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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.10 no.1 Belo Horizonte jun. 2017

 

Artigo

 

Autoconsciência, religiosidade e depressão na formação presbiteral em seminaristas católicos: um estudo ex-post-facto

Self-awareness, religiosity and depression in priestly formation in catholic seminarians: an ex-post-facto study

 

Alexsandro Medeiros do Nascimento1; Rafael Amorim de Paula2; Antonio Roazzi3

 

1 Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), alexmeden@hotmail.com

2 Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pax_rafael@hotmail.com

3 Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), roazzi@gmail.com

 

 


RESUMO

A pesquisa objetivou delinear as interrelações entre autoconsciência, afeto depressivo e religiosidade em seminaristas católicos, tomando como hipótese que o período de formação presbiteral reserva potencial impacto subjetivo em diversas esferas da vida psíquica, tanto cognitiva quanto afetiva, dos sujeitos, aproximando-os de riscos psicopatológicos. Participaram do estudo 50 seminaristas, os quais responderam a Questionário Sociodemográfico e instrumentos psicométricos: Escala de Autoconsciência Situacional, Escala de Rastreamento Populacional para Depressão (CES-D) e Escala de Religiosidade Global. Os dados foram analisados através de Análise da Estrutura de Similaridade, procedimentos da Psicometria e coeficiente de correlação de Pearson, evidenciando que o afeto negativo se interrelaciona com autorreflexão e ruminação e, também, que há uma tendência de decaimento da religiosidade ao longo da formação presbiteral – embora cursando com aproximação às formas reflexivas de autofoco no final do período formativo –, o que indica a necessidade de ajustes das agências formativas na preparação para o sacerdócio.

Palavras-chave: autoconsciência, depressão, religiosidade, seminaristas católicos, teoria das facetas.


ABSTRACT

The present study aimed to delineate the interrelationships between self-awareness, depressive affect and religiosity in Catholic seminarians, on the assumption that the period of priestly formation reserves potential subjective impact on various spheres of the mental life, both cognitive and affective, of the subjects, approaching them of psychopathological risks. Fifty Catholic seminarians participated in the study and responded to a Sociodemographic Questionnaire and psychometric instruments: Situational Self-focus Scale, Center for Epidemiologic Studies Depression Scale (CES-D) and Global Religiosity Scale. Data were analyzed using Similarity Structure Analysis, psychometric procedures and Pearson correlation coefficient, showing that negative affect interrelates with self-reflection and rumination, as well as a trend of decline of religiosity along of priestly formation, although approaching to self-reflection occurs at the end of the formative period, indicating the need for training agencies to adjust the preparation for priesthood.

Keywords: self-awareness, depression, religiosity, catholic seminarians, facet theory.

 

O Seminário Maior, como hoje entendemos, é uma casa de formação, em regime de internação, que tem por objetivo preparar intelectual e espiritualmente rapazes para assumirem o sacerdócio. Desde o século XVI, prevalece o modelo de seminário idealizado pelo Concílio de Trento, inspirado na disciplina monástica, que passa a existir em resposta à crise moral e espiritual que afetava o clero, o qual se encontrava em decadência, e como efeito da Contrarreforma. A partir das inovações do Concílio Vaticano II (1962-1965), são indicadas novas orientações e perspectivas a respeito da formação presbiteral; contudo, predomina ainda fortemente nos seminários o modelo tridentino, que sofreu poucas mudanças (Benelli, 2007).

Essa pesquisa teve por pressuposto que o seminário católico é uma instituição total. Segundo Goffman (1987; ver Benelli, 2003; 2008), as instituições totais se distinguem por serem de regime de internação, a instituição atuando como agente de modelagem dos sujeitos. As atividades que são desenvolvidas nesse ambiente são híbridas, tal ambiente funcionando como local de residência, trabalho e lazer e espaço de alguma função específica, que pode ser terapêutica, punitiva, formativa etc. O objetivo é formar no seminarista uma subjetividade específica: SER PADRE. A formação sacerdotal é um processo no bojo de uma conjuntura social e eclesial específica e tem no seminário o lugar da preparação para os futuros membros da hierarquia eclesiástica (Benelli, 2007). Contudo, aspectos da formação parecem não ser benéficos para os seminaristas, algo que motiva a atenção da própria Igreja Católica, conforme expressa a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil/CNBB (2010):

Muitos vocacionados e seminaristas buscam, de início, um mundo de certezas a partir da idealização do ‘ser padre’, como expressão do eu idealizado. No seu íntimo encontram-se interrogações sobre a identidade presbiteral, ainda que não estejam bem formuladas. As mesmas referem-se ao modo da Igreja ser, aos problemas envolvendo o exercício do ministério presbiteral, tais como: incoerência, autoritarismo e um celibato mal vivido. As contradições percebidas podem estar silenciadas, e interferir ao longo do processo formativo. (pp.28-29)

A formação presbiteral, enquanto tempo de autoausculta, remete à questão da autoconsciência do seminarista e de sua dinâmica subjacente a esse processo formativo. Todas as pessoas tendem a realizar a ação de refletir sobre si mesmas, que pode ser chamada de autoconsciência. Essa ação é natural e cotidiana no ser humano, pois, em vários graus, as pessoas refletem sobre si mesmas, ou seja, tornam-se objetos de sua própria consciência, podendo ser em relação tanto a aspectos agradáveis quanto desagradáveis, nomeadamente autoconsciências de reflexão e ruminação, respectivamente (Nascimento, 2008). Há aquelas pessoas que dedicam muito tempo do seu dia a pensar sobre si mesmas, outras podem ter dificuldade de realizar um processo autorreflexivo, até mesmo passar longos períodos de suas vidas evitando se deter em aspectos de seu self. O self pode ser compreendido como um processo cognoscitivo básico de reflexão que viabiliza a interação comunicativa entre consciência e corpo (Silveira, 2011; Morin, 2006).

