SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número2Uma abordagem cognitivo-comportamental do uso prejudicial de jogos eletrônicosSignificações imaginárias sociais e novos modos de sofrimento no trabalho: contribuições a partir da sociologia clínica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.11 no.2 Belo Horizonte jul./dez. 2018

https://doi.org/10.36298/gerais2019110210 

ARTIGOS

 

Ah, bruta flor do querer! O discurso do CRAS na perspectiva psicanalítica

 

Oh, brute flower of desire! The discourse of CRAS through psychoanalytical perspective

 

 

Thayane Bastos Moura DiasI; Wilson Camilo ChavesII; Fuad Kyrillos NetoIII

IUniversidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Brasil. E-mail: thayanebastospsi@hotmail.com
IIUniversidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Brasil. E-mail: camilo@ufsj.edu.br
IIIUniversidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Brasil. E-mail: fuadneto@ufsj.edu.br

 

 


RESUMO

Neste artigo procuramos elucidar aspectos do discurso presente no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) a partir da escuta psicanalítica. Para tanto, seguimos por uma reflexão orientada pelos pressupostos teórico-metodológicos da Psicanálise. Ao analisarmos o discurso que permeia a instituição Cras, verificamos que o significante mestre (S1) da inclusão pressupõe um sujeito que pode vir a ser amparado pela Assistência Social. Mas quando o sujeito endereça sua demanda ao CRAS, ele se depara com o Outro (A ), institucional, que se pretende onipotente, mas que também é barrado, que porta em si uma falta. Nesse momento, não cabe ao psicanalista escutar a partir do discurso institucional. Pois tal posicionamento impossibilita que o próprio sujeito se posicione perante seu desejo. Ao psicanalista, como operador do singular, cabe diferenciar-se de uma óptica predominantemente assistencial que prioriza o aspecto material em detrimento das urgências subjetivas das famílias/sujeitos.

Palavras-chave: Cras. Psicanálise. Discurso. Sujeito. Desejo.


ABSTRACT

This article intends to elucidate aspects which are present in the discourse of Social Assistance Reference Centers (Cras) from the psychoanalytical listening perspective. For this, there is a reflection guided by theoretical and methodological assumptions of Psychoanalysis. Analyzing the discourse that permeates Cras institution, it was verified that the master-signifier (S1) of inclusion presupposes an individual who can be supported by Social Assistance. Despite that, when the individual searches for support at Cras, he or she faces the Other (A), institutional, who intends to be omnipotent, but is also blocked, and has his own fault. In this moment, the psychoanalyst cannot listen from the institutional discourse perspective, because it would make impossible for the individual to position himself before his own desire. For the psychoanalyst, as an operator of the singular, it is necessary to differentiate himself from a welfare predominant view that prioritizes the material aspect to the detriment of subjective urgencies of families/individuals.

Keywords: Cras; Psychoanalysis. Discourse. Individual. Desire.


 

 

A Política Nacional de Assistência Social vem responder a uma demanda social de mudança de paradigma na Assistência Social que garanta o direito ao acesso às políticas públicas de forma universal daqueles que (sobre)vivem em situação de risco social, na qual a extrema pobreza é um fato. Nesse ínterim, a política de Assistência Social, como direito, vem aos poucos se efetivando mediante a transferência de renda e os demais programas e serviços, ofertados nos aparelhos institucionais municipais, que integram a perspectiva de saída dessa população da situação de vulnerabilidade social.

O Centro de Referência de Assistência Social (Cras)1 é a unidade de atendimento, "porta de entrada", para acesso aos direitos, com caráter genuinamente socioassistencial. Ser a instituição que faz o primeiro contato e acolhe o público da Política de Assistência Social se traduz em uma maneira de operar no CRAS, que deve ir ao encontro da eficácia entre demanda e oferta. Essa relação produz nos operadores da política o sentimento de obrigatoriedade da resolução imediata do problema do "usuário", seja via serviços nela oferecidos que são voltados para a solução das questões do direito e da necessidade daqueles que buscam o atendimento, seja via encaminhamentos para outros setores da rede municipal. Nesse sentido, o objetivo elementar dessa política pública é que o público-alvo desenvolva sua autonomia a partir do fortalecimento dos laços entre a família e a comunidade por meio da perspectiva de inclusão em programas e serviços sociais. Essa é a grande aposta das ações realizadas no Cras, que são ancoradas no pressuposto de que ali existe um usuário que precisa restituir sua cidadania; ou seja, que é tomado como sujeito de direito.

