Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.9 no.2 Juiz de fora dez. 2016
ARTIGOS
O acerto de contas no trabalho do tráfico de drogas varejista
The payback in drug trafficking work retailer
Thaísa Vilela1; Vanessa Andrade de Barros
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
RESUMO
As discussões que ora apresentamos compõem parte de pesquisa realizada no âmbito do curso de mestrado em Psicologia. Sob a perspectiva teórico/metodológica da Psicologia do Trabalho, procuramos analisar o funcionamento do tráfico de drogas varejista em uma microrregião de Minas Gerais, buscando compreender a atividade do "acerto de contas". Trabalhamos com entrevistas em profundidade com pessoas que estiveram envolvidas no tráfico de drogas em varejo e também com um período de observação. Os resultados obtidos na pesquisa evidenciaram um cenário em que o ato de matar é naturalizado, instrumentalizado e espetacularizado, com incidências significativas para a estruturação de uma organização de trabalho e para o reconhecimento de seus trabalhadores. O recurso à violência letal no formato do acerto de contas, que por décadas esteve conectado às vinganças privadas, acompanhou as modificações na gestão do tráfico de drogas e parece corresponder, atualmente, a uma prescrição do trabalho.
Palavras-chave: Tráfico de drogas, Acerto de contas, Trabalho, Psicologia do Trabalho
ABSTRACT
The discussions presented in this document are part of a research carried out throughout the Psychology Master's degree program. Under the theoretical /methodological perspective of the Work Psychology, we seek to analyze the functioning of the retail drug trade in a micro-region of Minas Gerais, aiming at understanding the activity of "payback". We worked with in-depth interviews with people who were involved in drug traffic retail, in addition to an observation period. The results of the research showed a scenario in which the act of killing is naturalized, instrumented and made into spectacle, with significant implications for the structure of a working organization and for the recognition of their workers. The use of lethal violence, in the 'payback' format, which for decades had been connected to private vendettas, followed the changes in drug traffic management and now seems to correspond to a requirement of the job.
Keywords: Drug trafficking; Payback; Work; Work Psychology
Renatinho,2 Washington, Galeto, Breno, Wander. Cinco nomes, cinco pessoas que compõem os mais de 53.2403 mortos por homicídio doloso entre os anos de 2013 e 2014. São "Existências destinadas a passar sem deixar rastros", como diz Foucault (2003, p. 3), vítimas do ato mortífero cometido por outrem, visto que estavam, os cinco, condenados à execução por vacilos no envolvimento com o tráfico de drogas.
Se essas pessoas não adquirem o status de existência, compondo a expressão do vulgo é apenas mais um ou, melhor dizendo, é apenas menos um, elas estão destinadas a outro lugar: o lugar de números, engrossando de forma significativa os dados estatísticos.
Os números da violência crescem na cadência do ritmo contemporâneo. Roubos, furtos, sequestros e principalmente homicídios contribuem para elevar sensivelmente as taxas de criminalidade. Segundo dados da Secretária Nacional de Segurança Pública (Senasp, 2011), o Brasil possui hoje uma das maiores taxas de homicídios do mundo.
Nesse processo de potencialização do crime, o tráfico de drogas desponta com destaque no cenário mundial. Conforme informações da United Nations Office on Drug and Crime (UNODC), publicadas no Relatório Mundial sobre Drogas de 2015, o consumo de entorpecentes tem crescido de forma significativa nas últimas décadas. Apesar de se ter verificado, sobretudo nos últimos três anos, certa estabilidade no uso de drogas tradicionais, tais como a heroína e a cocaína, há a prevalência de um aumento mundial no consumo de drogas. Em 2013, 246 milhões de pessoas, cerca de 5% da população mundial entre 15 e 64 anos, fizeram uso de drogas consideradas ilícitas - um aumento de 3 milhões do total estimado de pessoas que fizeram uso no ano anterior.
É pela via do contexto histórico-cultural que as drogas psicoativas são incluídas nas categorias de lícitas e ilícitas.4 Encontramos, em toda a história da humanidade, o consumo de substâncias psicoativas de forma contínua para os mais diversos fins: terapêuticos, religiosos, alimentícios e em ritos de sociabilidade e mesmo de prazer (Vargas, 2001). Sabe-se ainda, desde os escritos freudianos, que a droga compõe a tríplice5 de paliativos para lidar com o mal-estar que surge como efeito colateral da vida civilizada (Freud, 1930). No entanto, apesar do conhecimento sobre o consumo milenar dessas substâncias, só recentemente se dá a instauração de um discurso que antagoniza droga e vida.
Galgada em concepção moral e disseminando uma ideia falaciosa - porque baseada "em marcadores políticos de pretensão científica" (Carneiro, 2013) - do risco, a política de proibição das drogas resultou, como bem aponta Maria Lúcia Karam (2012), em uma nociva e sanguinária guerra. Transcorrer pelo caminho normativo que culmina nessa guerra6 nos depara com o inevitável fracasso da política antidrogas. A escalada proibicionista se converteu em uma escalada repressiva com consequências nefastas, notoriamente visualizadas nas estatísticas da violência. Se, por um lado, a pretensão de abstinência no consumo das substâncias psicotrópicas consideradas ilícitas não foi alcançada, por outro, tornou-se extraordinariamente potente o controle sobre uma determinada classe da população, por meio da expansão do poder punitivo (Karam, 2012).
Tal expansão é incapaz de anular a dinâmica de fornecimento de drogas ilícitas. Como assinala Karam (2012, p. 127), "a repressão apenas cria incentivos econômicos e financeiros para que outros indivíduos entrem no mercado e preencham o vazio deixado pelos que são mortos ou encarcerados". Nesse sentido, as ressonâncias proibitivas, quando entrecruzadas às exigências impostas pelo capitalismo, e a alta demanda pelo produto encontram lócus nos interstícios da ilegalidade, dando origem a uma imperiosa economia de tráfico de psicoativos.
Segundo Feffermann (2006), o tráfico de drogas ocupa na atualidade a condição de "metáfora da destruição", "um dos ícones do mal". Nas palavras de Rodrigues (2003, p. 3), "Trata-se, ainda assim, de uma guerra, que se mostra como um conjunto de embates que envolvem Estados, empresas narcotraficantes, grupos armados e forças sociais. Não é um conflito tradicional, mas uma infinidade de batalhas viscerais".
Nessa batalha visceral e compondo esse conjunto de embates, tem-se o ato de matar como uma das consequências diretas e/ou indiretas daqueles inscritos ao tráfico. O crescimento intenso do tráfico de drogas tem se desdobrado em um incremento assombroso nas taxas de homicídios. É a morte, per se, representando a violência em seu grau extremo.
