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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

 ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.6 no.1 Belo Horizonte jun. 2013

 

ARTIGOS

 

Devires e drivers da clínica: acontecimentos no acompanhamento terapêutico

 

Becomings and drivers of the clinic: events in therapeutic accompaniment

 

 

Dami Silva1; Ricardo Wagner Machado Silveira

Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Brasil

 

 


RESUMO

O acompanhamento terapêutico é uma clínica que acontece por meio de saídas e passeios pelas ruas, assim como na circulação pelos espaços afetivos, com o intuito de construir, com o acompanhado, lugares de existência no social. Além disso, pode ser considerado como uma clínica que utiliza as ruas e a circulação como espaço de intervenção, fazendo assim agenciamentos, em uma abertura às forças do Fora, de modo a possibilitar acontecimentos. Utilizando o método de pesquisa-intervenção ou cartográfico para acompanhar um caso de acompanhamento terapêutico, este artigo apresenta fragmentos dessa experiência em que alguns encontros entre acompanhante e acompanhado levaram à problematização da teoria e da prática do acompanhamento terapêutico e resultaram na ampliação da rede de contatos no social do acompanhado.

Palavras-Chave: Psicologia, Acompanhamento terapêutico, Clínica, Acontecimento.


ABSTRACT

Therapeutic Accompaniment is a clinic that comes into being through outings and strolls and circulation in affective spaces in order to build together with the accompanied, places for social existence. Moreover, a clinic can be considered as that which uses the streets and circulation as a space for intervention, making agendas, with an opening to outside forces to enable events. Using the research-intervention method and mapping to investigate a case of therapeutic accompaniment, this article presents fragments of experience that some meetings between accompanying person and accompanied by led to the problematization of the theory and practice of therapeutic accompaniment and resulted in expanding the social network of contacts of the accompanied.

Key-words: Psychology, Therapeutic accompaniment, Clinic, Events.


 

 

Historicamente, pode-se dizer que o acompanhamento terapêutico surgiu como um desdobramento dos movimentos antimanicomiais da década de 60. Esses movimentos tinham como pauta a reforma do modelo segregacional, hospitalocêntrico, manicomial, adotado no tratamento da loucura, já remetida à doença mental, assim como, questionamentos aos saberes constituídos e subjacentes a esse processo.

Além disso, o acompanhamento terapêutico pode ser visto como uma prática com a finalidade de articular o paciente com o social. Desse modo, existem algumas variações a respeito do que se diz das práticas e características do acompanhamento terapêutico, assim como das teorias e técnicas que podem subsidiar tais práticas (Carvalho, 2004). Mas, de um modo geral, pode-se dizer, entre outras coisas, que o acompanhamento terapêutico implica sair/estar na rua com o paciente, acompanhando/compartilhando experiências e vivências com a intenção de ampliar as possibilidades de ser e viver. Pode-se dizer que o acompanhado é aquele que, em algum momento, perdeu o contato com o social, ou que, por algum motivo, foi retirado dos espaços de circulação, tanto em relação aos espaços concretos (ruas, praças, cidade) quanto às relações afetivas. O setting clínico é por excelência a rua, mas não se limita a esse (Cassetari, 1997).

Para este trabalho, referenciamo-nos pelo pensamento de Deleuze e Guattari (2010), diretamente, ou indiretamente através de interlocutores que abordam o acompanhamento terapêutico utilizando conceitos daqueles autores, e que nos chamam a atenção por afirmarem que o acompanhamento terapêutico é feito justamente "entre lugares" e "entre coisas".

O método que utilizaremos é o cartográfico, em que pesquisar e intervir não se diferenciam e que se caracteriza por acompanhar um processo. Assim, a cartografia é um método que considera a direção clínica e política da pesquisa, e também que a prática clínica é intervenção geradora de conhecimento (Passos & Barros, 2009).

Dessa forma, o artigo trata da cartografia2 de um acompanhamento terapêutico que nos levou à produção de saberes a partir da problematização do tempo e do espaço no acompanhamento terapêutico e que resultou na ampliação da rede de contatos sociais para o acompanhado em questão, e na nossa motivação para realizar um trabalho de pesquisa.

Primeiramente, dialogamos com Rolnik (1997), que denomina de clínica nômade a prática do acompanhamento terapêutico, apresentando-nos essa ideia através do percurso de um acompanhamento terapêutico "virtual", que começa nos espaços concretos, mas não se reduz a eles, até chegar naquilo que está para além das "espacialidades". Mas antes introduziremos alguns conceitos fundamentais para melhor contextualização dessas ideias. Apontaremos, então, os conceitos de força, Fora e território.

Segundo Deleuze (1976), força é uma força se relacionando com outra força. Tal relação de forças constitui corpos, sejam biológicos, químicos, sociais, políticos, clínicos, ou seja, o que define um corpo é a relação entre forças. Com isso, temos que, um objeto, um fenômeno muda de sentido de acordo com a relação de forças que se apropria deles, sendo que uma força não age sobre músculos ou nervos, mas sobre outras forças.

As forças são exercidas, ou se exercem, num processo de afetação, já que são definidas por seu poder de afetar outras forças e de serem afetadas, constituindo ações sobre ações. Assim, incitar, induzir, ampliar, abrir, desviar, produzir, remete a forças ativas; enquanto que, incitado, produzido, limitado, são afetos passivos (Deleuze, 2010). Ainda podemos acrescentar que as forças ativas aumentam o desejo e a capacidade de criar, enquanto que as forças reativas diminuem o desejo e a capacidade de criar. Essa distinção e relação de forças se afirma ao acaso, não há equilíbrio possível, não há uma meta ou finalidade a ser alcançada (Deleuze, 1976).

Uma pluralidade de forças age e sofre ação a distância, em que a distância é o elemento diferencial compreendido em cada força e pelo qual cada uma se relaciona com as outras. Essa distância é o "entre-forças", é o Fora, uma diferença de intensidade pela qual as forças se qualificam e se afetam de forma intempestiva e imanente. O Fora, sofrendo uma dobra, pode passar a constituir um dentro, em que as forças estão "domesticadas" e perdem sua intensidade, seu caráter intempestivo e disruptivo, constituindo assim uma estratificação de forças. Aliás, a formação dessa dobra, desse dentro é considerado como um processo que faz parte do funcionamento do Fora (Rolnik, 1997).

Essa estratificação de forças dá origem aos territórios, que podem ser objetivos ou subjetivos, de outra forma, aquém e além de uma concepção restrita de espaço físico. Assim, podemos concluir que um território, aberto às forças intensivas e intempestivas do Fora, desterritorializa-se. Temos, assim, processos de territorialização e desterritorialização na produção de dobras do Fora.