A autoconsciência é um processo complexo e fundante que representa um estado em que o indivíduo ativamente identifica, processa e armazena informações sobre o self (Morin, 2006). Levando em conta essa complexidade, Silveira (2011) afirma que Morin considera elementos multidimensionais que abarcam a temática do self (emoções, a recordação biográfica, o senso de agência e traços de personalidade) e seus derivados (autoestima, autorregulação etc.). Sendo assim, é possível dizer que, a partir do construto autoconsciência, o indivíduo tem conhecimento tanto de seus aspectos privados do self (pensamentos, crenças, opiniões, objetivos, sensações, atitudes...) quanto de aspectos públicos do self, ou seja, características sensíveis, como aspectos físicos e comportamentais (Morin, 2006; Silveira, 2011; Nascimento, 2008).

O interesse da psicologia pelo conceito de autoconsciência é recuperado nos anos iniciais da década de 1970, quando estudos experimentais mostraram que existem diferenças individuais na focalização sobre si mesmo e que, de algum modo, elas estão associadas a aspectos comportamentais (Trapnell & Campbell, 1999; Nascimento, 2008).

Para esta pesquisa, optou-se pela autoconsciência em sua forma estado (situacional; self-awareness, no inglês). Autoconsciência situacional é definida como foco pontual dos sistemas atencionais voltados ao self (Nascimento, 2008); é um movimento no qual a consciência é voltada para si no instante da experiência (Nascimento & Roazzi, 2013).

Dessa forma, entramos nos fatores ruminação e reflexão, que são maneiras diferentes de o self se tornar objeto da consciência, modos diferentes de experienciar a si mesmo. A ruminação é um processo no qual os sentimentos, pensamentos e acontecimentos são objetos da atenção do indivíduo que os vivencia sob escasso controle voluntário (Trapnell & Campbell, 1999; Nascimento, 2008). Os sentimentos e pensamentos possuem conteúdos negativos, desagradáveis, podendo gerar um estado depressivo no qual surgem cadeias de pensamentos difíceis de serem quebradas. Os acontecimentos são significados de modo negativo, podendo ser considerados uma ameaça (Zanon, 2009). Por sua vez, a reflexão seria um funcionamento no qual a atenção é voltada sobre o self numa atitude mais epistêmica, num processo de autoapreensão criativa motivado por um interesse em ampliar o autoconhecimento (Trapnell & Campbell, 1999; Nascimento & Roazzi, 2013). Zanon (2009), ecoando reflexão de Teasdale e Green, diz que pessoas reflexivas buscam em lembranças positivas, e também negativas, insights sobre seus problemas. Dessa forma, a reflexão seria um modo bem-sucedido de encontrar respostas para problemas do cotidiano e um caminho heurístico de defesa contra a caída em processos psicopatológicos, em especial os associados ao espectro depressivo.

A Depressão ainda continua sendo uma incógnita e, em vários aspectos, controversa. Nessa perspectiva, muitas pesquisas vêm sendo realizadas considerando diversas variáveis, como, por exemplo, faixa etária, sexo, transtornos alimentares etc. Vários fatores são levados em conta na gênese desse transtorno, de modo especial os biológicos e psicossociais, que agem fortemente entre si e na manifestação patoplástica dessa doença. A depressão é uma doença classificada como um transtorno de humor, segundo o CID-10, entendendo-se o humor como a emoção constante e predominante que permite ao indivíduo perceber o mundo que o circunda (Aros & Yoshida, 2009).

Os transtornos de humor ou transtornos afetivos são distinguidos por evidenciarem condutas consideradas inadequadas em relação à intensidade, à frequência e à duração, e também pela perda do senso de controle e pelo agudo sofrimento subjetivo dos indivíduos acometidos (Aros & Yoshida, 2009). Segundo Del Porto (1999), para o diagnóstico da depressão, levam-se em conta sintomas psíquicos (humor depressivo, redução da capacidade de experimentar prazer na maior parte das atividades), fisiológicos (alterações do sono, alterações do apetite e redução do interesse sexual) e comportamentais (retraimento social, crises de choro, comportamentos suicidas, retardo psicomotor e lentificação generalizada ou agitação psicomotora). A diversidade de sintomas que esse transtorno de humor produz afeta sensivelmente o quotidiano das pessoas, acarretando sofrimento e danos sociais e ocupacionais de grande magnitude (Hauck Filho & Teixeira, 2011).

Para o tratamento da depressão, a intervenção comumente adotada é o tratamento psiquiátrico, tendo a medicação importância fundamental, em especial nos casos crônicos, e também a psicoterapia tem apresentado a sua valiosa colaboração. Contudo, o uso de instrumentos que possam identificar precocemente a depressão tem sido alvo da investigação dos pesquisadores. O CES-D, originalmente criado por Radloff (1977), é um dos instrumentos psicométricos mais empregados para a avaliação da sintomatologia depressiva em diversas faixas etárias (Hauck Filho & Teixeira, 2011). No Brasil, Silveira e Jorge (1998) validaram a escala em populações clínica e não clínica de adolescentes e adultos jovens; mais tarde, Batistoni, Neri e Cupertino (2007) realizaram estudo de validade em uma população de idosos brasileiros; Hauck Filho e Teixeira (2011) investigaram a estrutura fatorial do CES-D em estudantes universitários, entre outros estudos realizados nacional e internacionalmente, os quais têm encontrado consistência na estrutura fatorial do instrumento, o que o coloca como auxílio valioso para o rastreamento de sintomas depressivos subjacentes a processos de transformação marcados por conflito, autodúvidas e forte autoinspeção, como os relacionados à formação presbiteral (Benelli, 2008).