Contudo, o trabalho realizado a partir da teoria psicanalítica no âmbito da instituição pública se dá a partir do diverso, imerso em um discurso do comum para todos, que leva em conta o trabalho com o sujeito em sua alteridade. Dessa forma, para apreendermos o discurso no qual o sujeito está imerso na instituição, propomos uma breve análise da instituição Cras. Para tanto, seguimos a orientação de Dunker (2013, p. 63) ao apontar que, quando estamos pesquisando a partir do olhar psicanalítico, devemos nos interrogar sobre "em que condições um acontecimento é relevante, do ponto de vista clínico, para interrogar a teoria psicanalítica". A primeira suposição (suposição elementar) apontada por esse mesmo autor é que a esse acontecimento se possa aplicar a hipótese do inconsciente e/ou suas possíveis incidências, de maneira que uma possível posição na pesquisa em Psicanálise vincula a hipótese do inconsciente ao contexto no qual ele se aplica. Ao afirmarmos esse vínculo, estamos introduzindo a hipótese do inconsciente em um contexto em que ela não está prevista, fora da situação tradicionalmente clínica. Colocarmos a instituição Cras na condição de analisante afirma a Psicanálise não somente como um método de investigação dos processos mentais, mas também como um método de investigação que proporciona um nível atento de generalização para uma determinada situação a ser analisada. Nesse sentido, Dunker (2013) aponta três condições para a construção de evidências clínicas no espaço da Psicanálise Aplicada, correlatas ao nosso método de pesquisa, a saber: a recordação, a implicação e a transferência, de modo que:

A recordação: isto é, um discurso que possa se guiar pela história e pelas filiações e contingências que ela implica; A implicação: isto é, um discurso que possa se interrogar eticamente sobre as formações de estranhamento com as quais se depara; A transferência: isto é, um discurso que se articule em relação a uma suposição de saber, que se faça, portanto, pelo menos intenção de diálogo. (p. 71)

Assim, a teoria psicanalítica é tomada nesse contexto a partir do momento em que analisamos a maneira como o Cras se articula e como essa articulação tem impacto no posicionamento do sujeito que dele necessita, ainda que, e sobretudo, seja de maneira inconsciente. Tal postura analítica se formaliza por meio de um interlocutor atento aos estranhamentos que emergem no cotidiano da instituição. A partir de sua ética, a Psicanálise pode dar luz aos impasses da prática quando sinaliza a presença de diferentes discursos no contexto do Cras. Imprescindível lembrar que a teoria dos discursos de Lacan fundamenta as formas de se fazer laço social, ponto crucial na clínica para se entender a posição do sujeito no social. Dessa maneira, o psicanalista escuta, nos diversos ambientes, a partir do desejo.

Lacan (1969[1970]/1992) caracteriza o discurso como uma estrutura além da fala e que tem sua manifestação em quatro estruturas: o Discurso do Mestre, o Discurso do Universitário, o Discurso da Histérica e o Discurso do Analista. Tomaremos como eixo central para esta análise o "Seminário 17: O avesso da Psicanálise" com uma explanação da teoria dos discursos em Lacan, ainda que ele a retome em seminários posteriores. Segundo Lacan (1969[1970]/1992), os discursos são formas de uso da linguagem que estruturam o laço social a partir da articulação da cadeia de significantes. Por meio da elaboração dos matemas, Lacan consolida a teoria dos quatro discursos, na qual existem quatro posições permanentes e quatro termos que circulam por um quarto de giro nessas posições. Vejamos:

 

 

De modo que a posição do Agente é o que organiza o discurso, o Outro é para onde o discurso se dirige, a Produção é aquilo que é produzido pelo discurso e a Verdade é o que sustenta o discurso. Os termos presentes em cada discurso são representados por: S1, S2, $ e a.

