. Seu pai abandonou a família durante a gestação de Lúcio e, desde então, sua mãe passou a dar destinos diferentes aos filhos: os meninos foram para a FEBEM (Fundação Estadual do Bem-estar do Menor) e as meninas foram para a casa de parentes. Lúcio foi institucionalizado até os 18 anos e, posteriormente, teve várias internações em hospitais psiquiátricos.
Atualmente, ele mora com a mãe e outros irmãos também portadores de sofrimento mental. Há história de agressividade mútua entre irmãos, dos filhos em relação à mãe, e vice-versa. As agressões são mais freqüentes, entretanto, entre Lúcio e sua mãe. A situação da família foi discutida em uma das visitas da equipe de apoio matricial em saúde mental, em 2008. Uma agente comunitária nos destacou, na época, a dificuldade que a mãe de Lúcio, idosa, vivenciava para cuidar sozinha de filhos portadores de sofrimento mental. A agente entendia as agressões como um sinal da incapacidade da mãe em lidar com a situação, tentando colocar algum limite nos filhos.
Considerando que um dos objetivos da equipe matricial do município em questão é dar apoio às equipes de saúde da família para que tenham tanta autonomia quanto possível na abordagem de portadores de sofrimento mental, paralelamente ao aprimoramento de sua articulação com as equipes especializadas dos CAPS, a primeira providência foi investigar, junto ao CAPS, se já havia alguém que fosse técnico de referência de tal caso. Descobrimos que uma assistente social, a partir de denúncia feita pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), já havia tentado algumas visitas à família, mas sem muito sucesso. Na maioria das vezes, a mãe de Lúcio não deixava que ela entrasse na casa e conversasse com seus filhos. Na vez em que conseguiu entrar, percebeu, de imediato, uma situação que pedia uma intervenção inicial e urgente. Embora todos os filhos precisassem de cuidado, Lúcio era, de longe, o mais grave. Lúcio defecava e urinava na cama e, por este motivo, sua mãe quase não lhe dava comida e água. Encontrava-se desidratado e desnutrido, segundo avaliação do médico da equipe de Saúde da Família, e juntava lixo sobre os pedaços de colchão em que dormia. Na casa, em geral, as condições de higiene eram precárias. Lúcio tinha história de errância e não se dispunha muito a falar com as pessoas. A única demanda da mãe, a qual também havia sido formulada à equipe de saúde da família, era a internação dos filhos, especialmente de Lúcio. O pedido foi compreendido como uma tentativa de asilamento, como uma forma de obter descanso da tarefa de cuidar de seus filhos portadores de sofrimento mental, sem nenhuma preocupação relativa a um possível tratamento.
Profissionais do CRAS também já haviam feito algumas visitas e, assim como a assistente social, não haviam conseguido estabelecer um contato que permitisse uma seqüência terapêutica no caso de Lúcio. A falta de apoio da família e a desarticulação das ações eram tomadas como a razão do insucesso na abordagem até então. Como tentativa de sensibilizar a família para a necessidade de tratamento dos irmãos e a situação extrema em que se encontrava a mãe de Lúcio, já idosa, a assistente social fez uma denúncia da situação ao Ministério Público, o que por si só já possibilitou maior receptividade da família para a proposta de conversarmos sobre o caso, talvez por medo de alguma ação contra eles.
A articulação intersetorial de todos os esforços que vinham sendo feitos para a abordagem da família de Lúcio pareceu-nos imperativa, tarefa que foi assumida, inicialmente, pela equipe matricial. A intersetorialidade, segundo Alves (2001), é um dos componentes indissociáveis da integralidade: "Se nos propusemos a lidar com problemas complexos, há que se diversificar ofertas, de maneira integrada, e buscar em outros setores aquilo que a saúde não oferece, pois nem sempre lhe é inerente" (p. 171).
Nesse sentido, foi proposta uma reunião inicial entre a equipe de saúde da família, a equipe de saúde mental (representada pelos apoiadores matriciais), a mãe e uma irmã do paciente e profissionais do CRAS. Tratou-se de um primeiro passo para que pudéssemos assegurar o acesso ao sujeito em situação de risco.
Nesta ocasião, iniciamos conversa com a irmã, sondando a possibilidade de auxiliar a mãe no cuidado aos seus irmãos, além de discutirmos uma estratégia para cuidar da situação de desidratação e desnutrição de Lúcio. Após a reunião, a mãe concordou que Lúcio fosse levado ao Pronto-Atendimento (PA) da cidade, desde que fosse providenciado transporte para levá-lo, justificando não ter mais condições físicas para acompanhá-lo em transporte coletivo.
