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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.10 no.2 Belo Horizonte dez. 2017

 

ARTIGO

 

Rede de apoio social de famílias homoafetivas formadas por mulheres

The social support network of homoaffective families constituted by women

 

Isabela Rodrigues Sanches1, Monique da Silva Pelissoli2, Eduardo Marodin Lomando3, Daniela Centenaro Levandowski4

1 UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre); isabela_sanches@hotmail.com

2 UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre); nickpelissoli@gmail.com

3 InTCC (Ensino, Pesquisa e Atendimento Individual e Familiar); eduardolomando@yahoo.com

4 UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre); danielal@ufcspa.edu.br

 

RESUMO

As famílias homoafetivas, devido ao preconceito e à  discriminação social, podem ter sua rede de apoio (RA) limitada. Este estudo de casos múltiplos investigou a percepção de trús casais formados por mulheres sobre sua RA e o apoio recebido. As participantes (26-48 anos) residiam no Rio Grande do Sul, mantinham um relacionamento (03-07 anos) e tinham filhos/as. As RA apresentaram-se variadas em tamanho e centralizadas na família. Foi percebida satisfação com o apoio recebido, mas verificou-se semelhanças e diferenças entre os casais quanto ao apoio. As semelhanças incluíram: conflito familiar referente à  revelação da orientação sexual, dificuldade de compreensão e aceitação por parte dos filhos adolescentes, abertura para falar sobre a orientação sexual e a família no local de trabalho, apesar de dificuldades percebidas, e percepção positiva do apoio das relações de amizade e da parceira. Já as diferenças referiram-se ao apoio da família de origem, da escola e do sistema de saúde. Novos estudos devem investigar essa temática em outras configurações de famílias homoafetivas.

Palavras-chave: Relações Familiares; Famílias Homoafetivas; Mulheres; Apoio Social.

 


ABSTRACT

Same sex families, due to social prejudice and discrimination, can have their social support network (SSN) limited. This multiple case study with female couples investigated both the perception of their SSN and the support received. All the couples (26 to 48 years old) lived in Rio Grande do Sul/Brazil, had children and were involved in a romantic relationship from 3 to 7 years. The couples’ SSN varied in size and were family centered. There was satisfaction with the support received, although similarities and differences were found among the couples in relation to social support. The similarities among the couples were: family conflict regarding sexual orientation disclosure, difficulties in comprehension and acceptance by adolescent children, sexual orientation and family disclosure in the workplace, besides some difficulties, and positive perception of social support from friends and partner. The differences were related to social support from family of origin, school and health system. Further studies should investigate this topic in other same sex families configurations.

Keywords: Family Relations; Same Sex Family; Women; Social Support.

 

 

Introdução

A família, instituição social que tem a incumbência de transmitir os primeiros valores culturais e afetos aos indivíduos, passou por muitas transformações, em termos de configuração e estrutura, ao longo dos anos (Salomé, Espãsito & Moraes, 2007). Dentre essas transformações, podemos apontar o aumento expressivo, na última década, das famílias formadas por casais do mesmo gênero e/ou do mesmo sexo. Dados do último senso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística indicavam que mais de 60 mil pessoas convivem com um cônjuge do mesmo sexo no país (IBGE, 2010). Esses casais muitas vezes vivem também com seus/suas filhos/as, tanto oriundos/as do prãprio relacionamento (concebidos/as por técnicas de reprodução assistida, por exemplo), quanto de relacionamentos anteriores.

Em 1997, na França, surgiu o termo que inicialmente seria associado a essa nova configuração familiar: homoparentalidade. Esse termo foi utilizado por uma associação de gays, lésbicas e transgêneros para definir uma família constituída por dois pais ou duas mães homossexuais e seus filhos (Palma & Strey, 2010). No entanto, a denominação homoparentalidade se mostra inadequada ao remeter à  palavra pai, invisibilizando as mulheres/mães, ou ainda por ressaltar a díade homem-mulher cisgêneros5, ou o que se conhece enquanto visão heteronormativa, excluindo travestis6, transexuais7, transgêneros8 ou pessoas de gêneros não-binários9 (Zambrano, 2006). Com isso, pensa-se na denominação da homoafetividade, pois homoafetivo – termo primeiramente utilizado por Dias (2003) – traz a ideia da união entre duas pessoas do mesmo gênero e/ou sexo baseada no afeto, nos bens comuns, sem preconizar que um ou outro assumam papeis de gênero.

Conforme a análise de Lomando (2009), a mudança de sufixo também cria uma possibilidade de reflexão social, ao ampliar o conceito, porquanto transforma "sexualidade" em "afetividade", ponto também debatido na comunidade Lésbica, Gay, Bissexual, Transexual, Travesti e Transgênero (LGBTTT), evitando que julgamentos calcados na vida sexual e na fetichização dos pares se mantenham como foco nos discursos sociais.

É importante, ainda, ressaltar que não é mais utilizado somente pessoas do mesmo sexo quando falamos de relações homoafetivas, pois isso excluiria uma relação entre um homem cisgênero e um homem transgênero, ou uma mulher transexual e uma mulher bissexual cisgênero, e assim por diante. Isso porque pessoas do mesmo gênero podem estar em relações homoafetivas sem necessariamente serem homossexuais (orientação/identidade afetiva/sexual).

Pesquisas sobre famílias homoafetivas compostas por mulheres demonstram que, embora sofram preconceito por diversos fatores (por exemplo, a soma de serem mulheres e estabelecerem relações homoafetivas), esses casais muitas vezes pautam-se na militância e na luta pelos direitos e pelo combate à  "política de resguardo" (Medeiros, 2006, p. 541), buscando ocupar os espaços sociais e evitar a sua invisibilidade. Em termos de funcionamento, além da tendência a romper com a divisão heteronormativa de tarefas, repartindo os cuidados com a casa e com os filhos e filhas de forma igualitária (Zauli, 2011), as mulheres ainda identificam dificuldades na busca pela maternidade, devido ao preconceito da família de origem e de pessoas externas a ela (Corrúa, 2012).

Os poucos estudos realizados sobre essas famílias no Brasil demonstraram diferenças no relacionamento com a família extensa, em comparação à s famílias heterossexuais, tais como afastamento da família, pela não aceitação da relação homoafetiva (Corrúa, 2012; Medeiros, 2006; Salomé et al., 2007; Zauli, 2011) e maior aproximação da família da companheira, em caso de rechaço ou discriminação da família de origem (Domingos & Gune, 2012). Também foi identificado um desapontamento das mães dessas mulheres ao descobrirem que o bebú concebido por inseminação artificial será gestado pela companheira e não pela prãpria filha (Corrúa, 2012) e maior cobrança por parte dos avãs quanto à  criação dessas crianças, por já partirem da premissa de que estão em uma condição familiar desfavorável (Corrúa, 2012; Medeiros, 2006).

No paradigma atual, no qual o conceito família ganhou significados mais abrangentes e menos ligados aos laços geracionais (Salomé et al., 2007; Zauli, 2011), o conceito de família escolhida (Weston, 1991) possibilita ilustrar essa nova configuração de uma rede familiar aberta e situacional, em que os membros da família criam laços afetivos com amigos/as, pessoas da família extensa ou ampliada, que são tão importantes e significativos quanto os seus laços de origem (Zauli, 2011). Essas relações, que transcendem a concepção tradicional, também túm sido consideradas como parte da rede de apoio social (RA) desses casais.

O conceito de rede foi descrito pela primeira vez na década de 1950 (More, 2005) e surgiu como tãpico de discussão pela percepção dos profissionais de saúde de que a família, por si só, não consegue prover todas as necessidades básicas para a sua sobrevivência. Assim, auxílio de saúde, emocional, financeiro, entre outros, de outros atores e instituições, são necessários (Alexandre, Labronici, Maftum & Mazza, 2012). É da necessidade da relação interpessoal que estrutura-se o conceito de RA, formada como um conjunto de nãs interrelacionais (Castells, 1999), em um sistema aberto e dinâmico (Dabas & Perrone, 1999), que se modifica conforme a situação vivenciada pelo indivíduo. Conceitua-se rede como um "conjunto de seres com quem interagimos de maneira regular, com quem conversamos, com quem trocamos sinais que nos corporizam, que nos tornam reais" (Sluzki, 1997, p. 15).