Isso posto, retomamos a autora, para quem o acompanhamento terapêutico se "sustenta pelas características de um setting nômade, isto é, por circular nas adjacências dos vários territórios de saúde mental, ocupando os espaços vazios que existem entre eles" (Rolnik, 1997, p. 84). Aqui territórios são entendidos como campos de saberes e práticas produzidas e institucionalizados pelas várias abordagens da psicologia e psiquiatria com seus consultórios, ambulatórios, clínicas e settings.

O acompanhamento terapêutico utiliza então "elementos [destas] várias paisagens pelas quais circula" (Rolnik, 1997, p. 85), mas, no seu nomadismo, tais territórios não são suficientes, sendo necessário então criar outros para além e aquém daqueles, inclusive, além e aquém dos contornos exclusivamente espaciais: o acompanhante então se desloca.

... de modo a explorar o interno e o externo para além de uma perspectiva meramente espacial. Para não se confundir, usará os termos dentro e fora [sendo que] o Fora de que está tentando se aproximar é um aquém e além dos contornos visíveis e invisíveis do mundo objetivo e subjetivo, mas também não está fora do mundo, fazendo parte do mesmo. (p. 85)

Nesse contexto, percebe-se que:

... a estabilidade dos espaços é ilusória, [assim] agitam-se forças de toda espécie que compõem os ambientes de que é feita cada paisagem, inclusive subjetiva - forças do ambiente econômico, político, artístico, sexual, social, informático, etc..... Assim, com seu deslocamento para a fronteira, entram em jogo [na prática do acompanhamento], inclusive.... ambientes que não costumavam integrar o território clínico [trazendo assim] forças inéditas, formando uma série de relações desconhecidas. (Rolnik, 1997, pp. 85-86)

Nesse sentido, dizemos que as forças do Fora afetam os territórios instituídos produzindo instabilidades que, até então, definiam as paisagens e a circulação por elas.

Outro interlocutor que temos é Araújo (2006), para quem o acompanhamento terapêutico é composto de duas partes. Uma é a parte técnica, correspondendo aos agenciamentos. Agenciamento é uma montagem de um conjunto de elementos heterogêneos, tanto da ordem biológica quanto social, gnosiológica, imaginária, levando em conta uma noção mais ampla que a de estrutura, sistema ou forma. O agenciamento é que vai dar função, o uso ou a compreensão ao elemento. Em função dos agenciamentos, podem haver formações com códigos específicos, ou seja, territórios com certa estabilidade, ou formações descodificadas, metaestáveis e desterritorializadas (Deleuze, 2006).

Segundo Araújo (2006), "O acompanhamento é uma prática que se dá em agenciamentos que vão da subjetividade humana aos espaços sociais, dos espaços sociais ao meio ambiente, do meio ambiente à subjetividade..." (p. 31). Uma prática de agenciamentos se caracteriza por uma "abertura às forças do Fora, para o que é incalculável, para o que é irremediavelmente novo." (p. 25). Segundo o autor, essa abertura pode ser entendida como uma desestabilização da técnica como saber constituído, regulador, "objetificador", que dá lugar ao que é singular ao acompanhado, ao acompanhante, ao encontro que se dá entre eles.

O autor também traz a ideia de "circulação como uma experiência de desvio, de produção e de criação.... em um circuito aberto e na criação dessa própria abertura como experiência de deriva" (Araújo, 2006, p. 46), o que seria a própria noção de circulação que então é capaz de criar espaço para o novo, para a inventividade, uma abertura para o devir, isso é o que se designa como clínica como acontecimento, a outra parte do acompanhamento terapêutico.

Como clínica acontecimento, Araújo (2006) considera que essa clínica propicia, incita, produz uma abertura intensiva, no sentido de uma desestabilização do espaço-tempo e criação de novos espaços-tempos, que possibilitam que algo inusitado se atualize. Acontecimento como efeito do encontro entre corpos, uma passagem por entre, mas que não se reduz a um ou outro termo que compõe o encontro, mas arrasta ambos num devir. Sendo que "devir" não é passar de um termo a outro ou se transformar em algo, mas se conectar a intensidades do que está entre o deixar de ser e o vir-a-ser, entre o ainda por vir e o já sucedido, assim, devir é propriamente a produção de diferenças, de singularidades, sempre se dando por desvios, rupturas, acontecimentos (Zourabichvili, 2004).

Assim, a clínica, pelas ideias aqui apresentadas, tomaria então o significado de "clinamen", que quer dizer ruptura ou desvio. Seria a clínica dos encontros, cujo conceito é uma ideia trabalhada por Deleuze a partir de Spinoza (Saidon, 2008). Esses encontros não são entre um indivíduo e outro, mas são encontros de partes expressivas nos planos de corpos, das palavras, gestos, sons. Nesses encontros, nesses passeios, passagens, entre lugares, ruas, coisas e estados de coisas, o acompanhamento terapêutico, vai "... colocando lado a lado fragmentos que ora se conectam produzindo uma figura, ora se desconectam desestabilizando figuras constituídas" (Araújo, 2006, p. 21), o que pode levar à formação de novas paisagens, novos sentidos, rupturas, acontecimentos, caracterizando a clínica por essa e nessa bricolagem.

Com isso, queremos dizer que o acompanhamento terapêutico se constitui na circulação ou trânsito por vários territórios, agenciado e agenciando elementos, com o objetivo de criar com o acompanhado, territórios de existência singulares por uma ação de forças do Fora. Além disso, entendemos o acompanhamento terapêutico como um modo de fazer a clínica com um estatuto de política, que incita a composição de uma rede de conexões, de agenciamentos coletivos que permitam a articulação entre personagens "antagônicos": os insanos e anormais se encontram com os lúcidos e normais; uma espécie de mistura intempestiva entre saberes da psicologia e saberes populares; entre instituições de tratamento com sua disciplina temporal e espacial e as ruas, com seus tempos, ritmos e espaços urbanos a céu aberto.

Na experiência que trazemos, privilegiaremos os encontros que foram pontuados por mudanças fomentadas pelo modo inusitado e singular através do qual o acompanhado utilizava o computador e pelos caminhos que ele fazia para dar conta desse seu jeito, desde a utilização "compulsiva" e caótica da máquina, "enclausurado" dentro de um quarto, passando por saídas e contatos em lojas comerciais, de manutenção de computadores, para compra ou venda do computador, para compra de serviço de internet ou para reclamações, além de contatos também por telefone ou com a vizinhança. Entendemos que nessas experimentações, enredados por esses encontros entre acompanhado, acompanhante, teorias, referências, ruas, movimentos, velocidades, delírios, espaços e silêncios, amplia-se a compreensão da clínica, o que acreditamos poder contribuir para a composição de fazeres e saberes em relação ao acompanhamento terapêutico.