O transporte foi providenciado e Lúcio foi encaminhado ao PA, a fim de ter cuidados necessários ao seu estado clínico. Recomendamos que fosse encaminhado ao CAPS tão logo tivesse alta. Ao chegar ao PA, entretanto, o médico de plantão se recusou a prestar cuidados pertinentes à desidratação e desnutrição já previamente diagnosticadas pelo médico de saúde da família, dizendo se tratar de um caso social e fazendo um encaminhamento ao serviço de assistência social.
Quando tal notícia chegou ao conhecimento da equipe de saúde mental, optamos por discuti-la em reunião no mesmo dia. Questionamos a decisão do médico do PA e não concordamos que um caso de desnutrição e de desidratação fosse um caso social, mas uma situação de risco, a qual pedia uma intervenção urgente. Toda a equipe enfatizou a necessidade de imediata internação, mas a maioria dos profissionais apontou o hospital psiquiátrico como uma alternativa ao PA, apostando que lá não se recusaria o atendimento necessário ao paciente. Entretanto, alguns de nós apontamos o engodo no qual nos precipitávamos, optando por acionar o recurso mais fácil, ao invés do recurso mais adequado ao caso. Indagamo-nos sobre que paradigma ou modelo estaria orientando a decisão de propor a Lúcio e sua família que buscassem o hospital psiquiátrico, a fim de tratar um caso de desnutrição e desidratação. Entendemos tal saída como um retrocesso na luta pela cidadania e pelo direito de livre circulação do portador de sofrimento mental pela cidade. Além do mais, estaríamos desqualificando a perspectiva da integralidade no cuidado a um usuário como qualquer outro. Afinal, o dito louco também pode ter diabetes, hipertensão ou uma perna quebrada, além de desnutrição ou desidratação.
Segundo Cherchiglia, Acúrcio e Melo (2008), embora seja forçoso reconhecer os avanços significativos proporcionados pela implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e pela política de saúde mental, esta última ainda evolui de forma segregada das outras áreas de saúde, e não como membro indissociável do corpo setorial do SUS. Apesar de esforços tais como a integração das ações de saúde mental na atenção básica, situações como esta talvez sejam mais freqüentes do que se desejaria.
Na iminência de um retrocesso histórico, portanto, tentamos raciocinar sobre outras saídas. Como alternativa ao hospital psiquiátrico, planejamos acionar o hospital-geral da cidade, dando início à negociação de leitos psiquiátricos para pernoite, quando necessário. O hospital-geral da cidade em questão é filantrópico, dirigido por uma irmandade constituída desde o Segundo Império (1831-1889) e cujos integrantes só podem ser sucedidos por seus descendentes, os quais elegem um prior que, juntamente com representante da prefeitura municipal, dirige o hospital. Considerando-se a tradição e conservadorismo peculiares, a negociação da internação de Lúcio e dos leitos para pernoite, feita pela coordenadora de saúde mental, foi uma oportunidade de assegurar uma inédita possibilidade de circulação dos portadores de sofrimento mental por dispositivos que, dentro da sua própria cidade, poderiam compor a rede substitutiva ao hospital psiquiátrico.
Posteriormente, nos reunimos com os diretores clínicos do PA, o qual é porta de entrada para o hospital-geral da cidade, para discutirmos a recusa de atendimento a Lúcio. Preferimos adiar a conversa para o momento seguinte à negociação com o hospital-geral, de forma a facilitar uma pactuação dos fluxos e critérios de encaminhamento. Um importante ponto de pauta foi a discussão sobre a integralidade no cuidado ao portador de sofrimento mental, o qual pode ter outras necessidades que transcendam o aspecto mental.
O impedimento do acesso de Lúcio ao PA, para cuidar do seu quadro de desidratação e desnutrição e prevenir possíveis agravos, e a idéia inicial da equipe de saúde mental de interná-lo no hospital psiquiátrico -como maneira de garantir tal cuidado -nos possibilitou constatar, na prática, que a exclusão protagonizada em relação aos portadores de sofrimento mental não é parte do passado e não se manifesta apenas no espaço interno ao manicômio.
Tomando a integralidade como princípio integrador de práticas preventivas e assistenciais de diferentes níveis de complexidade e como necessidade de interação complexa entre os paradigmas de conhecimento que servem de base aos programas sociais universais, ou seja, como princípio que requer práticas interdisciplinares (Vasconcelos, 2009), pudemos perceber como a exclusão pode se manifestar de forma insidiosa e se colocar como um entrave ao cuidado integral em saúde para os portadores de sofrimento mental.