A primeira forma estrutural do discurso é aquela em que um significante (S1) representa um sujeito ($) ante outro significante (S2), em que temos o Discurso do Mestre:

 

 

O Discurso do Mestre representa o saber de maneira totalizada como mediador do laço social. É a partir da estrutura do Discurso do Mestre que obtemos as demais estruturas com um quarto de giro. São essas estruturas que Lacan denominou de quatro discursos radicais. Lacan coloca que não é por acaso que ele formaliza primeiro o Discurso do Mestre, pois, entre os quatro discursos, é este que representa o sujeito ($) diante de outro significante. Ou seja, é ele que o anuncia. É ele que dá estrutura aos demais discursos.

Uma variação desse discurso, de onde pode se originar um $, tem o significante mestre (S1) colocado na posição de saber, o significante (S2) na posição de produção, o objeto a na posição de verdade, e o sujeito ($) na posição de agente, irrompendo em uma histerização do discurso. Vejamos:

 

 

O Discurso da Histérica se estrutura na colocação do sujeito ($) como agente na produção de um saber, a partir de uma falta (a) que o sustente, como coloca Lacan (1969[1970]/1992, p. 22): "o que conduz ao saber é o discurso da Histérica". A estrutura desse discurso diz de uma busca por um Mestre que responda à falta (a) do sujeito ($). Esse discurso é operado pelo sujeito da falta a partir da suposição do saber no outro. Esse modo de operar pela falta, Lacan pontua que o eixo pivô que estrutura o Discurso da Histérica é o sintoma, que diz do não sabido.

Podemos inferir, portanto, que o Discurso do Mestre e o Discurso da Histérica se complementam, na medida em que não há produção de um saber sem a suposição de saber no outro. Isto é, esse trabalho apenas se instaura quando há lugar para um Mestre. O Discurso do Mestre tem sua importância, então, pois não há apontamento para o sujeito sem esse lugar de Mestria. Ou seja, o Mestre se posiciona como mola na produção de um saber, de forma que "o que a histérica quer é um Mestre", como afirmou Lacan (1969[1970]/1992). Há, aqui, a posição do sujeito, que, por definição, é barrado ($) e que entrega ao Outro a produção do saber sobre si. Dessa forma, não há instituição sem esse lugar de Mestre que propulsiona um saber. O que pode vir a ser um mal-estar na instituição é a hegemonização do discurso amparado na ficção de um saber completo e definitivo e a cristalização desse discurso na condução dos casos, em que a possibilidade do sujeito ($) trabalhar em um saber próprio fica esvaziada. Não há como desconsiderarmos que o Discurso do Mestre é o que faz exigência para o sujeito na instituição. É necessário, contudo, que haja um relativo distanciamento do Discurso do Mestre na forma de se conduzir os casos no Cras e que dê lugar para que o Discurso do Analista apareça.

O que estamos evidenciando, aqui, é que o Discurso do Mestre, enquanto tomado por si só, é o avesso do Discurso do Analista, já que o Discurso do Analista se difere desse lugar de Mestria. Nele, o analista ocupa o lugar de semblante do objeto a. Isto é, no Discurso do Analista, ele não funciona como Mestre que detém o saber sobre o sujeito, mas, sim, como objeto causa de desejo, que leva o sujeito ($) a produzir seu próprio saber.

 

 

Nesse sentido, evidenciamos que essa operação é fundamental para que o sujeito ($) se desvencilhe dos significantes institucionais aos quais fica alienado. Quando o analista acolhe uma demanda endereçada à instituição e a deixa em suspenso, podemos dizer que há, aí, um efeito do objeto a como lugar de agente. Esse é o lugar do analista que faz operar o desejo.

Dentre essas possibilidades, detectamos, ainda, a presença de outro discurso no contexto das Políticas Públicas e, sobretudo, na política de Assistência Social. Com mais um quarto de giro na estrutura discursiva, chegamos ao Discurso Universitário, em que o saber (S2) está colocado como agente do discurso de forma a tamponar a falta ou o não saber.

