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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.6 no.2 Belo Horizonte jul. 2013

 

ARTIGOS

 

Medicalização em um serviço público de saúde mental: um estudo sobre a prescrição de psicofármacos

 

Medicalization in a mental health public service: a study on the psychotropic prescription

 

 

Daniele de Andrade Ferrazza1; Luiz Carlos da Rocha; Cristina Amélia Luzio

Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Assis, Brasil

 

 


RESUMO

Notícias de que a quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) deverá trazer uma ampliada listagem das possibilidades diagnósticas têm aquecido o debate sobre uma tendência, reconhecível em práticas psiquiátricas contemporâneas, de enquadrar em diagnósticos psiquiátricos mal-estares comuns da vida cotidiana e submetê-los a tratamento psicofarmacológico. Este artigo traz a essa discussão dados de uma pesquisa de campo sobre a prescrição de psicofármacos no atendimento psiquiátrico de um serviço público de saúde mental. Os resultados mostram que a psiquiatria do serviço mantém sob prescrição de psicofármacos praticamente todos os seus usuários e que as altas são raríssimas. O artigo organiza elementos críticos a essa prática e conclui por sua inadequação face aos objetivos de promoção de cuidados personalizados atentos à autonomia e aos preceitos de cidadania presentes nas atuais diretrizes nacionais das políticas públicas de saúde mental.

Palavras-chave: Saúde mental, Serviços de saúde mental, Medicalização.


ABSTRACT

News of the fifth version of Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5) bringing an enlarged listing of diagnostic possibilities has fomented discussion concerning the tendency, recognizable in contemporary psychiatric practices, of including ordinary suffering of everyday life in psychiatric diagnosis and submit same to psychopharmacological treatment. The present paper brings to this discussion data obtained from field research about the prescription of psychopharmacs in the psychiatric care of a public mental health service. The results reveal that the psychiatry of the service keeps practically all of its users under prescription, and that medical discharge is extremely rare. The paper organizes elements critical to this practice and concludes that due to its inadequacy as to the objectives of promotion of personalized care concerned with autonomy and citizenship, present in the current national guidelines for public policies in mental health.

Keywords: Mental health, Mental health services, Medicalization.


 

 

O serviço prestado por estas substâncias na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão apreciado como um benefício que tanto indivíduos quanto povos lhe concederam um lugar permanente na economia de sua libido

Freud (1930/1980, p. 86).

Quando, ainda nas primeiras décadas do século XX, o criador da psicanálise teceu as considerações acima, pretendia destacar o papel auxiliar dos alteradores químicos do psiquismo, substâncias de uso comum em todas as culturas, no enfrentamento do sofrimento psíquico que reputava próprio à condição humana (Freud, 1930/1980). Não poderia, no entanto, supor que certos tipos desses alteradores, os psicofármacos, viessem a se tornar uma verdadeira panacéia no enfrentamento de todo o tipo de mal-estar social em nossa civilização, revelando a propensão a substituir por pílulas coloridas toda a reflexão que o mestre dedicava para compreender o drama humano e minorar a condição trágica de sofrimento que lhe considerava inerente.

De fato, vários autores consideram que, na contemporaneidade, qualquer sinal de sofrimento psíquico está sujeito a ser transformado em objeto de práticas médicas limitadas a sumárias rotulações diagnósticas quase sempre acompanhadas pela prescrição de algum tipo de psicofármaco fadado a promover sua cura (Caponi, 2012; Costa-Rosa, 2011; Ferrazza et al., 2010; Rabelo, 2011). À mercê desse reducionismo pouco atento às complexidades do ser humano, essa tendência que propala seu embasamento na moderna neurofisiologia tem promovido a banalização do uso de psicofármacos como principal característica do processo de medicalização da existência humana na contemporaneidade (Soares & Caponi, 2011; Tesser, 2010).

Nessa perspectiva, questões relativas ao cotidiano e que envolvem aspectos comuns relacionados à subjetividade e à existência humana vêm sendo transformadas em queixas de âmbito médico-psiquiátrico, em sintomas de supostos transtornos e, finalmente, em categorias diagnósticas que sustentariam as indispensáveis prescrições psicofarmacológicas, fenômeno que muitos autores consideram relacionado a uma trama de interesses corporativos que envolvem a medicina e indústria de medicamentos (Amarante & Carvalho, 2000; Angell, 2007; Baroni et al., 2010; Caponi, 2009; Cosgrove & Krimsky, 2012).

Esta preocupação tem-se acentuado com as notícias sobre a iminente publicação do novo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V). Considerado a "bíblia" da psiquiatria moderna, a nova versão de tal manual deverá estabelecer a ampliação do número de possibilidades diagnósticas e poderá trazer um aumento expressivo das possibilidades de enquadramento psiquiátrico e das consequentes prescrições de psicofármacos, um desenvolvimento que Cosgrove e Krimsky (2012) consideram fracamente concernente a um suposto aumento dos adoecimentos, mas profundamente relacionado a vínculos de interesses entre fortes conglomerados farmacêuticos e as equipes de médicos da Associação Psiquiátrica Americana (APA) envolvidos com a organização do novo DSM (Calligaris, 2012; Garcia, 2012; Telles, 2012).

