Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.8 no.1 Juiz de fora jun. 2015
ARTIGOS
Aspectos emocionais do paciente cardíaco cirúrgico no período pré-operatório
Emotional aspects of the cardiac surgical patient during the preoperative period
Gabrielle Hennig Grisa1; Janine Kieling Monteiro
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil
RESUMO
As doenças cardiovasculares são a principal causa de óbitos no Brasil. A intervenção cardíaca traz consigo grande carga emocional e anseios característicos naquele que se submeterá a ela, o que pode ser minimizado através do apoio psicológico nesta situação de crise. Para tanto, faz-se necessário investigar como se caracterizam os aspectos emocionais de tal paciente, sendo esse o objetivo dessa pesquisa qualitativa. O estudo contou com a participação de quatro pacientes cardíacos cirúrgicos, no período pré-operatório, de um hospital geral de Porto Alegre - RS. Na avaliação desses pacientes foram utilizadas uma entrevista e duas escalas, uma de ansiedade e outra de depressão. Os dados foram tratados por análise de conteúdo e descritivas. Os resultados indicaram que a metade dos pacientes apresentava um nível de ansiedade grave. Algumas emoções verbalizadas foram: dificuldade de aceitação, medo da ineficácia cirúrgica, de sentir dor, de ficar incapacitado para o trabalho e de morrer.
Palavras-chave: Paciente cardíaco cirúrgico; Psicologia hospitalar; Emoções.
ABSTRACT
Cardiovascular diseases are the leading cause of death in Brazil. Cardiac intervention brings great emotional burden and characteristic anxities in the person who will be submitted to it, which can be minimized through psychological support in this crisis situation. Therefore, it is necessary to investigate how to characterize the emotional aspects of such a patient, which is the purpose of this qualitative research. The study involved the participation of four cardiac surgical patients in the preoperative period in a general hospital in Porto Alegre-RS. An interview and two scales were used in the evaluation of these patients: one for anxiety and another for depression. The data were analyzed through content and descriptive analysis. The results indicated that half of the patients had a severe anxiety level. Some verbalized emotions were: difficulty of acceptance, fear of surgery ineffectiveness, of experiencing pain, of being unable to work and of dying.
Keywords: Cardiac surgical patient; Hospital Psychology; Emotional aspects.
O adoecimento ao mesmo tempo em que é visto pela medicina tradicional como consequência de determinada função mal desempenhada pelo corpo, do ponto de vista psicológico é entendido como uma reação para uma situação a qual não se estava preparada (Roth, 2002 citado por Fighera & Viero, 2005). A mesma lógica se aplica ao surgimento da necessidade de realizar uma cirurgia cardíaca: a ansiedade causada pelo desconhecido.
As doenças cardiovasculares (DCV) ocupam o posto de principal causa de óbitos no Brasil e em nível mundial. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2008 mais de 17 milhões de pessoas morreram de DCV, o que representa um total de 30% de mortes no mundo. No Brasil, uma média de 33% dos óbitos é constituída por esta causa, sendo que um dos fatores que predispõem as DCV é ser do gênero masculino, ainda que a ocorrência de óbitos seja maior entre o feminino. Para 2030, a OMS (2011) estima que cerca de 25 milhões venham a óbito por DCV, mantendo-se assim, mundialmente reconhecidas como principal causa mortis.
A intervenção cardíaca cirúrgica é uma vivência que carrega consigo diferenciada carga emocional e característicos anseios. Paradoxalmente, é tida como ameaça à vida: ao mesmo tempo em que pretende realizar um benefício ao paciente, suscita neste, sentimentos relacionados à iminência da morte (Fighera & Viero, 2005).
A partir da percepção da necessidade de compreender o paciente cirúrgico de forma integral, considerando os aspectos biopsicossociais (Sebastiani & Maia, 2005), motivado por esta problemática do abalo psíquico que assola o paciente cardíaco cirúrgico, é que o presente trabalho foi ponderado Verifica-se ainda a relevância de um estudo sobre os aspectos emocionais buscando auxiliar o psicólogo na intervenção com este paciente.
Para o paciente cirúrgico que será submetido a uma intervenção cirúrgica, o primeiro grande confronto pelo qual irá passar, é o reconhecimento da patologia que lhe ameaça a vida. A constante presença da temática de morte circundando este paciente, somada à incerteza de seu prognóstico, são desafios intrínsecos a esta fase que antecede a cirurgia (Bohachick, 1992 citado por Tavares, 2004). Alterações do costumeiro modo de viver, da incapacidade para o trabalho e da autoestima - advindas da mudança de seu papel no seio familiar e do aumento da dependência (fantasia de invalidez) - poderão ser fatores indutores de uma perturbação emocional significativa (Mello Filho & Burd, 2010; Tavares, 2004).
É nesse momento que surge a importância do trabalho da Psicologia, o qual pode auxiliar a acolher as angústias e anseios do paciente e intervir em prol da preparação para o procedimento cirúrgico a ser realizado e, após, com a proposta de dar segmento ao processo terapêutico, trabalhar demandas que poderão aparecer na nova etapa de vida.
A cirurgia e o paciente cardíaco cirúrgico
A cirurgia é uma variável desconhecida na vida do indivíduo, a qual pode acarretar ansiedade e medos diversos. É comum que o paciente cardíaco com indicação para cirurgia passe por uma regressão a uma etapa anterior do seu desenvolvimento emocional, desencadeando, por exemplo, comportamento de dependência, angústias geradas pela patologia e mecanismos de defesa empregados contra o medo sentido, na tentativa de preservar a sua homeostase (Ruschel, 2006). O medo do desconhecido é a causa principal para explicar a insegurança e a ansiedade vividas pelo paciente pré-cirúrgico, que experimenta diversas fantasias neste período, a sua grande maioria relacionada à anestesia, à dor e à recuperação. Em geral, tais fantasias manifestam-se por projeções imaginativas, improváveis e superdimensionadas em termos de intensidade e significado. Pontua-se o fato de que o medo da anestesia deve-se muito aos aspectos emocionais que o procedimento envolve. O fato de ser anestesiado implica em uma total perda do controle sobre o próprio corpo, o que pode significar extrema angústia em quem vivencia essa situação (Fighera & Viero, 2005; Oliveira & Ismael, 1995).
No que diz respeito à imagem corporal, quando uma parte é anexada ao corpo, expandindo-o, há também que expandir o mapa psicológico onde esta nova entidade se encontrará no plano da fantasia. É um processo de integrar psicologicamente o novo esquema corpóreo, o que é lento e gradual, pois abarca uma mudança de imagem que reflete, inevitavelmente, na autoestima deste sujeito - requerendo um novo investimento emocional no corpo. A partir desta demanda, a atuação do psicólogo deve-se à reorganização do esquema de consciência corporal do paciente cirúrgico, no sentido de que a intervenção cirúrgica modificou este corpo, tendo em vista que a reconstrução desta nova imagem corporal é necessária para o êxito da ressignificação do autoconceito, o representante da própria individualidade (Sebastiani & Maia, 2005).
Uma cardiopatia é enfrentada com uma ansiedade de morte, da qual emerge um sentimento principal: o medo de perder. Aqui a perda simboliza as relações familiares, o poder econômico e social, que agem como gatilho para ansiedade, medo, culpa ou raiva, dependendo da história e estilo de vida do paciente. Frente a um procedimento cirúrgico no coração, é possível constatar uma atitude de ambivalência por parte do paciente, que teme e, ao mesmo tempo, deseja que a cirurgia seja realizada. Essa reação emocional deve-se a um processo mobilizador e, muitas vezes, agressivo à estrutura psíquica: preconiza ter ansiedade diante do inesperado, fantasiar, negar, mostrar reações e inquietações que nos revelem o impacto emocional (Oliveira & Ismael, 1995; Ruschel, 2006).
A ansiedade e a hospitalização
Um dos sintomas mais citados pelos pacientes cardíacos cirúrgicos é a ansiedade, um estado da emoção caracterizada por componentes psicológicos e fisiológicos e que faz parte das relações e experiências humanas, podendo ser um agente que move as pessoas na tomada de decisão (Andrade & Gorestein, 1998). Passa a ser patológica quando é desproporcional ao episódio que a desencadeia, ou quando não existe um objeto específico ao qual se direcione. Se não for um sentimento expresso e conscientizado, pode afetar negativamente a saúde do paciente no processo pré e pós-cirúrgico (Fighera & Viero, 2005; Torratti, Gois, & Dantas, 2010). No paciente cardiopata, a ansiedade tende a ocorrer por conta de esta condição ter surpreendido o sujeito por seu súbito aparecimento e, muitas vezes, em um período interpretado como de grande realização na profissão e na vida pessoal - às vezes, somado a um planejamento de uma vida mais tranquila (Oliveira & Ismael, 1995).
A ansiedade decorre de uma situação conflitiva e é, muitas vezes, a sensação de que algo de desagradável está para acontecer. Ela se manifesta por seus componentes somáticos, é gerada no inconsciente e busca a vitalização dos sintomas psicossomáticos através da expressão corporal (Mello Filho, 2005; Ruschel, 2006).
A capacidade do indivíduo em lidar com a ansiedade vivenciada durante a internação para tratamento cirúrgico da sua cardiopatia é um aspecto relevante que traz à luz algumas consequências que podem acometê-lo neste período, com destaque para desordens de ajustamento relacionadas a um quadro de estresse pós-traumático, depressão e déficits cognitivos, especialmente no momento da alta hospitalar (Torratti et al., 2010). Neste período ocorre a queda das defesas do paciente, o que pode denotar em reações de ordem psicossomática como depressão, ansiedade e, por vezes, quadros confusionais (Oliveira & Ismael, 1995).
A hospitalização contribui para o sentimento de ruptura com o modo habitual de vida e com a perda da autonomia do paciente que se submeterá ao procedimento cirúrgico, constituindo uma sobrecarga do ponto de vista sociopsicossomático. Implica, ainda, em uma série de sentimentos e angústia de morte. Inclusive a hospitalização pode propiciar um processo de despersonalização ou perda da identidade, muito comum no ambiente hospitalar em longos períodos de internação, pois o paciente passa a ser tratado em função do quadro de sintomas que apresenta, assumindo uma identidade institucional, e não mais pela sua singularidade enquanto indivíduo (Fighera & Viero, 2005; More, Crepaldi, Gonçalves & Menezes, 2009; Oliveira & Ismael, 1995).
As dificuldades de adaptação acontecem no momento em que o paciente não é atendido em suas necessidades básicas, agravando as sensações de isolamento e angústia pré-existentes. Essas dificuldades são suficientes para produzirem uma crise que, dependendo da intensidade, pode desorganizar temporariamente a personalidade do paciente (Silva, Garcia, & Farias, 1990 citado por Fighera & Viero, 2005).
O desconhecimento sobre os procedimentos aos quais será submetido é que alimenta fantasias e sentimentos irracionais e até mesmo desproporcionais. A noção do que virá a lhe ocorrer atenua tais sentimentos e reforça outros, que dá margem a um senso de colaboração, confiança e esperança de um prognóstico positivo (Romano, 1999). Desta forma, reforça-se a importância de a Equipe de Saúde informar o paciente dos procedimentos pelos quais ele irá passar no período pré-operatório, bem como do caráter de recuperação que motiva a sua passagem pela Unidade de Terapia Intensiva (UTI) no pós-operatório. Esta preparação será feita em parceria médica-psicológica, sendo o acompanhamento do psicólogo hospitalar necessário para o manejo do quadro de ansiedade (Gorayeb, 2001; Oliveira & Ismael, 1995).
A depressão, a ansiedade e a negação da doença são manifestações psicológicas consideradas comuns em pacientes portadores de alguma cardiopatia. É possível identificar a depressão e a ansiedade como fatores de risco para complicações de ordem cardiológica, bem como para uma maior mortalidade destes (Ruschel, 2006). O paciente cardíaco cirúrgico pode ser acometido por sintomatologia de depressão logo nos primeiros dias de internação, o que em geral decorre de uma perda da autoestima. Oliveira e Ismael (1995) trazem como característica mais marcante do paciente que se submeterá à cirurgia cardíaca, o anseio de não mais ser o mesmo, de perder a autoridade sobre si mesmo, de vir a desenvolver, por conta da cirurgia no coração, limitações que antes não tinha.
Neste período surgem fantasias, inquietações e medos diversos relacionados ao seu quadro clínico. Com a intervenção terapêutica e informativa da Psicologia, poder-se-á evitar o desenvolvimento da agressividade, da autopiedade e da não aderência ao tratamento indicado (Oliveira & Ismael, 1995).
Com a presença do psicólogo na equipe multidisciplinar, as percepções, fantasias, medos e sintomas depressivos e ansiogênicos podem ser detectados e trabalhados de forma a não se tornarem obstáculos. Um aspecto a ser levado em consideração é o de que a tensão e a ansiedade no pré-operatório geram maior risco de depressão, baixa aderência ao programa de reabilitação e outras intercorrências no pós-operatório (Sebastiani & Maia, 2005). Para tanto, é essencial que o psicólogo hospitalar inicie o atendimento antes da cirurgia para que possa manejar a ansiedade, acolher angústias e obter informações do paciente sobre as quais irá intervir, dando suporte emocional no momento de fragilidade ocasionada pela crise recente. É de igual importância dar continuidade ao acompanhamento deste paciente no pós-cirúrgico, visando orientá-lo na recuperação, acolher suas demandas relacionadas ao seu novo momento, auxiliar na possibilidade concreta de gerar condições mais saudáveis para todos os envolvidos no problema/queixa ou situação de atendimento (Gorayeb, 2001; More et al., 2009; Oliveira & Ismael, 1995).
Diante das questões apresentadas, o presente estudo foi desenvolvido objetivando investigar como se caracterizam os aspectos emocionais do paciente cardíaco cirúrgico Como objetivos específicos buscou-se mensurar a sintomatologia de depressão e de ansiedade nesses pacientes, antes da cirurgia, relacionando essas avaliações aos aspectos emocionais descritos pelos mesmos.
Metodologia
O presente estudo trata-se de uma pesquisa qualitativo-exploratória e descritiva.
Participantes
Fizeram parte do estudo quatro pacientes cardíacos cirúrgicos de um hospital geral de Porto Alegre/RS, sendo três do sexo feminino e um do masculino. A seleção dos participantes foi por conveniência ou acessibilidade (Gil, 2009) e foram incluídos aqueles pacientes que iriam realizar sua primeira cirurgia cardíaca e ter idade acima de 40 anos.
Instrumentos
Foi utilizado um questionário sócio demográfico, investigando algumas informações como sexo, idade, situação civil, histórico de comorbidades, entre outras.
Foi conduzida uma entrevista, a partir de um roteiro semiestruturado, a fim de priorizar a escuta de questões relacionadas aos aspectos emocionais dos pacientes cardíacos cirúrgicos, bem como as percepções destes acerca do momento vivido e temores de passar por uma cirurgia no coração.
Para avaliar a sintomatologia de depressão e ansiedade, foram utilizados o Inventário Beck de Depressão (BDI) e o Inventário Beck de Ansiedade (BAI), que consistem em escalas de auto relato com 21 itens de múltipla escolha, apresentados na forma de afirmativas e destinados a medir a severidade de depressão e ansiedade. Ambas as escalas foram validadas para a população brasileira por Cunha (2001), demonstrando índices satisfatórios de validade e fidedignidade.
Procedimentos para coleta de dados
Os responsáveis pela instituição onde os dados foram coletados autorizaram por escrito a execução dos procedimentos do estudo. Todas as etapas do estudo foram analisadas e aprovadas pelo Comitê de Ética da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
O recrutamento dos participantes ocorreu através da localização destes por meio de um cadastro de pacientes cardíacos encaminhados ao Serviço de Psicologia do hospital em questão. Todos os pacientes que passarão por cirurgia cardíaca no presente hospital recebem atendimento psicológico antes da cirurgia. Tais encaminhamentos são realizados pelos médicos cardiologistas responsáveis pelas cirurgias através do prontuário digital que é operado na instituição hospitalar.
As entrevistas individuais e aplicação das escalas foram realizadas nas dependências do hospital, junto ao leito dos pacientes. As mesmas foram conduzidas antes do procedimento cirúrgico. As entrevistas foram gravadas, mediante o consentimento dos integrantes pesquisados, e posteriormente transcritas para análise.
Critérios de análise dos dados
Os dados coletados, através das entrevistas, foram integrados e analisados por meio do método de Análise de Conteúdo (Bardin, 2009). Este consiste na descrição analítica do conteúdo manifesto e sua posterior interpretação, compreendendo: a pré-análise (leitura de todo material), a exploração do material (classificação de categorias) e o tratamento dos resultados (análise e interpretação). Utilizaram-se categorias a priori (baseadas nos objetivos - Emoções e percepções atuais a respeito de si, da família, do trabalho e das relações sociais; Inquietações acerca da indicação para cirurgia cardíaca; Principais temores acerca da iminência da cirurgia cardíaca; Principais fantasias acerca da cirurgia cardíaca; Receios na nova etapa de vida) e a posteriori (emergidas nas entrevistas - Autopreparação para a cirurgia; Expectativas para a nova etapa de vida), visando contemplar os objetivos propostos. Algumas categorias ainda foram subdivididas em subcategorias, pela necessidade de especificar mais o conteúdo encontrado. Os dados coletados, através das escalas BDI e BAI, também foram submetidos à avaliação segundo o Manual da versão em português das Escalas Beck (Cunha, 2001), através do qual foram levantados e classificados os resultados.
Resultados e discussão
Para uma melhor compreensão dos participantes do estudo, a Tabela 1 permite a observação de alguns dados descritivos do público pesquisado. A maioria dos pacientes possui relação estável e todos possuem filhos. Nos outros dados demográficos apresentados (escolaridade, renda individual, emprego e histórico de comorbidades) os participantes são bastante heterogêneos. Isso, de alguma forma, pode influenciar nas dinâmicas afetivas vivenciadas. No entanto, para essa pesquisa, foram compreendidos como grupo, já que todos estavam atravessando a iminência da cirurgia cardíaca. As duas modalidades cardíaco-cirúrgicas envolvidas foram: troca valvar aórtica e revascularização do miocárdio (ponte mamária ou de safena).