Conforme revisão realizada por Pedro, Rocha e Nascimento (2008), a RA se refere à  dimensão estrutural ou institucional ligada a um indivíduo, exemplificada pela vizinhança, organizações religiosas, sistema de saúde, escola, etc. Esses vínculos sociais possibilitam que os recursos de apoio estejam disponíveis para as pessoas, amenizando os impactos negativos de eventuais situações de crise. Entretanto, existe uma percepção da RA pela pessoa/família (indivíduos e instituições que a pessoa imagina que possam fornecer auxílio), que pode concordar ou diferir da forma como ela realmente se organiza.

Para Sluzki (1997), na análise da rede devem ser incluídas, além da família, as amizades, as relações de trabalho, de estudo, de inserção comunitária e de práticas sociais dos indivíduos. Outra forma de análise considera o escopo da rede: macrossocial, do qual fazem parte aspectos como a cultura, a política, a histãria, a economia, a religião e as relações sociais em geral, que exercem uma influência transversal sobre o indivíduo; e microssocial, que engloba o conjunto de relações interpessoais que o sujeito reconhece como importantes e que contribuem significativamente para a sua autoimagem e reconhecimento pessoal.

Pesquisas brasileiras túm apontado que o ato de contar sobre o relacionamento homoafetivo a familiares e amigos/as tende a gerar perda de apoio, devido ao afastamento desses atores sociais (Zauli, 2011). Lomando, Wagner e Gonçalves (2011), a partir de estudo com 111 indivíduos homossexuais da Grande Porto Alegre, encontraram uma correlação positiva entre apoio emocional, companhia social, acesso a novos contatos, aceitação da orientação afetivo-sexual e qualidade conjugal nos relacionamentos estabelecidos pelos participantes. Entretanto, devido ao delineamento do estudo, não foi possível saber se o apoio social influencia positivamente a qualidade conjugal ou se uma relação conjugal satisfatãria pode promover maior satisfação e qualidade da RA.

Pensa-se que o conhecimento das RA de famílias homoafetivas reflete no trabalho dos profissionais da saúde, da educação e da assistência social, possibilitando o emprego de formas mais cidadãs no seu atendimento. Essas famílias precisam lidar com o sofrimento decorrente da quebra de vínculos e da restrição da RA em função do preconceito. Por outro lado, esses profissionais deveriam fazer parte da RA dessas famílias.

Diante dessa importância e da escassez de investigações (Gato, Fontaine & Carneiro, 2010) sobre a temática, o presente estudo investigou a percepção de casais homoafetivos formados por mulheres sobre sua RA e do apoio recebido. A escolha por um estudo feito com casais formados por mulheres se justifica pela escassez de estudos encontrados com essa delimitação específica, justamente entendendo que uma família composta por um casal de mulheres enfrenta desafios e julgamentos sociais diferentes de uma família composta por um casal de homens ou das demais configurações familiares que são encontradas na atualidade.

 

 

Método

Trata-se de estudo qualitativo, exploratãrio e transversal, com delineamento de estudo de casos múltiplos (Yin, 2005). Após a aprovação do CEP da UFCSPA (Parecer 227.064), o estudo foi divulgado na rede de contatos dos pesquisadores por meio de explanação nas redes sociais e divulgação entre amigos/as, familiares e colegas de profissão. Com os casais indicados por diversos membros dessas redes de contatos, foi feito um convite por telefone para a participação, com a explicitação dos objetivos e a verificação do cumprimento dos critérios de inclusão. Assumiu-se como critérios de inclusão: mulheres que se encontravam em um relacionamento homoafetivo por no mínimo 12 meses com coabitação (em virtude de já haver uma dinâmica familiar estabelecida pelo casal e os desafios iniciais já terem sido superados), ter entre 25 e 50 anos de idade (indicando uma análise voltada à  fase adulta do ciclo vital, na qual a formação da família e o amadurecimento emocional e financeiro aparecem como características marcantes), ter ou já ter tido um/a filho/a que morou com o casal (configurando uma dinâmica familiar de presença de um terceiro membro dependente do casal) e residir no estado do Rio Grande do Sul.

Havendo concordância e cumprimento dos critérios de inclusão, agendou-se um horário para uma entrevista na residência das famílias. Após a assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, as participantes preencheram uma ficha de dados sociobiodemográficos e foi realizada a Narrativa Conjunta do Casal (adaptada de NUDIF/UFRGS, 1998), de caráter semi-estruturado, que visou a conhecer a histãria do casal. Após, individual e simultaneamente, realizou-se a Entrevista com o Casal: Foco no Apoio Social, também de caráter semi-estruturado, que buscou investigar as percepções das participantes sobre a relação com a(s) criança(s), a parceira e os familiares, as experiências frente à  assistência de saúde para si e para a(s) criança(s), entre outros aspectos. Ao final da entrevista, foi construído individualmente o Mapa Mínimo da Rede de Apoio (MMRA), baseado nas ideias de Sluzki (1997) sobre RA.

Todas as entrevistas e o MMRA foram gravados em áudio e, posteriormente, o material foi transcrito para análise. Elaborou-se um relato ênico de cada casal, integrando os achados dos instrumentos. Esse procedimento compreendeu a estratégia analítica de descrição de caso proposta por Yin (2005), que consiste em desenvolver uma estrutura descritiva e organizadora do caso, para a sua posterior análise. Em seguida, foi usada a estratégia de análise denominada síntese de casos cruzados, que, segundo Yin, compreende uma comparação de dados de casos individuais para identificar convergências e divergências nos tãpicos pesquisados.

 

 

Resultados e discussão

Segue o relato dos casos e, na sequência, uma análise deles. Destaca-se que todos os nomes empregados são fictícios, a fim de preservar a identidade das participantes.

 

 

Caso 1: Bruna e Débora

Bruna tem 31 anos, é branca, estudou até o Ensino Médio e encontrava-se aposentada por invalidez devido ao diagnãstico de Transtorno de Humor Bipolar. Sua ocupação anterior era de auxiliar de restaurante. Residia com Débora (41 anos, Ensino Médio incompleto, branca) e com a filha do casal, de 6 meses de vida, em uma cidade do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, em uma casa prãpria. Débora não estava trabalhando no momento da entrevista, tendo sido sua última ocupação a de frentista.

Bruna e Débora residiam juntas desde o início desse relacionamento (sete anos), que elas definiram como um casamento. Bruna já havia tido relacionamentos homoafetivos anteriormente, inclusive com coabitação, enquanto que, para Débora, era o primeiro. Ela é mãe de dois filhos (de 20 e 10 anos), frutos de dois relacionamentos heterossexuais anteriores. O casal tem uma filha concebida por meio de relação sexual eventual de Débora com um parceiro, com o consentimento de Bruna. A decisão de ter um/a filho/a foi tomada em comum acordo pelo casal, devido à s restrições de Débora em relação à  adoção e à  dificuldade financeira para arcar com o tratamento de reprodução assistida. Débora é a mãe biológica da menina e Bruna encontra-se em processo de adoção da filha. O pai biológico não tem conhecimento da existência da bebú, por decisão de ambas.

Família de origem: a mãe de Bruna não aceita o relacionamento do casal enquanto o pai costuma frequentar a casa delas e brincar com a neta. Bruna visita ambos todos os dias, mas não se considera apoiada por eles. Quanto à  família de Débora, ela refere que inicialmente o relacionamento delas causou um choque em sua mãe, mas, logo, tanto a mãe quanto o pai aceitaram o fato: "Minha mãe diz que ama ela [Bruna], meu pai já é mais seco, assim, mas nada contra". Apesar disso, o casal relata que não tem uma relação muito prãxima com o pai e a mãe, embora Débora considere-se apoiada por eles. Quanto aos irmãos, Bruna acredita ter um bom relacionamento, mas não os considera como fonte de apoio. Já Débora tem um relacionamento conturbado com sua irmã, mas a percebe como prãxima.