Apresentaremos alguns fragmentos de relatos que servem de intercessores para falar de acontecimentos que marcaram esse acompanhamento terapêutico. Para Deleuze (2010), os intercessores são importantes para a criação e podem ser pessoas, coisas, plantas, até animais, também podem ser fictícios, reais, animados ou inanimados. Os intercessores servem para pensar o processo, o movimento, as transformações ou mesmo para mover o próprio pensamento para criação ou transformação. Os intercessores funcionam por ressonância e relações de troca entre os termos da relação. "Eu preciso de meus intercessores para me exprimir e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê... Sem os intercessores não há obra" (p. 160).

Devires e drivers da clínica

O acompanhamento terapêutico foi indicado diante das demandas do Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPS-ad), onde o paciente era atendido, mas ao qual ele não fazia adesão ao tratamento. A equipe daquele serviço tinha a convicção de que ele não mais apresentava sintomas de abuso/dependência química e, portanto, deveria ser atendido pelo CAPS mais próximo de sua casa, serviço ao qual o paciente resistia ainda mais em aderir.

O paciente em questão é Pedro (nome fictício), sexo masculino, solteiro, com hipótese diagnóstica de esquizofrenia associado ao uso de múltiplas drogas. No início do acompanhamento terapêutico, relatou que estava há um ano e sete meses sem usar drogas e por isso não precisava mais do serviço de saúde mental. Familiares também relataram que o acompanhado não queria sair de casa e que se restringia a ficar no quarto. Um dado interessante é que a mãe reclamava que o filho se restringia a ficar no quarto fumando, mas, ao mesmo tempo, ela agradecia a Deus por ele não sair de casa, pois assim não corria o risco de entrar em contato com as drogas.

Assim, o acompanhamento terapêutico começa com uma surpresa frente a tudo o que havia sido dito a respeito do acompanhado: já no primeiro dia, ele se dispõe a sair. Diante dessa surpresa, mas orientados pela perspectiva de que as saídas são o mote da clínica, fomos para uma caminhada, em que ele sai caminhando rapidamente, enquanto tentamos acompanhar. Ele não diz nada, então, perguntamos sobre a vizinhança e ele fala dos bairros adjacentes e de alguns conhecidos, num diálogo breve. Tentamos diminuir o passo para facilitar a conversa, pois não estamos acostumados a caminhadas e Pedro está respirando como se estivesse cansado. Perguntamos se ele está cansado e ele respondeu que a caminhada "puxava um fôlego". Então, tentamos diminuir o passo de novo e dessa vez ele diminui também. Assim, podemos conversar mais a respeito dele próprio na passagem pelo CAPS e também do acompanhamento terapêutico.

Pedro, enquanto anda, vai apontando locais do bairro e fazendo pequenos comentários e percebíamos que ele não se restringia apenas ao quarto como fora dito. Com isso, queremos dizer que cartografar é acompanhar, descrevendo e intervindo nessas linhas que dão consistência ao seu território de vida e que ele vai apresentando nesse começo e no decorrer do acompanhamento, e que podem levar a composições de outros territórios singulares a partir da ampliação das possibilidades de circulação e de encontros com o outro e com o mundo. Nessas circulações, se um território parece estagnado ou circunscrito (quarto-quarteirão-CAPS-esquizofrenia), um encontro pode propiciar algo novo, que escapa ao instituído, aos objetivos instituídos.

Nesse primeiro dia, embora as surpresas, a impressão que tivemos naquele momento era de que Pedro queria só cumprir um combinado, uma tarefa, e que isso bastava para ele. Mas, ao final da caminhada, ele faz menção em abrir o portão de casa, mas não o faz imediatamente. Então, perguntamos como ele veio para esta cidade e ele começa a dizer e, enquanto fala, acende um cigarro e se agacha. Agachamo-nos também e permanecemos como dois caipiras conversando de cócoras na calçada em frente a sua casa durante um bom tempo, agora tranquilamente, enquanto os ônibus passavam na pressa da cidade. Dali podia se ver as pessoas saindo das suas casas para o ponto de ônibus logo acima, numa manhã de plena quarta-feira; e Pedro, calmamente, contava algo da sua infância e da cidade na qual nasceu, a qual chamou de "cidade pequena", e assim ele vai trazendo o passado para o presente. Falava de cerâmicas em que trabalhou, coisas da roça e café. Trazia isso entre a fumaça do cigarro e uma narrativa rica em detalhes, contrastando com o seu ritmo frenético e automático do início da caminhada e com o fluxo dos automóveis que passavam nas ruas.

Dessa velocidade seguida de uma parada, dessa aparente urgência do tempo para a sua suspensão logo em seguida, é nesse tipo de intervalo, de hiato, de passagem de um estado a outro que se abre pela primeira vez uma viagem, um devir que acreditamos nos levar do frenesi dos espaços urbanos para a calmaria da roça, da prosa entre dois roceiros, mergulhados em suas reminiscências, compartilhando-as livremente. A partir desse bloco de espaço-tempo, desse devir-infância é que, acreditamos que tenha se inaugurado o primeiro laço de cumplicidade do acompanhante com o acompanhado, o que nos parece também ter ocorrido com Pedro. Essas suspensões, esses trânsitos entre lugares, entre corpos, têm grande importância nas andanças feitas nesse acompanhamento terapêutico, nessa processualidade em ato.

Segundo Araújo (2006), o que faz desviar, o que cria um desvio, uma mudança "é sempre um encontro: um esbarrão, um tropeço, o surgimento de uma nova paisagem, de um novo horizonte são sempre encontros, isto é, são acontecimentos" (p. 46). É por essa defasagem do tempo, por uma "abertura intensiva do tempo e do espaço que vemos a clínica se dar como um acontecimento" (p. 56).

E ainda na sequência desse primeiro encontro narrado acima, Pedro fala que queria sair para comprar uma mesa para um computador que tinha ganhado. Por um instante de hesitação, pensamos no risco de uma saída para mais longe, se deveríamos ir de carro ou não, e ainda andar para procurar uma loja de móveis usados sem sabermos qual e onde exatamente e, além disso, outra vez, a surpresa de tanta disponibilidade por parte dele. Mas, mesmo assim, saímos à procura de uma loja que, na verdade não apareceu. Andamos por várias ruas à procura e de uma esquina à outra, Pedro dizia que achava que a loja estaria na próxima rua e assim sucessivamente ele dirigia o percurso, até desistirmos e deixarmos a procura para outra oportunidade.