 

 

 

Temos, aqui, uma articulação discursiva que trata o usuário como objeto (S2 a) e produz um sujeito que é evidenciado como agente de transformação de sua realidade a partir da Participação Social, uma das principais diretrizes da Política Nacional de Assistência Social. Tal necessidade de Controle Social está amparada no discurso da conscientização política dos usuários a partir de um saber. Essa estrutura discursiva pressupõe um usuário que é agente e capaz de transformar sua realidade por meio da cidadania. O sujeito, nesse discurso, fica redutível à qualidade do sujeito do conhecimento, que, por essa via, pensa e age racionalmente! Na maneira de se fazer laço nesse discurso, há produção de demandas que não aludem ao sujeito singular, uma vez que a posição de sujeito é deslocada para o cidadão que tem demandas sociais.

Para exemplificarmos, podemos narrar uma cena. Na VII Conferência de Assistência Social da cidade de São João del-Rei, realizada em 2015, uma usuária do Cras foi convidada para compor a mesa de abertura como representante dos usuários dessa mesma cidade, como forma de dar ênfase à importância da Participação Social. O interessante é que essa pessoa que foi encarregada para tal tarefa não entendia o que estava fazendo ali, ainda que portasse em sua fala significantes produzidos por um discurso, à maneira de uma citação, como ressalta: "Todo mundo tem que participar para melhorar o acesso aos nossos direitos".

E essa fala é a que vem operando na Política de Assistência Social.Como coloca Lacan (1969[1970]/1992), trata-se de um enunciado que só se valida a proporção que se articula a esse discurso, mas que não tem efeito de sentido para o sujeito, já que não o representa como significante. Não sem consequências para o nosso campo, o Discurso Universitário se traduz na produção de novas demandas, como melhoria nos equipamentos, efetivação dos profissionais etc.

É necessário ressaltarmos que, ao retomarmos a teoria dos discursos, colocamos em evidência, aqui, a universalidade do discurso que o Cras nos anuncia, ainda que não deixemos de lado as particularidades da enunciação deste. Estamos atentos à suposição de que a detenção de um conhecimento que universaliza o objeto arrisca-se em apagar a manifestação singular deste. Mesmo que instaurada como instituição universal que vem cada vez mais sendo implantado em praticamente todo o território brasileiro, não perdemos a dimensão singular da maneira como cada Cras se institui, em uma cidade específica, dentro de um território que tem características particulares, com profissionais que trabalham de maneira singular. De maneira ainda que cada sujeito que ali endereça sua demanda singular, mesmo que espere dessa instituição uma resposta universal que já está prevista, cada sujeito que se utiliza da instituição Cras a significa à sua maneira. Ou seja, a perspectiva da instituição é considerada única para cada "usuário" que dela usufrui, de forma que tal instituição não existe sem esses sujeitos.

O que percebemos é que há uma marca que está colocada como significante norteador das práticas socioassistenciais ao considerarmos o "usuário" dos serviços um sujeito fragilizado, mas que, ao encontro dos seus direitos, pode vir a ser um sujeito empoderado, inclinado à completude; isto é, totalizado. Quando o "usuário" chega até o Cras, o acolhimento desse sujeito é realizado de forma a incluí-lo em uma rede que envolve a garantia dos direitos: os benefícios. O que norteia as ações realizadas no âmbito da Assistência Social converge para a dimensão do acesso ao direito daqueles que são excluídos dessa esfera. Ou seja, o que justifica e significa a instituição Cras é o significante mestre do usuário-cidadão, que deve ser incluído em uma rede de atendimento, amparado a partir da lei que garante direitos.