Tendo em vista o debate sobre a expansão da prescrição e o consumo de medicamentos psicotrópicos controlados e a ampliação do número de diagnósticos psiquiátricos, apresentamos aqui dados de uma pesquisa empírica exploratória que realizamos sobre a prescrição de psicofármacos em um serviço da rede pública de saúde. Consideramos que seus resultados podem oferecer elementos significativos para compreender como se dá a prescrição de psicofármacos em um serviço público de saúde mental e suas relações com o diagnóstico.

O estudo foi realizado em um Ambulatório de Saúde Mental de um município de pequeno porte do sudoeste paulista e o universo pesquisado foi o atendimento oferecido ao conjunto de usuários que deram entrada no serviço no período de 2005 a 2008. O plano original da pesquisa objetivava acompanhar, por meio de uma amostra adequada das anotações prontuárias do atendimento de um serviço de saúde mental, a trajetória dos usuários pelos procedimentos do serviço, que compreende uma equipe de saúde composta de psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras, bem como um conjunto de recursos terapêuticos e assistenciais oferecidos pelo seu corpo técnico. Neste artigo, dada nossa intenção de abordar a questão da prescrição de psicofármacos e suas contingências diagnósticas, centraremos nossa apresentação de dados nos casos encaminhados pela equipe de saúde ao atendimento psiquiátrico, instância onde esses procedimentos acontecem e seus dados podem ser buscados para as reflexões que ora nos interessam.

 

Objetivos

O objetivo geral, desenvolvido por meio do exame das anotações prontuárias, consistiu no estudo da prescrição de psicofármacos e suas circunstâncias, incluindo as queixas que levaram o usuário ao atendimento, os sintomas encontrados, os diagnósticos e as características da evolução do tratamento, tais como continuidades e altas denotativas de "cura".

Em conformidade com o objetivo geral, foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos:

a) levantar a proporção da população de usuários que foi encaminhada ao atendimento psiquiátrico;

b) examinar, deste contingente, o conjunto de queixas iniciais apresentadas e as anotações de sintomas inferidos pelo atendimento;

c) levantar os diagnósticos estabelecidos aos usuários pelo atendimento psiquiátrico e verificar sua relação com a prescrição de psicofármacos;

d) verificar a frequência de prescrição de psicofármacos aos usuários encaminhados ao atendimento psiquiátrico e

e) investigar a evolução dos casos de usuários submetidos à prescrição de psicofármacos.

Explicitados nossos objetivos, cumpre anotar que foge completamente da intenção desse trabalho qualquer perspectiva de encetar uma avaliação clínica dos casos atendidos ou fazer uma apreciação técnica da especificidade dos procedimentos diagnósticos e das prescrições específicas de cada psicofármaco. Longe de reiterar uma avaliação clínica de um trabalho clínico, e mais afeita a derivar de uma organização quantitativa observações qualitativas comuns à psicologia social (Minayo, 2008; Minayo & Sanches, 1993), buscamos fazer um exame das características gerais do atendimento psiquiátrico da instituição centrado na prescrição de psicofármacos e em seus circunstantes conforme aparecem nas anotações dos prontuários dos usuários do serviço.

 

Método e procedimentos de amostragem

A metodologia utilizada, comum aos estudos exploratórios quantitativos, consistiu no cálculo das frequências percentuais relativas aos agrupamentos e aos cruzamentos concernentes aos objetivos da pesquisa. Para exame das anotações prontuárias, foi extraída uma amostra da população de usuários que deram entrada no pronto-atendimento do serviço no período de 2005 a 2008. Para a definição da amostra, primeiramente fizemos uma listagem, já dividida pelos respectivos anos, das numerações de todos os prontuários do período. Em seguida, respeitada a proporção dos extratos anuais, definimos uma amostra de 20% da população obtida por sorteio aleatório em cada grupo de cinco, com o auxílio do programa Bioestat (Ayres, 2007). Por esses procedimentos, obtivemos uma amostra composta de 430 prontuários de usuários do serviço. A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista (Registro CEP no 032/2007) e obteve aprovação.

 

Resultados

Organizamos a apresentação dos dados em cinco partes. Na primeira, apresentamos dados sobre os percentuais de encaminhamentos dos usuários ao atendimento psiquiátrico do serviço. Na segunda, organizamos os dados relativos às queixas e aos sintomas apresentados pela população de usuários que foi encaminhada à consulta psiquiátrica. Na terceira, apresentamos dados sobre o tratamento prescrito pelo atendimento psiquiátrico. Na quarta, organizamos dados sobre os diagnósticos psiquiátricos determinados aos usuários medicados com psicofármacos e, finalmente na quinta, apresentamos dados sobre a evolução dos casos dos usuários encaminhados ao atendimento psiquiátrico.