No encontro seguinte, sugerimos fazer alguma coisa e ele responde que poderia ser o que nós quiséssemos, mas logo completa chamando para darmos uma volta. Primeiro, seguimos sugerindo que fizéssemos um caminho diferente. Então, descemos a rua e depois subimos outra como contornando o quarteirão. Quando ele virou à esquerda no quarteirão para pegar o caminho de volta para casa, o chamamos para seguirmos em frente e conhecermos outra parte do bairro. Após dois quarteirões acima, ele tomou a frente da caminhada e começou a procurar por algo que não estava bem explícito, de início. Em cada esquina, ele fazia uma parada, olhava a fachada e o interior das lojas, procurava um pouco mais à frente. Não perguntamos de imediato o que ele estava procurando, mas, na sequência, ele revela que estava tentando encontrar um lugar para comprar material elétrico para instalar uma tomada para ligar o computador.

Após alguns quarteirões de procura, fizemos menção de voltarmos, mas ele pede que sigamos até a uma loja há uns dois quarteirões à frente. Assim, encontramos nessa loja o material que ele queria e do qual tinha a lista escrita no bolso. Na entrada da loja, ele nos passa a lista para pedir para a vendedora, depois ele confere com a vendedora as coisas que está comprando e faz o pagamento no caixa.

A tarefa de acompanhar na rua, de intermediar com ele uma compra, decidir junto o que comprar, às vezes, guiar, às vezes, ser guiado por ele, nessas mudanças de velocidade e ritmo, nessas alternâncias de papéis e trajetos, de contornos que se esboçam e se desfazem, constituem os espaços-tempos criados no acompanhamento terapêutico e que desviam, escapam, fogem por todos os lados, para fora dos espaços-tempos institucionalizados da clínica e da família.

Se algo nos guiava era a importância de propiciar, deixar que Pedro, de algum modo, pudesse decidir sobre a caminhada, saísse andando pelas ruas, às vezes, numa espécie de deriva, em busca de algo que ainda não se sabia o que era, ou mesmo se seria encontrado. Tendo isso em mente, nossa postura era de apostar no devir da/na saída, abrir-se para a deriva colocando de lado as certezas, incertezas e questionamentos. Trata-se da imprevisibilidade e da indiscernibilidade que habitam essa clínica, mais além dos espaços e tempo urbanos. Consideramos esse início justamente um processo de afecção com a força de um encontro em que algo acontece e produz diferenças irremediavelmente. Um encontro físico, esse que se dá com as ruas e os espaços da cidade, lojas, carros, entre acompanhado e acompanhante, entre um lugar e outro, entre coisas e estados de coisas, mas que não se reduz a isso. Encontro que se dá num espaço não localizável, afetivo, de circulação e encontro, do se deixar afetar e ser afetado pelas intensidades dos encontros. Encontro temporal pela aposta em um devir, isto é, não um tempo cronológico, mas um processo intempestivo, em um mesmo instante, para aquém ou além, arrastando passado e futuro (Araújo, 2006).

Esses encontros foram cartografados por considerarmos que este método, o cartográfico, é capaz de realizar as aproximações entre alguns conceitos esquizoanalíticos e a prática clínica do acompanhamento terapêutico, em que acompanhar processos de produção de subjetividade e intervir nesses processos faz parte da análise. Palombini (2006) dirá que esses encontros remetem a uma disponibilidade por parte dos dois envolvidos no acompanhamento e, a partir daí, correr risco, que pode ser o risco de aparentemente não dar certo, de não dar em nada, ou mesmo o contrário disso. "Uma aposta que é sempre uma única e mesma aposta.... que realmente algo novo aconteça, seja um lugar, um sentimento, uma produção" (Araújo, 2006, p. 75). Tal disponibilidade é abertura para o inesperado e é de onde pode surgir uma invenção.

Em um encontro seguinte, Pedro, pela primeira vez, nos chama para o quarto dele e diz: "este é o computador, mas eu não sei mexer direito. Se souber mexer, pode mexer". Então, procuramos mostrar para ele algumas coisas do funcionamento do computador e depois ele começa a interagir com a máquina de um modo meio confuso em que clicava aleatoriamente, colocava inúmeros ícones na tela, abria várias janelas de programas ao mesmo tempo, fazia tudo aparentemente sem objetivo, como se estivesse tentando encontrar algo que fizesse algum efeito ali na tela. Pedro parece estar à deriva, inaugura-se outro território, agora nesse espaço-tempo informático. A partir desse dia, o computador fica cada vez mais presente e as saídas ficam raras.

Na sequência dos próximos encontros, Pedro pede que o ajudemos a configurar o computador, pois ele havia feito alterações que dificultavam o uso. Enquanto fazemos isso, tentamos dar algumas dicas para ele. Propomos, então, que ele faça aulas de informática, que também seriam um recurso para ampliar seus contatos, mas ele se recusa e diz que aprende sozinho mesmo, como ele diz que já vinha fazendo. Num primeiro momento, a proposta das aulas de informática nos parecia ser uma boa atividade e estratégia terapêutica. Para nós, o aprendizado formal da informática seria uma forma de Pedro entrar em contato com as pessoas. Entretanto, Pedro preferia não fazer isso, ao menos não da forma como supúnhamos. Com isso, mais uma vez, ele toma a frente do processo, como fizera nas saídas, e então o que nos cabe fazer, mais uma vez, é nos colocar entre, nos abrir à deriva e ver no que vai dar e cartografar mais esse processo.

Assim, Pedro continuava usando o computador ao seu modo e alguns problemas começaram a surgir, como problemas no som, mau funcionamento de aplicativos e até do próprio computador, no geral. A cena em que nós nos revezamos no computador tentando arrumar ou configurar a máquina se repetiu por várias vezes. Em algumas vezes, ele pedia que arrumássemos o computador, ou que configurássemos para ele, outras vezes, ele mesmo dizia que estava arrumando, então ficávamos olhando e tentando ajudar enquanto ele ia fazendo algumas coisas, teclando aleatoriamente. Essa mistura, essa composição singular que se anuncia, cujo efeito desestabiliza os contornos do que nos era familiar até então, exige que se encontre um novo modo de funcionamento. Esse modo de funcionamento diz respeito às vozes dos híbridos que chegam por meio de sensações, que passarão então a constituir a bússola nesse processo (Rolnik, 1997).

Vale ressaltar a nossa formação em ciências da computação. Isso porque entendemos que esse encontro inusitado entre um estagiário de psicologia, graduado em ciência da computação, com um acompanhado com gosto pela informática foi um dos intercessores mais potentes nesse acompanhamento terapêutico. Com isso, também colocamos que, a partir do uso do computador, abre-se uma série de possibilidades de agenciamentos, à revelia do que se poderia haver de finalidade no uso da máquina. Seja a nossa suposta finalidade de um uso adequado, seja uma suposta finalidade que Pedro pudesse ter ou ver. Afinal, o computador veio a funcionar pelas avarias e interrupções.

Queremos dizer com isso que a informática funcionou como uma abertura a algo novo, proporcionando uma criação em função das (des)conexões que o acompanhado fez com a informática, que reverberou para o acompanhante e o seu modo de entender a clínica e vice-versa. Esses agenciamentos, conectando informática e o acompanhamento terapêutico, produziram consistência para a função clínica de engendrar acontecimentos, foi um intercessor de encontros e modos inusitados e singulares de acompanhar e ser acompanhado, além de um meio de expressar essa experiência. Isto é, quando Pedro decide colocar o computador para funcionar e usá-lo sem ter nenhum conhecimento e sem fazer nenhum curso, os problemas que apareciam para o uso da máquina demandavam algum conhecimento de informática para que pudessem ser sanados. Então, acompanhando-o nessa deriva, mesmo às vezes sem dizer nada, ou quando alertávamos que certos tipos de arquivos ou certas operações não podiam ser executados ou quando explicávamos para ele como funcionava certo tipo de aplicativo ou os modos de segurança ou a internet, ele ia agregando isso ao seu modo singular e processual de fazer a máquina funcionar.

Desse modo, para nós e para nossa função de acompanhante terapêutico, o fato de ter certo conhecimento e gostar da informática teve sua importância. De outra forma, o computador poderia ter se tornado outras coisas, como, por exemplo, um ponto de separação e não de conexão entre o acompanhado e acompanhante. Nessa bricolagem, a informática fez parte de uma composição maquínica e teve utilidade técnica como elemento constituinte do dispositivo, de modo que foi possível o exercício da função clínica como lugar de passagem entre acompanhado, acompanhante e processos maquínicos.

O termo maquínico é usado por Deleuze e Guattari (2010) para deslocar o pensamento dos modelos mecanicistas - conexões progressivas entre termos dependentes - ou orgânicos - cada parte tem função específica a ser desempenhada. Assim, maquínico toma o sentido de um processo de produção feito a partir de partes heterogêneas, sem função específica ou predeterminada, constituindo uma polivocidade das partes envolvidas, sendo que cada elemento se liga a qualquer outro assumindo funções diferentes tomadas na singularidade da produção. Os arranjos maquínicos funcionam por si próprios, dispensando a ação de qualquer elemento transcendente, qualquer tipo de princípio ou finalidade, de modo que a máquina jamais é uma metáfora da realidade, mas é a própria realidade em sua produção e processualidade (Deleuze & Guattari, 2010).

Nesse sentido, o computador e a computação foram agenciados de tal modo que houvesse uma relação diferente entre Pedro e a máquina, Pedro e acompanhante, acompanhante e a informática numa série de composições intensivas, numa produção maquínica singular desse acompanhamento terapêutico que tentamos cartografar na escrita deste artigo.

Algumas semanas depois, Pedro fala dos seus delírios, diz que juízes e promotores usavam o computador e a internet para falar dentro de sua cabeça, e conta que havia apenas um mês que ele voltara para o próprio corpo. Parecia que fazia uma relação com a data que o computador chegou em sua casa. Relata que através do computador entrou em vários sistemas do mundo todo e aprendeu vários tipos de artes marciais para poder voltar e resgatar seu próprio corpo, que havia sido anteriormente tomado por outra pessoa. Nesse mesmo dia, diz que quer comprar um pacote de conexão à internet.

No entanto, essa empreitada pela informática começa a se enrijecer. O computador começa a apresentar problemas mais complexos, mais constantemente e mais difíceis de resolver, pois Pedro continua clicando de forma aleatória, por vezes apagando alguns arquivos de funcionamento do sistema ou mudando de lugar pastas do sistema. O acompanhado começa a usar o computador de forma compulsiva, passando boa parte da madrugada acordado e dormindo durante o dia, trocando a noite pelo dia e se enfurnando no quarto a fumar e a teclar.

O acompanhamento terapêutico começa a não acontecer por ele dormir de dia e não atender à campainha quando chegamos, e, nas vezes que nos encontramos, quando ele pede que eu o ajude, mal consegue se manter acordado e prestar atenção. Às vezes, ele se deita na cama e só responde por monossílabos sonolentos. Mesmo assim, continuo tentando arrumar, explicando para ele o que eu estava fazendo. A irmã, que é cuidadora direta, reclama que Pedro diz que está na internet, mas que ela sabe que não tem internet nenhuma e que ele não dorme direito por causa do computador. Aponta que isso tem trazido problemas e preocupações. Fala do comportamento compulsivo, estranho e mostra preocupação com os delírios.

Diante dessa ansiedade da irmã, procuramos argumentar com ela que, embora estivesse acontecendo isso, ele estava aprendendo algumas coisas e sabia usar a máquina de uma forma diferente, que era própria dele e que ele poderia aprender muito mais, mas no tempo dele, e que seria preciso um pouco de paciência, mesmo que fosse necessário levar o computador na manutenção toda semana. Relatamos para ela coisas que ele já conseguira fazer até então. Ela parece ficar menos ansiosa e termina por narrar como o irmão era inteligente e como conseguiu aprender a escrever bem, mesmo não concluindo as primeiras séries de ensino formal.

O modo como ele vinha usando a máquina nos levou a garantir à irmã que ele tinha condições de usar o computador, mas que seria necessário acolher o jeito e o tempo singular dele de fazer uso da máquina, sem ficar fazendo correções, colocando limites, mas apostando em algo, em agenciamentos, mesmo não se sabendo quais eram.

A experimentação no acompanhamento terapêutico consiste em fisgar no contexto problemático, algo que se delineia ao longo das errâncias, elementos que possam eventualmente funcionar como componentes dessas redes.... fazendo a existência do louco bifurcar em novas direções, de modo que territórios de vida possam tomar consistência. (Rolnik, 1997, p. 91)

Nessa intervenção arriscada se faz uma aposta numa abertura a devires, isto é, não se faz a clínica a partir de algo que se queira alcançar, as condições de chegada não estão dadas, assim como não existe uma verdade da qual se parta. Essa é a liberdade para a afirmação da diferença, conforme Baremblitt (1992, citado por Araújo, 2006).

De outro modo:

... Procura-se deixar impregnar pela atmosfera gerada no reboliço das forças, para farejar o aparecimento de agenciamentos virtuais; ao pressentir a possibilidade de uma construção, arrisca-se apontá-la mesmo sabendo que pode se enganar, pois não fazê-lo reitera o que provocou a doença - o fato do louco ser rodeado de um deserto afetivo.... de descrença em sua capacidade de construção, partículas venenosas de desqualificação. (Rolnik, 1997, p. 91)

Assim, nesse processo Pedro-computador-acompanhante, em que as conexões começaram a se enrijecer, fazia-se necessário algo que proporcionasse um desvio, uma ruptura, uma saída dessa captura, mas que não se sabia quando e nem como iria acontecer e nem mesmo se iria acontecer. Pedro, ao seu modo, continuava tentando utilizar o computador, desconfigurava-o e causava falhas no seu funcionamento e trocava o dia pela noite. Sabíamos que esse movimento de Pedro não podia perdurar por muito mais tempo sem o acometimento de uma crise. Em um dos encontros, diante de problemas no funcionamento do som, explicamos para ele que estavam faltando alguns drivers3 para que as caixas funcionassem.

Não esperávamos o que quer que fosse a partir dessa nossa fala, pelo contrário, começávamos a ser interpelados por dúvidas sobre as preocupações da irmã e sua ideia de que talvez o melhor fosse retirar o computador de Pedro. Mas, para nossa surpresa, a questão dos drivers começou a fazer uma importante diferença naquela situação compulsiva, tensa e paralisante. O driver "diz" alguma coisa para o acompanhado e possibilita um devir produzindo encontros que fazem Pedro sair daquele território que estava restrito ao quarto, ao cigarro e aos fantasmas persecutórios que o rondavam, para acessar um mundo virtual que o traz para mais perto desse mundo "real" criado e compartilhado por milhares e milhões que se denominam lúcidos e normais.

Podemos dizer que nessa espécie de deriva pela informática, nessa singular história que se constrói entre acompanhante, acompanhado e computador, ocorre a passagem do que é da ordem da paralisia compulsiva, do impasse, para algo que vem de modo inesperado, que passa por entre, que produz um desvio, um novo arranjo se configura e Pedro passa a se conectar de modo diferente com o computador. Trata-se de um acontecimento, portador de uma nova constelação de referências e possibilidades de encontro.

Curiosamente, as palavras "driver" e "devir" vão se embaralhando no nosso discurso e escrita, e nessa trama Pedro começa a circular, a procurar e a fazer contatos em busca desses drivers, num movimento cambiante compondo uma produção que chamamos de devir-drive, em que ele amplia sua rede de conexões virtuais e atuais, reais e delirantes também, e, como dissemos, escapa, cria-se uma linha de fuga da letargia e da compulsão.

Nos encontros seguintes, ele diz que ainda não conseguiu arrumar totalmente o computador e pergunta se não temos os drivers necessários para fazer o computador funcionar. Ele conta que já tentou saber se tem como comprar, mas a loja que vendeu o computador disse que não tem o CD com drivers.

Em outro dia, durante alguns minutos, tentamos instalar os drivers que baixamos em casa, mas eles são incompatíveis. Durante esse tempo, ele está atento. Ele sai durante alguns minutos para terminar de fazer o café e, em seguida, gentilmente, nos serve da bebida. Explicamos que não deu certo, mas que iríamos tentar baixar drivers originais pesquisando na internet mais uma vez. Então, ele diz que vai ver se a vizinha que instalou o sistema operacional poderia reinstalar de novo para ele. Confessamos que não demos crédito quando ele disse que contataria a vizinha, já que se mostra uma pessoa bem retraída para tomar esse tipo de iniciativa.

Como não conseguimos arrumar o computador, no intervalo entre um encontro e outro, ele vai com a irmã na loja de manutenção e leva a máquina para consertar e, num outro dia, ele pede que eu vá com ele à loja buscar o equipamento. Depois disso, ele diz que quer instalar internet e, então, saímos para comprar. Nessa oportunidade, ele negocia o modem mais adequado para suas necessidades, características e preços, conforme ele entendia e tinha avaliado através de um folheto comercial, de propagandas e perguntado para seu sobrinho.

Durante algum tempo, ele consegue usar o computador sem desconfigurá-lo, mas, em seguida, reaparecem os problemas. Dessa vez, quando chegamos, ele diz que está arrumando o computador, chama para o quarto e, então, assenta-se em frente à máquina, liga e começa a apertar algumas teclas. Ele fala que um vizinho esteve lá, ajudou-o e ensinou a entrar no sistema através de um disco de reparo.

Esse movimento de Pedro, em que ele se assenta e começa a fazer algumas coisas no computador, chama nossa atenção. Na maioria das vezes anteriores, ele falava para assentarmos, pois sabíamos mais. Dessa vez, ele mesmo se posicionou e começou a apertar as teclas até conseguir determinado resultado. Embora compulsivo, ligando e desligando o computador, apertando as teclas, tirando e colocando um CD, deixamos que ele ficasse o tempo que considerasse necessário enquanto pedíamos para ele que nos explicasse o que estava fazendo.

Em outro dia, ele nos chama para ver o computador, reinicia a máquina, entra na tela de escolha de perfis4, e escolhe um perfil. Perguntamos se não estava dando mais problemas de over frequency5, que era um problema que tínhamos resolvido anteriormente. O que chama a atenção é que a tela de perfil não é o modo mais comum de iniciar o sistema operacional. Isto só é feito em caso de problemas no modo normal de inicialização6.

Em um encontro seguinte, quando diz que está baixando drivers, não acreditamos muito, mas quando vemos, para nossa surpresa, através de um atalho da tela, ele entra em um site para download de drivers e consegue baixar arquivos. Observamos por alguns momentos o que ele está fazendo enquanto ele nos explica que o sobrinho havia o ajudado a configurar o atalho para o site. Ele chama o atalho de "máquina de drivers". Esses dois últimos relatos ilustram bem as singulares e criativas formas com que aconteciam os encontros de Pedro com o computador e o mundo da informática.

Pedro passa a se colocar em maior contato com pessoas e lugares, presta mais atenção à ajuda que damos no manejo da máquina, começa a tentar fazer mais coisas com a máquina, como instalar programas, utilizar aplicativos, como os de desenho, e a entrar em contato com pessoas diferentes, como vendedores de artigo de informática, vizinhos, além de sair para procurar várias lojas de manutenção de informática nos bairros próximos. Por fim, conta que havia descoberto cinco lojas, nas quais, em algumas situações, pudemos ir com ele.