Ao retomarmos a teoria dos discursos em Lacan, percebemos que, quando o significante mestre ocupa a posição de agente do discurso, como se verifica no Cras, localizamos, aí, o Discurso do Mestre. Não podemos desconsiderar o Discurso do Mestre na instituição, pois é a partir desse discurso que há uma exigência para o sujeito. No entanto, temos consequências dessa maneira de articular um saber que se traduz na forma de operar no âmbito da Assistência Social. O discurso do direito está atrelado ao discurso do dever, o qual se manifesta em prescrições sociais. Sabemos que o sujeito se aliena ao significante mestre da instituição, já que ele é representado por um significante para outro significante (S1 S2). O significante do usuário-cidadão que opera como significante mestre no Cras tem influências no modo como o sujeito articula seu saber, sua demanda e como esse sujeito faz laço.

Quando imerso nesse discurso, o sujeito não se encontra em posição de produtor de um discurso, mas de receptor de um discurso já pronto que o sujeito mantém em termos de demandas sociais. Nesse sentido, não raramente ouvimos, nos bastidores do Cras, usuários que, ao se alienarem no discurso da cidadania, manifestam sua falta constantemente em demandas sociais, de maneira que essa demanda vai circular em diferentes objetos, os diversos benefícios; e, quando na impossibilidade de seu desfecho, coloca no outro a culpa por sua frustração. A demanda, quando é localizada na identificação com a situação coletiva de exclusão, não se articula ao desejo, que é da ordem do individual, do subjetivo. Há, aqui, uma hiância entre os objetos pré-formulados que aparecem na tentativa de preencher uma falta, e é via esse furo que o trabalho começa, na orientação para a produção de um sentido, ainda que obscuro.

Não obstante, ao endereçar sua demanda à instituição, o sujeito se depara com a resposta desse Outro () institucional que se mostra onipotente, embora também seja barrado. Quando percebemos, por exemplo, que alguns usuários recusam certos benefícios, ainda que deles necessitem, deparamo-nos com a produção de um saber que não se articula com o significante mestre da instituição. A resposta que o sujeito busca na instituição, em muitos casos, não pode ser dada. Ela será construída a partir de um diálogo. Nesse sentido, quando nos implicamos em analisar os desdobramentos do discurso socioassistencial que se revela no Cras, a interrogação que colocamos nessa instituição se dá como questionamento das modalidades pelas quais o discurso instituído enquadra os sujeitos, de modo a acolher a singularidade que ali chega às suas contingências. Ao nos depararmos com questões que não encontram uma resposta pronta, percebemos que é necessário que o profissional, de alguma forma, suporte o distanciamento do saber socioassistencial, para que seja possível um reposicionamento desse sujeito que coloca suas questões para a instituição. No endereçamento de uma demanda à instituição, há uma suposição de saber sobre algo que não é sabido pelo sujeito, algo que explicitamente diz de suas necessidades concretas, mas também que diz das incidências do seu inconsciente. Há, aqui, a ficção de que o saber não conhecido pelo sujeito é localizado nesse Outro, e é a partir da formação desse suposto saber que a transferência ali se instaura. Nesse contexto, cabe ao psicanalista, operador do singular, se diferenciar desse lugar que lhe é atribuído, do profissional detentor do saber totalizante sobre o sujeito, para que ali possa se construir um projeto de saber.

A consideração do desejo pode ser a via de separação do sujeito desse significante ao qual está alienado. Nesse sentido, no item que se segue, propomos trazer um recorte do caso de uma família que utiliza os serviços do Crascomo possibilidade de situarmos o sujeito irredutível ao discurso socioassistencial ali presente.

 

"Ah, Bruta Flor do Querer!" O Caso Rosa

A fim de analisarmos a demanda que nos é endereçada no Crase os impasses que os profissionais e o sujeito encontram para seu possível desfecho, trazemos o fragmento de um caso, orientado pela escuta psicanalítica. Salientamos que o relato desse fragmento segue as regras éticas de preservação da identidade dos envolvidos. Para tanto, usaremos nome fictício, a saber: Rosa. Destacamos o caso de uma mulher beneficiária do Programa Bolsa Família e frequentadora dos serviços ofertados no Crassituado em uma cidade do interior de Minas Gerais, que nomeamos de Rosa. Trata-se de uma mulher por volta dos 30 anos e mãe de quatro filhos (três meninas e um menino). Rosa nos conta que teve sua filha mais velha quando era muito jovem. Por causa da gestação, cessou os estudos e amasiou-se com o primeiro parceiro. Separou-se do primeiro companheiro, alguns anos depois, e logo se uniu a outro, com o qual teve os três últimos filhos.

Rosa, entre pétalas e espinhos, procurou os serviços socioassistenciais, pois seu atual companheiro e ela estavam desempregados. Diante de inúmeras dificuldades, principalmente financeiras, Rosa foi vinculada ao Programa Bolsa Família, que auxilia a família na aquisição de produtos básicos de alimentação, vestimentas, material escolar e, ainda, na moradia. Um aspecto singular no caso de Rosa nos chama atenção, a saber: a família (mãe e crianças) frequenta as atividades ofertadas no Crasde forma ativa, muitas vezes como meio de facilitar a concessão de outros "serviços paliativos", os benefícios eventuais, como a cesta básica. Seus filhos participam de oficinas lúdicas próprias para a faixa etária de cada um. No entanto, Rosa procura o profissional em Psicologia do Crase diz querer participar do Grupo de Mães, já que passa por algumas dificuldades no âmbito familiar, segundo ela.

Diante de seu pedido, Rosa foi encaminhada para o grupo informativo, mas percebemos que, em diversos momentos, essa mulher utiliza o grupo como espaço para falar de questões bem singulares, de seu querer. Com o intuito de preservar o sigilo de Rosa e de manter o caráter informativo do Grupo de Mães, marcamos momentos individuais, para os quais chamamos de "entrevistas". Foi nesses momentos que Rosa trouxe à tona circunstâncias que vivencia, conflitos que precisa resolver, mas que não encontra uma saída para tal.

Em um determinado dia, Rosa contou que, ao descobrir e compartilhar que estava grávida do quarto filho, seus familiares e os profissionais da rede municipal que a acompanham reagiram de forma negativa. Como pode Rosa estar grávida de mais um filho nas condições em que sua família se encontra? Mas Rosa espera pelo seu primeiro filho do sexo masculino ansiosamente. Na iminência da chegada do quarto filho, Rosa recebe conselhos dos operadores da Assistência Social para usar métodos contraceptivos e até conseguem marcar para ela uma cirurgia de laqueadura pelo SUS. Mas interrogamos: o que quer Rosa? Ela relatou não querer fazer a cirurgia, já que, para ela, não havia nenhum sentido não poder ter outros filhos, como retrucou de forma decidida: Se eu me casar com outro homem, vou querer dar a ele outros filhos.

Parece que o lugar de mãe que Rosa ocupa é insubstituível. Mesmo que encontre outro homem, ela deixa vazio o papel de mulher, sendo a maternidade uma função importante que perpassa o desejo desse sujeito. O querer "presentear" o parceiro com um filho e seus cuidados, de certa forma, ultrapassa suas necessidades mais atuais e concretas.

Num segundo momento, Rosa relatou que havia sido incluída no programa Minha Casa Minha Vida, em que conseguira uma moradia popular. Nesse momento, Rosa se vê inserida em um conflito entre ganhos e perdas. A aquisição da casa ajudaria nas questões financeiras, já que Rosa paga o aluguel da casa em que vive com o dinheiro do Programa de Transferência de Renda e com o que o seu companheiro consegue adquirir por meio de "bicos". Nas suas palavras, deixaria, ainda, um imóvel para seus filhos. Apesar dos ganhos, Rosa resiste em aceitar a proposta. Segundo ela, mudar para "as casinhas"implicaria deixar para trás um território onde laços de solidariedade foram construídos. Os vizinhos, que a ajudam na educação dos filhos e até na alimentação deles quando necessário, seriam deixados. Mas, em outro momento, Rosa declarou outro fator, não menos importante para ela, que a faz não querer se mudar para "as casinhas". Segundo ela, lá reside a "ex" do seu atual parceiro e ela não queria correr o risco de que eles ficassem tão próximos.