Nas últimas três décadas, verificou-se um aumento de 259% nas taxas de homicídio, o que equivale a um crescimento de 4,4% ao ano.7 Neste mesmo período, observa-se um aumento significativo do uso de arma de fogo, o que representou uma contribuição fundamental para o aumento apontado nas taxas de homicídio. A mais recente publicação do Mapa da Violência (2015) desvelou que entre os anos de 1980 e 2012 o número de mortes em razão do uso de armas de fogo cresceu 387%; se nos detivermos apenas nos jovens (15 a 29 anos) mortos por armas de fogo supera-se os 460%, dos quais a quase totalidade ocorreu em razão de homicídios. Destaca-se a incidência e a prevalência dessas mortes atingirem os jovens negros, que na média nacional, segundo o mapa, gira em torno de duas vezes e meia mais negros que brancos. Segundo Beato (2012), nos primórdios da década de 1980, o uso da arma de fogo era responsável por cerca de 40% dos homicídios ocorridos, já na atualidade, a arma de fogo é o instrumento pelo qual 70% dos homicídios são efetivados.
A associação entre mortes e tráfico de drogas aparece, em primeiro plano, de forma clara. As inúmeras estatísticas da violência produzidas em mapas, anuários e relatórios, visualizadas em gráficos dos mais diversos, conduzem o olhar do expectador para linhas que crescem lado a lado.
Atrás da naturalidade com que essa associação é realizada, existe um problema de ordem muito mais complexa e que nos convoca à reflexão. Em primeiro lugar, o descortinamento dessa vinculação nos coloca face ao problema do mal. Verificam-se, ao longo da história, pessoas destinadas a ocuparem o lugar da figura do mal: bruxas, loucos, marginais, traficantes, etc. Há sempre um bode expiatório pronto como figura que possa encarnar o mal e separá-lo da "bondade" presente no resto da humanidade.
O deslocamento da questão da droga, sobretudo do tráfico de drogas, para o campo moral tem conduzido à construção de categorias equivocadas e à produção de análises superficiais e banalizantes. A promoção moralista da droga como o mal se desdobra para se concentrar no sujeito. As práticas - sejam de usuários de drogas (vício), sejam de traficantes de drogas (violência) - consideradas malignas contaminam esses sujeitos, produzindo seres ditos "diabólicos", impregnados pelo "mau-caráter".
Não obstante, é preciso questionar a natureza dessa associação. Que morte é essa que tem como nexo causal o tráfico de drogas? Como e por que elas acontecem? Que estrutura é essa que movimenta a produção e o comércio de drogas ilícitas e que integra em sua base um ato contra a vida?
É nessa chave de questões que incide o problema que iremos percorrer no trabalho em tela. As discussões que apresentaremos compõem parte de nossa pesquisa8 realizada no âmbito do curso de mestrado em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Sob a perspectiva teórico/metodológica da Psicologia do Trabalho, sobretudo na interlocução entre a Psicossociologia e a Ergologia, procuramos analisar o funcionamento do tráfico de drogas varejista em uma microrregião de Minas Gerais, buscando compreender a atividade do "acerto de contas". Em uma abordagem qualitativa, trabalhamos, durante a pesquisa, com entrevistas em profundidade, com cinco pessoas que estiveram envolvidas no tráfico de drogas em varejo. Nossa inserção nesse campo e o encontro com os sujeitos entrevistados, se deu em boas condições, pois já os conhecíamos de pesquisas anteriores realizadas no sistema prisional pelo grupo de pesquisadores do Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Cárcere e Direitos Humanos (LabTrab), da UFMG.
Além disso, frequentamos por quatro meses uma oficina de grafite. Tal oficina acontecia em um beco que há cerca de dois anos fora palco de um sangrento conflito entre "comandos" diferentes e naquele momento abrigava um ponto de comércio de drogas. Esse período se constituiu como um rico momento de observação, que denominamos como observação engajada. Engajada porque encontramos nesses momentos a possibilidade de vivenciar, experienciar, estranhar a realidade sobre a qual nos debruçávamos, priorizando um envolvimento livre com a finalidade única de sermos tocados por ela. De forma engajada, experimentamos e sentimos, na medida do possível, a complexidade do universo do tráfico de drogas varejista.
Compreendendo a complexidade e especificidade inerente ao mercado econômico de produção e comércio de drogas ilícitas no varejo, espera-se, neste trabalho, transitar na contramão de uma perspectiva que considera natural a associação imediata entre a violência, muitas vezes manifesta pela via da morte, e o tráfico de drogas. Interessa-nos, portanto, promover a reflexão sobre os processos mortíferos inerentes à atuação no tráfico de drogas, fora de um engodo moral e conduzindo nossas investigações a partir das diferentes experiências de vida e de trabalho daqueles que atuaram nesse mercado ilegal.
A mercadoria droga
Indiscutivelmente, o tráfico de drogas se configurou, nas últimas décadas, como uma importante atividade geradora de capital que tem como meio para tal a mercantilização de drogas ilícitas. Nesse sentido, Faria (2009) sinaliza ainda que o tráfico de drogas se constitui numa prática atrativa não só pelo acúmulo de capital, mas também pelo reconhecimento social que essa atividade permite aos que nela se inserem em uma "forma de sociabilidade extremamente peculiar" (p. 182). A compreensão do tráfico como uma atividade geradora de capital está aqui concatenada ao entendimento da droga como mercadoria, no sentido marxista do termo.
Para Lima (2009), a trama geopolítica e geoeconômica que envolve, desde a sua origem, a produção do "problema das drogas" só pode ser compreendida a partir de uma revisita à historiografia da droga com vistas a elencar a passagem dessa substância no seu valor de uso em seu valor de troca.
A distinção no valor, enquanto esse processo que converte o valor de uso em valor de troca (Marx, 1867/2013), está alinhada à concepção de que sempre existem mediações teóricas e históricas a um objeto - neste caso, a droga - que é tomado como expressão de totalidade. "A categoria metodológica da totalidade significa a percepção da realidade social como um todo orgânico, estruturado, no qual não se pode entender um elemento, um aspecto, uma dimensão, sem perder a relação com o conjunto" (Löwy, 2002, p. 16).
Os valores de uso, de acordo com Marx (1867/2013), "constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dessa riqueza" (p. 58). Correspondem ao objeto que é utilizado ou consumido para atender a uma determinada satisfação humana.
Antes do século XIX, as "plantas mágicas" - drogas -, caracterizadas por suas ações alucinógenas, eram apropriadas coletivamente para fins religiosos, curativos e festivos. Sua extração era realizada fundamentalmente da natureza, a partir de uma baixa divisão social do trabalho. Eram utilizadas, em alguma medida, como parte da circulação mercantil, mas de forma simples. Não se tinha aqui uma propriedade privada dos meios de produção que caracterizasse, de fato, uma produção mercantil (Lima, 2009). Portanto, o consumo realizado dessas plantas, nessa sociedade, estava imbuído pelo valor de uso.
Para vir a ser mercadoria, o consumo dessas plantas precisaria encontrar condições históricas que agregariam a elas o valor de troca. Conforme nos ensina Marx (1867/2013), a dimensão da mercadoria só é encontrada em produtos que, imbuídos de valor de uso, dão origem, por meio da troca, a valor de uso social. Assim, "a coexistência, então, entre valor de uso e valor de troca tornou-se a substância, a unidade dialética para tornar os bens produzidos em mercadoria" (Lima, 2009, p. 46). Netto e Braz (2006) condicionam duas prerrogativas de base para que haja produção de mercadorias: existência de divisão social do trabalho e propriedade privada dos meios de produção.
Segundo Lima (2009),9 a possibilidade de passagem dessas substâncias de seu estado in natura para a condição de drogas, de mercadorias, requereu, seguramente, o desenvolvimento do comércio, da química e da farmacologia. Nesse sentido, o incremento das inovações tecnológicas no século XIX, especialmente a partir da entrada da química orgânica, e a possibilidade de extração dos alcaloides de plantas como o ópio e a coca criaram as condições necessárias para tornar um bem produzido em mercadoria.
Portanto, mesmo no período que precedeu o século XIX, no qual o modo de produção capitalista começou a ganhar forma, o uso das "plantas mágicas" dependia ainda do significado histórico-social atribuído, dos tipos de relações sociais e das condições de existência. Com o cultivo prioritariamente na Ásia e posteriormente na América, essas plantas não tinham possibilidades de reprodução e não apresentavam o mesmo valor simbólico em diferentes lugares. O próprio comércio intercontinental feito por meio das navegações marítimas era dificultado pelas condições de estocagem do produto, que chegava à Europa Ocidental em qualidade diferenciada (Lima, 2009).
Assim, com os avanços tecnológicos alcançados no âmbito da indústria farmacêutica, com o desenvolvimento de técnicas na agricultura e com as mudanças em termos do trabalho humano livre, as "plantas mágicas", como produtos, ganharam o status de mercadoria.
A mercadoria droga, ao ser inclusa no circuito intercontinental para venda, sofre complicações significativas no que se refere à sua dimensão jurídica. A droga - como mercadoria e, portanto, valor de uso e valor de troca - é enquadrada rapidamente pela norma jurídica transnacional no proibicionismo, exigindo, assim, ações repressoras. E, para além, imputa-se à droga uma concepção ideológica demonizadora, maléfica.
Segundo Vargas (2001), a demonização contemporânea das drogas "parece ser a contrapartida lógica e o complemento ontológico da reificação das relações humanas vigentes em sua produção e distribuição, resultante da constituição das "drogas" enquanto mercadorias" (p. 51).
Cabe ressaltar que o conceito de reificação formulado por Lukács (1923/2003), em sua obra História e consciência de classe, aparece inicialmente como substituto do conceito de alienação marxista, mas ganha demasiada ampliação quando analisado a partir da proposição que Marx faz no fim da primeira parte do livro I, O capital, acerca do "fetichismo da mercadoria":
A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos de trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos de trabalho se tornam mercadorias [...]. Mas a forma mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada têm a ver com a natureza física desses produtos nem com as relações materiais dela decorrentes. Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre as coisas [...]. Chamo isso de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos de trabalho, quando são gerados como mercadorias. (Marx, 1867/2013, p. 94)
Nesse sentido, concordamos com Vargas (2001), na medida em que a demonização da droga parece estar ancorada nessa dissimulação, nessa exterioridade em que se dá a apresentação de um produto como mercadoria diante das relações sociais entre trabalho dos produtores e trabalho total. Um fetichismo que irá assumir a forma fantasmagórica, na mercadoria droga, do diabo, da coisa ruim.
Tal demonização parece acionar aspectos de crenças arraigadas, como demonstrado por Zaluar (2004), sobre o papel da mídia na indicação do imaginário social, (re)produzido, por exemplo, pelas novelas. A autora retoma o uso recorrente, nesse espaço, de estatuetas pré-incaicas como representantes de forças demoníacas em uma clara associação à coca, planta de uso milenar pela população andina. Todavia, é no âmbito biomédico que a partilha moral entre o bem e o mal ganhará amplitude na separação entre drogas lícitas e ilícitas.
A despeito dessa partilha moral, a indústria de drogas/tráfico de drogas não possui grandes diferenças das diversas outras indústrias. "Como mercadorias, elas contam, sobretudo, por seus 'valores de troca', ficando em segundo plano suas propriedades materiais singulares e os efeitos associados ao seu consumo" (Vargas, 2001, pp. 26-27). A mercadoria droga é produzida e comercializada visando à maximização dos lucros, como todas as outras.
O ponto êxtimo10 que configura uma especificidade aqui é encontrado não no valor de uso da substância ou mesmo em suas características materiais, mas na ilicitude do comércio. Por se tratar de uma atividade criminosa, a organização desse empreendimento só é possível se concatenada a outras atividades pautadas no mesmo campo de atuação ilegal e violenta (contrabando de armas, roubos, homicídios, etc.).
O que talvez diferencie as "drogas" de outras mercadorias cuja produção, distribuição e consumo são considerados atividades lícitas é que, no caso das "drogas", os lucros não são auferidos apenas a partir da forma "clássica" (capitalista) de exploração da mais-valia, isto é, via abuso do trabalho alheio sob o modo do mais trabalho não remunerado (Marx, 1867b), mas também a partir do que poderia ser chamado de uma mais-valia "terrorífica" (Perlongher, 1987, p. 2), a qual potencializaria os lucros obtidos pela forma clássica de extração da mais-valia em sociedades como a nossa mediante a exploração da violência agregada ao circuito (ou "mercado") das "drogas". (Vargas, 2001, p. 27)
O tráfico de drogas, entendido aqui como forma de organização de trabalho, informal e ilegal, configura-se, assim, como um protótipo da sociedade de consumo, mas, em adição a outros, expressa toda a violência nela embutida e produz ainda mais violência.
Feffermann (2006) aponta dois valores que norteiam os procedimentos organiza dores das relações interpessoais e comerciais no tráfico: "a confiança, que se revela em cooperação, e a violência, que se manifesta na confrontação". Nesse hiato, onde escapa o recurso a uma instituição "superior", a violência é utilizada em sua forma extrema e funciona como código normativo de comportamento, colocando um ponto final nos conflitos inerentes à vida e reverberando como um recurso importante de dispersão do medo.
Assim, o tráfico de drogas extrínseco ao sistema pela transgressão legal mantém-se imanente a esse mesmo sistema, incorporando as contradições sociais próprias do capitalismo e funcionando como um potente mecanismo de deflagração do conflito fundamental capital × trabalho. Todavia, ancorados nessas contra dições, agregam-se fatores de risco à vida. No contexto do tráfico, a força de trabalho significa um valor de troca que põe em jogo a própria existência. Nesse sentido, compreender o ato de matar, o acerto de contas, dentro da atividade do tráfico de drogas nos exige uma análise cuidadosa que saia do campo de uma partilha moral e de uma representação individual pela via demoníaca e/ou patológica para uma compreensão de sua totalidade, na qual sejam considerados todos os aspectos em que se dá a gestão desse mercado.
O acerto de contas e as modificações de gestão no tráfico de drogas varejista
A compreensão do ato de matar dentro da atividade do tráfico exige também uma compreensão das sociabilidades presentes nessa organização. A ilegalidade é a condição imposta pela cultura; diante disso, novas tramas precisam ser tecidas, tramas que possibilitem o trânsito pelas fendas na esfera do legal/ilegal.
As mudanças que ocorreram no âmbito do tráfico de drogas varejista, criando condições para uma estrutura mais próxima de um modelo empresarial, trouxeram alterações significativas para o modo como as resoluções de conflitos eram operadas nas favelas, sobretudo aquelas que culminavam em mortes.
Vera Telles (2010), em seu livro A cidade nas fronteiras do legal e ilegal, faz uma importante diferenciação entre figuras diferentes - justiceiros, matadores e traficantes -, cuja importância se dá nos modos singulares em que tomam para si a gestão da ordem local. Cada um deles demarca uma relação temporal que, como demonstra a autora, está conecta da à evolução da economia e da cidade. "Em torno desses personagens, configuram-se determinadas relações com as forças da ordem e com os moradores e as microrregulações" (p. 222).
Os justiceiros aparecem no cenário da periferia paulista nos anos 1980, em um contexto de muita mobilização pelos movimentos sociais e de precarização das relações de trabalho. Normalmente cometem o primeiro assassinato a partir de uma revolta em função de serem vítimas de alguma situação imposta pela criminalidade local. A partir de uma situação estopim, matam e se enredam na condição de justiceiros. "Pequenos casos e acasos que detonam uma história de sangue e marcam o ponto de arranque da carreira do justiceiro" (Telles, 2010, p. 229). Funcionam como "xerifes locais" no combate àquelas pessoas que assaltam ou ocasionam problemas aos moradores. Atuam sozinhos, algumas vezes em pequenos grupos. Muitas vezes agem como justiceiros diante de um caso específico, outras vezes fazem dessa condição uma carreira.
A figura do matador aparece na periferia paulistana nos anos 1990, em um cenário de intensa pauperização, em função de longos períodos de desemprego e de uma repressão estatal pela via policial "mais dura". Inicia-se um espantoso crescimento nas taxas de homicídio,11 impulsionado por uma lógica mortífera de truculência policial e por uma forma de resolução de conflitos cotidianos em que o ato de matar é o primeiro instrumento, via de regra, a ser acionado. Dá-se aí também a entrada de pequenos traficantes de drogas, ainda pouco estruturados. Os matadores dos anos 1990 ativam um intenso ciclo de "mata-mata" composto por histórias de gangues e quadrilhas locais e normalmente desencadeadas por tramas de vingança e desafetos (Telles, 2010).
No início dos anos 2000, aparece, de forma mais contundente, a figura do traficante em um contexto de crescimento econômico e de expansão dos "novos ilegalismos" de produtos contrabandeados, de mercadorias ilícitas e de pirataria. Trata-se de um momento do encarceramento em massa, quando a população carcerária do País tem um crescimento exorbitante. Nas periferias há uma multiplicação dos pontos de vendas de drogas com um aumento no número de acertos de contas (Telles, 2010).
Para segurar uma boca-de-fumo, o chefe não pode mais vacilar, o que não acontecia na década de 1970, quando o tráfico era mais modesto e quase familiar: mulheres participavam, o lucro era comedido; a freguesia, relativamente reduzida e conhecida; a entrega, por conta do caminhoneiro, também pessoa conhecida. Hoje, o "homem de frente" tem que manter todos os seus comandados na linha, tem que olhar para os lados e ver se os seus concorrentes não estão crescendo em demasia, vendendo mais e tendo mais gente armada na quadrilha; tem que cuidar do seu fornecedor, que já não é mais apenas um homem do caminhão, e pagar-lhe direto. Senão, leva banho, tem a sua boca tomada ou é simplesmente morto por seus concorrentes de dentro e de fora da quadrilha. Ter arma na cintura, matar para não morrer e pensar apenas no poder de estar à frente de uma quadrilha de homens são coisas do cotidiano do chefe na sua em geral vida curta. (Zaluar, 2004, p. 50)
Nos anos seguintes, em São Paulo, o PCC, facção criminosa autodenominada Primeiro Comando da Capital, assume com maior veemência os negócios da droga no varejo. Trata-se de outra lógica, que começou dentro dos presídios, passou para o tráfico de drogas e parece reger a gestão da ordem, tendo com um dos pilares frear o "mata-mata". Os números na taxa geral de homicídios na cidade de São Paulo têm um declínio significativo (Telles, 2010).
O fato é que há uma clara sintonia, nesses anos, entre a diminuição das mortes violentas nas prisões e fora delas. Nas prisões, a presença do PCC acarretou rearranjos internos consideráveis, acompanhados de procedimentos postos em ação para frear as mortes entre os presos (cf. Marques, 2009; Biondi, 2010). Fora das prisões, os famosos debates e modos de gestão das turbulências conflitivas nos pontos de intersecção dos assuntos do crime e as circunstâncias da vida cotidiana nas periferias da cidade. (Telles, 2010, p. 251)
As demarcações temporais sinalizadas por Vera Telles (2010) dizem respeito a uma configuração das periferias de São Paulo. Pesquisas precisam ser feitas para verificar a aplicabilidade da existência desses personagens em outros locais do país e mesmo das relações temporais, tendo em vista as décadas apontadas pela autora, o que não foi foco deste trabalho. Todavia, nossas investigações apontam para o fato de que parece haver, em alguns bairros da cidade onde realizamos nossa pesquisa de campo, um indicativo de evolução semelhante ao dos personagens aqui elencados, mas com um certo "atraso" em relação às demarcações de tempo.
No que concerne à expansão do tráfico de drogas, encontramos em nosso campo de pesquisa estruturas das firmas pelas quais passaram nossos entrevistados muito semelhantes ao cenário paulista do início dos anos 2000, antes da entrada do PCC, conforme descrito por Telles (2010).
A inserção de uma facção criminosa na boca em que um de nossos entrevistados atuava era bem recente e culminou em várias alterações para o modelo de gestão do tráfico local, mas ainda "incipiente" em comparação ao que ocorria no estado de São Paulo. O uso, por exemplo, dos tribunais do crime bem institucionalizados em lócus de atuação do PCC não encontrava precedente nessa boca.
Todavia, o ponto nodal que Vera Telles (2010) identifica em São Paulo e que perpassa todas as firmas pelas quais nossos entrevistados passaram está nas formas de gestão da ordem atual e que pode ser representado por um imperativo recorrente em seus discursos:
O negócio é respeitar a lei do crime. Andar na linha. Aí tem erro não. (Trabalhador do tráfico de drogas)
Tem que andar na linha. Tem que ser correto. Quem é correto não dança. Quem é correto não morre. (Trabalhador do tráfico de drogas)
A lei é pra todos. Vacilou, tem que morrer. Até se for meu irmão, se ele vacilar, tem que morrer. Não tem perdão, não, porque, se ele vacila e eu não mato, quando eu for matar outra pessoa que vacilou, ela vai querer dizer que eu perdoei meu irmão e vou ter que perdoar ela também. (Trabalhador do tráfico de drogas)
Se o cara tá errado, já era. Todo mundo sabe disso. (Trabalhador do tráfico de drogas)
Falas que nos fazem compreender um novo momento em que o ato de matar não está mais conectado às lógicas de vinganças e desacertos pessoais, mas inserido, por outra via, na lógica de gerenciamento do tráfico de drogas no varejo.
O aumento dos números da criminalidade urbana traduz, em verdade, mudanças substantivas nos padrões de delinquência e criminalidade urbanas. Até meados da década de 1960, prevaleciam ações individualizadas, a maior parte em torno dos crimes contra o patrimônio. Era bem menor a difusão e a acessibilidade a armas de fogo, sobretudo as de elevado potencial de letalidade. Embora houvesse acerto de contas entre membros de bandos e quadrilhas, a maior parte dos homicídios era motivada por desentendimentos nas relações interpessoais e intersubjetivas, envolvendo notadamente desarranjos afetivos e conflitos ensejando vingança pessoal [...]. No final dos anos 1960, esse cenário experimenta mudanças com a rápida disseminação do consumo e a entrada de cidadãos, procedentes dos estratos socioeconômicos de baixa renda, habitantes dos bairros populares dos grandes centros urbanos, no comércio ilegal de drogas. (Adorno & Salla, 2007, pp. 13-14)
Segundo Vera Telles (2010), não estamos mais no campo da "aplicação tirânica de alguma regra pré-definida ou puro arbítrio ou capricho de cada um [...]" (p. 252). O imperativo contido no tem que andar na linha revela uma razão instrumental para o ato de matar. Eis a tese central sobre a qual iremos trabalhar a seguir. Ver-se-á que o recurso à violência letal no formato do acerto de contas, que por décadas esteve conectado às vinganças privadas, acompanha as modificações de gestão no tráfico de drogas e parece ser utilizado, atualmente, como uma prescrição do trabalho.
O caráter instrumental da violência
Tendo em vista o que foi exposto na seção anterior, a violência letífera tão presente nos acertos de contas, no âmbito do varejo do tráfico de drogas, não pode ser compreendida de forma unilateral, a partir do desvio do sujeito. Como dizia Barros-Brisset (2005), "a conta não pode ficar só no campo da subjetividade" (p. 5). Nesse sentido, o uso recorrente do ato de matar outrem, do acerto de contas, parece nos ser um importante instrumento de gestão da ordem e do trabalho na via da ilegalidade e que só pode ser minimamente compreendido a partir de uma perspectiva multifocal.
Se caminharmos juntos na interpretação de Jessé Souza (2012) sobre o processo de construção social da desigualdade na modernidade e suas especificidades no que tange à desigualdade periférica brasileira, veremos que o exercício de uma ideologia silenciosamente praticada e reproduzida, pautada na ideia de meritocracia, conduz à interpretação única de uma falsa liberdade e, consequentemente, de uma falsa percepção quanto à livre escolha. Assim, culpamos os sujeitos que compõem a chamada "ralé brasileira" por seus fracassos econômicos e por suas misérias, mas também acrescentamos nessa conta suas escolhas/desejos, que qualificamos como "fundamentalmente maus".
E ainda, quando essas supostas escolhas/desejos malignos são aplicadas nessa mesma ralé, sobretudo naqueles envolvidos em práticas criminais, resultando em agravos e mortes, as ressonâncias são encontradas em números, gráficos, tabelas. Não se trata de um semelhante, um ser humano que perde a vida, mas uma estatística que cresce.
Efeitos destoantes ocorrem quando esses mesmos agravos e mortes atingem outra camada populacional. Inscrito como uma tragédia social causada pelo narcotráfico, o assassinato do repórter da TV Globo, Tim Lopes, por exemplo, resultou em grande comoção social que reverbera ainda hoje, 12 anos após o ocorrido. Filmes, livros, inúmeras reportagens ecoam a dor de uma vida que foi brutalmente encerrada. O assassinato do repórter reverberou. Tinha um nome, um corpo, uma história e seus supostos assassinos foram julgados, condenados ou mortos durante perseguição policial.
Por outro lado, durante nossa pesquisa escutamos sobre a morte de 19 pessoas, todas elas assassinadas em razão de acertos de contas. As histórias contadas por nossos entrevistados e que de alguma forma nos fizeram "conhecer" essas 19 pessoas são curtas. Muitos não puderam ser enterrados, pois tiveram os corpos completamente carbonizados, outros não tinham família que pudesse fazer o enterro, alguns poucos eram pessoas mais conhecidas na localidade e por isso trouxeram maior movimentação no momento do falecimento.
O que queremos destacar com esses episódios é a existência do que Jessé Souza (2012, p. 181) aponta como "o valor diferencial dos seres humanos". Se, por um lado, horroriza-se com a ação dos assassinos de Tim Lopes em um clamor pela eliminação desses indivíduos "perversos", por outro, se as mortes acontecem entre os chamados "marginais", naturaliza-se e contabiliza-se o ato. Nessa mesma via, como bem aponta Karam (2012), verifica-se que é com grande facilidade que a polícia cotidianamente invade a periferia e realiza um verdadeiro genocídio, sobretudo dos jovens pobres deste país. Na dimensão jurídica são mortes frequentemente contabilizadas nos autos de resistência.
Cabe ressaltar que o trato da morte de amigos e conhecidos nas histórias contadas por nossos entrevistados também nos parecia igualmente naturalizado por eles. Naturalizado, mas de maneira alguma banal. A brevidade com que a vida se impõe e anuncia a morte em um curto prazo como destino certo de muitos dos jovens trabalhadores do tráfico de drogas não nos parece estar conectada a uma deterioração da vida humana, pelo menos sob a ótica daqueles que vivenciam tal fenômeno. De nossos entrevistados, uma frase nos marcou sobremaneira e nos conduziu em todo o processo analítico: "você não acorda todo dia com um presunto na sua porta" (Trabalhador do tráfico de drogas).
Tal condução nos levou a um importante deslocamento. Não estaríamos no campo de uma "banalização do mal porque a vida humana perdeu seu valor", como afirma Alba Zaluar (2004, p. 51) para caracterizar o quadro de violência que compõe nosso país, mas sim de uma violência instrumentalizada e naturalizada nesse contexto.
Naturalizar, de acordo com o Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, significa adotar como nacional; familiarizar. O que a frase do trabalhador do tráfico de drogas e o frequente encontro, durante todo o trabalho de campo, com relatos sobre situações que culminaram em morte revelam é a familiaridade dessas pessoas com a morte, com o ápice da violência. Seja a morte simbólica imputada por meio de suas desfiliações sociais - para usar um termo caro a Robert Castel (1998) -, que fazem da vida uma constante luta para fazer existir um futuro, ainda que curto, seja pela realidade dos corpos mortos que se fazem inquestionavelmente muito presentes no cotidiano dessas pessoas.
Banalizar, por outro lado, traz em seu conteúdo semântico um caráter moral. Segundo o Dicionário Escolar de Língua Portuguesa, banalizar significa tornar banal, vulgar. Durante nossa pesquisa, nos preocupamos com a banalização dos conteúdos mortíferos como uma possível estratégia que poderia se fazer presente diante das inúmeras dificuldades que se interpõem ao pesquisador/estrangeiro que se coloca diante dessa realidade e dessa repetição. A morte, que se apresentou incisivamente durante todo o trabalho de campo, aparecia-nos na forma do discurso, mas não de forma concreta, como sinalizou nosso entrevistado. Sendo assim, o risco que se corria era, a partir de um olhar não familiarizado, fazer interpretações por um viés moral, banal - e, quem sabe, fazer aparecer variantes daquilo que Foucault (1974-75/2010) chamou de um domínio da perversidade.
Nesse sentido, perceber esse deslocamento entre o que é posto como banal por aqueles que assistem à contabilização de pessoas mortas da ralé, para o que passou por um processo de naturalização por aqueles que realmente vivenciam, no cotidiano, essa realidade, pareceu-nos ser condição sine qua non para sairmos das amarras de uma compreensão pautada sempre em um arcabouço de valores dominantes e seguirmos em uma linha investigativa que esteja mais orientada pela realidade em foco.
Cabe-nos ressaltar, para evitar possíveis confusões, que o termo naturalizar está aqui de fato referenciado como verbo e não como adjetivo. Não estamos constatando um caráter natural nessa percepção sobre as mortes que ocorrem no âmbito do tráfico de drogas varejista, mas sim de um processo que, em decorrência de diversos fatores, torna familiar essa dinâmica violenta que resulta em morte.
Igualmente é importante salientar que o termo banalização aqui utilizado não se pretendeu, como referência, à expressão banalidade do mal, cunhada por Hannah Arendt. Se, por um lado, a expressão de Arendt é bastante esclarecedora e nos ajudaria, na medida em que ela a designa para se referir aos assassinatos de Eichmann fora de uma perspectiva da maldade inata para inscrevê-la no campo do métier, por outro, a autora é incisiva ao afirmar que a expressão não se pretendeu como uma doutrina e que faz menção a algo factual.12 Ousaríamos aventar a hipótese aqui de que, ao contrário do que é proposto por Hannah Arendt, não estamos mais no campo de uma banalidade do mal, de ações isentas do ato do pensar, mas em um cenário em que o ato de matar é naturalizado, instrumentalizado e espetacularizado, com incidências significativas não só para a estruturação de uma organização de trabalho, mas também como importante meio para se fazer existir, ser reconhecido.
Se nos abstemos da utilização da expressão banalidade do mal, cunhada por Arendt (2010), outra elaboração teórica realizada pela autora, em seu livro Sobre a violência, nos fornecerá uma importante chave de compreensão sobre a hipótese aqui formulada.
Como bem notara essa pensadora, a violência assume um caráter instrumental. Com o desenvolvimento tecnológico, o que pode ser visto ao longo dos anos é uma potencialização dos implementos da violência, de ferramentas cujo uso possibilita uma multiplicação do vigor13 natural. No contexto estudado, as implicações de tal desenvolvimento são claramente percebidas por nossos entrevistados:
Quando a gente começou lá na quebrada, era mais difícil, porque a arma custava caro e não era pra qualquer um, não. Então, pro cê matar era complicado. Matar na faca é treta, cê fica muito perto, cê sente a pessoa morrendo, aí aquilo fica na sua cabeça. Mas hoje é diferente, apertar o gatilho é bem mais fácil. E se a arma for das boas fica mais fácil ainda, porque cê fica longe. Tem nêgo aí que enquadra no ferro e mata na faca. Tá doido. (Trabalhador do tráfico de drogas)
Michel Misse (2010, p. 26) já nos dizia que "impor-se pelo medo é uma das formas mais elementares e universais de operar o poder em condições de desconfiança recíproca". No âmbito do tráfico de drogas varejista, as modificações técnicas - desenvolvimento dos implementos da violência -, alinhadas a um desenvolvimento da mercadoria droga, tal como vimos anteriormente, e as modificações em seu comércio para atender à demanda crescente conduziram à inclusão de uma forma de resolução de conflitos pautada na violência extrema que antes era utilizada de maneira pontual, em vinganças privadas, e que agora aparece como instrumento de um modelo para organizar e gerir o trabalho.
Entre o prescrito e o real
O imperativo tem que andar na linha, tantas vezes repetido por nossos entrevistados, nos conduz ao campo das Clínicas do Trabalho, ao postulado orientador das análises ergonômicas, uma vez que nos revela uma prescrição, ou seja, um componente do trabalho prescrito, que aparece como uma ordem, uma exigência, uma norma, que podem ser determinadas hierarquicamente de forma escrita ou oral, a partir das quais o trabalho deverá ser realizado (Telles & Alvarez, 2004).
Com essa referência, entendemos que o "acerto de contas", o ato de matar outrem no âmbito atual do tráfico de drogas varejista, corresponde a uma tarefa que aparece por esse viés prescritivo - Vacilou, tem que matar - e que se caracteriza por seu caráter externo, ou seja, de uma instrução previamente estabelecida e que deve ser seguida. "A tarefa não é o trabalho, mas o que é prescrito pela empresa ao operador. Essa prescrição é imposta ao operador" (Guerin et al., 2001, p. 15). Claro que seu caráter externo está sempre em intermediação com o trabalho real, aquele que realmente é feito. Para Brito (2009), "há um nível de intermediação entre a tarefa e a atividade (o que reforça a ideia de que não são faces opostas do trabalho) que corresponde aos objetivos que os trabalhadores, individualmente ou coletiva mente, definem para si" (pp. 441-42).
Diferentemente do que se detectou entre a ação dos justiceiros e matadores de antigamente e que ganhou destaque na fala dos nossos entrevistados mais velhos, no tráfico de drogas varejista atual, parece não caber mais a ativação de um ciclo de "mata-mata" a partir da aplicação tirânica de decisões pessoais; o ato de matar passa a ser determinado pelo cumprimento de uma regra bem definida e que elenca elementos causais determinados para que possa ser ativado. Contida no termo vacilo, existe a transgressão de uma série de condutas previamente determinadas e que devem conduzir ao cumprimento de uma tarefa, o acerto de contas.
Se o cara vacilar, aí nós vai acertar as contas. Todo mundo da firma sabe, se o cara vacilar a gente tem que matar ele. São as leis do tráfico. Se o cara caguetar, morre. Se pegar a mulher do outro, morre. Se não pagar a droga que pegou com nós, morre. Se roubar os moradores da quebrada, morre. Se invadir a nossa quebrada, morre, e aí pode virar uma guerra de gangue. Agora, se o cara anda na linha, tem erro não. (Trabalhador do tráfico de drogas)
Essa passagem, que traz uma mudança significativa para a forma de resoluções dos conflitos e que parece incidir na diminuição do número de mortes violentas, está inseri da em um novo modelo de gerir o tráfico de drogas varejista. Informações obtidas durante o trabalho de campo indicam que o principal fator, que torna imprescindível tal mudança, é a necessidade de reduzir a presença de policiais dentro das favelas em que as firmas atuam. Quanto maior o número de pessoas assassinadas no território, maior é a frequência com que a polícia se faz presente no local, trazendo risco de prisão para os trabalhadores do tráfico e dificultando a condução do comércio.
No entanto, a imensa variabilidade da atividade, as infidelidades do meio, os debates de normas (debate, inerente àquele que trabalha, entre as normas antecedentes e a tendência universal de renormatizar) que incidem na tessitura da atividade garantem, como em todas as outras situações de trabalho, que a prescrição permaneça sempre no campo da tarefa e que o trabalho real aconteça sempre de uma forma outra em relação àquela que foi previamente planejada, como observa Schwartz (2010). Assim, ainda que a fala de nossos entrevistados nos conduza para a percepção de uma prescrição extremamente rígida, que não comporte negociações, são inúmeros os casos relatados em que o cenário se configurou de forma diferente daquele constrangido por essa prescrição.
Igual meu primo, ele teve que matar o cara que segurou ele nos braços. [...] Mas o cara tava devendo, e o patrão mandou ele ir lá matar. Foi muito foda. Isso já tinha até acontecido antes. O patrão mandou ele ir lá matar o nosso tio. Um cara lá, que a gente chamava de tio. Eu e meu primo sempre chamava esse cara de tio. Aí meu primo perguntou quanto que o cara tava devendo. Era R$ 200,00. Meu primo pagou e mandou o cara sumir dali porque, senão, não ia ter jeito, ele ia acabar tendo que matá-lo. O patrão falou que dessa vez aceitava, mas que não ia ter próxima. Por isso, com esse outro cara não teve jeito. Ele teve que matar. (Trabalhador do tráfico de drogas)
A solução dos diversos problemas que conduzem ao acerto de contas perpassa sempre por nuances diferenciadas que convocam a experiência de cada um dos trabalhadores aí inseridos.
Lhuilier (2005) aponta que o trabalho "exige sempre uma confrontação com o real, com o real físico, com o real das relações sociais" (p. 210). Tal confrontação, a partir de uma perspectiva ergológica, se faz aliada a um importante debate de normas, "a atividade sempre se convida, com sua tessitura, individual e coletiva, a debate de normas" (Schwartz, 2011, p. 137).
Em meio a esse debate de normas, é preciso destacar a confrontação de valores que permite avaliar, julgar as escolhas a serem tomadas. "Normatizar quando há um vazio de normas, renormatizar quando é preciso ajustar ou não respeitar determinada esfera de normas antecedentes supõe que os protagonistas das escolhas dialoguem, explícita ou implicitamente, com um universo de valores já estabelecidos" (Schwartz, 2011, p. 141).
Assim, partindo da premissa de que toda atividade de trabalho exige do trabalhador um constante posicionamento de avaliação interna sobre as normas e que as escolhas efetivadas não são produtos do mero acaso, como analisar quando o código normativo que funciona como base para a instauração de uma atividade repousa na violência crônica e mortífera?
Responder a essa pergunta a partir de um arcabouço de valores dominantes - por exemplo, aqueles que culturalmente avaliamos como valores do bem -, interrogar escolhas e mesmo prescrições em uma posição exterior à atividade de trabalho é produzir violência. Perplexos com o resultado dessa prescrição do trabalho no tráfico - a morte - tomamos ações, fazemos julgamentos sem apreender o que realmente acontece em sua essência, no âmago da atividade. Para Schwartz (2011),
decidir levar em conta apenas os resultados da atividade significa tomar a decisão de ocultar essas múltiplas dramáticas da atividade. Essas dramáticas são fontes de eficácia, mas têm um preço para as pessoas e os grupos e são inseparáveis de certos valores de vida e de saúde, de tal modo que não se pode, sem consequências, mergulhá-las com entusiasmo na invisibilidade. (pp. 134-35)
O cumprimento de uma tarefa, e aqui estamos falando da tarefa acerto de contas, resulta em dramas que frequentemente, como em qualquer outra tarefa, estão invisibilizados pelo outro, mas também pelo próprio trabalhador. Notadamente, ainda que às cegas, quando se trata de um trabalho que corre às avessas da legalidade e que nos coloca ante o ápice da violência, desqualificam-se essas dramáticas e macula-se o universo de valores em que elas estão pautadas, imbuindo-os de um caráter maligno.
Assim, é possível que nos interroguem: Como considerar o valor de matar? A construção de uma pergunta como essa parte de uma suposição, de um julgamento que transforma o ato em um valor singular. A essa questão só poderíamos responder que, visto por um panorama externo à atividade, encontramos no acerto de contas não um valor, mas uma prescrição que irá configurar uma tarefa e que traz algum sentido a um modo de gestão da organização de trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo compreendemos o acerto de contas no âmbito do tráfico de drogas varejista a partir de uma perspectiva do campo do trabalho. O propósito inicial foi elucidar por que as mortes se faziam tão incessantes no cotidiano dos trabalhadores do tráfico e dos moradores onde as firmas estavam instaladas. Partíamos de uma pré-concepção, que logo se mostrou equivocada, de que tais mortes se apresentavam como um risco sempre iminente e arbitrário. Pensávamos em relações de trabalho que eram desenvolvidas em situações de completa desconfiança.
No trabalho de campo, tal equívoco foi rapidamente revelado. Como Marisa Feffermann (2006) já anunciava, a confiança é um dos valores que organizam as relações interpessoais e comerciais no tráfico de drogas. Sem a confiança não é possível gerir um comércio no campo da ilicitude, ainda que seja um confiar desconfiando, como um de nossos entrevistados apontou. Em nossas andanças, a arbitrariedade - construída a partir de uma dicotomia imaginária entre o sujeito do bem e o sujeito do mal - paulatinamente foi sendo desconstruída e nos deparamos, então, com a prescrição, com o teor normativo estruturalmente inscrito nas relações de trabalho que são desenvolvidas nesse contexto.
Notoriamente, tal teor normativo, percebido em uma conjuntura histórica definida, exibe toda a sua potência organizativa, uma construção protocolar que antecipa e enquadra, codifica e prescreve (Schwartz, 2011). As chamadas "Leis do tráfico" estão para esse contexto laboral como uma economia de experiências que se pretendem como um arcabouço propiciador de antecipações. Antecipações essas que encontram no caminho da prescrição uma razão instrumental para o ato de matar, para o acerto de contas.
Apesar de ser o suposto "guardião" das "leis", aquele que normalmente define como e quando elas serão acionadas, o patrão da firma não se configura como o produtor desse arcabouço normativo, sendo passível, por vezes, de se tornar alvo de suas ordenações. Tendo em vista que não é o patrão quem cria esse universo normativo do tráfico, muito menos os gerentes, os vapores e os demais membros da divisão técnica do trabalho, só podemos constatar uma ancestralidade diante de sua origem. Como nos lembra Schwartz (2011), esse conjunto de normas antecedentes pertence a uma herança cujas origens "são frequentemente muito mais opacas e remetem à história ainda mais antagônica das forças sociais" (p. 136).
Todavia, é possível localizar e analisar o contexto em que são tecidas tais prescrições. Que sociedade, estamos diariamente produzindo, é capaz de tornar possível a existência de organizações de trabalho em que o humano é elevado à condição de instrumento?
O comércio da mercadoria droga incluso na circulação mercantil capitalista assume todas as características que permitem sua entrada na acirrada competição da lógica de mercado, em uma atitude instrumental, visando ao sucesso na maximização dos lucros: dinheiro e poder.
Nesse sentido, encontramos no funcionamento do tráfico de drogas no varejo não um universo à parte, em total contraposição ao modo de se operar em uma sociedade capitalista, mas formas particulares (porque ilegal) de engajamento com o mundo condizentes com as inscrições de um racionalismo ocidental (Weber, 2004) e, portanto, circunscrito à generalização da atitude instrumental próprias à nossa sociedade.
Essa resposta, que concebe no acerto de contas uma tarefa inscrita na gestão do trabalho, é uma resposta inserida na gramática social. Permanecer no caminho inverso concebendo-a como uma resposta singular, inserida por completo no campo da subjetividade, como se esse campo estivesse totalmente desancorado do seio social, é minimamente paradoxal. Para que exista um jovem que tenha como tarefa de trabalho ceifar a vida de uma pessoa, é preciso que haja uma sociedade que produza formas de trabalho como essa (não podemos nos esquecer de que o "poder de matar" encontra legitimação em outros campos de atuação). Evidentemente, a distância entre o prescrito e o real, ali onde o humano registra sua assinatura, não nos permite negligenciar as manifestações singulares, as respostas, a posição de cada um diante de uma situação de trabalho.
Por todo o exposto, chegamos a uma ambiguidade. Por um lado, vemos o que talvez seja o ápice da exploração capitalista: a extração da mais-valia, assinalada por Marx, rouba sempre uma porção da vida humana e a transforma em mercadoria, fonte de valor de troca. No âmbito do tráfico de drogas varejista, temos novos contornos assumindo a forma de uma mais-valia terrorífica (Perlongher, 1987), que rouba não mais uma porção da vida, mas sua totalidade. Por outro lado, é a partir de uma atividade de trabalho, que por vezes engloba justamente a subtração da vida de outrem, que o trabalhador encontra sua assinatura e se faz ser visto.
Como uma provocação final, cabe-nos registrar: o trágico do espectro da morte que se apresenta em ambos os lados dessa ambiguidade encobre algo que anima dramaticamente esse contexto, o pulsar da vida, com toda a sua veemência para se fazer presente. Ali, onde encontramos a dimensão do trabalho, encontramos também o movimento do viver com um tônus ainda mais pujante. Movimentos de uma luta diária para fazer existir um presente, ainda que efêmero, e uma perspectiva de futuro, ainda que breve.
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Recebido em: 01/03/2016
Aceito em: 26/07/2016
(Endnotes)
1 Contato: thaisavfa@gmail.com
2 Nomes fictícios que compõem histórias reais recolhidas pelos instrumentos de coleta de dados da pesquisa.
3 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo, 2012.
4 Uma discussão fundamental sobre o uso de drogas (i) lícitas pode ser encontrada em Vargas (2001).
5 Os outros dois são a arte e a ciência.
6 Ver Arbex Jr & Tognolli (1996), Karam (2012), Rodrigues (2003).
7 Segundo "Mapa da violência 2012: Os novos padrões da violência homicida no Brasil". Recuperado em 26 junho, 2012, de http://www.mapadaviolencia.org.br/index.php
8 Autor (2014).
9 Rita de Cássia Cavalcante Lima (2009) traça em sua tese o percurso histórico do objeto drogas desde os primórdios de seu aparecimento como um produto de subsistência humana. Na tese são retomados especificamente o processo histórico do consumo das plantas medicinais (coca, papoula e maconha) e as posteriores sínteses químicas (cocaína, morfina e heroína), tornando-se possível, assim, uma análise da distinção no valor de cada um desses produtos de forma contextual.
10 Faz-se aqui referência ao termo "êxtimo" criado por Lacan (1968-1969/2008) para caracterizar um lugar ao mesmo tempo íntimo e radicalmente exterior.
11 Conforme sinaliza Telles (2010), "ainda se sabe pouco sobre as circunstâncias que desencadearam um ciclo espantoso de mortes violentas. Diria mesmo que temos aqui uma caixa preta que ainda precisa ser aberta e investigada" (p. 240).
12 Sobre isso ver a introdução do livro A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, de Hannah Arendt.
13 Arendt (2010) faz uma importante diferenciação entre poder, vigor, força, autoridade e violência. O poder corresponde à capacidade humana para agir em consonância. Assim, não se trata de algo individual, mas pertencente a um grupo. O vigor é uma "entidade individual", como uma característica de um objeto ou uma pessoa. A força indica uma energia que se manifesta quando há movimentos físicos ou sociais. A autoridade é "investida em pessoas", o que exige o reconhecimento daqueles que a obedecem. Por fim, a violência se qualifica por seu caráter instrumental.