Alves (2001), refletindo sobre a integralidade nas políticas de saúde mental, pergunta-se sobre o modelo a adotar para atender à integralidade. O autor encontra um indicativo na formulação proposta por Benedetto Saraceno-o qual prefere trabalhar com premissas em substituição à idéia de modelo -que atribui destaque à premissa da acessibilidade, princípio negado ao sujeito em questão.
Neste cenário conflituoso, começamos a construir, com a família de Lúcio e com a cidade, uma possibilidade de inclusão do portador de sofrimento mental como cidadão com direito a cuidar integralmente de sua saúde.
Lúcio permaneceu internado no hospital-geral durante 21 dias. Ao longo desse período, um psiquiatra do CAPS fez visitas regulares de acompanhamento. Tão logo teve alta, foi buscado pela assistente social e por uma psicóloga da equipe matricial para ir pela primeira vez ao CAPS. Quando chegaram à sua casa, ele as interpelou de forma amistosa, parecendo expressar certa satisfação: 'Vocês vieram me buscar?' No CAPS, foi acolhido por profissional que se tornou sua técnica de referência e que, desde então, tem se disposto a acompanhá-lo.
O resgate do sujeito para a construção do casoclínico e do projeto terapêutico
Segundo Figueiredo (2004), a construção do caso clínico é o ponto central da contribuição da Psicanálise para a Saúde Mental, por meio de sua aplicação em seus diferentes dispositivos de atenção psicossocial e no trabalho em equipe interdisciplinar. Segundo a autora, a construção do caso clínico em Psicanálise é o "(re)arranjo dos elementos do discurso do sujeito que 'caem', se depositam com base em nossa inclinação para colhê-los, não ao pé do leito, mas ao pé da letra" (p. 79).
A colheita que sustenta a habilitação de um sujeito à construção do caso clínico, entretanto, pode-se fazer um processo lento e de muitos meandros. Para este relato, levamos em conta a noção de construção de caso clínico tal como Viganó (1999) propôs:
Construir o caso clínico é preliminar à demanda do paciente. Em outros termos, é colocar o paciente em trabalho, registrar os seus movimentos, recolher as passagens subjetivas que contam, para que o analista esteja pronto a escutar a sua palavra, quando esta vier. E isso pode levar muito tempo. Se houve um trabalho de construção, se foi possível notar, por exemplo, que ele fez o mesmo gesto por meses e meses; um dia ele dá um sorriso e não mais aquele gesto - é preciso notar que houve uma mudança. Aí então ele está dizendo que está construindo. (p.57)
Entendemos que o esforço empreendido até aqui se constituiu em uma etapa necessária para assegurar ao sujeito a possibilidade de se habilitar a falar de si, construindo seu caso clínico e criando a perspectiva de construção de um projeto terapêutico, entendido como dispositivo norteador do cuidado, de acordo com sua subjetividade.
O projeto terapêutico de Lúcio vem sendo construído pela técnica de referência, juntamente com ele e sua família. Estão incluídos o atendimento individual ao paciente, permanênciadia cinco vezes por semana no CAPS, a participação em oficinas, atendimento à mãe do paciente e seus irmãos portadores de sofrimento mental, negociação com a família para ajuda nos cuidados aos irmãos e à mãe e parceria com o CRAS para orientação da irmã sobre pedido de benefício através da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS).
Insistimos no atendimento individual, embora o paciente verbalize pouco, como tentativa de ajudar o paciente a recuperar a possibilidade de se pronunciar sobre si (Minas Gerais, 2006). Além da técnica de referência, há um psiquiatra que assumiu a avaliação clínica e medicamentosa de Lúcio.
A permanência-dia foi pensada com o objetivo de trabalhar uma possível autonomia do paciente. É interessante o que Lúcio expressou ao técnico de enfermagem que o busca de carro pela manhã: 'Você vai me levar para a saúde mental para eu me cuidar, não é?'
Outro ponto importante do projeto terapêutico de Lúcio é tentar mobilizar os irmãos que não moram com eles para ajudar sua mãe na administração da casa e nos cuidados aos filhos portadores de sofrimento mental. A irmã de Lúcio, a qual já nos referimos, passou a viver com a família, o que colaborou para alívio da insustentável situação doméstica vivenciada naquela casa, anteriormente. Os episódios de agressividade, por exemplo, diminuíram consideravelmente. Entretanto, como a irmã parou de trabalhar para cuidar da família, ela deixou claro que não sustentará a situação se não conseguir o benefício pretendido para Lúcio. Junto com a irmã, temos tentado fazer contato com outros membros da família, a fim de propor a divisão de responsabilidades.