Foi verificado, através da aplicação das escalas propostas, que duas participantes (S1; S4) obtiveram escores de significância para caracterizar nível de ansiedade grave, enquanto outros dois participantes (S2; S3) não apresentaram escore que configure ansiedade no BAI, de acordo com Cunha (2001). A ansiedade é sentida como sinal de alerta, indicando a aproximação de uma ameaça à integridade física ou emocional e pode, inclusive, ser uma maneira de mascarar determinada preocupação (Gabbard, 2006; Sadock & Sadock, 2007).
Quanto aos resultados observados no BDI, foi possível mensurar que uma participante (S4) atingiu escore de nível leve para sintomatologia de depressão, em contrapartida aos demais participantes (S1; S2; S3) que apresentaram índices congruentes apenas ao nível considerado mínimo, o que, segundo Cunha (2001) não caracteriza depressão no BDI. A vulnerabilidade ocasionada pela combinação da hospitalização com a necessidade de uma operação no coração pode levar a incidência de sintomas depressivos no paciente logo nos primeiros dias de internação (Oliveira & Ismael, 1995). Entretanto, é importante mencionar que S4 vivenciou doença grave pregressa, possivelmente tratada por procedimentos invasivos e dolorosos, aos quais outros participantes não foram submetidos.
O estresse gerado pelo evento cirúrgico está diretamente relacionado às características da patologia cardíaca, bem como: a gravidade, os sintomas que produz, a intensidade com a qual é sentida, a incapacidade que gera e a possibilidade de cura. Pode suscitar também um sentimento de impotência, insegurança e mudanças nas funções corporais (Juan, 2007). Os resultados obtidos representam a forma como os sujeitos pesquisados se perceberam frente ao prenúncio da cirurgia cardíaca e a maneira com que cada um reagiu a este evento estressor. Sendo assim, poderíamos presumir que os sujeitos 2 e 3 apresentam maior autocontrole e capacidade resiliente quando em contato com situações adversas. Já os sujeitos 1 e 4, por terem configurado o nível mais grave na escala de ansiedade (BAI), sugerem maior fragilidade neste âmbito, provavelmente relacionada a preocupações decorridas - exemplificadas nas subcategorias (apresentadas posteriormente) Incompreensão do acometimento da cardiopatia (S1) e Impacto da notícia (S4) - neste momento de crise referido por Juan (2007) como causador de instabilidade. Observando o escore configurado pelo Sujeito 4 na escala de depressão (BDI), sugere-se que tal participante possa ter experienciado revivescências conectadas a sentimentos de culpa - conforme ilustrado em trecho de entrevista na subcategoria Culpa/Auto depreciação (indicada na sequência) -, sugerindo diminuição da autoestima.
As escalas serviram como complemento às entrevistas, elucidando o estado emocional dos participantes no momento da aplicação.
Os principais resultados gerados pelas entrevistas - analisadas pelo método de Análise de Conteúdo de Bardin (2009) - explanam outros aspectos que podem estar relacionados à iminência da cirurgia cardíaca. A categorização das entrevistas permitiu agrupar os resultados em sete categorias de análise mista (5 a priori e 2 a posteriori), das quais serão destacados alguns fragmentos das entrevistas para uma melhor ilustração dos resultados obtidos.
Emoções e percepções atuais a respeito de si, da família, do trabalho e das relações sociais
Esta categoria reuniu verbalizações relacionadas às principais emoções e percepções associadas à forma como os sujeitos se percebem - em relação a si mesmos, sua família, seu trabalho e suas relações sociais - no momento atual. Este grupo deu origem a subcategorias (sentir-se mais nova, culpa/auto depreciação, incapacidade para o trabalho e contar com o apoio familiar) que trazem a auto percepção do paciente a partir de emoções suscitadas pelo contato do sujeito com a proximidade da cirurgia cardíaca.
Sentir-se mais nova do que cronologicamente é
[...] Nem que eu pense que eu to com 71 anos, eu me vejo com 71 anos, entende? Não é a questão física, não é o cabelo branco porque eu pinto... É por dentro! (S1).
Culpa/Autodepreciação
Uma coisa que me dói muito é que eu não cuidei direito da minha mãe, antes dela morrer. E isso eu, eu tenho uma culpa enorme. Eu também fiz um aborto. É o que tá marcado lá (escalas de avaliação), eu não sou suficientemente boa como eu gostaria de ser, ou de ter sido, ou como eu fui. Eu acho que com a idade eu fui ficando menos boa. Ai, eu acho que não tem perdão porque eu sabia de tudo, não foi por ignorância. [...] Pra me perdoar eu penso 'ah não, mas todo mundo já fez, eu não sou diferente dos outros'. Mas aí tem um sentimento maior, uma culpa maior, que não deixa. (S4)
Incapacidade para o trabalho
Foi ruim entende, porque era uma coisa que era meu sonho (ser professor). Voltei já depois de uma certa idade porque quando era novo não tinha oportunidade pra estudar. Voltei, consegui me formar, aí no momento que eu consegui o que eu queria né, aí veio essa decepção (afastamento do trabalho). Por causa deste problema, eu não consegui (seguir trabalhando). (S3)
Contar com o apoio familiar
A gente tem uma vida muito boa, muito aberta entre eu e ela - esposa. O que a gente tem que conversar, a gente conversa. Eu me dou muito bem com a minha família. [...] Tenho muito apoio delas - esposa e filha. (S3)
As emoções são processos de constituição subjetiva, influenciadas pela dimensão da interação social (Neubern, 2000; Bonomo & Araujo, 2009). A categoria apresentada permite que observemos as variadas representações emocionais trazidas pelos participantes frente a diferentes temas de seu contexto situacional. O Sujeito 1 relaciona a cirurgia cardíaca com a idade avançada e a confrontação com a última traz o medo da morte, momento para o qual ainda se sente muito nova. O Sujeito 2 realiza uma retrospectiva das ações pessoais sobre as quais ainda sente culpa, verbalizando-as como recurso para aliviar a angústia sentida. O Sujeito 3 traz a frustração como emoção predominante por conta da cirurgia impedi-lo de trabalhar no que gosta, entretanto enaltece que neste ínterim conta com o apoio de sua família para amenizar-lhe a decepção sentida. A categoria apresentada permite que observemos as variadas representações emocionais trazidas pelos participantes frente a diferentes temas de seu contexto situacional (Neubern, 2000; Bonomo & Araujo, 2009).
Todas as quatro subcategorias explicitam fatores de reação frente a este momento de crise e de risco de morte vivenciado pelos sujeitos da pesquisa, corroborando o dito por Winter (1997) de que a subjetividade é que leva o ser humano a enxergar o concreto.
Aspectos emocionais acerca da indicação para cirurgia cardíaca
Esta categoria agrupou as explanações que tiveram relação com aos aspectos emocionais dos participantes quanto à indicação cirúrgica enquanto modalidade de cura para suas cardiopatias. As subcategorias (incompreensão, impacto da notícia e angina) se justificam necessárias por trazerem diferentes perspectivas por parte dos integrantes da pesquisa quanto ao tema categorizado, no que diz respeito à maneira com que a notícia foi recebida e compreendida.
Incompreensão do acometimento da cardiopatia
Pra mim, o pior é entender que eu estava caminhando, saindo da consulta com o dentista [...] e me deu isso (apontando pro peito). Eu tenho pressão alta, mas nunca tive nada no coração e agora eles tão dizendo que precisa operar. Eu não tô questionando o médico né, pra deixar claro, mas eu só não entendo. (S1)
Mas eu não sei te explicar [...] num belo dia fiz um exame e o médico me disse, 'olha, a senhora tem sopro no coração'. Eu não sabia de nada, eu nunca senti nada, né. Agora de um mês pra cá, que começou a me dar essa, essa falta de ar, essa coisa né, e aí foi que eu procurei o médico. [...] Mas nunca me preocupou, só agora que me amedronta um pouco. (S2)
Impacto da notícia
Ah, nunca, em relação ao coração, nunca imaginei que precisasse fazer cirurgia. Mas no ano passado eu falei pro F. (esposo): 'O olha aqui essas veias' e eu olhava as pessoas, ninguém é como eu. Aqui (jugular) bate de uma maneira terrível que as pessoas ficam assim até (fixando olhar) e eu boto um broche aqui. Sinto essa falta de ar, sinto que isso não é normal, ninguém faz isso. Parece que a respiração que eu tenho é insuficiente, e é insuficiente. Mas nunca cheguei a ponto de pensar 'bah, eu vou ter que fazer cirurgia', nunca. Quando o doutor disse: 'É, nós vamos precisar de uma cirurgia'. Eu levantei, sabe e o F., ele derramou lágrimas, assim. Eu cheguei em casa e chorei. Assim: 'Como será que eu vou ficar? Será que vou superar essa?' (S4)
Angina (alívio da dor)
Ah, quando eu fiquei sabendo pra mim foi assim, um pouco eu fiquei pensativo, né. [...] A ponte amenizaria a dor, entende? Aí a gente foi trabalhando, foi lutando né. Só que a dor continua. [...] Chegou um ponto que eu falei pra ele 'doutor, a sensação que eu tenho é que o tratamento convencional não vai adiantar mais'. [...] Tem uns medicamentos que tomo somente contra a dor né, aí passa o efeito dele e a dor volta ao normal, né. Sabe é aquela dor que tu sente ela direto. Ela te dói, te queima, te dá aquelas agulhadas, te queimando. (S3)
Receber a notícia da necessidade de se submeter a um procedimento cirúrgico pode ser bastante desorientador, pois o paciente ficará focalizado nas implicações e possíveis consequências de ordem negativa deste acontecimento vindouro em sua vida. A descoberta da patologia, o surgimento do diagnóstico e o deparo com o procedimento cirúrgico como forma de tratamento denotam a debilidade da saúde do indivíduo (Juan, 2007).
Os Sujeitos 1 e 2 se encontravam no estágio de dar-se conta do acometimento de uma cardiopatia, mesmo que essa tenha sido silenciosa por toda a vida, não tendo lhes trazido prejuízo até antes da sua descoberta. Em função disto, S1 e S2 encontram dificuldade em aceitar a real necessidade do procedimento. Enquanto o Sujeito 4 confirma, com o diagnóstico clínico, uma hipótese pessoal de haver algo de diferente em seu funcionamento corporal, podendo, finalmente, compreender a angústia que sempre sentiu, o Sujeito 3 enfrenta sua cardiopatia com transparência. Partiu do S3 a iniciativa de buscar por orientação médica e reavaliar as opções de tratamento que lhe pudessem ser eficazes, alcançando o intento da adaptação por compreender que seria a melhor solução de seu problema.
O paciente frente à ameaça cirúrgica poderia lidar de melhor forma com o fato de estar doente a partir da aceitação da doença e da confrontação da cirurgia enquanto solução. Isto o auxiliaria em sua reorganização psíquica, já que houve uma ruptura em sua homeostase (Juan, 2007).
Autopreparação para a cirurgia
Para esta categoria priorizou-se a reunião de dados de entrevista acerca do que preocupa o paciente cardíaco cirúrgico antes do procedimento propriamente dito e de que forma lhe parece importante a sua preparação para este evento. As subcategorias (ter informação, saber do pós-cirúrgico, manter familiares informados e espiritualidade) dão conta da diversidade de apreensões dos pacientes referente a este tópico.
Ter informação dos procedimentos envolvidos no ritual cirúrgico e de seus riscos
Ah, só uma coisa: e sobre os riscos que ocorrem na cirurgia? A gente tem que saber, né?! (S1)
[...] No início eu fiquei meio assim e ele (médico) me passou os slides de todo uma cirurgia, do procedimento, como que era. (S3)
Saber do pós-cirúrgico de outros pacientes
Eu acho que pessoas que se operaram sentem dor, choram... e é bom saber né, como é depois. Então não tô tranquila não, tô um pouquinho ansiosa. (S1)
A gente vê tantas pessoas que já fizeram esses procedimentos e tão longe, normal, trabalhando. [...] Então não tem por que se preocupar tanto, também. (S3).
Manter familiares informados
A maior preocupação é com a família, pra deixar eles sabendo de tudo e tranquilos. (S1).
Espiritualidade como fator protetivo e de esperança
Eu sempre dizia pra minha doutora, 'não é a senhora que vai determinar, só Deus mesmo, se eu vou ter um problema sério ou menos sério, com tratamento ou não'. (S1)
Olha, pra mim tudo é importante. Eu adoro a vida, eu adoro tudo. E é tão bom. Se Deus quiser, vou voltar pra atividade normal. [...] O pior? Nem penso nele, pra mim não existe. (S3)
Eu tenho um lado, um resquício da religiosidade, sempre fui muito católica. [...] Eu não sei que religião sou hoje, mas acredito muito no espiritismo, mas não deixo de ter uma fé nos anjos, nos santos. (S4).