Nesse recorte, podemos situar a trama do caso. Imersa em uma diversidade de conselhos, prescrições, encaminhamentos e inclusões beneficiárias, uma interrogação é colocada à Rosa, e por essa via ela vacila entre tomar para si essas "soluções" e a maneira singular de se inscrever no laço social a partir do entrelaçamento dos significantes mãe/mulher. Ora, não é isso que Lacan chamou de histerização de um discurso totalizante que aponta um saber para que nele se opere? Como efeito desse significante, algo se apresenta como significado em suas demandas; ou seja, como o desejo circula em suas questões a partir da passagem por esse significante em seu deslizamento em cadeia. E é no nível desse cruzamento que o desejo de Rosa encontra o Outro. Ao ser irredutível aos encaminhamentos socioassistenciais, Rosa sinaliza um saber que não encontra ponto de amarração com o significante mestre da inclusão predominante no Cras. Nos encontros que tivemos, ela pôde ressignificar sua posição a partir da ficção de que a instituição lhe daria uma resposta para sua questão. Lembremos que esse Outro () do Crastambém é barrado e que o saber que é demandado a ele é suposto.

Quando há abertura para que fale de suas questões, Rosa coloca que tem medo de ser "abandonada". Nesse momento, podemos dizer que a instituição falha ao propor o amparo restrito aos direitos socioassistenciais, pois o desamparo que aparece na fala de Rosa é de outra ordem. Esse medo da derrelição aparece nas "contrarrespostas" de Rosa como forma de repetição em suas recusas a determinadas prescrições. O que está articulado a essa repetição é uma forma de gozo, como nos lembra Lacan (1969[1970]/1992, p. 47-48):"Como tudo nos indica nos fatos, na experiência e na clínica, a repetição se funda em um retorno do gozo [...] e nessa mesma repetição, produz-se algo que é defeito, fracasso", algo do âmbito da perda. É no lugar dessa perda como resto que se coloca em repetição, que aparece a função do objeto a, lugar onde opera o analista. Lembremos que Rosa está institucionalmente amparada nas questões de suas necessidades, de maneira que existe a demanda e a oferta: quando tem fome, a cesta básica; para não engravidar, os métodos contraceptivos; quando não tem casa, a moradia popular. Mas na estrutura de sua fantasia, há o desamparo e o medo do abandono. Há um resto que diz do desejo de Rosa que não se articula à oferta dada a ela, algo da ordem do não realizado. Nesse sentido, é o querer de Rosa, visto pelos operadores da Assistência Social como repetição do capricho, que anuncia a reveladora impossibilidade desse Outro que se mostra onipotente e amparado em respostas universais.

Algumas questões como essas que foram relatadas aqui são recorrentes nos bastidores da Assistência Social. As interferências subjetivas manifestam-se na impossibilidade de acordo entre aquele que demanda e a oferta que lhe é oferecida. As potencialidades e questões subjetivas muitas vezes não são exploradas como potencialidades ou sequer são levadas em conta. Notamos, ainda, certa culpabilização desses beneficiários que colocam seu saber em questão nos serviços de Assistência Social. São vistos como pessoas inertes que "nada fazem para sair da situação de pobreza". A universalização de respostas deixa de lado questões que dizem de um sujeito, de um sujeito que deseja. Nesse sentido, compreendemos que uma escuta diferenciada da que está prevista no Craspossibilita ao sujeito a construção de uma resposta para suas questões. E como resultado dessa escuta, no momento em que Rosa se depara com o seu querer, ela se questiona sobre o que seria melhor, naquele momento, para sua família, e sua decisão foi construída a partir desses pontos. Contudo, é imprescindível ressaltarmos que o trabalho de elaboração da resposta de Rosa só foi possível à medida que o seu saber foi colocado como enigma, o qual provém de uma enunciação. Houve, nesse sentido, uma operação que possibilitou o arranjo de uma responsabilização pelo seu desejo, que se deu a partir de um interlocutor. Notemos que há aqui um efeito retroativo, já que o sujeito volta a ser aquilo que ele era, mas com uma marca. No caso Rosa, a pergunta "O que quer você?" fez retornar para o sujeito o que ela esperava de um oráculo. O Outro é solicitado a responder, mas não existe Outro do Outro, na medida em que ele é também lugar da falta (Lacan, 1949/1998, p. 827).