 

Dados sobre a população de usuários encaminhada à consulta psiquiátrica

Coletamos dados sobre o primeiro encaminhamento oferecido aos usuários pelo serviço de pronto-atendimento do Ambulatório. Agrupamos os encaminhamentos em duas categorias: (1) encaminhamento à consulta psiquiátrica e (2) encaminhamento a outras modalidades de atendimento. Dos 430 usuários da amostra, 12 não retornaram ao Ambulatório e, consequentemente, não receberam qualquer encaminhamento. Excluídos esses casos, os dados referentes aos encaminhamentos estão apresentados na Tabela 1, a qual revela que o total de encaminhamentos à psiquiatria chegou a 80% dos usuários.

Procuramos, então, para verificar se esses dados permitiam diferenciar os encaminhamentos à psiquiatria dos outros encaminhamentos, examinar as queixas iniciais apresentadas pelos usuários ao pronto-atendimento, bem como os sintomas anotados nos prontuários pelos atendentes do serviço.

 

Dados sobre as queixas iniciais e os sintomas constantes dos prontuários dos usuários do serviço

O registro das queixas iniciais dos usuários apresentou uma variação muito grande, o que tornou inviável a distribuição de frequência por cada conjunto específico de queixas. Procuramos, então, construir um conjunto de categorias que, sem desprezar nenhum conjunto de queixa, apresentasse uma melhor possibilidade de agrupamento dos dados. Criamos um total de 37 categorias de queixas, nas quais os 418 usuários que receberam encaminhamento do serviço tiveram suas queixas agrupadas.

O número elevado das categorias de queixas iniciais resultou em uma grande dispersão dos dados e na inviabilidade de sua distribuição percentual. Dessa forma, as categorias nas quais agrupamos as queixas nunca chegam a reunir mais que 10% da população de usuários do serviço. Nessas condições, as que apresentam a maior frequência relativa são as de "uso abusivo de bebida alcoólica" (39 usuários); "perda de ente querido" (31 usuários); "dificuldades no relacionamento com familiares" (22 usuários); "perda de emprego" (17 usuários); e "problemas no trabalho" (15 usuários). Outros 43 usuários relataram queixas que envolviam situações de "nervosismo", "esquecimento", "desânimo" e, frequentemente, "tristeza". São queixas que podemos considerar absolutamente comuns ao cotidiano da existência humana e a frequência dos agrupamentos não apresenta diferença significativa entre os encaminhados à psiquiatria e a outras modalidades de atendimento.

Em relação aos sintomas, em uma listagem de 18 tipos diferentes de sintomas, os que mais aparecem registrados nos prontuários são "ansiedade" (69%), "angústia" (63%), "nervosismo" (62%) e "irritabilidade" (55%). Isso significa que mais de metade dos usuários apresentou algum desses sintomas, mas também aqui não se encontra diferença significativa entre os encaminhamentos. Nessa configuração, procuramos levantar o tipo de tratamento determinado aos usuários pelo atendimento psiquiátrico.

 

Dados sobre o tratamento prescrito aos usuários pela psiquiatria quanto ao uso de medicação psicofarmacológica

Coletamos dados sobre o tratamento determinado aos usuários encaminhados à consulta psiquiátrica, com especial atenção à prescrição ou não prescrição de recursos psicofarmacológicos. Classificamos os usuários em: (1) tratamento com prescrição de psicofármacos (TCPP) e (2) tratamento sem prescrição de psicofármacos (TSPP). Esses dados, excluídos os 26 usuários que não compareceram à consulta agendada, estão apresentados na Tabela 2.

Como indica a Tabela 2, mais de 99% dos usuários encaminhados à psiquiatria receberam prescrição psicofarmacológica. Isso quer dizer que, a despeito das mais variadas queixas e sintomas registrados nos prontuários, praticamente todos que compareceram à consulta psiquiátrica receberam prescrição de psicofármacos. Nessa configuração, procuramos verificar os diagnósticos que conduziam à medicação psicofarmacológica.

 

Dados sobre os diagnósticos psiquiátricos dos usuários medicados com psicofármacos pelo atendimento psiquiátrico

Levantamos dados sobre os diagnósticos registrados nos prontuários dos usuários medicados pela psiquiatria do serviço. Para trabalhar apenas com os diagnósticos determinados pelo serviço de psiquiatria, excluímos os 42 usuários que já deram entrada no Ambulatório com diagnósticos determinados por outros médicos, e levantamos a distribuição de diagnósticos entre os 261 usuários restantes. Consideramos tanto as determinações diagnósticas escritas nos prontuários por extenso quanto o registro do número do diagnóstico referente à 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Mesmo assim, verificamos que um número muito grande de prontuários não continha qualquer anotação diagnóstica. Contabilizando a ausência de diagnóstico e os diagnósticos apresentados nos prontuários, obtivemos a seguinte distribuição, aqui apresentada conforme a CID-10.