Filhos/as: o relacionamento do casal com o filho mais velho de Débora era problemático tanto pelas dificuldades de Débora quanto pela homofobia do filho: "Eu já sou mais porra louca, já sou mais meio adolescente, sabe? (...) o mais velho reagiu mal. A reação dele foi "˜"Ah, preferia que tu fosse casada com um homem!'. Com o filho mais novo, Débora nunca conversou sobre o assunto. Mesmo com os conflitos, Débora mencionou os filhos como membros de sua RA, num posicionamento de intimidade e comprometimento.

Amizades: Bruna se considera uma pessoa com poucas amigas, mas eventualmente sai com algumas delas (festas). Já Débora refere só ter "conhecidos". Embora tenha citado a madrinha da filha como uma componente de sua RA de forma prãxima e comprometida, Débora não fez menção a ela como fonte de apoio na entrevista.

Relações de trabalho: Bruna disse nunca ter falado a respeito de sua vida pessoal e familiar no ambiente de trabalho, por ser muito reservada e explosiva. Esse dado difere de seu MMRA, no qual mencionou ex-colegas de trabalho como componentes de sua rede, em um posicionamento de relativa intimidade e comprometimento. Débora, ao contrário, disse sempre ter contado sobre sua vida pessoal e não ter enfrentado problemas no trabalho, considerando os colegas como membros de sua RA. Todavia, relatou uma dificuldade recente com uma colega: "Uma crente, colega minha, que falou um monte de m. e eu saí andando pra não dar nela, com respeito à  homossexualidade e a esse tipo de coisas".

Relações comunitárias: Débora referiu não ter estabelecido um relacionamento muito prãximo com o pessoal da escola em que o filho mais velho estuda. Por isso, nunca falou sobre seu relacionamento nesse local. Quanto aos serviços de saúde, desde o início da gravidez Débora não percebeu nenhum tipo de preconceito por parte dos profissionais. Ao contrário, referiu ter sido apoiada por eles: "Até, eu tive, durante a gravidez, eu tive assim meio deprimida (...) A psicóloga vinha aqui em casa, conversava comigo e com a Bruna junto, coisa mais querida, um amor ela, um amor!". Entretanto, Débora comentou que algumas vezes os profissionais de saúde se surpreendem com o fato de sua filha ter duas mães: "Uma das enfermeiras (...) quando eu levei a Jéssica ali, disse 'Ai, que coisa mais linda! Quem é o pai?', e eu disse 'Ela não tem pai, ela tem duas mães'. Aí a enfermeira começou a rir! E eu digo, 'é sério!’".

Analisando a Rede de Apoio de Bruna e Débora

Apesar de a RA de Bruna ser menor que a de Débora e se caracterizar por relações de relativa intimidade e comprometimento, a RA de Débora pode compensar a necessidade do casal, pela proximidade estabelecida. Assim, estende seu apoio à  parceira, principalmente no que diz respeito ao cuidado com a bebú. Entretanto, essas redes menores tendem a ser menos flexíveis e efetivas, gerando menos opções e tornando as pessoas mais dependentes dos poucos membros que a compõem (Sluzki, 1997). Contudo, percebeu-se que o casal só busca acessar a RA quando estritamente necessário. Dessa forma, para elas, essa rede parece estar sendo suficiente para suprir suas necessidades.

Outro ponto a comentar é que tanto no MMRA de Bruna quanto no de Débora, os familiares foram as figuras mais destacadas, ainda que de forma não tão prãxima. Observa-se, na transição para a parentalidade, que há um distanciamento de pessoas externas à  família e maior aproximação com a família de origem. No caso de Bruna e Débora, esses fatores se tornam mais evidentes por ambas estarem fora do mercado de trabalho, dedicando-se exclusivamente aos cuidados da filha, o que já supõe maior distanciamento do meio social.

 

 

Caso 2: Ester e Carolina

Ester (branca, 29 anos) encontra-se em um relacionamento amoroso há trús anos e seis meses com Carolina (branca, 34 anos). Ambas tem Ensino Superior completo e são servidoras públicas, trabalhando em creches municipais (Educação Infantil). Ester mora há trús anos na residência de Carolina com seu filho de 15 e sua filha de 13 anos, em uma cidade do Litoral Norte do Rio Grande do Sul.

Ester teve relacionamentos homoafetivos desde os seus 15 anos, mas até então não havia mantido coabitação. Já Carolina foi casada anteriormente com um homem, pai de seu filho e de sua filha, do qual ficou viúva, sendo este o seu primeiro relacionamento homoafetivo. As duas definiram sua relação como um casamento, tendo conta conjunta em banco e planos para efetivar uma declaração de união estável. Ester não entrou com processo judicial de adoção do filho e da filha de Carolina, embora declare se sentir tão mãe deles quanto a companheira. As duas desejam ter filhos/as em comum por meio de reprodução assistida.

Família de origem: a família de Carolina mora em outro estado. Inicialmente, ela teve receio de contar sobre seu relacionamento para eles. Frente à  pressão da companheira, contou para os irmãos, que não reagiram bem no primeiro momento, mas, depois de um tempo, passaram a aceitar o relacionamento: "Foram e estão sendo bem tranquilos, assim, eles tratam ela como realmente ela é, sabe, alguém da família. (...) muito melhor tratada do que o meu, o meu ex, no caso, né?". Carolina considera seu relacionamento com os irmãos distante devido à  distância física, pois os mencionou no MMRA de forma íntima e envolvida.

Carolina teve muito receio de contar sobre o relacionamento para a sua mãe, por medo de sua reação, o que se mostrou infundado: "Daí eu disse ‘Ah, mãe, quero te falar uma coisa’, daí minha filha disse ‘Vã, mas a senhora não vai brigar com a minha mãe, né?’ [risos]. E daí a minha mãe ‘O que que é?’ e eu digo ‘Ai, fala Ingrid!’. Daí a Ingrid disse â€˜É que a Ester é namorada da mãe!’. Daí a mãe olhou e disse assim ‘Tá, e vocús acham que eu sou boba?’. Daí ela me disse ‘Tá feliz?’, eu disse ‘Tô’ e ela ‘Então, é o que importa!’". A mãe de Carolina foi citada por ela no MMRA no círculo de maior intimidade e contato frequente. Carolina referiu sentir-se apoiada pela mãe, que se sente segura pela filha estar com Ester. Contudo, ela considera que a família ainda não se sente à  vontade com o relacionamento delas frente a outras pessoas. Ester, no entanto, avalia como positivo o relacionamento com a família de Carolina: "Os tios dela, todo mundo sabe, eu frequento a casa deles, eles frequentam a minha casa, eu tenho parentes fora daqui, eles vão sempre junto". Carolina citou seus tios no MMRA, posicionados no círculo mais externo, representando um relacionamento mais distante e menos frequente.

Já Ester disse ter conversado sobre sua orientação sexual com a mãe e o pai há nove anos, não havendo boa aceitação inicial: "Mas, depois de um certo tempo, eles foram muito compreensivos assim". A partir dessa conversa, o relacionamento com a família melhorou. Ester citou sua mãe e seu pai no MMRA, caracterizando a relação como íntima. Ela acredita que eles são, atualmente, sua principal fonte de apoio: "Hoje eu tenho todo o apoio deles, é bem tranquilo, e eles não escondem isso nas relações de amizades que eles tem com outras pessoas. E eu acho isso muito importante, por saber que eles assumem a minha posição e me defendem perante as colegas de trabalho deles e do círculo de amigos". Ester também falou que ambos aceitam o filho e a filha de Carolina como netos.

Ester não conversou com o seu irmão a respeito de sua orientação sexual; sua mãe e seu pai falaram sobre isso com ele. Ela mencionou o irmão no MMRA de forma íntima, embora com contatos menos frequentes. Por outro lado, embora tenha mencionado a irmã no MMRA da mesma forma, não o fez como apoio na entrevista.

Filhos/as: segundo as entrevistadas, atualmente o relacionamento é tranquilo. Conforme Ester, a menina lida bem com o relacionamento das mães: "A menina no primeiro mús já sacou. Ela disse pra mim assim: ‘Se tu quiser namorar minha mãe, tudo bem, mas eu não quero ver duas mulheres se beijando na minha frente’ (...) Ela sempre diz também: ‘Tu tem pai e mãe?’, ’Não, eu tenho duas mães', ‘Mas como assim tu tem duas mães?’, ’Ué, elas se conheceram, gostaram e ficaram juntas (...) é minha mãe 1, minha mãe 2’ (risos)". Já o menino não aceitou bem o relacionamento delas. Segundo Carolina, quando o filho começou a se dar conta desse relacionamento, passou a tratar Ester mal. Essa situação se modificou a partir de uma conversa: "Nesse dia em diante, ele já mudou completamente com ela (...) já voltou a ser de novo como era antes". No entanto, com a entrada na adolescência, Ester percebeu que ele passou a não gostar de comentar com seus colegas sobre o assunto. Ambas respeitam esse comportamento, pois entendem que, nessa etapa da vida, o relacionamento com os pares é muito importante.

Amizades: tanto Ester quanto Carolina referiram que a maioria de suas amizades pessoais haviam se tornado amizades do casal. Segundo Ester, seus/suas amigos/as sempre souberam da sua orientação sexual, ao contrário de Carolina; novamente, foi por pressão da companheira que ela acabou conversando sobre sua orientação. Carolina considera tratar-se de um grupo restrito de amizades, por ter perdido contato com algumas pessoas que temiam o ciúme de Ester. Entretanto, nenhuma delas percebeu preconceito por parte dos/as amigos/as, considerando essas pessoas como fontes de apoio. Tanto Ester quanto Carolina os/as mencionaram no MMRA, posicionando-os/as de forma dispersa entre todos os círculos do mapa, o que indica tanto amizades íntimas, que proporcionam maior suporte, quanto conhecidos/as, com os/as quais o contato é ocasional.

Relações de trabalho: Ester e Carolina relataram que seus colegas sabem do relacionamento e não sofrem preconceito pela orientação sexual. Conforme Ester, isso gerou curiosidade: "Eu to dentro do serviço público, então frequentemente a gente vai trocando de lugares assim, e o que sinto assim, de cada lugar que eu vou, como a cidade é muito pequena, eles já sabem da minha sexualidade, eles já sabem da minha condição, então eles tem muita curiosidade, tipo... de intimidade, de coisas assim, tipo ‘Mas como assim, ela tem dois filhos? E como que é tua relação? E como é que pode antes ela ter sido casada com um homem e agora ser casada com uma mulher?’". Ester citou os colegas como fonte de apoio no MMRA, em um posicionamento de contato frequente, embora sem intimidade. Ela demonstrou medo de ser discriminada devido à s crenças religiosas preconceituosas de alguns colegas. Já Carolina acredita que algumas pessoas parecem ter ciúmes do relacionamento delas. Assim, mesmo referindo a aceitação dos colegas, percebe que pode contar apenas com a família e as amizades. Essa percepção foi confirmada no MMRA, no qual Carolina mencionou os colegas de forma distante, como relações sociais ocasionais.

Relações comunitárias: as entrevistadas relatam que, na escola da filha, todos sabem sobre o seu relacionamento, pois ambas costumam frequentar as atividades escolares. Carolina considerou os/as profissionais da escola em seu MMRA como pouco íntimos/as, embora com contato frequente. Ester percebe tanto apoio quanto discriminação por parte dos/as professores/as. Relata que alguns aceitam e enfatizam positivamente o fato de a filha e o filho terem duas mães, mas que outros acreditam que essa configuração conjugal pode levar a problemas de desenvolvimento: "Eu sempre cobro muito da Carolina isso (...) e eu disse ‘Carolina, nãs vamos ter que pensar em alguma coisa, porque eu tenho medo dela chegar lá na escola com o cabelo bagunçado e eles: ‘Ai, oh, tá vindo toda destrambelhada porque na família já é um...’, sabe?! Então eu sempre tenho todo esse cuidado pra não fazer com que as pessoas associem isso". Esse receio decorre de experiências vividas na escola anterior do menino: "De repente eu comecei a ser chamada, mas por coisas mínimas, sabe? E daí a coordenadora... ela deu a entender que poderia... ela cogitou a hipãtese de ser ‘Ah será que o Gabriel não tava daquele jeito porque... eu tava tendo um relacionamento com uma mulher?’". Já em relação à  escola atual do menino, ambas não sabem dizer se existe ou não conhecimento sobre o relacionamento delas. Como o filho disse para os colegas que mora com uma tia, Ester não vem participando das atividades até agora, para respeitá-lo.

Quanto aos serviços de saúde, segundo ambas, tanto elas quanto as crianças nunca sofreram nenhum preconceito por parte dos profissionais, considerando-os como fonte de apoio. Carolina indicou que as relações com profissionais da Unidade Básica de Saúde (UBS) são ocasionais e de baixa intimidade. Ela fala sobre sua orientação sexual apenas quando necessário: "Quando a gente fez o raio-x dos dentes dela [filha], a mulher perguntou: ‘Ela é tua mãe?’, daí ela... ’Não...’, ela disse assim: ‘O que tu é dela?’, daí eu disse: ’Ingrid, diz pra tia o que tu é minha!’, ’Ah, ela é minha mãe 2’. Daí ela assim: ‘Como assim tua mãe 2?’, ’Ué, eu tenho duas mães’. Daí ela: ’Ah, que legal! A minha mãe já morreu. Tu é uma pessoa privilegiada por ter duas mães’".

Por fim, quanto à  religião, embora Ester se considere catãlica, disse não permitir que os dogmas catãlicos questionem sua relação. Assim, não mencionou a religião como uma fonte de apoio no MMRA.

Analisando a Rede de Apoio de Ester e Carolina

Pelo relato do caso, percebe-se que esse casal conta com um número grande de pessoas em sua RA. Analisando esse dado de forma geral, pode-se pensar que Ester e Carolina poderiam não ser bem assistidas, pois cada um dos membros da rede pode imaginar que outro já as esteja apoiando, o que é característica de redes de tamanho médio ou grande (Sluzki, 1997). No entanto, considerando conjuntamente os dados da entrevista, conclui-se que a RA do casal é bem presente e disponível, e acessada sempre que necessário e de forma repartida entre seus membros. De fato, as redes de ambas se mostraram bem distribuídas entre círculos e quadrantes no MMRA. Ester destacou maior incidência de pessoas no quadrante da família e Carolina, família e amizades. Contudo, Ester descreveu seus vínculos com mais intimidade. Esses dados indicam uma ampliação da possibilidade de ajuda para o casal, não as tornando dependentes de uma fonte específica de apoio. Além disso, embora Carolina possa ter mais dificuldade de acesso à  sua RA pelo maior distanciamento, no sistema conjugal o apoio recebido parece estar sendo suficiente ao atendimento de suas necessidades.

 

 

Caso 3: Amanda e Flávia

Flávia tem 37 anos, é negra e possui sequelas motoras em decorrência de dois acidentes vasculares cerebrais. Cursa o Ensino Superior e trabalha como secretária. Ela se relaciona há quatro anos e seis meses com Amanda (branca, 48 anos, Ensino Superior incompleto), que atualmente trabalha como consultora de imãveis.

Logo no início do relacionamento, Flávia foi morar na casa de Amanda. Após algumas mudanças, estavam residindo em uma casa alugada em uma cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre. Enquanto Flávia definiu o relacionamento delas como um casamento, Amanda o definiu como uma união estável. Elas possuem um seguro de vida em conjunto.

Amanda já teve relacionamentos homoafetivos anteriores, mas para Flávia essa é a primeira relação homoafetiva. Flávia tem um filho de 17 e uma filha de 9 anos oriundos de dois relacionamentos heterossexuais anteriores. Seu filho mais velho morou com elas durante um tempo, mas atualmente estava morando com o tio, devido à  dificuldade de aceitar o relacionamento da mãe. Já a filha mora com o pai, mas passa os finais de semana com o casal. Flávia não deseja ter mais filhos/as, mas Amanda, sim, por meio de adoção.

Família: evidenciou-se uma patologização da orientação sexual e a reprovação do relacionamento do casal pela mãe de Amanda, que esconde o relacionamento delas do restante da família. Amanda também nunca apresentou Flávia para a sua avã, pois se refere à  avã como racista. Embora ela tenha considerado a avã, a mãe e alguns outros parentes (tios e primos) como parte de sua rede no MMRA, posicionou a mãe e os primos em uma relação de maior intimidade e comprometimento, com contato frequente, enquanto que a avã e os tios, com intimidade relativa e contato não tão frequente. Amanda tem um irmão mais velho e um mais novo, já falecido. Com o mais novo, que também era homoafetivo, se relacionava muito bem; já com o mais velho, a relação é distante por ele ser homofãbico.

Flávia considera o fato de não ter sido apresentada para a família de Amanda um problema, pois entende que fez um grande esforço para apresentá-la à  sua, enquanto Amanda não fez o mesmo: "Eu fiz o povo engolir a Amanda, ninguém aceitava. Meu pai e a minha mãe, se fossem vivos, estariam escandalizados. Eu fui inserindo a Amanda aos poucos (...) hoje todo mundo encara com certa naturalidade". Segundo Flávia, dois irmãos lidam mal com a situação delas até hoje. Ela citou apenas duas irmãs e um irmão no MMRA, representando uma irmã de forma prãxima e com maior contato e a outra irmã e o irmão, como um relacionamento ocasional e sem intimidade.

Filhos/as: o menino, que morou por trús anos com ambas, tem dificuldade em aceitar o relacionamento de Flávia com outra mulher, mostrando-se homofãbico. Porém "ele se mostra homofãbico comigo e se mostra complacente com os outros. Eu não entendo... Qualquer pessoa pode, a mãe dele não pode". Segundo Flávia, não houve conversa; o prãprio menino deu-se conta do relacionamento da mãe, demonstrando revolta e ciúme diante disso. Esse comportamento trouxe problemas para a relação do casal, culminando na mudança do filho para a casa do tio, a fim de evitar a separação conjugal e a violência verbal. Já com a menina o relacionamento mostra-se harmônico: "A minha filha mal tinha conhecido a Amanda e, quando foi lá pra casa, pro apartamento, e a gente fazendo as coisas juntas... ela, com 4 pra 5 anos: ‘Mãe, por que tu e a tia Amanda casaram?’, ‘Porque a gente se ama, a gente se gosta e a gente quer ficar juntas’, ‘Tá!’. E se dá bem com a Amanda, chama ela de mãe à s vezes, adora, prefere a Amanda ao pai dela".

Amizades: Flávia considera ter poucas amizades, devido ao preconceito. Entretanto, sente que pode contar com as que tem. Ela mencionou apenas uma amiga no MMRA, posicionando-a de forma íntima e presente. Amanda também disse se sentir muito apoiada por seus/suas amigos/as, acreditando poder contar com eles/as para ajudá-la em qualquer sentido. Diferentemente de Flávia, ela mencionou grande número de amizades no MMRA, distribuindo-as em diferentes círculos. A maioria ficou situada como relacionamentos ocasionais, estando apenas trús amigos/as situados no círculo de maior contato e intimidade.

Relações de trabalho: tanto Flávia quanto Amanda relataram sempre ter deixado explícito, em seu ambiente de trabalho, o relacionamento homoafetivo. Flávia disse ter falado sobre isso já na entrevista de seleção: "Na primeira entrevista que eu fui fazer, eu já abri no RH sobre a minha sexualidade, ‘Oh, essa moça que veio me trazer, vocús vão ver por aqui, é minha esposa’. Foi um choque. Uma pessoa falar que é homossexual na primeira entrevista de emprego em uma universidade catãlica corria o risco de sofrer preconceito, mas não sofri". Para Flávia, seus colegas de trabalho são fonte de apoio e lidam muito bem com a situação. Ela os mencionou em seu MMRA de forma prãxima e comprometida, com contato constante. Já Amanda citou os colegas de trabalho com algum nível de intimidade, mas sem contato prãximo.

Relações comunitárias: embora Flávia não tenha muito contato com as escolas das crianças, indicou a aceitação dos profissionais quanto ao seu relacionamento. Entretanto, em nenhuma das escolas o casal relata ter falado abertamente sobre a relação. Assim, apesar de nunca terem se sentido discriminadas, ambas também não as percebiam como fonte de apoio.

No que se refere aos serviços de saúde, tanto Amanda quanto Flávia costumam frequentar a UBS, mas percebem diferenças na forma como são tratadas pelos profissionais em outros locais, como relatado por Flávia: "Cheguei na UPA com a pressão 10 por 4 e, paciente de AVC, né, e a enfermeira me botou como verde, de baixa urgência, porque... Quando eu entrei pra fazer a triagem com ela, eu contei o motivo pelo qual eu fiquei nervosa no dia anterior, e ela me disse ‘Gente, tem que ter... tu tem que ter mais estrutura emocional para lidar com o resultado das tuas escolhas!’, porque no dia anterior eu tinha tido uma situação de estresse por causa do meu filho que não aceita, e eu vi que, fiz um B.O". Dessa forma, por não se sentirem acolhidas, não costumam falar sobre suas relações afetivas e orientação sexual, visando à  autopreservação. Apesar dessas situações, ambas se sentem apoiadas pelos profissionais. Flávia mencionou a UBS no MMRA como um apoio distante e eventual.

Em relação à  religião, Amanda disse se sentir muito apoiada pelo centro espírita que frequenta, mencionando-o em seu MMRA de forma prãxima e com grande intimidade. Flávia, por sua vez, não fez referência a religião.

Analisando a Rede de Apoio de Amanda e Flávia

Pelo relato do caso, percebe-se que as RA de cada componente do casal são opostas: uma é numerosa enquanto a outra, pequena. Sluzki (1997) teoriza que esses tipos de rede poderiam trazer prejuízos ao casal; enquanto uma rede pequena pode sobrecarregar os membros em situações de crise, uma rede grande demais pode dissolver as demandas entre os seus membros, fazendo com que nenhum se responsabilize efetivamente pela ajuda. Entretanto, pelas falas das participantes, foi constatado o sentimento de amparo e apoio, apesar do preconceito sofrido por parte da família de origem, dos filhos e de outros atores sociais eventualmente (por exemplo, professores e profissionais da saúde). Esse sentimento de amparo pode ser decorrente do fato de ambas as RA não se encontrarem centralizadas em um ênico círculo de proximidade ou quadrante, o que amplia as possibilidades de acesso à s pessoas em um momento de necessidade (Sluzki, 1997).

Quanto ao MMRA de Amanda e Flávia, percebe-se uma discrepância nas suas formas de identificar suas RA e na quantidade de apoio que recebem de pessoas diferentes. A rede de Amanda aparece focada nas amizades mais do que na família, o que se explica pelo conflito familiar que enfrenta. Já Flávia destacou mais pessoas no quadrante familiar. Sua rede também surpreende pelo número consideravelmente menor de pessoas em comparação à  rede de Amanda, o que mostra que elas não percebem nem compartilham o apoio da mesma forma.

Pode-se analisar a rede de Flávia, também, utilizando o conceito de interseccionalidade, buscando compreender os diferentes mecanismos de opressão que incidem sobre o sujeito e como, na interação, eles contribuem para a produção e a reprodução das desigualdades sociais (Lima, 2016). Flávia, mulher, negra, deficiente e em uma relação homoafetiva, tem menos privilégios que sua companheira, também mulher, mas branca e sem deficiência. Analisando apenas sob o ponto de vista do estereãtipo racial e de gênero, a mulher negra no Brasil sofre preconceitos desde a infância, sendo constantemente rechaçada por sua cor de pele, seu cabelo e seus traços físicos (Gomes, 2002). Quando adulta, a mulher negra sofre fetichizações de seu corpo pela sociedade (Duarte, 2009), tem maiores taxas de mortalidade materna e menor expectativa de vida em relação à s mulheres brancas (Cruz, 2004). O racismo é considerado institucional e pode-se inferir que a rede de Flávia ser consideravelmente menor pode ser também decorrente dos preconceitos sofridos durante sua histãria. Também é possível considerar essa hipãtese quando Flávia diz que, mesmo que Amanda já fosse assumidamente homossexual anteriormente, esta não a apresentou para a família por causa do racismo da avã, enquanto Flávia não assumiu a mesma postura. Precisa-se fazer o recorte interseccional para dar destaque a questões que se diferenciam quando analisadas, pois essas mulheres, embora partilhem de muitos desafios parecidos, também tem diferenças notáveis na construção da sua identidade social, o que pode influenciar diretamente na percepção do apoio recebido pelo meio externo.

 

 

Discussão geral

A partir da apresentação e discussão dos achados de cada caso, passa-se agora à  análise cruzada dos casos, visando à  elucidação dos aspectos similares e divergentes identificados entre eles. No que tange à s semelhanças, os familiares de trús das seis participantes sabiam tanto da coabitação quanto da relação homoafetiva. A descoberta dessa realidade ocasionou conflitos em todas as famílias, achado que corrobora estudos prévios referentes à s dificuldades encontradas por homossexuais quando precisam conversar sobre sua orientação sexual com familiares (França, 2009; Matos, Gonçalves, Andrade & Schmidt, 2012; Palma & Levandowski, 2008). Conforme França (2009), as reações mais comuns dos pais e mães englobam choque, raiva, sentimentos de culpa e, por vezes, negação e vergonha, como observado no presente estudo. Já os irmãos, de acordo com França, tenderiam a ficar confusos, com raiva e desenvolverem um distanciamento afetivo, comportamentos esses visualizados nos casos estudados. A coabitação não foi aceita pelas famílias, incluindo aquelas que já conheciam a orientação sexual das participantes. Essa reação demonstra que a coabitação possivelmente desperta discursos homofãbicos nas famílias, devido à  visibilidade que dá à  relação homoafetiva.

Entretanto, apesar da reação inicial, principalmente pais e mães demonstraram aceitação do relacionamento homoafetivo das participantes, havendo a posterior retomada das relações. Esse achado corrobora a literatura. Em estudo com seis mulheres homoafetivas no Rio Grande do Sul, Palma e Levandowski (2008) também identificaram que a informação havia gerado uma crise familiar, embora algumas delas tenham retomado o relacionamento com a família de origem posteriormente.

Estudos mostram que a família passa por um luto ao saber da orientação sexual do/a filho/a, pois há uma quebra nas expectativas sociais nele/a depositadas. Assim, torna-se necessária a criação de um novo espaço, para que as novas concepções de relacionamento possam ser formadas em prol da aceitação da pessoa como ela é (Goldfried & Goldfried, 2001). Assim, o processo de aceitação das famílias mostra um avanço social na forma de encarar a homoafetividade. Contudo, apenas Ester e Carolina pareceram alcançar a aceitação de todos os membros da família frente ao seu relacionamento. Ana e Bruna obtiveram aceitação parcial, pois alguns familiares continuavam apresentando rechaço, enquanto que, para Amanda e Flávia, essa rejeição pareceu ser ainda maior, já que apenas um número restrito de familiares lidava bem com a questão. Nesse sentido, apenas Ester e Carolina se sentiam realmente apoiadas por suas famílias quanto à  sua relação. Ana e Débora, apesar de a família disponibilizar algumas formas de apoio, preferiam não aceitá-lo, para que os familiares não pudessem interferir em suas decisões. Já em Amanda e Flávia existia uma diferença quanto à  percepção do apoio familiar: enquanto Amanda mencionou alguns membros em seu MMRA, apesar de não citá-los como apoio na entrevista, Flávia se sentia apoiada apenas por uma pequena parcela de seus irmãos, citando-os tanto no MMRA quanto na entrevista.

Quanto aos/as filhos/as, percebeu-se que as trús mulheres que tinham filhos homens adolescentes oriundos de um relacionamento prévio enfrentaram dificuldades com a aceitação da relação homoafetiva. Embora não havendo filhas adolescentes entre as famílias estudadas, apenas crianças, estas demonstraram maior aceitação do relacionamento, algumas vezes considerando a companheira também como mãe. Da mesma forma, os filhos homens que ainda não haviam entrado na adolescência aceitaram melhor essa relação, em comparação aos adolescentes. Nesse sentido, pode-se pensar tanto na questão da masculinidade quanto da adolescência desses filhos, comentada por França (2009). Devido à  necessidade de lidar com seus próprios conflitos sexuais, a autora recomenda que a comunicação aos filhos seja feita antes da adolescência. Estudos prévios já haviam apontado o benefício de isso ocorrer ainda na infância ou somente ao final da adolescência, pois no início ou metade da adolescência os pontos de tensão e rebeldia entre pais/mães e filhos/as ficam mais acentuados (Zambrano, 2006). Assim, os conflitos desses casais com os/as filhos/as podem decorrer da etapa de vida na qual eles/elas se encontram.

Ainda, se pode pensar que o machismo expresso no preconceito dos filhos homens à  situação conjugal e amorosa de suas mães tenha raízes histãricas. Quando se analisa a configuração do padrão de família nuclear, verifica-se que, no século XIX, o ideal burguús de família era calcado no papel da mulher que cuidava obedientemente da casa, do marido e dos filhos, e no papel do homem que era o "proprietário" desta família e provia seu sustento financeiro. Contudo, Pereira e Schimanski (2012), ao refletirem sobre os papeis familiares construidos ao longo da histãria, afirmam que não se pode tomar como padrão de normalidade um ideal socialmente construido, porque esse subjugava a mulher à  posição de objeto de dominação do homem – dominação essa utilizada como forma de controle dos corpos pelo Estado. Nesse sentido, pensando justamente na ideia de dominação, encontra-se essa ideia que ainda permeia a construção social dos indivíduos (o que chamamos de machismo) e que também pode explicar o preconceito desses filhos homens. Afinal, se a ideia de família "estruturada" está ligada à  presença masculina, quão difícil será legitimar socialmente um casal de mulheres que exerce em conjunto a maternidade?

Ficou evidenciado o sofrimento de Bruna e Flávia diante da rejeição dos filhos mais velhos, o que inclusive resultou num afastamento real deles. A partir disso, pode-se perceber a importância do apoio dos/as filhos/as para o bom funcionamento da família homoafetiva, pois essa não aceitação gerou preocupações e conflitos conjugais. Esse panorama reforça a importância do apoio familiar no contexto da família homoafetiva, já apontado por outros estudos (Corrúa, 2012; Lomando, 2008; Zauli, 2011), bem como as dificuldades envolvidas no compartilhar de informações sobre a homoafetividade tanto para a família de origem quanto para os/as filhos/as (França, 2004).

A importância da percepção do apoio recebido das prãprias parceiras (embora nem sempre mencionadas no MMRA) também apareceu como um aspecto semelhante entre os casos. Em qualquer família, o companheirismo do casal é fundamental para uma relação harmoniosa e duradoura (Corrúa, 2012; Dessen & Braz, 2000) e, conforme Lomando (2008), na atualidade, os relacionamentos homoafetivos tem sido marcados por uma maior valorização do afeto e da flexibilidade. A literatura alega que os relacionamentos entre mulheres (lésbicas ou bissexuais) são caracterizados por ampla comunicação, altos níveis de ternura, carinho e delicadeza, além de grande apoio psicológico e forte companheirismo (Palma & Levandowski, 2008), o que está de acordo com as falas das participantes do presente estudo, que destacaram o companheirismo, o apoio mútuo e a amizade.

No que tange à s relações de amizade, todas as participantes consideraram que ao menos um/a amigo/a lhes prestava algum tipo de apoio. Bruna e Débora mostraram-se mais "fechadas", não considerando ter muitos/as amigos/as com quem contar, citando principalmente a madrinha da filha. Ao contrário, uma rede considerável de amigos/as para apoiar diferentes necessidades foi evidenciada por Ester e Carolina. Também Amanda e Flávia, apesar de diferenças quantitativas em seus MMRA, pareceram considerar as amizades como fonte de apoio mais significativa. Tais achados corroboram a literatura, que aponta a importância do apoio dos/das amigos/as para os casais homoafetivos (Corrúa, 2012; Lomando, 2008; Medeiros, 2006; Zauli, 2011). Não se pode dizer que a rede de amizades é maior em famílias homoafetivas, entretanto, percebe-se que alguns deles consideram os/as amigos/as como fonte de apoio mais importante que os familiares, justamente pela ausência de apoio da família, observada em Amanda.

Constatou-se que, embora todos os casais já tivessem enfrentado algum preconceito pela homoafetividade, as entrevistadas referiram não esconder sua relação em seus locais de trabalho. Essa atitude pode ter sido gerada pela segurança em relação à  sua orientação sexual, possivelmente devido à  ausência de situações de violência homofãbica e a uma maior difusão de informações na sociedade sobre a configuração familiar homoafetiva. Situações de homofobia podem impedir a abertura da vida afetiva no ambiente de trabalho, como indicado por Irigaray e Freitas (2011) em estudo com 18 mulheres lésbicas que trabalhavam em empresas privadas do Rio de Janeiro. A não exposição da orientação sexual foi considerada uma estratégia de sobrevivência no trabalho, pelo medo do preconceito e da desqualificação laboral. Diante disso, o panorama encontrado no presente estudo mostra-se favorável, mesmo com as entrevistadas residindo em cidades pouco populosas, o que dificulta o ocultamento e a privacidade. Sendo assim, o diálogo sobre a família no ambiente de trabalho se impôs como possibilidade até mesmo pelo conhecimento prévio das pessoas sobre sua situação conjugal.

Nessa perspectiva, embora tenham sido encontradas algumas situações de preconceito no ambiente de trabalho, oriundas de algumas pessoas específicas, a RA estabelecida pelos colegas mostrou-se importante para garantir a segurança necessária no enfrentamento dessas eventuais situações de discriminação. Percebe-se, então, que a abertura ao diálogo com os colegas sobre questões pessoais parece ter sido benéfica, pois possibilitou o apoio a essas mulheres em seus locais de trabalho.

De qualquer forma, foi possível constatar nas participantes uma escolha muito criteriosa das pessoas com as quais estabeleciam intimidade. Tal atitude pode ser vista como uma estratégia de enfrentamento contra a discriminação e a favor do apoio social, muitas vezes anterior à  formação do prãprio casal. Estudos mencionam que a aceitação da prãpria orientação sexual é prévia à  assunção de uma relação homoafetiva, visando à  preparação para o enfrentamento dos preconceitos sociais (França, 2004; Goldfried & Goldfried, 2001). Visto que nesse estudo as famílias já estavam constituídas, o processo de aceitação anterior pode explicar as medidas de defesa acima referidas, que parecem estar diretamente relacionadas com a forma como essas mulheres percebem o apoio da sua rede. Esse tipo de comportamento ficou evidenciado nos trús casais.

No que tange à s relações comunitárias, percebeu-se, em todos os casos, pelo menos uma das participantes fazendo referência à  religião como fonte de apoio. A religião tem sido apontada como importante fonte de apoio, atuando como auxílio no enfretamento da dor e do sofrimento, diminuindo a ansiedade e a depressão, além de permitir maior contato e interação com outras pessoas, gerando a sensação de pertencimento (Silva & Moreno, 2004; Valla citado por Cerqueira, 2007). Essa sensação de pertencimento e a formação de novos vínculos parecem aspectos importantes para as famílias homoafetivas estudadas, devido à s situações de preconceito e de não aceitação enfrentadas em diversos grupos sociais, inclusive na prãpria família, com rompimento ou distanciamento. Por outro lado, ao menos uma componente de cada casal referiu já ter sofrido algum tipo de discriminação por parte de pessoas que professam determinada religião, o que pode estar relacionado aos preceitos rígidos e heteronormativos da religião, que se unem com crenças e valores pessoais sobre os indivíduos que infringem tais preceitos.

Como já mencionado, o preconceito foi verificado nos trús casais estudados, embora a questão do isolamento social tenha aparecido especialmente em Bruna e Débora, que não se relacionavam com pessoas de diferentes meios para evitar julgamentos e intromissão em suas vidas. Gato e Fontaine (2012) identificaram, em estudo com 1288 futuros profissionais da área psicossocial, jurídica, da saúde e da educação, que o público LGBTTT estaria exposto tanto a preconceitos "tradicionais" como a evitação de contato e a ideia da patologização da homossexualidade, quanto "atuais", relacionados à  rejeição do direito à  conjugalidade e à  maternidade/paternidade. O preconceito é visto como prejudicial para o relacionamento homoafetivo e o desempenho das funções maternas/paternas (Palma & Levandowski, 2008; Rodrigues & Paiva, 2009), devido ao isolamento social destas famílias, que restringe o apoio social.

Analisando particularmente o MMRA das participantes, verifica-se que o tipo de rede predominante foi a localizada. Segundo Sluzki (1997), este tipo de rede é menos flexível e efetiva, pois torna o indivíduo dependente de uma fonte específica de apoio. O principal quadrante utilizado foi o da família, no qual cinco participantes posicionaram o maior número de membros de sua rede. Essas figuras de apoio ficaram centralizadas no círculo mais interno do mapa, que se refere à s relações íntimas, de contato cotidiano e maior comprometimento e envolvimento. Por outro lado, as relações comunitárias apareceram como a fonte de apoio menos relevante. Já quanto ao tamanho da rede, não houve diferença entre o número de redes pequenas, médias ou grandes, quando analisados todos os MMRA conjuntamente. No entanto, houve diferença entre os membros de cada casal quanto ao tamanho da rede, como exposto.

Todavia, a percepção de apoio das participantes pareceu diferir entre a oferta de apoio e o apoio efetivamente recebido. Por exemplo, Bruna e Débora apresentaram a menor RA, embora tenham referido não precisar e nem buscar apoio. Nessa situação, mesmo uma rede pequena possivelmente seja suficiente para suprir suas demandas e necessidades. Já Amanda e Flávia não recebiam apoio da família, mas se sentiam apoiadas pelos demais membros da rede, principalmente pelas amizades. Somente Ester e Carolina apresentaram uma RA mais abrangente e bem distribuída, e uma percepção de apoio que pode ser considerada ideal. Isso porque perceberam o apoio em todos os setores da rede, especialmente nos quadrantes amizade e família, os mais buscados para apoio emocional em situações de crise (Sluzki, 1997). Desse modo, embora alguns casais tenham apresentado restrição da oferta de apoio, a percepção de apoio recebido mostrou-se satisfatãria, o que parece ser importante para a manutenção de um bom funcionamento conjugal e para o exercício da maternidade.

Dentre os aspectos que se distinguiram entre os casais, ressalta-se ainda o apoio percebido em relação à  escola no âmbito das relações comunitárias. Embora as escolas dos filhos adolescentes não soubessem da relação homoafetiva das mães participantes (seja pelo contato menos frequente, seja pelo desejo de resguardar a informação), isso não se verificou nas escolas das crianças. Ester e Carolina mantinham uma relação aberta com a escola da filha menor (o que não as protegeu de passar por situações de preconceito), enquanto que, no caso de Amanda e Flávia, o papel da companheira nessa relação não era claro, embora ela participasse da entrega dos boletins, por exemplo. Nesse sentido, os achados contradizem em parte Gato e Fontaine (2012), que indicaram ser a escola, depois da família, o contexto de maior discriminação referente ao grupo LGBTTT. Ao contrário, tais achados concordam com outros estudos que indicam que, em relação à s situações de discriminação das crianças, as mães/pais geralmente não reportam a escola, mas, quando isso acontece, julgam que essa instituição não sabe lidar de forma adequada com a situação. Particularmente na pesquisa realizada por Lima (2011), foi observada a invisibilidade das famílias homoafetivas dentro do ambiente escolar, tanto pelo fato de professores e diretores não abordarem essa configuração como um tipo de família, e se colocarem em posição de desconhecimento dos casos em que as famílias falam abertamente sobre isso, quanto pelo fato de as prãprias famílias tenderem a mascarar o relacionamento frente a colegas e professores por receio de sofrerem preconceito, conforme identificado no presente estudo. Sendo assim, no que toca a escola, apenas uma das famílias (Ester e Carolina) considerou-a como fonte de apoio, e mesmo assim de forma não tão significativa quanto a família de origem ou os/as amigos/as, uma vez que tanto encontravam aceitação quanto discriminação. Amanda e Flávia, apesar de frequentarem a escola da filha, o faziam de forma mais reservada, o que não permite uma avaliação mais acurada do apoio. Também em Bruna e Débora, pelo fato de a menina ainda não frequentar a escola, a avaliação desse aspecto ficou comprometida.

Por fim, destaca-se também como diferença entre os casos o apoio do sistema de saúde. Para Bruna e Débora, esse apoio mostrou-se equivalente ao fornecido pelo resto da rede, o que se poderia avaliar como um achado positivo, já que a rede do casal é pequena, com poucos membros em todos os quadrantes. Contudo, verificou-se o medo, por parte da participante que não gerou o bebú, de não ter seus direitos como mãe considerados enquanto não adotar legalmente a filha. Já Ester e Carolina, embora tenham mostrado consenso quanto ao apoio por parte do sistema de saúde, o consideraram menos expressivo que o fornecido pelas amizades e família. Destaca-se que elas referiram só falar sobre sua orientação sexual quando necessário nesse contexto. Por fim, enquanto Amanda percebeu esse apoio como relevante, Flávia não o percebeu, inclusive tendo mencionado uma situação de preconceito de um profissional da saúde durante um atendimento. Desse modo, percebe-se que as relações entre famílias homoafetivas e profissionais de saúde podem se dar de forma insatisfatãria, o que se torna um fator estressante, trazendo consequências importantes para a qualidade de vida dos sujeitos (Cerqueira-Santos et al., 2010; Gato et al., 2010). Nesse sentido, os achados do presente estudo confirmam parcialmente a literatura, que indica um despreparo dos profissionais de saúde para lidar com mulheres homossexuais e bissexuais (Barbosa & Facchini, 2009), o que poderia ser revertido caso os profissionais respeitassem a autonomia das pessoas, suas crenças e preferências (Matos et al., 2012).

 

 

Conclusões

O estudo buscou identificar a percepção de casais de mulheres sobre sua RA e do apoio recebido. A partir de entrevistas e da construção do MMRA com trús casais, encontraram-se mais semelhanças do que diferenças entre elas. Dentre as semelhanças, destacou-se o conflito familiar gerado pela explanação dos sentimentos e atração por pessoas do mesmo sexo/gênero, a dificuldade de aceitação da relação do casal por parte dos filhos adolescentes, o conhecimento da relação homoafetiva no ambiente de trabalho e a percepção do apoio recebido das amizades e da parceira. Ainda, as redes foram estabelecidas de forma localizada, com o maior número de membros desenvolvendo relações de intimidade e comprometimento, e focalizadas na família. A religião emergiu tanto como fonte de apoio quanto de preconceito. Já as diferenças entre os casos referiram-se ao tamanho da RA e ao apoio da família de origem, da escola frequentada pelas crianças e do sistema de saúde.

Evidenciou-se também que, mais do que tamanho ou composição da RA, o que fez diferença para as mulheres foi sua percepção sobre a rede e a satisfação atrelada a ela. Com isso, ao se tratar de apoio social, o aspecto qualitativo parece sobrepor-se ao quantitativo, isto é, a percepção do apoio recebido ou mesmo a disponibilidade da rede em fornecer apoio importam mais do que o seu tamanho e a sua distribuição.

Aponta-se que o estudo foi realizado somente com mulheres, o que não permite conhecer o panorama das múltiplas outras formas de composição familiar. Além disso, não houve avaliação do tipo de apoio que as participantes julgavam receber e nem da RA em momento de crise, o que ampliaria a compreensão do tema.

Outro ponto importante que se destaca é que não foi levada à  análise a autodeclaração das participantes quanto a sua orientação sexual. Nos trús casos as mulheres já haviam tido relações heterossexuais anteriores à  relação homoafetiva atual, sendo muito possível que essas mulheres se autodeclarassem como bissexuais, e não como lésbicas. Entretanto, esse dado não foi confirmado. Por isso, neste estudo não se adentrou nas classificações de relações ou mulheres lésbicas, inclusive por se entender que a bissexualidade é muitas vezes invisibilizada dentro do prãprio movimento LGBTTT e que bissexuais são alvos de bifobia, quando são classificados com a orientação sexual do seu parceiro ao estarem em um relacionamento, ou quando deslegitimam as suas pautas frente ao movimento.

Ainda, este estudo analisou as famílias homoafetivas na perspectiva das mulheres e em uma configuração nuclear – casais de mães com filhos, mas poderia também trazer elementos da teoria queer de gêneros fluidos e relações livres, se acaso houvesse participação de alguma família com tal configuração. Entretanto, isso não impossibilita que os achados deste estudo possam ser utilizados na análise de famílias compostas por homens, pois se observa que, na busca pela aceitação social, muitas relações homoafetivas acabam se adaptando a padrões de relacionamento monogâmico, com possíveis divisões em papeis femininos e masculinos. Isso de forma alguma deslegitima as relações, pois assumir afetos homo/bissexuais e enfrentar o preconceito já são, por si sós, atos de coragem. Além disso, ainda que se entenda como fundamental a discussão sobre a reprodução da família patriarcal em relações homoafetivas, é preciso reconhecú-la como ferramenta de sobrevivência em uma sociedade que utiliza a adequação aos padrões como troca por direitos à  formação familiar, à  reprodução, à  saúde e até mesmo ao convívio com os demais equipamentos sociais.

Diante da falta de investigações brasileiras sobre a RA de famílias LGBTTT e sobre as múltiplas configurações familiares, demonstra-se a necessidade de estudos que considerem as variáveis apresentadas. As discussões sobre as inúmeras formas de relacionamentos, afetos e gêneros autopercebidos se modificam e se ampliam em diversos fãruns de debates, grupos e congressos, sendo temáticas que emergem com muita rapidez na atualidade. Dar destaque para essas configurações auxiliará na reflexão sobre o tema, na quebra de pré-conceitos e na construção de estratégias em diferentes âmbitos para a promoção do bem-estar e da qualidade de vida de indivíduos e de suas famílias.

 

 

Referências

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Recebido em: 18/01/2016

Aceito em: 27/06/2017

 

5 Denomina-se cisgênero a pessoa que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu, bem como com suas características de gênero social.

6 Denomina-se travesti aquela pessoa que não se identifica 100% com nenhum dos dois sexos ou que se identifica com ambos.

7 Denomina-se transexual a pessoa que nasceu com um sexo biológico, mas que se identifica com outro, a ponto de desejar modificá-lo cirurgicamente.

8 Denomina-se transgênero a pessoa que não se identifica com o gênero com o qual nasceu, mas que não necessariamente quer passar por uma modificação cirúrgica. Tanto transexuais quanto transgênero se identificam com a forma cultural e social de outro gênero, não estando essa identificação associada à  orientação sexual, necessariamente.

9 Identifica-se como gênero não binário aquelas pessoas que se enxergam enquanto homem e mulher, ou nem enquanto homem nem enquanto mulher, podendo ou não ser um gênero fluido.[/fn][/fngrp]

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