A posição do psicanalista deve ser de pronta escuta do discurso. Para atingir tal finalidade, o analista deve guardar relativa distância das prescrições institucionais sem que isso signifique que o analista negligencie as questões sociais. Devemos nos ater não apenas ao cidadão, que procura e necessita dos serviços do Cras, mas também ao sujeito em questão, que anuncia uma demanda, que tem um sentido inconsciente, como afirma Lacan (1959[1960]/2008) no "Seminário 7, A ética da psicanálise". Apostamos em uma escuta que pode levar o sujeito a saber o que fazer com essa demanda e se colocar diante do seu desejo que pode vir a funcionar como uma vontade inominável. Ora, nossa presença sustenta a demanda que nos é endereçada, mas ao mesmo tempo a coloca em suspenso. É a partir dessa suspensão que o lugar de vazio aparece, dando possibilidade para que os significantes que estruturam o desejo em questão se articulem.

Nesse cenário, retomar a característica fundamental do desejo, a saber: que o desejo é inconsciente, é relevante na orientação de nossa ação. Dizermos que o desejo é inconsciente nos autoriza a formular que ele é inominável, desconhecido e só se manifestará na divisão do sujeito: em sujeito do enunciado e sujeito da enunciação. Como aponta Garcia-Roza (2007, p. 149), "O sujeito do enunciado é o sujeito social, portador do discurso manifesto. O sujeito da enunciação não é expresso ou significado no enunciado, mas recalcado e inconsciente".

No discurso de Rosa, ouvimos quereres. É a partir dessa escuta que o psicanalista que atua no Craspode intervir, permitindo, na medida do possível, o aparecimento do sujeito da enunciação - do desejo, a partir do sujeito do enunciado - da demanda ou, ainda, do querer. Para que a singularidade do caso possa ser acolhida, é necessário interrogarmos a experiência, de modo a possibilitar uma retificação e a construção de um saber. Acreditamos que, mediante essa operação, o sujeito possa decifrar sua modalidade de inscrição no laço social, no questionamento sobre a sua posição adiante da situação em que ele mesmo denuncia, naquilo que lhe provoca tanto sofrimento, já que, "por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis"(Lacan, 1966/1998, p. 873). Tal responsabilização diz como o sujeito se posiciona perante seu sofrimento, assume uma decisão ou não, aceita, recusa ou modifica sua situação.

 

Referências

Brasil. República Federativa do Brasil. (2004). Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Política Nacional de Assistência Social. Brasília, DF.         [ Links ]

Dunker, C. (2013). Sobre a relação entre Teoria e Clínica em Psicanálise. In C. Dunker. A psicose na criança: tempo, linguagem e sujeito (pp. 63-73). São Paulo, SP: Zagodoni.         [ Links ]

Garcia-Roza, L. (2007). Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1984).         [ Links ]

Lacan, J. (1992). O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1969[1970]).         [ Links ]

Lacan, J. (1998). A subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In J. Lacan. Escritos (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1949).         [ Links ]

Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In J. Lacan. Escritos (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Editora Zahar. (Obra original publicada em 1966).         [ Links ]

Lacan, J. (2003). Ato de Fundação. In J. Lacan. Outros Escritos (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1964).         [ Links ]

Lacan, J. (2008). O Seminário, Livro 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1959[1960]).         [ Links ]

 

 

Recebido em: 19/05/2017
Aprovado em: 19/02/2018

 

 

1 O Cras é uma unidade pública de base territorial, localizado em áreas com maior índice de vulnerabilidade e de risco social do município. Compõe o Sistema Único de Assistência Social (Suas), que desde 2005 marca a unificação das ações em Assistência Social em âmbito nacional. Para mais detalhes ver: Brasil. República Federativa do Brasil. (2004). Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Política Nacional de Assistência Social. Brasília, DF.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons