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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

 ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.9 no.2 Juiz de fora dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Percepções de jovens sobre a transição para a vida adulta e as relações familiares

 

Youth perceptions about the transition to adulthood and family relations

 

 

Vanessa Barbosa Romera Leme1; Luana de Mendonça Fernandes; Neidiany; Vieira Jovarini; Amanda Oliveira Falcão; Gisele Aparecida de Moraes

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 

 


RESUMO

O estudo teve por objetivo examinar as percepções de jovens adultos sobre os desafios e as oportunidades vivenciados na transição para a vida adulta e as mudanças ocorridas nas relações com os membros da família. Trata-se de um estudo exploratório com abordagem qualitativa que utilizou a técnica de coleta de dados com grupo focal e análise de conteúdo. Participaram 13 jovens adultos (idade entre 20 e 28 anos), sendo sete mulheres e seis homens do estado do Rio de Janeiro. Os resultados indicaram que as trajetórias vivenciadas pelos jovens adultos são plurais e influenciadas por suas condições socioculturais e econômicas. A permanência prolongada na residência parental pode resultar tanto em conflitos e sentimentos de ambivalência quanto em solidariedade intergeracional entre os membros da família. As informações obtidas com o estudo poderão auxiliar futuros programas de intervenção preventivos e de promoção de saúde mental com os jovens adultos e seus familiares.

Palavras-chave: Transição para a vida adulta, Relações pais e filhos, Grupo focal.


ABSTRACT

This study aimed at understanding the perceptions of young adults regarding the transition to adulthood and the changes in relationships with family members during this period of the life cycle. This is a qualitative exploratory study, which used data collection with focus groups and posterior content analysis. The participants were 13 young adults (aged between 20 and 28 years old), seven of which were women and six were men, all from the state of Rio de Janeiro. The results indicated that the trajectories experienced by young adults are plural and influenced by their socio-cultural and economic conditions. Prolonged periods in the parental home can result both in conflicts and in feelings of ambivalence in intergenerational solidarity amongst family members. The information obtained from the study may help future preventive intervention programs and mental health promotion programs with young adults and their families.

Keywords: Transition to adulthood, parent-child relationship, focus group.


 

 

No Brasil, em contextos urbanos industrializados, ser jovem assume diferentes possibilidades devido às diferenças entre as classes sociais, gênero e à diversidade cultural e ético-racial específica de um determinado momento social e histórico (Guerreiro & Abrantes, 2005; Waiselfisz, 2013). Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), obtidos no Censo de 2010, mostram que ¼ da população brasileira é jovem e, entre essa porcentagem, 66% são solteiros, 28% dos homens são pais e 54% das mulheres já são mães, e 61% ainda vivem com os pais. Em relação ao grau de estudo dos jovens, no Brasil, 29% terminaram o Ensino Médio e 33% pararam e não seguiram. No que diz respeito ao trabalho, no Brasil, 53,5% dos jovens entre 15 e 29 anos estão trabalhando, 22,8% estudam e trabalham e 36% só estão estudando. De modo geral, os jovens das camadas populares assumem responsabilidades adultas desde a adolescência, inserindo-se prematuramente no mercado de trabalho e atuando em empregos temporários, com longas jornadas laborais que podem prejudicar seu desempenho escolar (Dutra-Thomé, Pereira, & Koller, 2016). Além disso, em contextos de baixo nível socioeconômico (NSE), os jovens são mais expostos à violência urbana e práticas discriminatórias como racismo e homofobia (Waiselfisz, 2013).

Em relação ao comportamento dos jovens adultos, verifica-se que a nova geração (aqueles nascidos a partir da década de 1980) tem características muito singulares em relação às precedentes (Coimbra & Mendonça, 2013). Em parte, isso decorreu de mudanças econômicas, políticas e culturais observadas nas últimas décadas nas sociedades industrializadas, que modificaram as relações entre os jovens e as suas famílias, com implicações para a definição dos papéis que demarcam a entrada na vida adulta (Andrade, 2010). Essas transformações que contribuíram para modificações quanto às atitudes dos jovens em assumir papéis de adulto envolvem o prolongamento do tempo dedicado ao estudo, devido à maior instabilidade profissional, maior dependência financeira dos pais e protelamento da emancipação da residência parental para constituir a própria família (Guerreiro & Abrantes, 2005; Pais, 2009).

No processo de transição para a vida adulta, jovens dos centros urbanos com melhores condições socioeconômicas seguem uma trajetória de vida menos normativa e regulada da passagem da adolescência para a fase adulta (Andrade, 2010). Nesse sentido, pesquisas internacionais têm identificado que tais jovens não se veem como adolescentes, mas também não se consideram inteiramente adultos (Galambos & Martínez, 2007; Oliveira, Mendonça, Coimbra, & Fontaine, 2014). Diante dessas constatações, Arnett (2007, 2011) propôs a teoria da Adultez Emergente (AE), que visa compreender como jovens de sociedades industrializadas, na faixa etária entre 18 e 29 anos, lidam com a percepção de que ainda não alcançaram o status de adulto. A AE é um período do ciclo vital situado entre a adolescência e a adultez, caracterizado por possibilidades, exploração da identidade, autofoco, ambivalência e instabilidades que decorrem do fato de o jovem continuar apresentando características comuns da adolescência, como dependências econômica, emocional e residencial da família de origem (Arnett, 2007; Dutra-Thomé & Koller, 2014; Galambos & Martínez, 2007).

Mediante o exposto, percebe-se que os jovens vivenciam a transição para a vida adulta conforme as condições dos contextos socioeconômicos. Assim, na transição para a vida adulta, pode ou não ocorrer o fenômeno da AE, uma vez que este não é universal, mas sim evidenciado em jovens das classes sociais e econômicas mais elevadas nos países ocidentais industrializados (Arnett, 2007, 2011). Dutra- Thomé e Koller (2014) realizaram uma investigação que teve como objetivo analisar as diferenças sociodemográficas entre os jovens brasileiros, considerando as percepções que eles tinham da vida adulta, o acesso à tecnologia e status educacional e de emprego. A amostra incluiu 547 jovens entre 18 e 29 anos de idade, residentes em Porto Alegre (RS), de baixo e alto nível socieconômico. Os resultados mostraram que mais de 50% do total da amostra relataram que se sentiam entre a adolescência e a idade adulta, o que, segundo as autoras, pode indicar a ocorrência do fenômeno da AE em indivíduos de ambos os níveis socioeconômicos. No entanto, a AE esteve mais presente em contextos de NSE mais alto, corroborando dados da literatura internacional (Arnett, 2007, 2011; Galambos & Martínez, 2007).

No que diz respeito às relações entre pais e filhos, na passagem para a vida adulta, os jovens das camadas médias são incentivados a ter projetos pessoais que necessitam de maior investimento nos estudos para lidar com as dificuldades de inserção no mercado de trabalho (Andrade, 2010; Trancoso & Oliveira, 2014). Diante desses novos desafios, são verificados comportamentos nos jovens de alternância entre independência/dependência residencial dos pais, decorrentes de situações malsucedidas nos aspectos afetivo, acadêmico e profissional (Andrade, 2010; Ponciano & Féres-Carneiro, 2014). Pais (2009) denomina esse movimento de ir e vir como "yoyogeneização", tendo em vista o fato de os jovens vivenciarem situações como emprego/desemprego, casamento/divórcio e abandono/retorno à escola e à casa dos pais. Essas vivências dificultam o estabelecimento de um limite cronológico de quando termina a adolescência e quando começa a vida adulta (Pais, 2009). Assim, com o prolongamento da permanência na casa dos pais, a aquisição da autonomia econômica e da independência emocional torna-se tardia (Guerreiro & Abrantes, 2005; Monteiro, Tavares, & Pereira, 2009; Trancoso & Oliveira, 2014).

A extensão da coabitação na família nem sempre é fácil e harmoniosa (Henriques, Féres-Carneiro, & Ramos, 2011; Ponciano & Féres-Carneiro, 2014). Os jovens adultos ao permaneceram na casa dos pais passam por vários temores, tais como o de perder a figura cuidadora sem que tenha alcançado a independência e receio de não atingir as suas próprias expectativas e da família em relação aos aspectos profissionais e afetivos (Germano & Colaço, 2012). Desse modo, nota-se um conflito entre as gerações, e as expectativas parentais sobre os jovens tendem a gerar aproximação e distanciamento nos relacionamentos entre pais e filhos, visando diminuir ameaças no campo relacional (Henriques et al., 2011). Apesar disso, o suporte familiar é essencial aos jovens adultos e é oferecido de várias maneiras, por exemplo, nas situações em que os pais financiam um curso ou a faculdade para que os filhos aumentem a possibilidade de entrar no mercado de trabalho (Johson, 2013; Oliveira et al., 2014). Contudo, segundo Johson (2013), esse suporte financeiro também pode gerar conflitos se os pais cobram e os jovens sentem-se pressionados por ainda não terem alcançado a estabilidade financeira.

O prolongamento da convivência familiar indica a necessidade de se rever a hierarquia dentro da família, a qual é marcada por práticas de socialização decorrentes de uma sociedade cada vez mais individualista (Borges & Magalhães, 2009). A par dessas alterações nas relações entre pais e filhos, Bengtson e Oyama (2007) observaram que o convívio entre gerações pode propiciar a solidariedade intergeracional em duas dimensões. A primeira refere-se à dimensão macrossocial, que é a convivência entre os diversos grupos etários dentro de uma sociedade. A segunda é a dimensão microssocial, que diz respeito à convivência existente dentro de um núcleo familiar. Conforme Bengtson e Oyama (2007), a solidariedade intergeracional familiar (SIF) envolve proximidade física e afetiva que proporciona trocas de apoio e de suporte, assim como a transmissão de valores familiares entre pais, filhos, avós e netos, podendo ocorrer também conflitos e ambivalências nessas relações interpessoais.

Pesquisas têm encontrado que a SIF pode deixar a relação pais-filhos mais próxima, o que pode ser observado, por exemplo, nas situações em que as obrigações domésticas e o apoio financeiro de uns para com os outros se tornam uma tarefa harmonioza no contexto familiar (Coimbra & Mendonça, 2013). A SIF pode auxiliar tanto os pais quanto os filhos, na medida em que ambos podem aprender e expressar suas habilidades interpessoais (Braz, Fontaine, & Del Prette, 2013). As autoras realizaram um estudo com 69 díades de pais idosos e filhos adultos, de diferentes níveis socioeconômicos, com o objetivo de analisar se as trocas intergeracionais favoreciam a ampliação das habilidades sociais dos idosos e dos filhos. Os resultados evidenciaram que idosos com um repertório elevado de habilidades sociais tinham filhos também com mais habilidades interpessoais e com mais facilidade de expressar suas emoções.

Desse modo, se por um lado os filhos precisam do suporte de seus pais para poder alcançar sua independência financeira e emocional, por outro, os pais por estarem envelhecendo requerem a ajuda de seus filhos (Bengtson & Oyama; Braz et al., 2013; Leopold, 2012). É importante, portanto, investigar as mudanças que ocorrem nas relações entre pais e filhos durante a transição para a vida adulta, considerando o atual momento de maior incerteza e imprevisibilidades nos aspectos sociais, profissionais e afetivos (Oliveira et al., 2013; Ponciano & Féres-Carneiro, 2014).

Na transição para a vida adulta, o desenvolvimento dos jovens e suas relações com os membros da família são afetados por fatores socioculturais e econômicos (Waiselfisz, 2013). Jovens das camadas populares são expostos a responsabilidades da vida adulta desde a infância e adolescência e, muitas vezes, com seu trabalho sustentam a família de origem (Barros, 2009). Do mesmo modo, o fenômeno da AE é observado com mais frequência entre aqueles de condição financeira mais favorável (Dutra-Thomé & Koller, 2014). Portanto, é preciso considerar no estudo com jovens adultos uma visão que supera a concepção naturalizante e universal por desconsiderar os distintos contextos sociais e históricos da realidade brasileira (Oliveira & Trancoso, 2014). Porém, a maior parte das pesquisas nacionais focaliza estudos com crianças e adolescentes (Tijanero & Páramo, 2012) e há poucos estudos com jovens adultos (Braz et al., 2015; Dutra-Thomé & Koller, 2014, Ponciano & Féres-Carneiro, 2014). A transição para a vida adulta é também caracterizada por ser um momento em que os jovens podem apresentar mais transtornos psicológicos como depressão e ansiedade e serem mais vulneráveis a tentativas de suicídio (WHO, 2014). Somado a isso, a maioria dos estudos sobre a transição para a vida adulta é realizada com amostras de jovens europeus e americanos (Arnett, 2011), o que indica uma área aberta à investigação em relação ao contexto brasileiro. Diante disso, o presente estudo tem por objetivo examinar as percepções de jovens adultos pertencentes à classe média sobre os desafios e as oportunidades vivenciados na transição para a vida adulta e as mudanças ocorridas nas relações com os membros da família.

 

Método

Participantes

O estudo exploratório utilizou uma abordagem qualitativa e a técnica de coleta de dados com grupo focal (Gatti, 2005). Participaram do estudo 13 jovens adultos, com idade entre 20 e 28 (M = 23,53 anos, DP = 2,47), sendo sete mulheres e seis homens residentes no estado do Rio de Janeiro. A maior parte dos jovens era estudante universitário (11 - 84,6%) (sete de instituição particular e quatro de instituição pública). Os demais haviam concluído o Ensino Médio.

Sobre a situação profissional/escolar, oito (61,5%) estudavam e trabalhavam, três (23%) informaram apenas estudar e os demais só trabalhavam. Conforme o critério de classificação econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep, 2013), 38,5% dos participantes pertencia à classe C2, 38,5% à classe C1 e 23% à classe B2. Mais da metade dos jovens (53%) identificaram-se como brancos, seguidos dos que se consideraram pardos (23%), amarelos (15,3%) e negros (7,7%). Todos os jovens eram solteiros. Em relação à composição familiar, três participantes moravam com mãe, pai e irmão, dois com a mãe e os demais com: mãe, pai, irmã; avó; irmão; mãe e padrasto; mãe e pai; sozinho; pai e irmão; mãe e irmã; avó.

 

Instrumentos

Questionário demográfico - elaborado para este estudo para investigar informações demográficas dos participantes, tais como idade, sexo, cor, estado civil, situação profissional e escolar e composição familiar.

Questionário de Classificação Econômica Brasil (Abep, 2013) - avalia o nível socioeconômico e permite a estratificação dos participantes, em ordem decrescente de poder aquisitivo, em cinco classes: A (A1 e A2), B (B1 e B2), C, D e E.

 

Procedimentos

O estudo foi realizado numa Instituição de Ensino Superior particular, escolhida intencionalmente por ser o campo de trabalho dos autores. Como critérios de seleção, os participantes deveriam ter entre 18 e 30 anos de idade, ser solteiros e sem filhos. Os participantes foram selecionados intencionalmente pelos autores da pesquisa, que visitaram as salas de aulas e outros ambientes das universidades, convidando os alunos. Além disso, foram convidados jovens que não frequentavam a universidade, utilizando a técnica de amostragem "bola de neve" (Bailey, 1982). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade XXX, de acordo com o Parecer XXX, CAAE: XXX. Antes do início do grupo focal, explicitou-se o anonimato dos dados e os objetivos da pesquisa. A participação foi voluntária, anônima e referendada pela entrega do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

O grupo focal é uma técnica utilizada para a compreensão de discursos que são construídos coletivamente (Borges & Santos, 2012). No presente estudo, essa técnica foi utilizada para identificar as percepções dos jovens adultos sobre diversos aspectos que ocorrem na transição para a vida adulta, tais como desafios e oportunidades profissionais e interpessoais, assim como as mudanças nas relações com os membros da família.

O grupo focal ocorreu numa sala de aula da universidade e teve duração média de 120 minutos. Participaram do encontro a mediadora (responsável da pesquisa), cinco observadores (uma aluna de mestrado e quatro estagiários da graduação de Psicologia) e os jovens. A mediadora teve a função de conduzir o grupo, apresentar os temas e intervir na dinâmica do grupo focal quando os participantes extrapolavam os temas. Os observadores foram responsáveis por gravar e anotar as principais falas e observações dos participantes que foram, posteriormente, discutidas nas reuniões da equipe. Dois meses antes da coleta de dados, a mediadora e os observadores frequentaram semanalmente um grupo de estudo sobre o tema da transição para a vida adulta e relações entre pais e filhos.

O grupo focal apresentou a seguinte estrutura: a) estabelecimento de rapport com lanche; b) retomada dos objetivos e procedimentos do estudo, tais como uso do gravador e garantia de confidencialidade das informações; c) entrega do TCLE e dos questionários demográfico e nível socioeconômico; d) apresentação do trailer do filme De repente 30; e) questionamento sobre os temas da transição para a vida adulta, por exemplo, "Vocês se consideram adultos?", "Como vocês se sentem sendo adultos?", e relações pais e filhos, por exemplo, "Como é a proximidade entre vocês e seus pais?", "Como vocês avaliam o seu relacionamento com os seus pais nesse momento da vida?", para facilitar o início de cada assunto; f) encerramento com síntese dos conteúdos discutidos, agradecimento pela participação e informação da disponibilidade da pesquisadora em atender os jovens que gostariam de falar privadamente sobre sentimentos e pensamentos que emergiram com o encontro.

 

Análise de dados

As falas dos jovens foram gravadas, transcritas na íntegra e, posteriormente, submetidas à análise de Conteúdo Temático-Categorial, que contemplou a exploração do material, inferência, interpretação e tratamento de dados (Bardin, 1995; Oliveira, 2008). As falas fornecidas pelos jovens foram analisadas, procurando-se identificar as unidades de contexto (exemplos de falas),2 e alocadas organizadas em categorias que emergiram a partir das unidades de contexto (Franco, 2012). As categorias analisadas foram: 1. Desafios e oportunidades: relatos dos jovens que indicam insegurança com o que está por vir e o medo que eles sentem em relação às decisões que deverão ser tomadas no momento presente e no futuro; 2. Conflitos e renegociações entre pais e filhos: relatos que indicam dificuldades de compreensão e de relacionamento entre os jovens adultos e os seus pais, assim como falas que demonstram uma relação pautada por maior respeito e empatia e menor autoritarismo dos pais em relação aos filhos.

 

Resultados e discussão

Desafios e oportunidades

A transição da adolescência para a vida adulta é marcada pelas novas maneiras de os jovens terem de lidar com as situações interpessoais e profissionais (Andrade, 2010; Dutra-Thomé & Koller, 2014; Ponciano & Féres-Carneiro, 2014). Evidentemente que numa sociedade caracterizada pela desigualdade social, como é o caso do Brasil, a vida adulta será diversa para os jovens de níveis socioeconômicos, gênero e etnias diferentes (Guerreiro & Abrantes, 2005; Waiselfisz, 2013). Nessa direção, foram identificadas falas nas quais ser adulto está relacionado a entrar no mundo do trabalho, assim como às responsabilidades financeiras que os jovens não tinham antes e passaram a ter devido ao acúmulo de funções e novos papéis sociais: "Eu me sinto adulta pelo fato da responsabilidade que eu adquiri. Porque é estágio, trabalho, faculdade" (M). "No final do mês, sim. Porque tem que pagar contas. Os primeiros quinze dias é mais tranquilo" (H). Tais aspectos são mais evidenciados nos jovens adultos de baixo NSE. As demandas e responsabilidades que surgem na transição para a vida adulta afetam o comportamento dos jovens e são influenciadas dependendo do contexto social e histórico (Monteiro et al., 2009). Assim, a análise dos desafios e oportunidades que acometem os jovens adultos deve transcender alterações biológicas e maturacionais e considerar a forma como a sociedade organiza suas instituições políticas e educacionais, definindo cronologicamente que, a partir dos 18 anos, a pessoa deixa de ser adolescente e passa a ser adulto, assumindo novas responsabilidades (Trancoso & Oliveira, 2014).

Em contrapartida, o fenômeno da adultez emergente (AE) decorre de fatores macrossociais, tais como maior instabilidade profissional, que leva ao prolongamento dos estudos e inserção tardia de jovens de classes médias no mercado de trabalho (Galambos & Martínez, 2007; Oliveira et al., 2014). Esses jovens tendem a manter dependências econômica, residencial e emocional da família que resultam em algumas características. Os adultos emergentes manifestam a necessidade de explorar suas identidades, são mais focados em si, o que faz com que eles não assumam muitos compromissos com outras pessoas, possibilitando-os ter maior autonomia na gestão das próprias vidas (Arnett, 2007, 2011). Também expressam sentimentos de estar entre as fases da adolescência e a fase adulta e, por fim, observam mais possibilidades otimistas em relação ao futuro, mas vivenciam maior instabilidade em aspectos profissionais e interpessoais (Arnett, 2007, 2011).

Contudo, indo ao encontro de outras pesquisas (Andrade, 2010, Coimbra & Mendonça, 2013; Dutra-Tomé & Koller, 2014), os participantes do presente estudo parecem não vivenciar a AE, relatando significados a respeito do mundo do trabalho (Dib & Castro, 2010). Isto é, dependendo do contexto socioeconômico, jovens adultos assumem papéis de status de adulto que diferem dos processos de desenvolvimento típicos dos adultos emergentes (Andrade, 2010; Monteiro et al., 2009). Diferentemente, nos contextos urbanos das sociedades industrializadas, de modo geral, o que diferencia os adultos dos adolescentes das classes socioeconômicas favoráveis é que esses últimos não precisam assumir responsabilidades financeiras e profissionais, dedicando-se apenas aos estudos (Dutra-Thomé & Koller, 2014; Monteiro et al., 2009)

Nos trechos a seguir, percebe-se o impacto de situações sociais desfavoráveis e como estas acometem jovens de baixo NSE. Tais situações trazem novas tarefas para a vida dos jovens e algumas fazem com que eles absorvam responsabilidades mais cedo (XXX): "Eu fui obrigada a me tornar adulta. Eu com 16, 17 anos não tinha cabeça de adolescente, de sair pra badalar, farra, desculpa a expressão, 'pegação'. Marcou muito isso. A questão de você começar a trabalhar e você não poder optar. Por fazer a faculdade, me especializar e depois eu vou trabalhar. Não. Eu tenho que trabalhar" (M).

Galambos & Martínez (2007) relataram que para muitos jovens a pobreza e as poucas oportunidades educacionais fazem com que eles experimentem a transição para a vida adulta de forma diferente dos seus pares com melhores condições econômicas. Para os jovens de baixa renda, existe a necessidade de se preocupar com as questões de subsistência próprias e de suas famílias, em vez de experimentar novas possibilidades, não podendo adiar sua inserção no mercado de trabalho (Barros, 2009). Para tais jovens adultos, estudar exclusivamente não é uma opção (Coimbra & Mendonça, 2013).

As dificuldades de inserção no mercado de trabalho e a instabilidade profissional podem gerar relatos de medo e angústia nos jovens adultos. Isso fica evidenciado no trecho a seguir: "São os 'nãos' que a gente vai encontrar. A gente vai procurar em um lugar e com certeza vai ouvir um 'não'. Na questão de emprego mesmo, porque a gente para ter estabilidade vai começar por baixo. Difícil a gente começar por cima. Aí, até achar um 'sim'. Essa é a que eu acho que é a maior dificuldade" (H). "Eu tenho medo de nada dar certo e ter que voltar morar com minha mãe. Imagina? Não deu certo, mãe, voltei" (M).

Nesse âmbito, parece que o projeto de vida não precisa ser feito em longo prazo, como pode ser notado na fala do jovem a seguir: "Porque eu não penso muito no futuro, não. Eu penso no agora" (H). Por sua vez, o relato dessa jovem sugere certa indefinição: "Vou terminar a faculdade em 2017. Aí já começa a pensar na carreira. O que eu vou querer. Se eu vou querer continuar a carreira, chegar ao pós-doutorado. Voltar pra minha cidade. Se eu vou querer ser dona de escola" (M).

Na elaboração do projeto de vida, alguns jovens necessitam (e podem), por vezes, ter de adiar algumas responsabilidades, visando à obtenção de um diploma universitário para ter uma melhor colocação no mercado de trabalho (Barros, 2009; Trancoso & Oliveira, 2014). Contudo, o prolongamento da vida acadêmica nem sempre garante a obtenção de emprego e a constituição da família. De fato, a inserção num mercado de trabalho produtivo e competitivo, a construção de um projeto de vida e a possibilidade de planejar o próprio futuro têm sido desafios para os jovens adultos (Barros, 2009; Dib & Castro, 2010). Assim, é possível que o desejo de estabilidade seja associado a obter sucesso nos estudos e na carreira profissional, mas sem muito planejamento (Guerreiro & Abrantes, 2005).

Nos trechos a seguir, evidencia-se a percepção de que os jovens se veem como responsáveis pela busca de oportunidades para alcançar sucesso profissional: "Na verdade, a gente tem que correr atrás das nossas oportunidades. Temos que dar o impulso para o primeiro passo. Não deixar que deem por nós. Ficarmos sentados aguardando a coisa acontecer. Temos que correr atrás dos nossos objetivos. Se temos um sonho, batalha. Vamos ouvir 'não'. Mas vai ter uma hora que vamos ouvir um 'sim'. Aí, agarra essa oportunidade" (M). "Acho que a gente cria oportunidades. Nada acontece se a gente não fizer nada" (H). Todavia, Malfitano (2011) salienta que as condições socioeconômicas desfavoráveis e ausência de políticas públicas prejudicam o acesso e a criação de oportunidades profissionais. Essa falta de possibilidades pode acarretar frustração nos jovens, gerando sofrimento e diminuição da autonomia.

Conflitos e renegociações entre pais e filhos

A dificuldade em conseguir a autonomia financeira pode fazer com que os jovens continuem mais tempo morando com os familiares (Henriques et al., 2011; Johson, 2013). Essa permanência longa pode gerar aprendizagens para todos, porém não é isenta de conflitos e ambiguidades (Coimbra & Mendonça, 2013; Henriques et al., 2011; Ponciano & Féres-Carneiro, 2014). Nos trechos a seguir, observa-se a dificuldade de relacionamento entre os jovens adultos e seus pais: "A questão não é gostar ou não dos pais. Dar valor ou não dar valor. Pra mim a questão é que na casa da minha mãe as regras são dela. O dia que eu tiver a minha casa as regras vão ser minhas. Entendeu?" (M). "Eu estudava a noite e sempre chegava 23 horas em casa. Ia pro meu quarto dormir. Esse companheiro dela foi falar pra ela que eu cheguei 5 horas da manhã. Eu acordei com minha mãe me batendo horrores e eu sem entender por quê. Ele pediu pra ela escolher ou ele ou eu. Minha mãe escolheu o companheiro. Desde 15 anos até hoje eu moro sozinha. A primeira casa que eu morei não tinha nem colchonete. Mas, hoje em dia, eu até ajudo ela" (M).

Todos os membros da família têm que se readaptar às novas regras e maneiras de relacionar, buscando reorganizações espaciais e emocionais, porque os filhos não são mais adolescentes, ainda que dependam financeiramente dos pais (Henriques et al., 2011; Peixoto & Luz, 2007). Embora muitos dos conflitos surjam devido à ajuda financeira e à cobrança dos pais, se houver diálogo entre eles e espaço para renegociação das regras no contexto da família, a convivência pode ser benéfica, gerando suporte financeiro e afetivo para toda a família (Johson, 2013; Leopold, 2012).

Assim, a manutenção da tutela parental na transição para a vida adulta pode auxiliar os jovens a enfrentar as inseguranças em relação aos aspectos profissionais e relacionais (Peixoto & Luz, 2007; Ponciano & Féres-Carneiro, 2014). Porém, como indica a fala do jovem a seguir, nem sempre pais e filhos têm conhecimento das suas dificuldades interpessoais: "Essa relação é feita como aquela música do Legião Urbana, Pais e Filhos. Os pais têm também uma dificuldade de compreender a gente, assim como a gente tem em compreendê-los. Enquanto a gente não compreende isso, nunca vai dar certo" (H).

Os conflitos podem contribuir para renegociações na convivência familiar que possibilitam aos jovens mais autonomia, assim como ajudam os pais a rever tanto suas práticas educativas com os filhos quanto suas vidas afetivas e valores morais (Coimbra & Fontaine, 2013; Ponciano & Féres-Carneiro, 2014): "E o que mais me surpreendeu em relação ao meu pai. Mesmo que hoje a gente não tenha muito contato. Naquela época a gente esperava aquela coisa tipo 'meu filho vai herdar meu cinturão de garanhão'. E foi o contrário, porque que a minha orientação sexual foi totalmente diferente. Ele me abraçou e hoje me dou 'super-bem' com isso. Nunca tive nenhum problema" (H).

Nessa direção, alguns jovens demonstram menor hierarquia e mais abertura para conversa e negociação com os pais: "Você muda. Eu perdi minha mãe há pouco tempo. Mas eu lembro de quando eu era mais nova, nossa convivência era de muita briga. Muita, sabe? Um ano antes dela falecer a gente teve uma mudança muito grande no nosso relacionamento" (M). "Quando a gente quer bater boca. Depois você vai ficando mais velho. Você vai vendo que aquilo não adianta" (M). "Tá melhorando porque a gente passa a ser mais tolerante. A gente muda a visão de mundo. A gente começa a entender aquilo que a gente achava que era chatice e passa a compreender melhor" (H).

As tensões geradas pelas negociações entre pais e filhos possibilitam que ocorram acordos entre os familiares (Borges & Magalhães, 2009; Féres-Carneiro et al., 2011; Peixoto & Luz, 2007). De fato, a família constitui-se como uma importante fonte de apoio material e afetivo aos filhos adultos em situação de vulnerabilidade, como desemprego, e, nesse caso, a coabitação prolongada pode ser benéfica. Nota-se que o relacionamento intergeracional na família pode proporcionar aprendizagem de ambos os envolvidos, contribuindo para a transmissão recíproca entre pais e filhos de habilidades e competências, configurando uma dinâmica na qual todos aumentam seus conhecimentos e reveem suas visões de mundo (Braz et al., 2015).

Assim, ao analisar as falas de todas as categorias, pode-se verificar que a transição para a vida adulta não é isenta de conflitos intergeracionais. Porém, tais divergências não impedem manifestações de solidariedade e afeto entre os membros da família (Bengtson & Oyama, 2007). A análise das falas sugere que há múltiplas trajétorias na construção da adultez, a qual é forjada pelas condições socioculturais e econômicas dos jovens adultos (Barros, 2009). A convivência mais prolongala entre pais e filhos pode, em vez de denotar relações disfuncionais, sinalizar para a possibilidade da solidariedade entre os membros da família (Braz et al., 2015). No caso dos jovens adultos de baixo NSE, isso torna-se ainda mais relevante, na medida em que o apoio socioemocional e material entre pais e filhos é essencial diante da precarização ou à ausência de serviços públicos de saúde, educação e lazer.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aspectos relacionais e afetivos na transição para a vida adulta ainda são poucos explorados no contexto brasileiro. Assim, para contribuir com essa área de investigação, o presente estudo examinou as percepções dos jovens sobre a transição para a vida adulta e as relações com os membros da família. Os resultados indicaram que a transição para a vida adulta traz aos jovens adultos novas demandas interpessoais e profissionais que surgem nesse momento da vida. Porém, essa constatação tem reflexos diversos para os jovens adultos de baixo NSE, que precisam, muitas vezes desde a adolescência, trabalhar e estudar, enquanto os jovens das classes médias têm mais chance de vivenciar a adultez emergente, isto é, de explorar inúmeras possibilidades nos aspectos profissionais e relacionais.

A convivência mais prolongada entre os jovens adultos e seus familiares foi caracterizada por conflitos e renegociações nos aspectos interpessoais e afetivos que podem contribuir para futuras interações mais positivas. De modo geral, a solidariedade intergeracional entre os membros da família pode favorecer a conquista de autonomia e independências afetiva e profissional dos jovens adultos e, ao mesmo tempo, promover o desenvolvimento de habilidades interpessoais dos pais. No entanto, os jovens podem ficar sobrecarregados pelos cuidados com os pais idosos e ter mais dificuldades diante das demandas da vida adulta. Dessa forma, conciliar seus planos pessoais e o cuidado dos pais, sem perder o foco em suas vidas, é um desafio a ser enfrentado pelos jovens adultos que será influenciado pelas suas condições socioeconômicas. Tais questões poderão ser trabalhadas em futuras intervenções preventivas e para a promoção de saúde mental com os jovens adultos e seus familiares.

Algumas limitações devem ser destacadas neste estudo. As informações coletadas referem-se a uma amostra reduzida, escolhida por conveniência e específica de jovens majoritariamente universitários pertencentes às classes sociais C e B. Futuros estudos poderiam contemplar jovens com outros níveis de escolaridade e classes sociais. Somado a isso, seria importante analisar as percepções dos familiares (pais, avós e irmãos) sobre a transição para a vida adulta. Outras pesquisas poderiam realizar uma intervenção que pudesse observar situações fáceis e difíceis na transição para a vida adulta e que propiciassem a solidariedade intergeracional na família. Como aspectos positivos, o presente estudo evidenciou características específicas das relações entre os jovens adultos e seus pais que são diversas das observadas em outros momentos do ciclo vital. Os dados sinalizaram a importância em se contextualizar a teoria da Adultez Emergente para a nossa realidade sociocultural nas investigações em que o público-alvo é os jovens de classes sociais desfavorecidas economicamente. Por fim, a pesquisa indicou a importância da afetividade na relação pais e filhos, a busca pelo diálogo familiar e suporte emocional perante os desafios da vida adulta.

 

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Recebido em: 23/02/2014
Aceito em: 10/09/2016

 

 

1 Contato: vanessaromera@gmail.com
2 M: sexo feminino, H: sexo masculino.

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