Tem-se verificado um incremento recente de interesse nas áreas da Psicologia da Religião e da Psicologia Pastoral, na documentação dos impactos sobre a saúde mental e o bem-estar de clérigos, seminaristas e religiosos em geral, exercidos por fatores relacionados à formação e à cotidianidade profissional do exercício pastoral, visando a um maior conhecimento desses percursos religiosos e à prevenção de efeitos deletérios (Sunardi, 2014; Francis et al., 2013; Aletti, 2008; Belzen, 1996). Knox et al. (2007) investigaram níveis globais de psicopatologia numa amostra de 100 clérigos seculares católico-romanos norte-americanos através do Symptom Checklist-90-Revised (SCL-90-R) e encontraram, em metade das respostas válidas ao instrumento, evidências de problemas psicológicos marcantes envolvendo quatro escalas dimensionais com escores elevados (obsessivo-compulsivo, sensitividade interpessoal, depressão e psicoticismo), bem como índices elevados em dois dos três índices gerais disponibilizados pelo instrumento, a saber: o Índice de Severidade Global (GSI), que integra informações sobre o número de sintomas e a intensidade do sofrimento, e o Total de Sintomas Positivos (PST), que indica o número de sintomas relatados pelo participante, independentemente de sua gravidade, sendo, portanto, uma medida da amplitude dos sintomas.

O estudo de Büssing et al. (2013) explorou o tema da aridez espiritual (spiritual dryness) em 425 clérigos católicos da diocese alemã de Paderborn com larga experiência de trabalho pastoral e de cuidado de outros clérigos. A aridez espiritual, conceituada como uma forma de letargia espiritual, falta de encontro espiritual significativo com Deus e ausência de recursos espirituais, tais como práticas de renovação espiritual, foi operacionalizada pela Escala de Aridez Espiritual (SDS, Spiritual Dryness Scale), e evidências foram levantadas para sentimentos de aridez espiritual experienciados ocasionalmente por 40% e regularmente por 13% dos participantes. Tais experiências explicaram 44% da variância em experiências espirituais diárias e 30% em sintomas depressivos.

O interesse sobre as relações de religiosidade e espiritualidade com saúde mental e psicopatologia tem se expandido de estudos envolvendo clérigos atuantes para o nível inicial da formação religiosa (Plante & Apodaca, 2011; Miller & Kelley, 2004; Belzen, 1996), embora haja ainda necessidade de maior investimento no estudo dessas relações entre seminaristas; os estudos nesse nível formativo são ainda esparsos e insipientes em contexto brasileiro, usualmente representados por relatos de casos individuais em psicoterapia (Massih, 2009).

O esforço de pesquisa na documentação da saúde mental de candidatos ao seminário episcopal os tem revelado em geral bem-ajustados, emocionalmente estáveis, inteligentes, confiáveis e abertos à mudança; no entanto, encontram-se evidências, a partir de escores altos em medidas psicométricas, de tendências à defensividade, repressão, ingenuidade, forte necessidade de afeição, histrionismo, narcisismo e compulsividade (Plante & Apodaca, 2011). Em estudo com seminaristas e padres católico-romanos, Sunardi (2014) investigou os fatores preditivos de compromisso com a vocação sacerdotal, tendo encontrado que escores altos em cuidados parentais, extroversão e solidão estiveram associados com diminuição desse compromisso, além de correlação com a idéia de deixar o sacerdócio. No estudo de caso clínico de Massih (2009) de um seminarista católico em processo psicoterápico, observou-se a importância da retomada, na psicoterapia, de processos de narrativização da própria trajetória de vida, possibilitando o advento de um novo diálogo interno com o self, a partir da conscientização de intercâmbios mais inconscientes do que conscientes com personagens com quem se dialogou na infância, em especial com os próprios pais, mas também com os personagens significativos da história religiosa do seminarista, incluindo-se aí os membros da comunidade religiosa de formação.

A partir dessa perspectiva, nessa retomada do significado desses personagens, verifica-se a existência de conflitos subjetivos do seminarista na forma de afetos penosos e depressão, que, uma vez não dialogizados e narrativizados, podem eventualmente dificultar a assunção de um amadurecimento e a integração do self vocacional. Cabe-nos arguir se a religiosidade, em tese em crescente fomento na urdidura lógica e teológica da formação dos seminaristas, cumpriria um papel protetivo à emergência de afetos negativos e sintomas de depressão diversos, conforme usualmente relatado na literatura na área da Psicologia da Religião (Nascimento, 2008).

No curso da história e evolução humanas, existe a constatação de como a religião ocupa uma posição importante na constituição das culturas e das realidades socialmente construídas, como também “legitima as instituições infundindo-lhes um status ontológico de validade suprema, isto é, situando-as num quadro de referência sagrado e cósmico” (Berger, 1985, p. 46). Embora, desde o Iluminismo, a dimensão religiosa tenha sofrido mudanças, principalmente no tocante à luta travada pela ciência para retirar a religião do centro de gravidade epistêmica na história humana, as previsões sobre o desaparecimento da dimensão religiosa parecem não se cumprir (Nascimento, 2008).

Na pós-modernidade, a religião tem se revestido de formas renovadas e criativas (quando não ecléticas), revelando ser um aspecto basilar do homem e da cultura. A religiosidade é da ordem de uma experiência pessoal, intransferível, a fim de compreender a própria existência e o seu sentido, com uma dimensão transcendente (Nascimento, 2008). Embora exista confusão entre os termos religiosidade e espiritualidade, é importante que sejam distinguidos. Segundo Nascimento (2008, pp.85-86): “percebe-se religião (e religiosidade) mais marcada por crenças e práticas religiosas tradicionais, enquanto espiritualidade – mesmo estando no cerne da experiência religiosa – é mais universal e pessoal, ao contrário da religião, a qual é mais ligada a cultura e sociedade, e que concebe espiritualidade dentro dos parâmetros de um arcabouço teológico restrito, que define crenças, rituais e práticas”. Todavia, é importante ressaltar que a religiosidade pode ser um modo de a espiritualidade se expressar, mas não é o único, podendo abarcar um conjunto de crenças alicerçadas nas expressões religiosas tradicionais (Nascimento, 2008).

Miller e Kelley (2004) documentaram em exame da literatura em Psicologia da Religião que a pesquisa empírica sugere que a religião tem influência positiva sobre o funcionamento e a saúde mental, exercendo efeito protetivo sobre psicopatologias e propiciando felicidade geral, significado e satisfação com a vida. Dimensões da vida religiosa como religiosidade social, gratidão e não vingatividade protegem contra transtornos de internalização, enquanto religiosidade geral e concepções de um Deus envolvente e juiz protegem contra transtornos de externalização, como o abuso de drogas. No que tange especialmente à depressão, meta-análises têm evidenciado uma estatisticamente significante e robusta associação inversa de efeito moderado entre religiosidade e sintomatologia depressiva, embora tenham surgido evidências de que variáveis como influência genética, dinâmicas desenvolvimentais e familiares, suporte social, avaliação de eventos e enfrentamento de estresse afetam a influência protetiva da religiosidade. Todavia, também são encontradas associações entre níveis altos de religiosidade e escores ampliados de ansiedade, modulação na expressão de sintomatologia do espectro da esquizofrenia e em seu enfrentamento, escrupulosidade religiosa, extrema preocupação e pensamentos ruminativos sobre pureza ritual em indivíduos religiosos portadores de transtorno obsessivo-compulsivo (Miller & Kelley, 2004), pondo em relevo um lastro difuso e velado de perturbações no autofoco no horizonte cognitivo desses indivíduos religiosos.

Cabe-nos perguntar de que maneiras estariam se inter-relacionando e se afetando mutuamente os processos autofocalizadores, a religiosidade e os aspectos conflitivos da personalidade do seminarista, plasmados no longo e doloroso processo de assunção de uma nova identidade como presbítero em formação, ao se saber do importante impacto de processos ruminativos sobre a personalidade, como documentado por vários autores (Nascimento, 2008; Nascimento & Roazzi, 2013; Trapnell & Campbell, 1999).

Para esta pesquisa, tomou-se como hipótese a relação das práticas institucionais e dos procedimentos de poder adotados no seminário, enquanto instituição total, como possível agente desencadeador de riscos psicopatológicos e conflitos experienciados. Os mecanismos institucionais, como enclausuramento, vigilância, exame, recompensa, punição e hierarquia piramidal, e também medidas autorreguladoras como autoanálise, auto-observação, práticas de ascese, oração etc., estariam relacionados a um modo particular de significar e se relacionar com o mundo que circunscreve o seminarista católico. Essa hipótese, além de ser uma reflexão baseada na literatura, bebe na fonte primeira das perguntas de pesquisa: 1) A partir das maneiras como os seminaristas no contexto de um seminário católico significam sua formação presbiteral, conflitos subjetivos e traços psicopatológicos, em especial humor depressivo e autoconsciência ruminativa, estão relacionados a essa experiência formativo-religiosa?; e 2) A religiosidade fomentada na formação presbiteral se constituiria em fator protetivo aos afetos negativos e processos autofocalizadores malignos e ruminativos?

 

Método

Participantes

Esta pesquisa foi realizada em um Seminário Maior no estado de Pernambuco. Participaram 50 seminaristas nas três etapas de formação, a saber: propedêutico (22%), cursando Filosofia (54%) e cursando Teologia (24%). Os participantes tinham idade média de 23,8 anos (DP = 5,02), com idades variando de 17 a 44 anos.

 

Instrumentos

O instrumento utilizado foi um protocolo qualiquantitativo composto de um questionário sociodemográfico e escalas psicométricas. Os instrumentos da pesquisa são descritos a seguir:

Questionário Sociodemográfico - Instrumento formado por 18 itens que avaliam variáveis de interesse da pesquisa, como grau de instrução, idade, informações relacionadas à vida familiar e profissional e outras variáveis relativas às práticas religiosas e formativas. Item típico: “Com qual a idade você ingressou no seminário? ............................ anos”.

Escala de Autoconsciência Situacional (EAS) - Escala de tipo Likert construída e validada por Nascimento (2008), constituída por 13 itens para a mensuração de níveis de autoconsciência-estado ou situacional, em suas formas reflexão e ruminação, e um terceiro fator de mediação icônica. As respostas são dadas em escala de cinco pontos partindo de 1 (discordo totalmente) até 5 (concordo totalmente). Item típico: “Neste instante, eu avalio algum aspecto que me diz respeito”.

Escala de rastreamento populacional para a depressão (CES-D) - Instrumento composto por 20 itens, de Radloff (1977), na versão brasileira validada por Silveira e Jorge (1998), que avalia o estado atual do humor e a possível incidência do fenômeno depressivo em populações clínica e não-clínica. As respostas são dadas em escala de quatro pontos, partindo de 0 (raramente) até 3 (durante maior parte do tempo) em relação à adequação do conteúdo de cada autoafirmação a como o participante percebe seu humor ao longo da última semana. Item típico: “Senti não conseguir melhorar meu estado de ânimo mesmo com a ajuda de familiares e amigos”.

Escala de Religiosidade Global (ERG) - Instrumento de cinco itens construído e validado por Nascimento (2008) para mensuração dos níveis de religiosidade tomados de forma global (unidimensional), garantindo os principais aspectos arrolados na literatura de religiosidade, cujas respostas são dadas em escala de cinco pontos, variando de 1 (discordo totalmente) até 5 (concordo totalmente), no tocante ao julgamento de adequação do conteúdo de cada autoafirmação do instrumento a como o participante percebe sua vivência religiosa no presente. Item típico: “Deposito minha confiança e esperança em um poder mais alto que eu”.

 

Procedimentos

Após liberação do projeto para execução pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Pernambuco (protocolo CEP/CCS/UFPE Nº 405/11, 18.01.2012), procedeu-se ao recrutamento de participantes em seminários católicos da região metropolitana de Recife/PE, os quais, após apresentação dos objetivos da pesquisa e assinatura dos termos de consentimento livre e esclarecido, receberam os instrumentos da pesquisa enfeixados num questionário, com tempo livre para resposta. As informações foram posteriormente sistematizadas e digitadas em planilha do software SPSS, versão 18, e conduzidas às análises estatísticas aqui reportadas.

 

Resultados

Num primeiro momento, procedeu-se à avaliação da dimensionalidade dos instrumentos do estudo através de cotejo triangulado da metodologia das facetas (Guttman, 1968; Roazzi, 1995; Nascimento, 2008) e exame da fidedignidade pelo alfa de Cronbach, tal como preconizado pela Psicometria (Hair, Anderson, Tatham & Black, 2005; Nascimento, 2008). A teoria das facetas parte de uma perspectiva epistemológica que pressupõe variáveis contínuas (não discretas), inter-relacionadas numa complexa trama a outras, dentro de um mesmo domínio de investigação, as quais configuram um espaço de interações que se traduz em facetas várias, que compõem a estrutura do objeto investigado (Nascimento, 2008; Nascimento & Roazzi, 2013; Roazzi, Nascimento & Carvalho, 2003).

A Análise da Estrutura de Similaridade (SSA) aqui utilizada é uma dentre as técnicas estatísticas disponíveis em investigações com base na metodologia das facetas e faz parte de um conjunto de técnicas de escalagem multidimensional (Multidimensional Scaling ou MDS) (Nascimento & Roazzi, 2013; Roazzi, 1995), as quais, a partir de julgamentos de similaridade, convertem distâncias de natureza psicológica em distâncias euclidianas apresentadas de maneira gráfica na forma de projeções em formato geométrico, em que variáveis fortemente relacionadas empiricamente são representadas em regime de proximidade na projeção e, ao contrário, as fracamente relacionadas, por sua vez, são representadas em distância geométrica correspondente (Guttman, 1968; Nascimento & Roazzi, 2013). O uso da Análise SSA justifica-se pelo fato de as técnicas de MDS mostrarem-se preferíveis à análise fatorial, por serem menos restritivas em relação às variáveis analisadas e mais adequadas ao exame de dados de amostras de menor porte (Bilsky, 2003), caso do presente estudo, dada a dificuldade de acesso a essa população, que, segundo a literatura, mostra-se em geral refratária à pesquisa científica (Benelli, 2003), percepção ratificada durante a coleta de dados do presente estudo.

Utilizou-se a Análise de Estrutura de Similaridade para o exame da matriz de correlações da Escala de Autoconsciência Situacional (EAS) de Nascimento (2008), após a retirada dos itens com baixa comunalidade, resultando numa matriz composta pelos itens remanescentes (oito itens). Os resultados podem ser examinados na Figura 1.

 

 

O coeficiente de alienação encontrado de K = .13638 indica uma representação adequada dos dados na projeção espacial, sendo tal coeficiente um valor estatístico utilizado em MDS não métrica, isto é, em SSA ordinal, considerando-se, em geral, um valor de K ≤ 0,15 como indicador de solução multidimensional aceitável para correta interpretação dos dados, conforme Bilsky (2003). As configurações de variáveis no espaço multidimensional indicam partição de tipo axial dos dados, com os elementos da faceta ordenada se manifestando em sucessão linear, separados por linhas paralelas, sendo também conhecida como simplex axial de regiões, significando duas dimensões independentes do construto mensurado (Bilsky, 2003).

A organização axial dos dados se expressa concretamente por uma partição vertical do espaço multidimensional, compondo duas facetas distintas, localizadas sequencialmente da esquerda para a direita: uma primeira região de contiguidade conformada pelos itens 5, 2, 12 e 13, caracterizadores de autofoco ruminativo (autoruminação); e a aproximação dos itens 11, 9, 10 e 1 numa segunda região de contiguidade, conformada por itens de caráter não ansioso/ruminativo – caracterizadores de autofoco reflexivo (autorreflexão) – pela fusão dos itens 1 e 9 do fator Reflexão e os itens 10 e 11 do fator Mediação Icônica, da EAS (Nascimento, 2008). A consistência interna dos fatores medida pelo alfa de Cronbach (α) foi de .71 para Autorreflexão e de .65 para Ruminação, valores considerados adequados pela psicometria para âmbito de pesquisa (Hair et al., 2005; Nascimento, 2008).

As subescalas de Humor depressivo e Afeto positivo da escala CES-D de rastreamento populacional para depressão tiveram sua matriz de correlações examinada por Análise de Estrutura de Similaridade, para avaliação de sua dimensionalidade após a retirada dos itens com baixa comunalidade, resultando numa matriz composta pelos itens remanescentes (seis itens). Os resultados podem ser examinados na Figura 2.

 

 

O coeficiente de alienação encontrado de K = .02208 indica uma representação adequada dos dados na projeção espacial, com uma partição de tipo axial dos dados, compondo duas facetas distintas, localizadas sequencialmente da esquerda para a direita: uma primeira região de contiguidade conformada pelos itens 9, 14 e 17, caracterizadores de Afeto negativo ou depressivo, com os itens agrupados em grande proximidade no plano superior do quadrante inferior esquerdo da projeção; e a aproximação dos itens 16, 8 e 12 numa segunda região de contiguidade conformada por itens caracterizadores de Afeto positivo, estes localizados na extremidade direita, em absoluta oposição e distanciamento dos itens de afeto negativo, com o item 12 posicionado menos proximamente na porção final do quadrante inferior direito. A consistência interna dos fatores medida pelo alfa de Cronbach (α) foi de .79 para Afeto negativo e de .64 para Afeto positivo, valores considerados adequados pela psicometria para âmbito de pesquisa (Hair et al., 2005; Nascimento, 2008).

Dado o fato de a Escala de Religiosidade Global (ERG) de Nascimento (2008) ser unidimensional, operou-se o cálculo de sua consistência interna pelo alfa de Cronbach (α = .71) com a exclusão do item 4, cujo conteúdo se relaciona à dimensão da fé da religiosidade global (Nascimento, 2008), por sua não saturação no fator considerado, estando esse valor conforme o esperado pela psicometria para fins de pesquisa e diagnóstico (Hair et al., 2005; Nascimento, 2008).

Elucidada a questão da dimensionalidade das escalas psicométricas do estudo, procedeu-se ao exame das interrelações entre as variáveis através de Análise de Estrutura de Similaridade (Similarity Structure Analysis) (Guttman, 1968; Roazzi, 1995; Nascimento & Roazzi, 2013), auxiliada pelo método das variáveis externas enquanto pontos (Cohen & Amar, 1999) e cotejada com resultados de coeficientes de correlação de Pearson entre as escalas e demais variáveis do estudo (Hair et al., 2005).

A Análise de Estrutura de Similaridade foi efetuada com os fatores das escalas EAS, CES-D e ERG, usando-se o método das variáveis externas como pontos, para o vislumbre de relações empíricas entre a estrutura da base de construtos investigada (autoconsciência, depressão, religiosidade global) e as variáveis escolhidas – aqui em exame sendo consideradas as três etapas de formação presbiteral (Cohen & Amar, 1999; Roazzi, 1995; Nascimento, 2008). Os resultados dessa estatística podem ser avaliados na projeção SSA encontrada (Figura 3).

 

 

O coeficiente de alienação encontrado de K = .09521 indica um excelente ajuste dos dados no espaço multidimensional da projeção, com uma partição de tipo polar (angular) dos dados, isto é, seus elementos constituem regiões cuneiformes, de forma circumplex, com limites partindo de uma origem comum, segundo Bilsky (2003). O espaço multidimensional estruturou-se compondo três facetas distintas, localizadas em sentido horário da esquerda para a direita: uma primeira região de contiguidade conformada pelos elementos relacionados aos fatores Afeto negativo ou depressivo e Ruminação ou autofoco ruminativo, caracterizando a faceta nomeada Negatividade pela valência negativa, disfuncional, de seus elementos; uma segunda região de contiguidade conformada pelos itens 3, 5, 2 e 1 do fator de religiosidade global, caracterizando a faceta nomeada Religiosidade pelo agrupamento dos itens de religiosidade nessa região do espaço dimensional; e uma terceira região de contiguidade conformada pelos elementos relacionados aos fatores Afeto positivo e Autorreflexão ou autofoco reflexivo, caracterizando a faceta nomeada Positividade pela valência positiva, construtiva e adaptativa de seus elementos.

O exame das relações das variáveis externas (etapas de formação) com a estrutura dos construtos na projeção indicou o posicionamento do subgrupo de seminaristas da Etapa de formação 1 (propedêutico) na porção inferior do quadrante superior direito (faceta Religiosidade), próximo dos itens de religiosidade e do fator Ruminação (faceta Negatividade). O subgrupo de seminaristas da Etapa de formação 2 (Filosofia) encontra-se dentro ainda dessa faceta de Religiosidade, próximo dos indivíduos da Etapa de formação 2 e do fator Ruminação, no entanto, mais distanciado dos itens de religiosidade componentes dessa região dimensional. Por fim, o subgrupo de seminaristas da Etapa de formação 3 (Teologia) localiza-se no extremo inferior da faceta Positividade, equidistante tanto dos itens de religiosidade (faceta Religiosidade) quanto dos fatores Ruminação e Afeto negativo ou depressivo (faceta Negatividade), a meio termo entre Autorreflexão e Afeto positivo.

Para aprofundamento do exame das interrelações entre as variáveis, as análises multivariadas das facetas foram trianguladas com o uso do coeficiente de correlação de Pearson. Efetuou-se a análise das interrelações entre os fatores das escalas ERG, CES-D e EAS e as variáveis sociodemográficas idade, idade de ingresso, frequência de atendimento a atividades religiosas, grau de instrução e etapa da formação presbiteral, os resultados indicando que apenas a religiosidade global mostrou-se correlacionada de forma estatisticamente significante e negativa com a etapa de formação (r = -.291, p < .05), evidenciando que há um decréscimo nos índices de religiosidade no avançar da formação presbiteral.

Através do coeficiente de Pearson, os escores das referidas escalas foram também inter-relacionados com as variáveis profissão, tempo de pertença ao catolicismo, existência de familiar com frequência no seminário e existência de familiar padre ou religioso, os resultados indicando que apenas a variável profissão mostrou-se de forma estatisticamente significante e positiva inter-relacionada com o fator Ruminação da EAS (r = .617, p < .05), revelando que, nessa amostra, aqueles que já tiveram alguma experiência profissional apresentam uma tendência a se autofocalizarem em modos ruminativos e ansiosos. Por fim, os fatores das escalas foram relacionados entre si com uso do coeficiente de Pearson, os resultados indicando que três interrelações revelaram-se estatisticamente significantes – a saber, Afeto Negativo de forma positiva com Reflexão (r = .303, p < .05) e com Ruminação (r = .375, p < .01) e de forma negativa com Afeto Positivo (r = -.356, p < .05) –, as quais, conjuntamente, evidenciam nessa amostra uma tendência dos seminaristas de experienciar afetos penosos e depressivos, mesmo em sujeitos mais reflexivos, e também um fator protetivo do afeto positivo, o qual, quando presente em níveis elevados, não é acompanhado de índices de depressão, segundo as análises efetuadas.

 

Discussão

A partir da hipótese inicial de pesquisa, que seria investigar a vida institucionalizada do seminarista católico como possível provocadora de riscos psicopatológicos, os dados desta pesquisa tendem a dialogar com a literatura da formação presbiteral dentro da literatura psicológica, em especial da Psicologia da Religião e da Psicologia Pastoral (Francis et al., 2013; Belzen, 1996), como também com os documentos da Igreja que acaudilham a formação seminarística.

Um dos achados da pesquisa trata-se da presença dos fatores Autofoco reflexivo e Ruminação em índices simultaneamente altos e relacionados a sinais de depressão (afeto negativo). Considerando que a formação presbiteral dos seminaristas ocorre em um contexto institucional no qual a vigilância por parte da equipe dirigente e também a regulação do comportamento entre os próprios seminaristas são fatores estressantes (Benelli, 2003; 2007; Goffman,1987), tais questões, ao não serem manejadas adequadamente, poderiam desembocar no aspecto ruminativo do self, provocando nos sujeitos um constante estado de alerta e autorregulação, numa demanda de esforço cognitivo ininterrupto para sustentar e focalizar a atenção sobre si mesmos, de modo a afastar qualquer comportamento ou evento ameaçador (Zanon, 2009; Morin, 2006; Nascimento, 2008).

É lícito supor que o próprio ato de responder ao protocolo de pesquisa pode ter sido interpretado como um evento ameaçador, tendo em vista que, durante o processo formativo, os seminaristas sao constantemente avaliados, podendo os resultados dessas avaliaçoes determinar a sua permanencia no seminário, em semelhança ao relatado por Benelli (2003), cuja trajetória em pesquisa, desde os primeiros contatos com os seminaristas, foi marcada por fantasias destes de espionagem, de possível delaçao ou de cobaias submetidas a experimentos em relaçao ao papel do pesquisador na instituiçao.

Na esteira dos fatores Autorreflexão e Ruminação, está a relação destes com o fator Afeto negativo da CES-D; a literatura aponta a relação do fator Ruminação com afetos negativos, consistindo numa cadeia de pensamentos repetitivos (Nascimento, 2008; Nascimento & Roazzi, 2013; Zanon, 2009). Contudo, o fator Autorreflexão, que se trata de pensar sobre o self a fim de obter autoconhecimento, pode se relacionar a pensamentos positivos ou negativos (Trapnell & Campbell, 1999), mas com controle espontâneo do sujeito (Nascimento, 2008). Embora o Afeto negativo da escala CES-D apresente escores altos, ele não indica necessariamente a presença do transtorno depressivo; segundo Silveira e Jorge (1998), os altos escores seriam mais bem interpretados como desconforto emocional. Dessa forma, a relação da diminuição do afeto positivo à medida que o afeto negativo aumenta, achado relevante da pesquisa, parece indicar, neste trabalho, a confirmação de riscos psicopatológicos, os quais necessitam ser averiguados em seus aspectos particulares por outras ferramentas metodológicas.

Esse aspecto na formação presbiteral parece encontrar convergência no relato de Benelli (2003), que discute a descontinuidade entre o discurso institucional oficial e as práticas institucionais do seminário por ele investigado, descontinuidade essa vivenciada pelos seminaristas de modo agonístico, eivado de angústica e autoculpabilização, somatizações e escotomizações, em que se tenta esquecer o que está graficamente percebido da referida descontinuidade.

No caso apresentado, no qual os escores em Ruminação e Reflexão são altos, a literatura traz a tipologia apresentada por Trapnell e Campbell (1999; Zanon, 2009), na qual estariam relacionados com ajustamento e coping e configurariam quatro grupos: Adaptativo (altos escores em Reflexão e baixos em Ruminação), Repressivo (baixos em Reflexão e Ruminação), Sensitivo (altos em Reflexão e Ruminação) e Vulnerável (altos escores de Ruminação e baixos de Reflexão). A amostra estudada é congruente com a descrição do grupo Sensitivo, que Zanon (2009, p. 17) caracteriza como aqueles que “mostraram-se curiosos sobre si e sobre os outros, contudo parecem estar motivados por necessidades neuróticas (medos e ameaças). Eles pareceram bastante preocupados com informações negativas, superestimando seus efeitos”. Nesse contexto, a Reflexão, segundo a literatura, pode apontar como preditora de bem-estar psicológico, como também pode acentuar limitações e fracassos, tornando as pessoas menos otimistas e felizes. A relação da Reflexão com a saúde psíquica parece estar ligada ao contexto sociocultural no qual as pessoas estão inseridas; porém, Fleckhammer (citado por Zanon, 2009) constatou que, no grupo de pessoas em que os índices de Ruminação e Reflexão são altos, também a ansiedade se encontra elevada. Dessa forma, parece que a Reflexão, mesmo alta, não anula os efeitos negativos da Ruminação.

Partindo desses dados, pode-se confrontar o que Nouwen (citado por Benelli, 2008) coloca sobre a percepção que se tem do seminário, que substitui a ideia de ser um lugar de pessoas felizes e autoconfiantes por um de pessoas problemáticas e confusas, em um ambiente deprimido, o que parece lançar as bases de marcada psicopatologia posterior (Knox et al., 2007).

Um dado apontado pela pesquisa foi o da relação entre exercício profissional anterior à entrada no seminário e o fator Ruminação, achado que pode ser interpretado pela acentuação de dependência decorrente. Tendo em vista que, durante o itinerário formativo-religioso do seminarista, é necessária a dedicação exclusiva e integral do tempo para a formação intelectual, as práticas religiosas e as atividades pastorais, não lhe resta tempo para se dedicar a alguma atividade laboriosa extramuros. O seminário mantém os seminaristas, ao menos em suas necessidades básicas: estudo, moradia, alimentação; todavia, relatos de pesquisa (Benelli, 2007) apontam para o desconforto com a situação de dependência estabelecida com a instituição. Em relação a esse achado, levanta-se a interpretação de que aqueles que vivenciaram independência financeira e senso de autonomia proporcionados por alguma atividade profissional se questionam mais e se sentem menos satisfeitos com essa situação, hipótese essa que encontra correspondência com os dados de Benelli (2007), que relata a dor possivelmente vivenciada com a perda da liberdade, da autonomia pessoal e econômica e também da vida eventualmente dinâmica e produtiva antes da admissão no seminário. Na esteira dessa dinâmica laborativa prévia, encontra-se a relação entre profissão e idade de ingresso no seminário, mostrando que os que tiveram alguma experiência profissional ingressaram no seminário mais velhos do que aqueles que não a tiveram, o que interfaceia com o aumento das chamadas vocações tardias (CNBB, 1994; 2010).

Outro achado relevante de pesquisa foi a relação entre etapa de formação e o fator de Religiosidade global, que demonstra que, à medida que o percurso formativo avança, o índice de Religiosidade decai, achado antagonista ao de outras pesquisas em psicologia da religião, que evidenciam um incremento de religiosidade conforme o conhecimento da religião aumenta (Nascimento, 2008). Essa questão toca em um ponto nevrálgico da formação presbiteral: a dimensão espiritual, que é tida como extremamente relevante, segundo o decreto Optatam Totius (Igreja Católica, 1965), ao lado das dimensões humano-afetiva, pastoral, comunitária e intelectual (CNBB, 1994; 2010). Colocamos em primeiro lugar na consideração sobre esse achado o engessamento institucional, no qual o modus operandi da instituição seminário, apesar das frequentes práticas religiosas como liturgia das horas, missa diária, reza do terço etc. (Benelli, 2007), tornaria a experiência religiosa algo automático e impessoal, ausente de fé como um engajamento pessoal vicário, conforme discute Nascimento (2008). Nessa direção, torna-se inteligível a exclusão do item 4 da ERG para as análises do estudo, exatamente o item que trata do substrato de fé da religiosidade, o que ecoa os achados de aridez espiritual marcante em clérigos por Büssing et al. (2013). Outro fator relevante notifica o fato de a formação presbiteral acontecer pari passu à formação universitária, período este tipicamente racionalista e que afetaria a experiência religiosa. Todavia, essa explicação precisa ser mais bem elucidada; é claro que a dimensão espiritual está imbricada por diversas questões sociais, históricas, linguísticas, teológicas e filosóficas que atravessam o homem na sua relação com o sagrado, inclusive aquelas que tangem à dimensão psíquica, nas quais as inconscientes não são menos relevantes do que as conscientes (Alleti, 2008; Massih, 2009).

É relevante pontuar que, tanto no status quaestionis da produçao em autoconsciencia quanto na literatura sobre formaçao presbiteral, existe escassez de estudos na literatura internacional e nacional, o que fez o mote deste estudo ser desbravador ao investigar a formaçao presbiteral na relaçao com os processos de autoconsciencia no tocante ao campo da psicologia, a partir de uma perspectiva sociocognitiva da religiao. Entre os poucos estudos prévios nessa seara, Nascimento (2008) encontrou uma relaçao protetiva da religiosidade contra a emergencia de formas ruminativas de autofocalizaçao, relato que vai de encontro aos achados desta presente pesquisa, em que, por um lado, a progressiva entrada no mundo simbólico da formaçao presbiteral cursa com decaimento da religiosidade e, por outro, foram encontradas relaçoes entre Afeto negativo e as autofocalizaçoes de tipo benigno (Autorreflexao) e maligno (Ruminaçao), traçando um perfil preocupante em torno de uma formaçao seminarística que parece tencionar o sujeito de tal maneira que mesmo os que tem uma dinâmica reflexiva nao escapam da cristalizaçao de dinâmicas afetivas de valencia negativa, relacionadas a quadros depressivos (Radloff, 1977; Silveira & Jorge, 1998). Há que se pontuar a investigaçao subjacente da própria dimensionalidade da autoconsciencia em termos de Ruminaçao e Reflexao, proposta por Trapnell e Campbell (1999), que tem sido averiguada de forma heurística por estudos de Nascimento (2008; Nascimento & Roazzi, 2013) e que tem se revelado preciosa na iluminaçao de riscos psicopatológicos nas populaçoes investigadas, o que poe em exigencia o investimento na avaliaçao de instrumentos que mensurem com fidedignidade esse construto, algo que este estudo também oportunizou.

Considerando a complexidade dos fenômenos aqui refletidos em luz crítica, urge que se estimulem estudos interdisciplinares e sociocognitivos como este que ora é apresentado, que promovam um frutífero intercâmbio entre a Psicologia e as diretrizes da formação presbiteral preconizadas pela CNBB e pelos documentos pós-conciliares, fomentando a saúde psíquica dos futuros presbíteros da Igreja Católica, na esteira das preocupações de uma Psicologia da Religião e Pastoral cientificamente rigorosa e socialmente relevante.

 

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Recebido em 12/04/2015

Aceito em: 05/01/2017

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