Neste ínterim, notamos que algumas vezes ficávamos sentados na sala e Pedro dizia que estava instalando alguma coisa no computador. Ele ia para o quarto e voltava. Sugerimos uma saída e ele dizia que não podia porque estava consertando o computador. Aquela situação de ficar só em casa, o tempo todo, era outra coisa que também começava a angustiar, pois vinha se mantendo. Estávamos os dois reféns do computador e da casa que ficava fechada e a fumaça tomava conta, juntamente com um silêncio enigmático e preocupante.

Nesses momentos de silêncio, Pedro se deitava em um sofá e nós ficávamos em outro. Às vezes, ele se deitava de costas para nós, às vezes, voltado para o nosso lado. Ficávamos preocupados com o que dizer, se deveríamos ou não puxar conversa, ir embora, se deveríamos ou não chamá-lo para sair.

Depois de alguns encontros assim, amparado na ideia do "estar com" e acolher o silêncio, não mais nos angustiávamos tanto, ficávamos atentos e pudemos perceber que Pedro, quando estava deitado, às vezes, se voltava para nos olhar, e depois retornava para a posição em que estava antes. Em umas das vezes, voltamos o olhar para ele e cruzamos os olhares. Ele não disse nada e, então, fizemos um gesto afirmativo com a cabeça querendo dizer que estava tudo bem e que eu estava lá à disposição, como, aliás, já havíamos deixado claro verbalmente em outras oportunidades. Ele, então, voltava-se para sua posição anterior.

Uma experimentação silenciosa com o acompanhado. Esse silêncio permeou alguns momentos, através dele e a partir dele, talvez, pudéssemos ter algo a dizer ou fazer. Um silêncio para não poluir com palavras ou imagens, ou espantar os devires, mas dar direito ao silêncio, ao mesmo tempo, com uma presença discreta, com certa impotência para determinar ou resolver. Espera e silêncio, sem ações ou palavras precipitadas que afugentem o acontecimento (Pelbart, 1993).

Outras vezes, quando dava assunto, também conversávamos sobre coisas diversas, sobre o tempo, sobre os gatos que ele tinha em casa, sobre informática, celulares, mulheres, plantas, drogas, vícios, seu trabalho antes da doença, sobre as pessoas que conhecíamos no CAPS, sobre o presidente do país, sobre catástrofes meteorológicas, notícias da TV, alimentação, sobre a família dele, sobre amizade, sobre saúde. Uma conversa que nos chamou a atenção foi quando, conversando sobre sua psicose, ele conta como foi no início dizendo: "você não tem ideia de como é ouvir vozes, procurar quem está falando, mas não encontrar ninguém". Paradas no discurso, sons, silêncio permearam os ritmos, as velocidades, os conteúdos da conversa em que Pedro confia no acompanhante, cria uma abertura para compartilhar a angústia vivida no delírio.

Mas o uso do computador ainda continuava desconfigurando a máquina. A internet passa a não funcionar e algumas noites continuam mal dormidas. Os delírios parecem incorporar elementos de informática mais fortemente e seus perseguidores parecem querer atingi-lo via computador. Um arranjo, um sentido dado para um conflito com a realidade instituída vai proporcionando certo tipo de interação com essa realidade, mesmo que pautada por persecutoriedades.

Pedro, então, decide ir à loja da operadora e pedir o cancelamento do serviço, pois ele diz que está pagando, mas a internet não funciona mais. Nesse dia, quando chegamos a sua casa, ele já está pronto para sair e nos chama para ir junto. Ele mesmo conversa com a atendente sobre os problemas de conexão da forma que ele entende que está acontecendo. A atendente tenta explicar para ele o problema e, assim, negociam por algum tempo entre encerrar ou não o serviço e ele decide tentar usar mais algum tempo.

Na saída da loja, Pedro acendeu um cigarro, parecia um pouco tenso. Chegamos ao estacionamento. Ele pede que espere que ele acabe de fumar do lado de fora do carro, agacha-se e diz que sabe por que a internet não deu certo e diz que foi por causa da "juíza de Brasília". Ele conta que ela pode atrapalhar de longe. Diz que ela fez o mesmo com um primo dele dez anos atrás, perseguindo-o até a morte. A situação era ansiogênica para ele, o que nos implicava estar com ele e acompanhar a produção delirante, ajudá-lo a desvencilhar-se daquilo que o atormentava, mesmo que de forma efêmera, suportando os afetos avassaladores que o capturavam, suas relações com o contexto em que emergiam e os modos de lidar em busca de outros agenciamentos possíveis e menos aterrorizantes.

A produção delirante pode ser entendida como uma "espécie de saúde", uma invenção, uma possibilidade de produção de vida, de pensamentos e ações (Deleuze, 1997). Não há nada mais íntimo ao sujeito que o delírio, assim como o sonho lhe é originalmente singular. Delirar, sair do sulco, desviar, provocar colisões moleculares e a formação de novas ondas de movimento que avançam, invadem, deslocam os limites e na volta mudam de novo esses mesmos limites. Ondas que mudam frequentemente de velocidade, de altura e de força.

Um processo de expressão que se irrompe, que é capaz de provocar uma ruptura entre as palavras e as coisas. Sendo ruptura, pode então possibilitar uma abertura de um espaço para criações, invenções e acontecimentos. Uma ruptura, um "entre" por onde se afeta e se é afetado de alguma maneira, onde se pode prenunciar um devir, que "está sempre ‘entre' ou no ‘meio'" (Deleuze, 1997, p. 11).

Quando falou dos seus delírios anteriormente, Pedro disse que viajou pelo mundo todo, aprendendo o "catar", um tipo de luta, que ele mostrava fazendo gestos com as mãos, entrelaçando os dedos e dizendo palavras num "chinês antigo". Nessa viagem delirante, segundo contou, ele havia adquirido poderes e habilidades e assim pode voltar e habitar o próprio corpo que havia sido outrora ocupado.

Os gestos que mostrou durante essa narrativa eram os mesmos gestos que ele fazia antes de digitar qualquer coisa no teclado do computador. Fazendo aproximações com a linguagem da informática, o "catar" talvez fosse uma senha inventada por ele, uma espécie de número serial7 de instalação de algum software. Após os gestos, geralmente, digitava palavras sem sentido aparente, carregadas de consoantes e impronunciáveis. Podemos dizer que, conjugando os mesmos poderes e habilidades que adquirira outrora, quando esteve em sua viagem fora do corpo, agora ele podia com a informática se conectar, usar a internet, lutar, intervindo no mundo com palavras tornadas gestos e vice-versa.

Interessante notar que a palavra "Kata" em japonês, que é muito provável que seja a palavra que Pedro quis dizer, é um conjunto de movimentos de ataque e defesa presente em várias artes marciais japonesas. Pedro mostra o "catar" quando em outra oportunidade assistimos a um filme do Bruce Lee. Podemos falar do devir-drive agora no sentido de que seus gestos e palavras inauguram uma produção singular, um modo como ele consegue se conectar com o computador e usar a internet. Um uso esquizo, que não é o de um modelo padrão e comum, mas é um processo que arrasta tudo que está ao seu redor. Assim, ele entra numa zona de vizinhança com o driver e com a máquina se conectando, ora com um mundo concreto, ora com um mundo virtual da internet. O delírio "... arrasta a língua [da informática] para fora de seus sulcos costumeiros" (Deleuze, 1997, p. 9).

Assim dizendo, "catar" vem a ser uma ação - palavras e gestos - e se seus perseguidores estragavam sua conexão com a internet, Pedro se coloca a procurar pelos drivers ou sair para reclamar do serviço na operadora, em que ele diz que paga, mas que não consegue se conectar. O delírio que o leva ao mundo, que cria mundos, funciona através de suas palavras-atos para defendê-lo de seus perseguidores. Então, ele se livra da morte mais uma vez, ele próprio uma máquina de drivers. Esse delírio-mundo que irrompe e produz um desvio, uma possibilidade de vida, uma fuga em que Pedro sai do isolamento mortífero para as desventuras de um devir-driver.

 

Considerações finais

O acompanhamento terapêutico traz a ideia de saídas, circulação pelos espaços urbanos da cidade, das ruas, praças, shoppings, com a intenção de construir ou readquirir com o acompanhado um espaço no social para a loucura, um território de convivência com o desatino. Da perspectiva do movimento antimanicomial, uma prática clínica nas ruas é por si só uma estratégia muito bem-vinda, mas não se reduz pura e simplesmente a saídas.

Para pacientes reclusos, institucionalizados, excluídos em sua circulação, tais saídas possibilitam oportunidades para uma retomada de práticas do cotidiano, para exercício de cidadania, e até como atividade física, mas o acompanhamento terapêutico se utiliza da circulação pelos espaços agenciando elementos heterogêneos, ampliando as possibilidades que possam fazer funcionar a clínica como acontecimento. Por essa característica, a circulação passa para o regime dos afetos e fluxos que compõem os encontros entre acompanhante e acompanhado, entre estes e os elementos agenciados no acompanhamento.

Então, no acompanhamento terapêutico, o setting é produzido pela montagem, pelos agenciamentos feitos pelo acompanhado e acompanhante, seja a rua, a casa, a informática, o delírio, o silêncio, de modo que essa montagem vai ser sempre singular ao encontro que se dá, ao que passa "entre". Servimo-nos dos impasses, da maneira que o acompanhado passa a se articular com redes virtuais e atuais, usando de sua lógica singular, das saídas e clausuras, do silêncio e do tumulto compulsivo do uso do computador, dessas histórias criadas no ato de acompanhar e ser acompanhado, para colocar em pauta os lugares e tempos no acompanhamento terapêutico.

Nesse sentido, o acompanhamento terapêutico transborda para além e aquém dos limites físicos dos espaços e do tempo cronológico marcado, por exemplo, para fins de contrato, passando a não ser regido por algo ideal que se queira alcançar ou princípios dados a priori. Abrir a clínica para a intensidade dos encontros passa a ser o mote ou condição de possibilidade para criação de algo novo.

Nesse acompanhamento, consideramos marcos de um percurso para além dos espaços e tempos instituídos, um estado de suspensão temporal e temporária, um ponto em que se vive a ansiedade, a expectativa, a preocupação e logo depois se passa para um estado de surpresa, de "não saber", em que algo novo se anuncia. Entre hesitação e surpresa, uma espera e uma aposta de que algo possa vir a acontecer a partir desses encontros. Uma espera que não deve ser de um tempo cronometrado que marca a espera por algo ideal, curativo, miraculoso, mas apenas um tempo-desejo, tempo para uma produção maquínica em que algo aconteça e produza diferença, sem um ideal pressuposto a ser alcançado, sem garantias, pois é pela ruptura e pelo desvio que se dão acontecimentos, que funcionam como portadores de novos universos de referência para o acompanhado, um jeito singular de agir, ver, falar e estar no mundo.

O acompanhamento terapêutico, assim, vem a ser uma pragmática de encontros intensivos sempre querendo mais conexões e, a partir disso, compor e se abrir, num "entre", aos fluxos, num campo social histórico. Nesse sentido, fazem-se agenciamentos/montagem e, por essas conexões, agenciam-se as ruas, o CAPS, família, a informática, a vizinhança, o comércio, o tempo cronológico.

A presença de um computador em cena e o interesse do acompanhado pela informática permitiu um agenciamento ciberdelirante, num devir-driver com novas formas de encontro, seja com o social, com a cidade ou com os modos de lidar com as figuras de seu delírio, escapando, defendendo-se e atacando de forma efetiva as figuras persecutórias que o atormentavam. Um processo de aprendizagem sui generis, tanto do acompanhado, quanto do acompanhante, trazendo as questões da clínica, numa experimentação que se afirma como dimensão fundamental em meio ao que se repete e tende à estagnação.

 

Referências

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Recebido: 29/12/2011
Aceito: 28/07/2012

 

 

1 Contato: dami_silva@hotmail.com
2 Cartografia é um método criado por Deleuze e Guattari que compreende o acompanhamento do processo do traçado do plano ou das linhas que se compõem na operação da transversalidade ou nos processos de desterritorialização ou territorialização (Passos & Barros, 2009).
3 Drivers são programas necessários para que os dispositivos (hardware) funcionem, isto é, "conversem" com a placa-mãe e entre si. Isto é, os drivers fazem a conexão lógica entre os dispositivos. Nesse caso, eram necessários drivers para o dispositivo de som.
4 Perfil: Ele se refere a perfil dizendo das opções de entrada no sistema operacional, por exemplo, modo normal, modo de segurança. Geralmente, essas opções não aparecem.
5 Over Frequency era uma mensagem de mau funcionamento do sistema que aparecia na tela antes da inicialização do sistema operacional, o que impedia que essa se concluísse.
6 Inicialização é quando o computador inicia o sistema, carregando os drivers quando o computador é ligado.
7 Refiro-me ao conjunto de números e letras para a instalação do sistema operacional ou outros softwares.