 

 

Os dados mostram que cerca de oito em cada dez usuários atendidos pela psiquiatria do serviço não receberam qualquer determinação diagnóstica. Contudo, todos receberam prescrição de medicação psicofarmacológica. Preocupamo-nos, então, em coletar dados que pudessem refletir a evolução dos casos dos usuários encaminhados ao atendimento psiquiátrico do serviço.

 

Dados sobre a evolução dos casos dos usuários encaminhados à psiquiatria

Coletamos dados sobre a evolução dos casos dos usuários que receberam prescrição de psicofármacos no atendimento psiquiátrico do serviço. Conforme os dados que pudemos encontrar nos prontuários, agrupamos a evolução dos casos nas seguintes categorias: (1) continuação do tratamento psiquiátrico; (2) abandono do tratamento psiquiátrico; (3) transferência do tratamento psiquiátrico para outra instituição; (4) encaminhamento à internação psiquiátrica; (5) encaminhamento para continuidade do tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS); (6) encaminhamento a tratamento neurológico e (7) alta no tratamento psiquiátrico.

Examinamos os registros de evolução dos casos até maio de 2009, isso compreende um período variável de cinco a cinquenta e três meses, se tomarmos por limites, respectivamente, os casos de final de 2008 e os de início de 2005. Feita a distribuição dos 303 casos medicados pela psiquiatria, conforme as categorias acima elencadas, obtivemos os dados apresentados na Tabela 4.

A maioria dos usuários (61%) ainda estava sob tratamento psiquiátrico medicamentoso na própria instituição quando da coleta destes dados. E, como pudemos acompanhar, um total de cerca de 11% continuavam em tratamento psicofarmacológico em outra instâncias, para onde foram transferidos ou encaminhados. Outros 27% dos usuários haviam abandonado o tratamento psiquiátrico, como indica a Tabela 4. Dentre os usuários que foram encaminhados à psiquiatria e receberam prescrição de psicofármacos, ressaltamos que apenas 3 (1%) havia recebido alta do tratamento psiquiátrico

 

Discussão

Organizamos a discussão dos dados em quatro partes. Primeiramente, abordaremos os encaminhamentos à consulta psiquiátrica e os tratamentos determinados pela psiquiatria, com atenção à prescrição psicofarmacológica. Depois, discutiremos os dados relativos às queixas iniciais e aos sintomas apresentados pela população de usuários que é encaminhada à consulta psiquiátrica e submetida à prescrição de psicofármacos. Em seguida, trataremos da recorrente ausência de diagnósticos encontrada em nossos dados. Finalmente, discutiremos nossos dados sobre os desdobramentos e a evolução dos casos do contingente de usuários que é submetido a tratamento psicofarmacológico.

 

Encaminhamento à consulta psiquiátrica e determinação do tratamento medicamentoso

Nossos dados mostram uma tendência dos profissionais do serviço estudado em encaminhar a ampla maioria da população de usuários (cerca de 80%) à consulta psiquiátrica. As queixas apresentadas pelos usuários não parecem ser o determinante desse encaminhamento, uma vez que não se encontra diferença significativa entre o conjunto de queixas do grupo encaminhado à psiquiatria e o do grupo encaminhado a outras modalidades de atendimento. De imediato, o frequente encaminhamento ao atendimento psiquiátrico parece sugestivo de que a concepção dos profissionais daquela equipe multidisciplinar de saúde está fortemente subordinada a um modelo de atendimento médico.

Nessa perspectiva, nossos dados apresentam um testemunho de uma circunstância de nosso sistema de saúde mental, fortemente destacado na bibliografia especializada, de que os esforços para a efetivação do modelo psicossocial de atendimento, a despeito de compor o cerne das atuais diretrizes nacionais das políticas públicas de saúde mental, ainda não conseguiu deslocar a hegemonia das práticas orientadas pelo modelo médico tradicional (Amarante, 2007; Costa-Rosa, 2011; Costa-Rosa & Yasui, 2008; Tenório, 2000).

O peso desse circunstante geral de nosso sistema de saúde mental não pode ser negligenciado e, de fato, é inegável que o papel dessa concepção médica hegemônica no encaminhamento de uma grande maioria dos usuários ao atendimento psiquiátrico terá como consequência provável a determinação de prescrição psicofarmacológica para todos. Mas pudemos perceber que a submissão à prescrição de psicofármacos, além de se constituir em destino comum de todos os encaminhados à psiquiatria, pode cumprir, também, um importante papel na determinação do próprio encaminhamento ao atendimento psiquiátrico. Examinando os prontuários de nossa amostra, percebemos que, em uma proporção de nove em cada dez, havia anotações de que aqueles usuários já faziam uso de psicofármacos mesmo antes de procurar o serviço.

Verificamos a origem dessa medicação anterior e pudemos constatar que ela estava ligada a prescrições de diversas especialidades médicas e que as oriundas de atendimento psiquiátrico não passavam de 40%. E é interessante notar que todos esses usuários foram encaminhados pelo pronto-atendimento do serviço ao atendimento psiquiátrico onde, em todos os casos, foram submetidos a novas e, via de regra, mais amplas prescrições de psicofármacos. Que esses usuários fossem encaminhados à psiquiatria é perfeitamente compreensível, uma vez que parece ser uma instância adequada à aferição técnica da conveniência dessa medicação anterior. Mas o fato de todos esses casos receberem prescrição de psicofármacos por parte da psiquiatria do serviço denota uma tendência preocupante: qual fosse a origem ou motivo do uso anterior de psicofármacos, esta condição levava a novas e reiteradas prescrições por parte do serviço. Esses dados sugerem que a própria e simples presença de psicofármacos nas contingências de vida do usuário é fator suficiente para que ele sempre seja tratado com psicofármacos pelo serviço.

Mas o fato mais marcante é que praticamente todos aqueles que passaram pelo atendimento psiquiátrico do serviço receberam prescrição de psicofármacos. Isso quer dizer que o encaminhamento à psiquiatria sempre implicou na prescrição de psicofármacos e sugere que o atendimento psiquiátrico não cogitou se a medicação psicofarmacológica era ou não necessária, reservando seu juízo a escolher o tipo específico de prescrição. Encontramos, dentre os 306 usuários encaminhados à psiquiatria, apenas 3 casos em que não houve prescrição de psicofármacos. Investigamos o motivo específico destes usuários não terem recebido prescrição psicofarmacológica e pudemos observar que eram casos extremamente excepcionais: uma mulher grávida que não poderia ser medicada com psicofármacos, uma pessoa que apenas solicitara atestado médico-psiquiátrico para constar em requerimento de benefício financeiro ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e um usuário encaminhado por um hospital-geral local por tentativa de suicídio relacionada a possíveis efeitos da medicação.

Nessa perspectiva, nossos dados corroboram a existência de uma tendência da psiquiatria em generalizar a prescrição de psicofármacos a todos que recorrem às suas consultas. A literatura especializada, ainda que não suspeitasse chegar ao paroxismo da totalidade que nossos dados encontraram, já percebera como tendência preocupante nas ações das instituições em saúde mental essa banalização da prescrição de psicofármacos (Barrio et al., 2008; Costa-Rosa, 2011; Costa-Rosa & Yasui, 2008; Lamb, 2008; Rabelo, 2011). É sabido que psiquiatria vem estabelecendo o psicofármaco como principal, ou mesmo o único, dispositivo de tratamento para abarcar qualquer mal-estar social na contemporaneidade (Amarante, 2007; Guarido, 2007; Ignácio & Nardi, 2007; Lamb, 2008; Rodrigues, 2003). Cabe agora apontar para o risco de que a administração de psicofármacos possa estar se tornando obrigatória no atendimento psiquiátrico, o que estaria eliminando o espaço de qualquer ponderação razoável sobre sua necessidade para o paciente.

 

Queixas iniciais e sintomas dos usuários medicados com psicofármacos

Nossos dados sobre os registros das queixas mostram que, entre os usuários encaminhados à consulta psiquiátrica e medicados com psicofármacos, era comum a apresentação de queixas relacionadas a situações existenciais da vida e a circunstâncias relativas ao cotidiano. Longe de negar que essas experiências e sensações possam produzir sofrimentos e mal-estares difíceis de serem enfrentados, nos chama atenção o fato desses sofrimentos constituírem o rol de queixas de usuários que não escapam do tratamento psicofarmacológico continuado. Isso parece ser uma manifestação local de uma tendência da medicina atual em prescrever psicofármacos para o tratamento de qualquer mal-estar psíquico ou qualquer queixa existencial (Caponi, 2012). Como pondera Rodrigues (2003, p.15), na atual praxe psiquiátrica o sofrimento psíquico "não é mais compreendido como uma experiência subjetiva de um determinado indivíduo, mas, sim, como uma entidade nosológica que o acomete".

Como indicam nossos dados, as pessoas submetidas à medicação psicofarmacológica passam a utilizá-las por um tempo muito maior do que o dos acontecimentos circunstanciais que as levaram a procurar atendimento. Assim, o início do uso da medicação pode, eventualmente, estar marcado por algum acontecimento comum e de efeitos passageiros, mas os efeitos do uso prolongado da medicação que nele se insere podem se estender indefinidamente e, então, como observam Mendonça e Carvalho (2005), o que se torna um problema é qualquer perspectiva da falta desse medicamento.

O modelo médico-psiquiátrico, atualmente, costuma empreender sua terapêutica pelos indícios inferidos do conjunto de sintomas, de suas gradações e interações, cujas medidas permitiriam fazer o vínculo com uma síndrome que o tratamento deveria controlar em um processo de cura. Não sem motivo, o sucesso desse controle seria inferido da esperada remissão dos sintomas. Mas no âmbito dessa conduta muito usual no modelo médico-psiquiátrico, reduzir sintomas passa a ser não só o centro da questão, mas, talvez, a única perspectiva, como Pitliuk (2008) expressa, caricaturalmente, quando, em defesa das vantagens da imediata medicação de qualquer sintoma, adverte: "sintomas em psiquiatria e neurologia, assim como em várias áreas de medicina, quanto mais tem, mais tem, e quanto menos tem, menos tem".

Parece-nos que, bem distinto do modelo que consagrou a medicina de base científica, o empreendimento da psiquiatria em definir o que seria 'normal' ou 'patológico' depende da interpretação feita pelo psiquiatra sobre a narrativa do paciente. Nesse contexto, diferentemente de outras especialidades médicas, a inexistência de um marcador biológico específico e reconhecível para aquilo que é considerado como transtorno mental possibilita ao psiquiatra, conforme aponta Foucault (2006), transcrever qualquer demanda em doença e fazer existir os motivos da demanda em sintomas de doença. Dessa forma, como pondera o referido autor, "trata-se de fazer existir como doença ou eventualmente como não-doença os motivos dados para um internamento ou uma intervenção psiquiátrica possível" (p. 348).

Nesse contexto, a psiquiatria se autoriza a intervir sobre aquilo que ela considera como sintomas de uma doença que, por sua vez, deverão ser tratados com medicamentos psicofarmacológicos. A medicação psiquiátrica, então, apenas funcionaria para "tratar" aquele mal-estar indevidamente denominado como sintoma, e qualquer outra reflexão sobre a demanda daquele que apresenta sofrimento psíquico é negligenciada em favor do tratamento psicofarmacológico. Dessa forma, a prescrição de psicofármacos funcionaria perigosamente como um "tampão" que obstrui os sentimentos e as vivências singulares de cada sujeito, produzindo o processo conhecido como "tamponamento da subjetividade" (Costa-Rosa, 2011).

Mas o sintoma recebe esta denominação não por ser mera sensação, mas porque é compreendido como manifestação sintomática de algo que cabe diagnosticar e tratar. Nessa configuração, é importante ressaltar que nossos dados mostraram que o tratamento psicofarmacológico não parecia fundamentar-se no diagnóstico, uma vez que este estava totalmente ausente da expressiva maioria das anotações prontuárias que descrevem os casos e seu tratamento.

Indagamos, então, sobre o real papel da noção de sintoma nesse tipo de prática psiquiátrica. E, tão interessante quanto inquietante, Foucault (2006) nos apresenta uma perspectiva de entendimento do sintoma na prática psiquiátrica que o coloca no âmbito da definição de papéis e de poderes da psiquiatria bem distintos da medicina que seria razoável desejar:

Na medicina orgânica, o médico formula obscuramente essa demanda: mostre seus sintomas e eu direi que doente você é. Na prova psiquiátrica, a demanda do psiquiatra é muito mais pesada, é muito mais sobrecarregada. É a seguinte: com o que você é, com a sua vida, com o que se queixa a seu respeito, com o que você faz e o que você diz, forneça-me sintomas. Não para que eu saiba que doente você é, mas para que eu possa ser médico diante de você. Ou seja, a prova psiquiátrica é uma dupla prova de entronização. Ela entroniza a vida de um indivíduo como tecido de sintomas patológicos, mas entroniza sem cessar o psiquiatra como médico ou a instância disciplinar suprema como instância médica (p. 349).

Ressalvada essa função de relação de poder e de definição de lugares nessa teia, reiteramos que nossos dados sugerem que não se pode encontrar nas queixas e nos sintomas as possibilidades de distinguir a decisão de medicar ou não medicar tomada pelo serviço estudado. Supomos mesmo, dadas as semelhanças resistentes ao exame do simples olhar e confirmada pela apuração estatística, que os determinantes do ato de medicar com psicofármacos daquele serviço não estejam, em absoluto, nas características dos usuários, mas naquelas do próprio serviço. É como se o serviço tivesse que medicar e, por isso, seu usuário teria que ser medicado. Nessa perspectiva, a prescrição de psicofármacos, da forma como vem sendo praticada, poderá se constituir numa nova maneira de controle social através da drogadição da população que, refém de modalidades terapêuticas psicofarmacológicas, pode sacrificar seriamente qualquer perspectiva de autonomia e liberdade (Gaudenzi & Ortega, 2012).

 

A ausência de diagnósticos aos usuários submetidos à medicação psicofarmacológica

A despeito de a psiquiatria doutrinar que é justamente a existência de uma doença que torna imprescindível seu tratamento especializado, aquele diagnóstico supostamente necessário para a determinação da doença a ser tratada está ausente na expressiva maioria dos casos (78%) medicados pela psiquiatria do serviço estudado. Investigamos os dados dos poucos prontuários com registro de diagnósticos psiquiátricos e encontramos características que mostram que, ao contrário do que seria razoável supor, é a presença de diagnóstico e não sua ausência que acontece em raras circunstâncias especiais. De fato, os usuários que têm diagnósticos em seus prontuários os obtiveram, basicamente, por dois motivos especiais: solicitação de atestado médico ou atendimento à exigência legal de que um diagnóstico acompanhe a determinação do serviço à internação psiquiátrica. De resto, a regularidade de sua ausência conjugada à sempre presente prescrição de psicofármacos denota que, em absoluto, o diagnóstico não parece ser importante para a determinação do tratamento psiquiátrico dos pacientes do serviço estudado.

Essa surpreendente ausência de diagnósticos para a grande maioria daqueles submetidos ao tratamento psicofarmacológico nos convida a algumas considerações. Nesse contexto, começamos o nosso raciocínio pelo fato de que o ato médico de instituir uma doença ou, como prefere a psiquiatria, de detectá-la, é considerado o fator determinante para autorizar a intervenção psiquiátrica. A instituição de uma doença é até mesmo o símbolo do nascimento da psiquiatria que, em fins do século XVIII, se apropriou da loucura e a transformou em doença passível de ser curada pelo único "detentor" do saber sobre ela: o médico (Foucault, 2006). Conforme também aponta Birman (1978), a história da psiquiatria mostra que, para a loucura ser transformada em objeto médico, ela deveria ser reconhecida como uma doença:

Para que os loucos passassem a ser objeto da percepção e da escuta médicas, seria necessário que a loucura fosse tornada uma doença. Se o médico é definido como quem possui o saber sobre as doenças, para que os loucos sejam cuidados pelos médicos é preciso que sejam transformados em doentes (p. 56).

No estabelecimento de práticas psiquiátricas sobre a alienação, a psiquiatria também precisaria engendrar os tipos de loucura, para que a intervenção médica fosse mais 'precisa' e abrangente. Assim, seriam construídas as classificações e organizados os quadros de sintomas definidos em categoriais diagnósticas, talvez o principal empenho dos fundadores do alienismo francês do século XIX (Pinel, 1809/2007) e, sobretudo, dos sistematizadores da psiquiatria do século XX (Kraepelin, 1912/2009).

A psiquiatria contemporânea, até mesmo para que possa ser considerada medicina, não abandonará suas origens e continuará intervindo sobre aquilo que ela definirá como doença. É justamente a autorização que a determinação de doença confere à intervenção médica o fator que promove a aguardada multiplicação dos "transtornos psiquiátricos" no DSM-V, prestes a ser editado (Cosgrove & Krimsky, 2012; Garcia, 2012; Telles, 2012). Aliás, atualmente, cada vez mais qualquer mal-estar, qualquer comportamento considerado "inadequado", qualquer situação existencial e, até mesmo, qualquer circunstância cotidiana poderá ser transformada em doença e diagnóstico psiquiátrico (Caponi, 2012; Baroni et al., 2010; Freitas e Amarante, 2012).

A respeito dessa questão, Guarido (2007, p.159) comenta que "estamos convivendo com sofrimentos codificados em termos de uma nomeação própria do discurso médico, que se socializa amplamente e passa a ordenar a relação do indivíduo com sua subjetividade e seus sofrimentos." São tantas as descrições e definições de "transtornos psiquiátricos" e são tão abrangentes seus indícios classificatórios que quase ninguém escaparia de ser enquadrado em um deles caso se apresentasse a um atendimento psiquiátrico.

Porém, há uma inversão na lógica de construção diagnóstica. Para a psiquiatria, não parece haver mais aquela práxis em torno de hipóteses etiológicas prenhes de historicidade a serem consideradas pela reflexão científica, pois a verdade do sintoma estaria no funcionamento bioquímico que os próprios efeitos da medicação psicofarmacológica darão validade (Angel, 2007; Guarido, 2007). Dessa forma, os psicofármacos passam a participar, decisivamente, da nomeação dos "transtornos psiquiátricos" que vão compor os manuais diagnósticos e, acrescentaríamos, daquele sub-entendimento característico da clínica psiquiátrica tradicional que, em seu formato, se assemelha tanto às características gerais dos preconceitos (Crochík, 2008).

Em nossa pesquisa, a ausência do registro de diagnósticos na maioria dos prontuários examinados não significa que não exista uma patologia subentendida pela psiquiatria, pois o que autoriza a intervenção médico-psiquiátrica é a determinação de uma doença ou, mais que isso, de deter o poder de operar os mecanismos de fazer existir uma doença (Caponi, 2012; Foucault, 2006; Guarido, 2007). Porém, na dialética da prática, a abordagem do paciente se faria apenas na identificação de sinais e sintomas medicalizáveis, sem qualquer reflexão etiológica ou nosológica, dicotomia sugestiva de que as ampliações da nosologia psiquiátrica cumpriria uma função mais de autorizar a intervenção médica, enquanto a administração farmacológica de sintomas abasteceria a prática cotidiana do exercício profissional (Costa-Rosa, 2011; Rodrigues, 2003). Dessa forma, o tratamento psiquiátrico ficaria, via de regra, adstrito, na expressão sintética de Tenório (2000, p. 81) "ao manejo farmacológico dos sintomas".

Dupuy e Karsenty (1980) apontam que, em teoria, a "mola mestra" do ato médico é o diagnóstico, e que sem a determinação do diagnóstico não haveria a possibilidade de implicar a prescrição medicamentosa. Entretanto, é perfeitamente possível observar que a clínica psiquiátrica deixou de elaborar diagnósticos e atravessa "diretamente dos sintomas aos medicamentos", constituindo-se em uma prática profissional estereotipada, movida pelo desenvolvimento da farmacopéia e de seus modos de construção e penetração:

Na ausência de um esquema médico da doença e de seu tratamento, o médico aprenderá a passar diretamente dos sintomas aos medicamentos que atuam sobre esses sintomas por absorção, erradicação ou prevenção. Este curto-circuito da atividade analítica propriamente médica é sobretudo encorajado pela riqueza da farmacopéia, que se renova frequentemente e pelo esforço de adaptação a uma sintomatologia fina, traduzindo-se pelo emprego dos mesmos termos e das mesmas imagens que os do paciente. Se parece que tal procedimento satisfaria a clientela, a ausência frequente de diagnóstico pesará cada vez menos nas exigências dos médicos em relação à sua própria prática [...] A memória médica é pouco a pouco substituída pela memória farmacêutica (Dupuy & Karsenty, 1980, p. 100-101).

 

A evolução dos casos dos usuários encaminhados à psiquiatria

Os prontuários dos usuários que receberam prescrição de psicofármacos registravam, até o momento da coleta dos dados, que 61% dessa população permanecia em tratamento psiquiátrico no próprio Ambulatório e a porcentagem dos encaminhados para tratamento em outros serviços somava 11% dos casos. Se considerarmos que a parcela da população encaminhada para tratamento em outros serviços continuava sendo submetida a psicofármacos, o que pudemos verificar, o percentual de usuários em continuado tratamento psicofarmacológico chega a um total de 72%. O restante dos casos apresenta uma distribuição curiosa: as anotações de abandono de tratamento perfizeram 27% e os registros de alta respondem por apenas 1% dos casos. Isso significa que a alta é muito rara e que o abandono é muito frequente.

Interessante destacar que mesmo aquele 1% de altas no tratamento, correspondente a 3 usuários, estavam vinculadas à iniciativa dos próprios pacientes, que as obtiveram por solicitação explicita de finalização do tratamento psiquiátrico. Isso quer dizer que, assim como não há registro de usuário que tenha passado pela psiquiatria sem receber prescrição de medicação, também não há nenhum caso de alta por iniciativa do atendimento psiquiátrico. De forma que,

num período que variou de cinco a cinquenta e três meses de acompanhamento, em nossa amostra não foi encontrado nenhum caso de alta determinada pelo atendimento psiquiátrico. Como não é possível considerarmos o abandono de tratamento como "cura", torna-se impossível deixar de ver nessa inexistência de alta uma tendência a uma cronificação que tende a vincular o usuário ao psicofármaco para todo o sempre, com seus eventuais benefícios, é certo, mas também com todos os seus desdobramentos relativos aos efeitos colaterais (Mendonça & Carvalho, 2005), à dependência química e psicológica (Barrio et al., 2008) e à uma eternização da condição de paciente nada estimuladora da autonomia do sujeito (Gaudenzi & Ortega, 2012).

 

Considerações finais

O artigo que ora se encerra buscou abordar, com o aporte de dados de pesquisa de campo e de revisão de bibliografia especializada, a atual expansão e banalização da prescrição de psicofármacos e a proliferação de categorias diagnósticas psicopatologizantes do mal-estar contemporâneo. Os dados apresentados testemunham a existência de uma tendência presente na prática psiquiátrica atual que consiste em prescrever psicofármacos a qualquer pessoa que se apresente às suas consultas especializadas e em mantê-las medicadas como permanentes clientes de sua atividade profissional. Se essa prática é dificilmente defensável no âmbito da clínica privada, de onde se inspira, no serviço público devia ser francamente inadmissível.

Considera-se aqui, como se buscou apresentar ao longo do artigo, que essa prática vem distanciando a atividade psiquiátrica dos melhores compromissos éticos e científicos da medicina com seus pacientes, contribuindo para o risco de aproximar esse exercício profissional da condição menor de mera corrente de transmissão entre a indústria farmacológica e a população humana que se lhe afigura como simples clientela comercial. Finalmente, e, sobretudo, considera-se que essas tendências reducionistas e estereotipadas, infelizmente ainda tão comuns entre profissionais de saúde mental, são profundamente inadequadas às proposições de zelo científico e oferecimento universal de cuidados personalizados condizentes com valores de cidadania que, ainda que pesem ambiguidades, limitações e insuficiências, as conquistas democráticas já conseguiram, a duras penas, fazer-se presentes nas atuais diretrizes das políticas públicas de saúde mental.

 

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Recebido em: 06/08/2012
Aceito em: 03/01/2013

 

 

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