No momento pré-cirúrgico a ansiedade é o sentimento de destaque vivido pelos pacientes por não saberem o que lhes aguarda e é por isso que se ressalta a importância de antecipar as particularidades do ato cirúrgico: informá-lo quanto ao que lhe acontecerá neste processo para que ele compreenda ao que será submetido (Juan, 2007).
Para esta categoria, as falas dos Sujeitos 1 e 3 exemplificaram sua ansiedade e, concomitante a isso, o que lhes traria conforto e acolhimento quanto à realização da cirurgia. S1 e S3 explanam da importância do conhecimento dos procedimentos que os envolverá para que possam tranquilizar-se. Em outro momento, os Sujeitos 1, 3 e 4 evidenciaram a importância da espiritualidade enquanto fator de proteção e em suas vidas. Apoiam-se na espiritualidade a fim de buscar conforto para seus temores a respeito do que desconhecem.
Os resultados discutidos legitimam o que Ruschel (2006) e Mello Filho e Burd (2010) referem como sendo uma conduta comum nos pacientes que se preparam para o evento cirúrgico: a possibilidade de regredir a uma etapa anterior do seu desenvolvimento emocional, apresentando comportamento de dependência e empregando mecanismos de defesa suscitados pelo medo e por uma tentativa de avaliar a situação racionalmente. Ambos a fim de priorizar a autopreservação.
Principais temores acerca da cirurgia cardíaca
Neste enquadre da categorização estão associados àqueles que são relatados como sendo os principais temores provocados nos pacientes cardíacos com relação à cirurgia em si. Conta com três subcategorias (perder a consciência, medo da morte, preocupação com a família) com o intuito de que estas auxiliem na compreensão das apreensões, tendo em vista que o procedimento pelo qual estes sujeitos irão passar é considerado invasivo e de alto risco.
Perder a consciência
Perder a consciência. Eu nunca perdi, mas acho que vai chegar uma hora que pode acontecer, né. Mas eu, é como eu lhe digo, isso tudo é o medo do desconhecido. (S1)
Ah, que eu não acorde mais, que seja insuficiente. (S4).
Medo da morte
Se vai dar certo a cirurgia. [...] O que que eu penso? Sinceramente, é se eu posso morrer ou não. [...] Eu perguntei pro médico brincando, porque ele é muito assim, né. Eu perguntei 'o senhor dá garantia? (S1)
Pensativo. Eu fiquei: bom, vai dar certo ou não vai dar certo, né?! [...] A única coisa que eu tenho medo é que me dê outro infarto e na verdade me derrube né, porque tive um primeiro que eu não senti nada. Foi silencioso. Aí depois de exame se descobriu, fui fazendo tratamento e aí começou a mexer e vir as dores, né. (S3)
Ah, que eu posso ficar machucada e não morrer, mas ficar um pouco prejudicada. Que eu não me cure de todo. Ou que eu venha a sentir dor. (S4)
Muito medo. Vontade de chorar no colo da minha mãe, uma vontade de abraçar e me derreter chorando e que digam: tu vai sair, tu vai superar. (S4).
Preocupação com a família
Eu só penso assim, que quando eu for, os meus filhos continuem a vida deles como quando estavam comigo. (S1)
O surgimento de um episódio novo e/ou desconhecido gera nos indivíduos uma reação de ansiedade por conta de um receio daquilo que não lhe é familiar. O agravo das angústias pré-cirúrgicas acontece no momento em que o paciente é frustrado em suas necessidades básicas, trazendo à tona as dificuldades de adaptação ao evento estressor, o que é suficiente para intensificar a crise, podendo desorientar o paciente provisoriamente (Fighera & Viero, 2005; Juan, 2007).
Na primeira e na última subcategoria, os sujeitos 1 e 4 revelam o medo de perder o controle sobre si, tomando por exemplo o receio de perder a consciência, de não voltar a acordar. Justificam esses temores ao medo daquilo que desconhecem, do que pode vir a lhes acontecer e, inclusive, ressoar naqueles que lhes são próximos. Na segunda subcategoria, o discurso de todos os sujeitos se refere expressamente ao risco em que correm suas vidas ao realizar a cirurgia indicada. Nisto, simultaneamente, trazem um sentimento ambivalente com relação a ela. Nesta lógica, a cirurgia poderia ser tanto o único caminho que os levaria a cura de seu mal, quanto um caminho que lhes encurtaria a vida, anunciando em suas falas o conflito decisional de que esta é a melhor solução, se lhes dará a garantia de uma melhor qualidade de vida pós-cirúrgica.
O registro de insegurança do sujeito quanto à eficácia da operação, refere-se a sensação de ausência de controle despertada no paciente pela aproximação deste momento determinante. Ao se imaginar sendo manipulado pela equipe médica durante o procedimento, o sujeito sente-se ameaçado por estar em uma situação de absoluta dependência, colocando a sua vida nas mãos de outrem (Juan, 2007).
Principais fantasias acerca da iminência da cirurgia cardíaca
Para esta categoria foram reunidas as falas coletadas por intermédio das entrevistas que fazem referência às principais fantasias dos pacientes acerca da iminência do procedimento no coração. Deu origem a subcategorias que auxiliam a organizar as particularidades relatadas que vão desde a fantasia de que a cirurgia pode não ser necessária, até a fantasia de enxergar o coração como depósito de emoções.
Que a cirurgia seja desnecessária
Olha, na verdade o maior temor é meio bobo, tu podes pensar, né, e eu sei que é, mas já que tu estás me perguntando, temo que não seja necessário passar por uma cirurgia. (S1)
Fantasia de que a anestesia geral possa deixar sequela
Medo não, mas só acho que pode ter uma consequência da anestesia né, não sei. No andar, sei lá, né. Eu não sei bem, não sei bem o que pensar. (S1)
Que o procedimento cirúrgico mude o sujeito
Só o que eu penso é que será que eu vou voltar a ser, agir como eu agia, de não ter preocupação com nada, né, fazer as coisas tudo né, dentro de casa. Daí eu penso nisso, porque eu tenho um genro que fez, ele fez cateterismo só, e agora ele trabalha com tudo, ele trabalha lá fora com os animais, tudo. Ele não tem mais nada. É isso que eu pensei, que eu ia fazer cateterismo e ia ficar bem que nem ele, daí não ia precisar operar. (S2)
O coração como máquina
É, no começo eu pensei: barbaridade, mas tu vai lá aí funciona assim e assim, aí o teu sangue é todo desviado pra uma máquina, aí o coração vai parar. Aí eu disse: mas doutor, e depois pra ele voltar a funcionar? Daí ele disse: não, não tem problema, ele volta a funcionar igual depois. Mas bem dizer, ele pára né, pra poder trabalhar nele. [..] Daí a primeira preocupação que eu disse pra ele foi: doutor, mas depois que ele voltar, né, se ele parou, aí ele passou, né? (S3)
Coração como depósito de emoções
Ai eu não consigo nem pensar (no peito aberto), eu, eu acho que vou ser esganiçada, vou ser esmiuçada e será que eles vão arrumar direitinho depois o coração? Arrumam? Essa parte cirúrgica compete a eles (médicos), mas parece que, como se pensava antigamente, o coração seria um depósito de emoções, né. Vão mexer em tudo? (S4)
Submeter-se a uma intervenção neste órgão vital, que corresponde ao coração, origina um desafio para o paciente cardíaco: reconhecer o fato de portar uma cardiopatia que lhe ameaça a vida. Torna-se conflitante que o tema do risco de morte passe a estar invariavelmente presente no cotidiano deste paciente, o que o leva, protetivamente, a questionar tal diagnóstico - além de fantasiar, motivado pela incerteza, sobre seu prognóstico (Tavares, 2004). Enfrentar uma patologia no coração traz consigo uma ansiedade de morte significativa, da qual emerge uma característica sensação de perda. Esta perda pode representar as relações ou o poder econômico e social, que agem como gatilho para angústia, temores e culpa, dependendo da história e características do paciente (Ruschel, 2006).
Este embasamento nos possibilita observar que o funcionamento do Sujeito 1 frente à cirurgia oscila entre o desejo de crer no diagnóstico médico e a não aceitação deste problema real, provando ser um mobilizador agressivo à estrutura psíquica, o que faz suas defesas assumirem o controle, criando um conflito de elaboração. Além de fantasiar acerca da não necessidade da cirurgia, S1 fantasia a respeito de sequelas na sua capacidade locomotora que decorreriam da anestesia e a lesariam - fantasia de invalidez -, o que ilustra a sua desorganização frente à ameaça da cirurgia lhe causar um mal e não um bem. O Sujeito 2 expressa ter receio de que possa mudar sua maneira de ser em função da operação. Tal explanação admite que levantemos a hipótese desta fantasia, por conta da invasão que farão em seu coração, que fantasiosamente poderia mudar a sua organização interna e com isso, as suas características. Em contrapartida, o Sujeito 4 fantasia que, mais do que lhe mudar, o procedimento possa lhe fazer perder algo - no plano subjetivo - ou de se perder, visto que S4 cita a fantasia de que fique só, em consequência da cirurgia.
É pensando no coração enquanto uma máquina na qual os médicos trabalharão para consertar o que não está funcionando adequadamente, que os Sujeitos 3 e 4 fantasiam a cirurgia como uma limpeza, uma restauração de sua própria máquina danificada. Surge a fantasia de que, por parar em determinado momento para que os médicos atuem - que é um procedimento controlado por estes, através de um coração artificial para o qual o sangue é bombeado - o coração pode não voltar a bater. Ao mesmo tempo, há a fantasia de que o coração, voltando a bater, terá passado no teste proclamado pela oficina. Como última subcategoria, temos a fantasia do Sujeito 4, que identifica o coração como um depósito de emoções pelas quais teme que, na cirurgia, sejam mexidas pelos médicos. Levantamos a questão citada por S4 de que esta seja esmiuçada e que, fantasiosamente, os médicos possam saber de seus sentimentos e segredos e então, julgá-la como não merecedora, podendo não arrumá-la ou então, que perca sua privacidade emocional.
Os sentimentos estão intimamente associados ao coração e este é o centro do corpo físico e emocional (Dethlefsen & Dahlke, 2007). A doença cardíaca tem assumido culturalmente a relevância de atingir o órgão depositário das emoções, por ser visto como o encarregado de resguardar os valores e características afetivas e essenciais do ser humano e que dão forma à identidade emocional dos sujeitos (Padilha & Kristensen, 2006; Ruschel, 2006).
Receios na nova etapa de vida
Nesta seção é possível observar o conteúdo trazido pelos participantes da pesquisa no que diz respeito aos receios sentidos no pré-cirúrgico, sobre a nova etapa de vida, no pós-cirúrgico. As subcategorias (questão econômica, mudança de papel e incapacidade) enaltecem as diversas preocupações desses sujeitos, abarcando âmbitos pessoais e interpessoais.
Questão econômica
Acho que a questão econômica, o nível de vida vai mudar, mas como a gente é uma família grande, acho que todo mundo vai ajudar. (S1)
Mudança de papel na família
Ah, eu acho que muito bom né, mas é que também eles precisam se cuidar. Tenho medo que eles precisem de um cuidado que eu não vou poder dar pra eles. (S1)
Incapacidade de realizar atividades que lhe dão prazer
Eu gosto muito de folhagem né, então eu tô sempre mexendo nos vasos, mexendo na terra. Sempre gostei. É só o que eu penso: se eu vou poder fazer isso aí depois da operação. (S2)
Enfrentar a ameaça de morte e a convivência com fantasias de conteúdos conscientes e inconscientes que ameaçam a integridade egóica pode ser árduo. Evoca o medo da dor e de futuras restrições após a operação, o que implicará em readaptações relacionadas à autoimagem do sujeito (Oliveira & Ismael, 1995).
É receando por dificuldades no pós-cirúrgico, que o Sujeito 1 traz a questão econômica como sendo uma possível problemática no pós-cirúrgico, entretanto a confiança em sua rede de apoio ameniza este receio. O que mais preocupa ao S1 é que não possa mais ocupar o papel de cuidadora de sua família, o que ocupa espaço importante em sua vida. Esta evidência pode significar o medo de decepcionar aqueles que, de alguma forma, lhe são dependentes, sendo tarefa ansiogênica para S1 deixar-se ser cuidada no pós-cirúrgico. O Sujeito 2 tem como principal receio que a cirurgia lhe impeça de retornar às atividades que lhe dão prazer, o que retoma a sua desconfiança acerca de seu problema cardíaco, temendo que seja impossibilitada de realizar o que tem por gosto, por consequência de uma patologia que não sente (categoria Inquietações acerca da indicação para cirurgia cardíaca).
As subcategorias discutidas nos permitem ressaltar, conforme Tavares (2004), que a mudança do costumeiro modo de vida, a incapacidade para o trabalho e as consequentes mudanças de papéis no meio familiar refletem na diminuição da autoestima e no aumento da dependência, podendo ser fatores de indução a uma agitação emocional significativa.
Expectativas para a nova etapa de vida
Marcando a última categoria do estudo em apresentação, estão compreendidas as falas dos sujeitos da pesquisa no pré-cirúrgico, que apontam suas expectativas para o novo momento de sua vida, no pós-cirúrgico. As duas subcategorias se justificam pela valorização de dois momentos distintos pensados pelos pacientes.
Melhorar
Que eu vou ficar melhor que antes. Que vai me passar essa dor com certeza. E que o trabalho eu vou recuperar também. (S3)
Eu vou ser melhor. Eu vou ser mais carinhosa, ter mais compreensão. [...] Encarar a vida e ser, de certa maneira, diferente. Ser mais corajosa. [...] Eu acho que eu vou ser feliz e não vou ter mais essas dores, essa respiração tão profunda. Parece que eu tô com muito medo e eu tenho a impressão que vão arrumar meu coração. Ai, olha! Eu tô juntando a emoção com a dor... que coisa incrível. (S4)
Estar mais na companhia dos familiares
No sentido de né, o meu neto: olha vó, hoje eu vou te levar pra sair. (S1)
Com a família eu queria assim: estar mais. (S4)
Quanto à subcategoria que registra a projeção de melhora por parte dos pacientes, os sujeitos 3 e 4 trouxeram relatos de uma melhora física, que prevê a recuperação das atividades e do trabalho e, principalmente, a superação da dor e da respiração profunda. O Sujeito 4 traz ainda a esperança de que os médicos arrumem o seu coração a nível físico e emocional. Referindo-se à subcategoria que expressa o desejo de estar mais na companhia dos familiares, os sujeitos 1 e 4 depositam na cirurgia um meio de estarem mais próximos de sua família, provavelmente por projetarem que o evento cirúrgico provoque em seus familiares uma necessidade de maior cuidado e altruísmo para com o ente que se recupera.
É esperado que pacientes pré-cirúrgicos pensem em mudar atitudes frente à vida e às atividades cotidianas, bem como questionar se haverão alterações relacionadas aos próprios sentimentos. A operação ocorre em um processo auto reflexivo daquilo que poderia ter sido feito de forma diferente e serve de estimulação para, após a cirurgia, agir de outra forma e, em sua lógica de pensamento, projetar uma melhora pessoal enquanto ser humano. Desta forma, Juan (2007) traz a potencialição da capacidade resiliente dos pacientes para enfrentar o impacto da cirurgia após a sua ocorrência.
Em um plano psicoterápico ideal, seria indicado que todo o paciente que irá passar por uma cirurgia do coração receba atendimento antes e depois da cirurgia. O atendimento psicológico no pré-cirúrgico o prepararia quanto aos rituais que compreendem o procedimento cirúrgico, informando-o e trabalhando as principais preocupações e fantasias relacionadas a este momento, podendo, também, incluir uma avaliação dos aspectos cognitivos e emocionais que devem ser considerados no pós-cirúrgico. A relevância do atendimento psicológico pós-cirúrgico pode ser pensada a partir da importância do acolhimento das angústias destes pacientes e do auxílio por parte da Psicologia na elaboração dos conflitos gerados por esta situação de crise.
Considerações finais
Deparar-se com a necessidade da intervenção cardíaca cirúrgica além de apresentar uma diferenciada carga emocional e ansiogênica, gera um pensamento paradoxal: ao mesmo tempo em que propõe um benefício e uma opção de cura da cardiopatia, é também enfrentada como uma ameaça da finitude da vida. A oportunidade de investigar os aspectos emocionais dos pacientes cardíacos pré-cirúrgicos permitiu a melhor compreensão do conteúdo compartilhado através das entrevistas. "Nem que eu pense que eu tô com 71 anos, eu me vejo com 71 anos, entende? Não é a questão física, não é o cabelo branco porque eu pinto... É por dentro!": o Sujeito 1 representa, exemplificado na fala trazida, sua percepção acerca de sua constituição emocional, bem como os demais sujeitos desta pesquisa.
Os resultados indicaram que a metade dos pacientes estudados apresentava um nível de ansiedade grave, o que adverte a necessidade de ficar atento a esse efeito. Algumas emoções verbalizadas pelos pacientes diante da cirurgia cardíaca foram: dificuldade de compreensão e aceitação da notícia/fato de ter que passar por esse procedimento, medo de que a cirurgia não dê certo, de sentir dor, de ficar incapacitado para o trabalho ou de morrer. No pós-cirúrgico as expectativas são de melhorar, mudar e se dedicar mais à família. Também foi destacada a importância da espiritualidade enquanto fator de proteção. A ansiedade vivenciada pelos participantes pode ser minimizada através da escuta, esclarecimentos sobre os procedimentos e apoio aos pacientes e familiares, sobretudo no momento do pré-cirúrgico, que foi o período investigado.
Os resultados devem ser considerados com atenção, pois não são representativos ou generalizáveis para os pacientes cardíacos, em vista de ser um estudo exploratório e com a participação de poucos sujeitos. Contudo destaca-se a importância da realização de um estudo com pacientes no pós-cirúrgico, tendo em vista que a grande maioria das fantasias e temores citam mudanças que podem se desenvolver após a operação no coração.
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Recebido: 20/08/2014
Aceito: 02/08/2015
1 Contato: gabrielleghg@gmail.com