Considerando o risco de vida em questão, avaliamos Lúcio como a pessoa da família que inspirava cuidados mais imediatos, o que não significava que os outros irmãos também não precisassem de cuidados, bem como sua mãe. É importante ressaltar que, após algumas semanas de tratamento de Lúcio, sua própria mãe formulou demanda de tratamento para um dos outros filhos portadores de sofrimento mental. Consideramos isso um avanço, visto que tudo o que a mãe demandava anteriormente era asilamento dos filhos. Tal irmão de Lúcio também tem apresentado progressos importantes, passando a interagir com as pessoas como há muito não fazia.
Nas oficinas, Lúcio tem dado outro destino ao jornal que juntava em casa. Tem enrolado pedaços de jornal para confecção de cestaria. Em casa, não junta mais tanto lixo.
Como direção do tratamento de Lúcio, apontamos a perspectiva de circulação pela cidade e sua possível autonomia. Ajudá-lo a habitar a cidade, como definido na Linha-Guia de Atenção em Saúde Mental: "envolvimento ativo do usuário com as múltiplas redes de negociação e de troca" (Minas Gerais, 2006). Para quem tem uma trajetória marcada pela institucionalização e se restringia a um quarto há bem pouco tempo, essa é uma tarefa árdua e desafiadora, a qual se cumpre por etapas. No CAPS, por exemplo, Lúcio está inserido na permanência-dia, o que nos oportuniza trabalhar com ele sua liberdade de expressar e negociar suas necessidades e desejos. Esse processo, embora iniciado recentemente, promoveu um deslocamento do hábito de urinar e defecar na roupa para o uso do banheiro, inclusive na sua própria casa. Registramos aqui um notório avanço quanto à sua posição de objeto em relação à mãe, a qual passou por um período de depressão, tendo sido acolhida no CAPS.
Tornou-se fundamental trabalhar com a mãe de Lúcio o direito de seu filho ir e vir, o que não tem sido fácil. Poderíamos ilustrar a questão com a seguinte passagem: um dos técnicos de enfermagem percebeu que Lúcio tinha um problema em um dos pés, o que lhe acarretava certa dificuldade de se locomover de chinelos, calçado que usa habitualmente. Foi oferecido a ele, então, um par de tênis (doação que havia sido feita ao CAPS). Lúcio passou a se locomover com muito mais facilidade, esboçando nítida satisfação. Entretanto, no dia seguinte, ele voltou ao serviço sem os tênis. Sua mãe justificou que sua unha estava muito grande para usá-los. Argumentamos que a unha poderia ser cortada, mas ao que tudo indica, o que se desejava cortar era a possibilidade de Lúcio circular livremente. Enquanto esta questão é mais bem trabalhada, mantemos o par de tênis no CAPS, para que ao menos por lá a circulação de Lúcio seja facilitada. Finalmente, na expectativa de habilitar Lúcio segundo a perspectiva de reconstruir suas possibilidades de troca (Minas Gerais, 2006), assinalamos uma passagem muito auspiciosa. O paciente fumava no serviço, quando um técnico de enfermagem o abordou para que não fumasse no local onde estava, porque era proibido. Ele se manifestou: 'Cortar meu cabelo e me dar banho sem eu querer pode, mas fumar não pode?' Lúcio parece ter apontado que não estaria mais tão disposto a permanecer num lugar de passividade diante dos desejos alheios. Seria necessário rever certos automatismos institucionais e incluir o sujeito na construção de seu projeto terapêutico. Isso foi, sem dúvida nenhuma, um balizador para a abordagem deste usuário, uma marca de subjetividade que deveria ser levada em consideração nas negociações que propúnhamos a ele, possibilitando outro manejo da transferência. Era preciso se dar conta de que se o sujeito não se autoriza a falar (ou, se o impedimos, de alguma forma, na sua manifestação), a dar um nome aos objetos, permanecerá ligado ao objeto que é a mãe de forma automática (Viganó, 1999). Seria imprescindível a busca do envolvimento do sujeito em relação ao seu tratamento, retomando-lhe uma voz e um poder de decisão sobre as questões que lhe concerniam. Ele nos lembrava daquilo que parecia entender como nossa tarefa: ajudá-lo a cuidar de si. Se antes ele se mostrava incapaz de se cuidar, neste momento, talvez, já pudesse se habilitar a muitos de seus aspectos, inclusive e principalmente à construção de seu próprio projeto terapêutico.
Com certa dificuldade, a equipe percebeu que devia ficar atenta para não reduzir o sujeito a um caso social, assim como o fez o médico que barrou o acesso de Lúcio ao P.A. Segundo Viganó (1999), o caso social é aquele que aciona instrumentos jurídicos e assistenciais e é conduzido pelos operadores. Para ele, a diferença existente entre o caso social e o caso clínico - o qual, por sua vez, não exclui o caso social - é a dimensão do sujeito: se o caso social é resolvido pelos operadores, o caso clínico é resolvido pelo sujeito, que é o verdadeiro operador, desde que o coloquemos em condições de sê-lo. Penso que operávamos, até então, na expectativa de colocarmos o sujeito em condições de operar o seu caso, mas agora já deveríamos redimensionar nossa abordagem. A perspectiva de construção do caso clínico tornouse, assim, evidente: "A construção do caso consiste, portanto, em um movimento dialético em que as partes se invertem: a rede social coloca-se em posição de discente e o paciente na posição de docente" (Viganó, 2010, p.2).
Comentários finais: Situando progressos em meio às dificuldades e desafios
Apontamos, neste relato de experiência, os entraves relativos ao cuidado integral em saúde prestado ao portador de sofrimento mental e os meandros do delicado processo de habilitar o sujeito e sua equipe às construções do caso clínico e do projeto terapêutico. Compartilhamos alguns avanços iniciais que percebemos terem resultado em efeitos importantes.
Observamos, da parte do sujeito, um importante deslocamento subjetivo em direção a uma posição com maior nível de autonomia. Da parte da equipe de saúde mental, o significado de construir um caso clínico foi redimensionado, assim como a posição da equipe no processo de construção de uma autonomia possível para este sujeito.
Finalmente, a singularidade que o caso impôs nos permitiu tecer uma rede substitutiva ao hospital psiquiátrico de forma coletiva e para benefício de muitos. Podemos dizer que, de alguma forma, a clínica também nos habilitou a negociar uma rede necessária à construção do nosso projeto de saúde mental para uma cidade.
Referências
Alves, D. S. (2001). Integralidade nas políticas de saúde mental. In R. Pinheiro & R. A. de Mattos (Orgs.), Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde (pp. 167-176). Rio de Janeiro: IMS/ABRASCO. [ Links ]
Cherchiglia, M. L., Acurcio, F. de A. & Melo, A. P. S. (2008). O desafio de construir a integralidade das ações de saúde mental e IST/AIDS no Sistema Único de Saúde. In Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância à Saúde. Programa Nacional de DST e Aids, Prevenção e atenção às IST/Aids na saúde mental no Brasil: Análises, desafios e perspectivas (pp.19-29). Projeto PESSOAS. Série pesquisas, Estudos e avaliação, 11. Brasília: ASCOM. [ Links ]
Figueiredo, A. (2004). A construção do caso clínico: Uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 7(1),75-86. [ Links ]
Minas Gerais. Secretaria de Estado de Saúde. (2006). Atenção em Saúde Mental. Belo Horizonte: Autor. [ Links ]
Vasconcelos, E. M. (2009). Epistemologia, diálogos e saberes: Estratégias para práticas interparadigmáticas em saúde mental [CD-ROM]. Cad. Bras. Saúde Mental, 1(1),1-10. [ Links ]
Viganó, C. (1999). A construção do caso clínico em saúde mental. Curinga: Psicanálise e Saúde Mental, 13,50-59. [ Links ]
Viganó, C. (2010). A construção do caso clínico. Opção lacaniana, 1, Retrieved April 19, 2010, from http://www.opcaolacaniana.com.br [ Links ]
Recebido em: 30/11/09
Aceito em: 22/12/09
1 Artigo baseado no trabalho vencedor do II Prêmio José Cézar de Moraes, da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais (SES-MG).
2 Agradecimentos: A. P. Costa, P. Calabria, C. Ramos, R. Franco, J. Lopes, M. C. Tófani, R. Ferreira e R. Carvalho. Contato: claudiapenido@uol.com.br
3 O termo habilitação foi tomado de empréstimo de Viganó (1999), o qual o utiliza em contraposição à idéia de reabilitação. Segundo ele, a reabilitação só pode ter sucesso na condição de seguir o estilo sugerido pela estrutura subjetiva do psicótico, por seus sintomas, e não como forma de resolver sintomas negativos, sem nada saber dos sintomas positivos, o que torna apropriada a palavra habilitação.