SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 número1Pesquisa em psicologia da saúde: avaliação da produção de um programa de pós-graduação índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.8 no.1 Juiz de fora jun. 2015

 

RESENHA

 

O duplo: um estudo psicanalítico

 

 

Marcus Vinicius Neto Silva1

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

 

 

Rank, Otto. (2013). O duplo: um estudo psicanalítico (Erica Luisa Sofia Foerthmann Schultz, trad.). Porto Alegre: Dublinense

Geralmente esperamos que uma resenha se refira a uma obra recente, com a intenção de apresentá-la ao público. No caso do livro de Otto Rank, originalmente publicado em 1914, e com duas edições posteriores, em 1919 e 1925, uma justificativa se faz necessária.

Embora o livro seja antigo, a tradução que debateremos aqui é de 2013, e vem em excelente hora. Uma outra tradução para o português, de 1939, já há muito esgotada, deixou um vácuo que obrigava os leitores brasileiros a recorrer às diversas traduções em outros idiomas. E melhor ainda quando a tradução é feita de forma cuidadosa, como é o caso desta publicada pela editora Dublinense.

No que diz respeito ao autor, algumas palavras podem ser ditas, à guisa de introdução. Otto Rank entrou em contato com a Psicanálise em 1905, ao ler A interpretação dos sonhos (1900) e em seguida Estudos sobre a histeria (1895). Alfred Adler, na ocasião ainda membro do movimento psicanalítico, era médico de Rank e o apresentou a Freud no mesmo ano (Lieberman, 1985).

O próprio Freud forneceu um relato dessa ocasião: “Um belo dia um jovem que fora aprovado numa escola de ensino técnico apresentou-se com um manuscrito que indicava compreensão fora do comum. Persuadimo-lo a cursar o Gymnasium e a Universidade e a dedicar-se ao aspecto não-médico da psicanálise”. (Freud, 1914/2006, p.35)

Em 1906, se tornou secretário da Sociedade Psicanalítica de Viena, e seu cuidadoso trabalho com as atas das reuniões fica evidente ao lermos Minutes of the Vienna Psychoanalytic Society, publicadas em quatro volumes organizados por Federn e Nunberg entre 1962 e 1975. Entre suas principais publicações se encontram Der Künstler (1907), The incest theme in literature and legend (1912/1992), The myth of the birth of the hero (1914/2011) e The trauma of birth (1924/2010), obra que marcou seu distanciamento da psicanálise.

Vamos ao conteúdo do livro, portanto. Já no primeiro capítulo vemos Rank apresentando o que serviu como a inspiração para sua discussão do duplo: o filme O estudante de Praga, de Ewers, que havia sido exibido na época em Viena. Apresentando ao leitor o enredo do filme, ele logo passa à hipótese de que o impacto emocional que é provocado em quem assiste deve significar que ele toca conteúdos profundos. Assim, estabelece o plano de investigar, nos capítulos seguintes, o problema central do filme, a figura do duplo, nos variados contextos: literatura, tradições folclóricas, etnográficas e míticas, além de uma discussão psicanalítica da questão.

Dessa forma, no segundo capítulo, passa a um estudo bastante detalhado do uso do duplo na literatura. Rank vai percorrendo cuidadosamente a obra de diversos autores, entre os quais se destacam Hoffmann, Chamisso, Dostoiévski, Poe e Maupassant. Ao guiar o leitor por esse percurso, ele vai aos poucos traçando paralelos entre as diversas formas de apresentação do duplo, aproximando todas estas narrativas, mesmo quando usam formas diferentes de representar o problema. Vemos que certo autor liga o duplo à sombra, outro enfatiza a imagem no espelho, alguns optam por uma representação mais “psicológica”, na forma de uma alucinação.

Nas palavras de Rank, “todas essas narrativas apresentam, independentemente das figuras de duplo plasmadas na forma de diferentes tipos, uma série de motivos tão notavelmente análogos que parece ser quase desnecessário salientá-los novamente”. (Rank, 2013, p.60) E prossegue afirmando que “sempre se trata de uma imagem idêntica à do protagonista, até nos mínimos traços, como nome, voz e indumentária” e que esse duplo “lhe atrapalha a vida, e, via de regra, a relação com a mulher vira uma catástrofe, que pode acabar em suicídio – como consequência indireta da morte planejada para o perseguidor incômodo” (Rank, 2013, p.60).

O capítulo 3, que ainda mantém a discussão próxima da literatura, mas se centra agora no estudo dos autores, e não mais de suas criações literárias. Nele Rank tenta colher dados sobre a vida dos autores que escreveram trabalhos se servindo do tema do duplo para demonstrar como eles tinham certos traços patológicos que acabavam tentando tratar simbolicamente em seus escritos. Ele conclui que mesmo que possamos observar em um grande número de escritores características de certas perturbações mentais, isso não nos autoriza a afirmar que o tema do duplo é meramente a manifestação da patologia dos autores. Desse modo, ainda é necessário investigar outros aspectos dessa questão.

No quarto capítulo, tendo já demonstrado a relação do duplo com a sombra, a imagem no espelho e a alma humana na literatura, Rank passa a considerar as crenças de povos primitivos e também costumes populares e superstições. Também aí encontra uma equivalência entre a sombra e a alma, e uma relação ambivalente com a figura do duplo: ora protetor, ora perseguidor. Analisando os tabus envolvendo as sombras, Rank destaca que “uma série de investigações relacionadas ao folclore mostrou, sem dúvida alguma, que os homens primitivos consideram seu misterioso duplo, a sombra, como a real essência da alma” (Rank, 2013, p.102). O outro aspecto do duplo, a imagem no espelho ou reflexo na água, também é discutido através de um grande número de exemplos, chegando finalmente ao mito de Narciso, que explicita mais uma vez a proximidade entre o amor e o ódio (ou a morte).

Finalmente, no quinto capítulo, Rank apresenta uma leitura psicanalítica da questão do duplo. Como já havia ficado claro ao final do capítulo anterior, o que nos ajuda a compreender o duplo é o conceito de narcisismo. Não é difícil acompanhar a hipótese de que a duplicação da imagem que vínhamos observando na literatura, mitos e similares é uma espécie de projeção da imagem do próprio eu. Assim, ora ela aparece como sombra, ora como reflexo no espelho e às vezes como um segundo eu real. Em todos estes casos, porém, Rank localiza uma separação de certos aspectos indesejáveis, como se o eu expulsasse parte de si para manter sua ilusão de onipotência.

A parte rejeitada através desse processo, entretanto, retorna e é às vezes visto como espírito protetor, embora no geral acabe se tornando um inimigo perseguidor. Rank observa de forma engenhosa que o duplo quase invariavelmente interfere nas relações amorosas do protagonista e vê nisso uma analogia à incapacidade de amar de alguém capturado no amor por si mesmo. Apesar de não colocar isso em primeiro plano, em certos pontos parece apontar para a conclusão de um caráter mortífero do narcisismo. Ele também discute como se dá a inversão do duplo, de protetor a perseguidor, através de mecanismos de defesa, tendo para isso um claro paralelo nos casos de paranóia.

As formulações de Rank sobre o duplo são citadas por Freud em O estranho (1919), apesar de não explorar profundamente o tema nesse texto. Freud também acrescenta algumas outras hipóteses, afirmando que o duplo pode estar na base da formação de uma instância crítica, com a função de observar e criticar o eu (o que posteriormente seria atribuído ao supereu, em O eu e o id).

A contribuição mais evidente do livro de Rank é sua teorização sobre o narcisismo. Sua explicação do processo de projeção das partes rejeitadas do eu, que retornam na figura ameaçadora do duplo, é coerente com as teorizações freudianas a respeito do tema (desde seus comentários no caso Schreber a sua discussão mais detalhada em À guisa de introdução ao narcisismo), mas o modo como Rank trabalha a questão, transitando entre literatura, antropologia e Psicanálise é particularmente interessante. Esse talento para integrar o conhecimento de áreas diversas é visível em O duplo, mas é em outro de seus trabalhos, The incest theme in literature and legend (1912/1992), que atinge seu ponto mais alto.

Há também um aspecto do narcisismo presente no livro de Rank, mas pouco explorado por Freud diretamente: seu caráter mortífero. Rank se preocupa com esse elemento ao longo de toda a obra, e percebe que a figura do duplo transita pelos dois sentidos opostos, de protetor a perseguidor. Em Freud, as menções a um narcisismo mortífero são muito mais discretas, como, por exemplo, em Além do Princípio de Prazer (1920/2006), em que ele denomina de narcísicas “as células das formações malignas que destroem o organismo” (Freud, 1920/2006, p.172). Em Rank, a proximidade entre narcisismo e morte está colocada quase que desde o início, e é um elemento essencial para a compreensão da figura do duplo.

Ao final do livro, as editoras ainda fornecem uma lista bastante extensa de filmes, obras literárias e estudos teórico-críticos que abordam ou fazem referência ao tema do duplo. Isso complementa muito bem o livro e aponta alguns caminhos ao leitor que pretende aprofundar em seus estudos.

Há apenas um ponto no livro que causa algum incômodo, mas que pode ser facilmente resolvido em futuras edições. Em alguns trechos, quando Rank cita alguma obra em outro idioma (francês e inglês, principalmente), não há uma tradução do que foi citado. Talvez tenha sido por descuido ou desatenção, já que na grande maioria das vezes em que isso ocorre há uma nota de rodapé com o trecho traduzido. De toda forma, não é nada que impeça a compreensão da obra como um todo e nem prejudique de forma mais séria a fantástica experiência de ler esse livro antigo, porém atual.

Embora o livro deva servir muito mais a psicanalistas, não há dúvidas de que também é de grande utilidade para qualquer pessoa interessada em literatura, e ele fornece elementos para pensar também filmes e outras produções artísticas.

 

Referências

Freud, S. (1914/2004). À guisa de introdução ao narcisismo. In S. Freud, Escritos sobre a Psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, trad., V. 1, pp. 95-131). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1914/2006). A história do movimento psicanalítico. In S. Freud, A história do movimento psicanalítico, Artigos sobre Metapsicologia e outros trabalhos (V. XIV, pp. 15-73). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1920/2006). Além do princípio de prazer. In S. Freud, Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente (L. A. Hanns, trad., V. 2, pp. 123-198). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1911/1996). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia. In S. Freud, O caso de Schreber, Artigos sobre a técnica e outros trabalhos (V. XII, pp. 15-89). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1919/1996). O estranho. In S. Freud, História de uma neurose infantil e outros trabalhos (V. XVII, pp. 235-269). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1923/2007). O eu e o id. In S. Freud, Escritos sobre a Psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, trad., V. 3, pp. 13-92). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Lieberman, J. (1985). Acts of will: the life and work of otto rank. New York: Free Press.         [ Links ]

Nunberg, H., & Federn, E. (1962). Minutes of the Vienna Psychoanalytic Society (V. 1). New York: International Universities Press.         [ Links ]

Nunberg, H., & Federn, E. (1967). Minutes of the Vienna Psychoanalytic Society (V. 2). New York: International Universities Press.         [ Links ]

Nunberg, H., & Federn, E. (1974). Minutes of the Vienna Psychoanalytic Society (V. 3). New York: International Universities Press.         [ Links ]

Nunberg, H., & Federn, E. (1975). Minutes of the Vienna Psychoanalytic Society (V. 4). New York: International Universities Press.         [ Links ]

Rank, O. (1907). Der Künstler. Viena: Hugo Heller.         [ Links ]

Rank, O. (2013). O duplo: um estudo psicanalítico. (E. L. Schultz, trad.) Porto Alegre: Dublinense.         [ Links ]

Rank, O. (1912/1992). The incest theme in literature and legend. (G. Richter, trad.) Baltimore and London: Johns Hopkins University Press.         [ Links ]

Rank, O. (1914/2011). The myth of the birth of the hero. Mansfield: Martino Publishing.         [ Links ]

Rank, O. (1924/2010). The trauma of birth. Mansfield: Martino Publishing.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 26/07/2014
Aceito em: 01/02/2015

 

 

1 Contato: marcusvns@ufmg.br

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons